Folha de S. Paulo
Luciano Huck: Mais formaturas, menos funerais
Brasil precisa de ampla coalizão para enfrentar a desigualdade
“Rezo para que minha família um dia frequente menos funerais e mais formaturas.” As palavras ditas por Douglas, um morador de São Gonçalo (RJ), me chegaram aos ouvidos com o barulho e o impacto de um tiro. O pai de Douglas morreu baleado antes que Douglas tivesse nascido; a mãe dele foi assassinada quando ele tinha 11 anos. O primo, criado como irmão, teve o mesmo destino. Como tantas crianças, ele foi forçado a sair da escola para ajudar a avó que o criou para pagar as contas da casa.
Estávamos no alto da Favela do Quarenta, parte de um complexo de favelas batizado de Coruja, em São Gonçalo, no Rio de Janeiro. Depois de passar algumas horas com Douglas, me pareceu óbvio que ele é uma das vítimas da “loteria do CEP”. Mora em uma das cidades de maior desigualdade social, em um dos países de maior desigualdade social do mundo. Estatisticamente, serão necessárias mais nove gerações antes que alguém da vizinhança de Douglas ascenda à média da classe média.
Douglas não está sozinho. Como apresentador de TV, passei as ultimas duas décadas vendo, ouvindo e compartilhando as histórias de pessoas que vivem em favelas, em regiões remotas e em outras áreas degradadas. Como cidadão ativo e empreendedor social, estive e continuo procurando maneiras de contribuir para dar oportunidades e destravar o potencial de dezenas de milhões de brasileiros em situações de pobreza.
Desde que me entendo por gente, ouço piadas de que o Brasil é o país eternamente à espera de o futuro chegar. O maior obstáculo para esse avanço é a desigualdade, herança direta do colonialismo, da escravidão e de instituições e políticas excludentes —e legado do desdém cínico de uma elite pelos mais pobres. Embora sucessivos governos desde o restabelecimento da democracia, em 1985, tenham conseguido controlar a inflação, implantar políticas sociais e até mesmo reduzir a pobreza, a desigualdade teimosamente permanece alta. Pior: dados recentes mostram que, mesmo com a melhora da economia, a desigualdade voltou a aumentar, colocando em risco os tímidos avanços das últimas três décadas.
O principal culpado é o regime regressivo de impostos e a concessão pouco criteriosa de subsídios que beneficiam, desproporcionalmente, justamente aqueles que mais têm. No Brasil, os milionários pagamos menos imposto sobre a renda e o patrimônio do que nos países democráticos mais desenvolvidos. Enquanto isso, o modelo impõe uma carga duríssima de impostos indiretos sobre os mais pobres.
Se o Brasil quer ter chances de baixar a desigualdade, precisa também de avanços drásticos na cobertura e na qualidade do sistema público de ensino básico. Os mais ricos têm o privilégio de pagar por escolas de ponta, enquanto crianças mais pobres, como o Douglas, têm acesso a um aprendizado de menor qualidade, e frequentemente têm de abortar sua vida escolar, reféns da violência e de pressões financeiras. É o que ajuda a explicar por que ainda temos 11 milhões de brasileiros com mais de 15 anos que mal sabem ler ou escrever.
O Brasil precisa desesperadamente melhorar as condições de ensino de suas 200 mil escolas públicas e torná-las mais eficientes. Em vez de construir e inaugurar prédios novos, o foco deveria ser investir com mais critério, priorizando o treinamento e a promoção dos professores, ensino da primeira infância, continuidade com qualidade nos ciclos seguintes, valorização do ensino técnico e currículos antenados com o século 21. Avanços recentes no ensino, como no Ceará, Piauí e Espírito Santo, comprovam que um progresso rápido é possível.
O enfrentamento da desigualdade requer, ainda, uma rede de proteção mais ampla. Temos aproximadamente 43 milhões de brasileiros em condições de pobreza, e 13 milhões deles em situação de extrema pobreza. É o índice mais alto em sete anos. Inteligência artificial e tecnologias da informação, além de empenho administrativo, podem aperfeiçoar os serviços sociais mais velozmente e eficazmente.
Mas, para tudo isso, o país necessita de novas lideranças. Hoje, a maioria dos brasileiros se vê frustrada. Em 2013, bem antes de manifestações massivas tomarem as ruas no Chile e no Equador, o Brasil assistiu a uma de suas maiores ondas populares de protesto. A eleição presidencial de 2018, que levou ao poder Jair Bolsonaro e seu governo, revelou a extensão e a gravidade da insatisfação dos brasileiros. Com um ambiente tão polarizado, é natural que as opiniões se dividam sobre se Bolsonaro vai conseguir cumprir suas promessas de tornar o Brasil um país melhor.
Para muitos da minha geração, a política ainda é vista como um negócio sujo, a ser evitado. Mas, olhando para trás, eu agora reconheço que erramos. Todos que não se envolveram também são responsáveis por esse ambiente divisionista e desesperançoso. A política não foi um ambiente atrativo para toda uma geração, participamos menos do que deveríamos.
Mas a minha geração e as novas não podem continuar alheias e aceitar as coisas como são. Este é o momento de o Brasil fazer um novo contrato social. O Brasil precisa de uma ampla coalizão política para enfrentar a desigualdade de oportunidades, replicando as boas experiências e as boas práticas, sejam elas da direita ou da esquerda. Principismo ideológico, irredutibilidade e aversão aos fatos não vão gerar políticas públicas eficazes para resolver os problemas mais graves e urgentes do país.
Precisamos de políticos e servidores públicos comprometidos, tecnicamente e eticamente capacitados para o trabalho. Mas a sociedade civil não pode lhes faltar. Em 2017, esses desafios me fizeram ingressar no Agora, um movimento cívico dedicado a mobilizar uma nova geração de líderes que prometeram dedicar pelo menos dois anos de sua vida ao serviço público. Logo depois ajudei a lançar o RenovaBR, uma escola apartidária para treinar potenciais líderes políticos.
Em nossa primeira convocação, atraímos 4.600 interessados que nunca tinham se envolvido com a política. Eles foram cativados pela nossa proposta de “ser o candidato em que gostariam de votar”, independentemente de matizes ideológicas. Dos mais de 120 aprovados para se candidatar, 17 foram eleitos para cargos federais e estaduais em 2018. Na abertura da segunda e mais recente turma, desta vez para as eleições municipais, recebemos mais de 31 mil inscrições.
Novas lideranças apoiadas por grupos como Agora, RenovaBR e tantos outros relevantes movimentos cívicos proporcionam uma visão positiva e inspiradora de um Brasil mais aberto e plural. Estão focados naquilo que de fato importa: gerar oportunidades, diminuir o abismo entre ricos e pobres, fazer da politica um ambiente ético e do Estado uma engrenagem mais eficiente.
Sigo torcendo e empolgado com o país. Se mirarmos a desigualdade com os instrumentos que já estão à nossa disposição, Douglas e milhões de crianças como um dia ele foi poderão frequentar mais graduações e menos funerais.
*Luciano Huck, apresentador de TV e empresário
Demétrio Magnoli: Pandemia do arbítrio representa ameaça maior que o agente biológico do coronavírus
Banimento de chineses não deriva do saber científico, funciona como 'normalização' da xenofobia
A China isolou uma dúzia de metrópoles, 30 ou 40 milhões de habitantes, da província de Hubei. As “medidas extraordinárias diante de um desafio extraordinário”, na descrição elogiosa da Organização Mundial da Saúde (OMS), seriam política e legalmente impossíveis em nações democráticas.
Os EUA proibiram a entrada de estrangeiros que passaram recentemente pela China —e receberam (justas) críticas do regime chinês e da OMS.
Um vírus novo, misterioso, ameaçador entrou na circulação sanguínea de uma tirania totalitária e de um governo xenófobo. A pandemia do arbítrio representa ameaça maior que o agente biológico da doença.
Conceitualmente, o gesto americano não se distingue da “medida extraordinária” chinesa. Se Xi Jinping colocou em quarentena uma província inteira, por que Donald Trump não teria razão ao impor quarentena a um país inteiro? A OMS, que cumpre funções úteis, é um órgão político. Sua glorificação do confinamento compulsório em massa reflete o objetivo de, finalmente, ser admitida como parceira do regime chinês.
Até o momento, o coronavírus provocou menos de mil óbitos, quase todos na China. Segundo estimativas do Centro de Controle de Doenças dos EUA, 8.400 americanos morreram de influenza sazonal só na metade inicial deste inverno. A taxa de letalidade da epidemia de Sars (2002-2003) foi de 9,6%.
Na atual epidemia, estimativas iniciais apontam 2%, uma taxa que cairá bastante pois o número de infecções é fortemente subestimado. No fim, talvez revele-se menor que a das gripes comuns. A política, não a epidemiologia, guia as reações da China e dos EUA.
Do fracasso no combate à Sars, o regime chinês extraiu a decisão de que a humilhação jamais se repetiria. “O coronavírus é um teste do sistema chinês e de sua capacidade de governo”, proclamou Xi Jinping.
Por isso, depois de perseguir o médico que identificou as primeiras manifestações do vírus, o aparato de controle social moveu-se na direção contrária, para proteger a sacrossanta imagem da China. O isolamento de Hubei não evita a difusão do vírus, mas mostra que o Grande Irmão pode tudo.
O hospital erguido em dez dias figurou na mídia mundial como campanha de propaganda do regime totalitário. Enquanto as escavadeiras operavam, centenas de milhares de chineses gripados interpretavam o sentido da mensagem oculta e enfileiravam-se diante de hospitais, intercambiando vírus diversos.
O sistema de saúde de Hubei inclina-se quase exclusivamente para o combate ao coronavírus. Nessas semanas, quantos chineses morrem, por falta de atendimento adequado, de outras moléstias?
“Leprosos” —é assim que a China classifica tacitamente todos os residentes de Hubei. Assim, também, os EUA classificam implicitamente todos os chineses —mas não apenas eles. Sob justificativas genéricas de segurança nacional, Trump baniu, em 2017, a entrada de cidadãos de sete países e, agora, adiciona seis países à lista negra.
O coronavírus não é um ebola. O banimento de chineses não deriva do saber científico: funciona como “normalização” da xenofobia.
A quarentena interna de Hubei e a quarentena externa da China cobrarão um preço econômico incalculável, deprimindo a expansão do PIB chinês e, por consequência, do PIB global. Vida é, antes de tudo, emprego e renda. Qual é o impacto das “medidas extraordinárias” na mortalidade difusa, ao longo do tempo?
O coronavírus não pode ser tratado como algo insignificante pois talvez seja transmitido por indivíduos assintomáticos. A saúde pública exige políticas específicas de contenção: quarentenas focalizadas, restrições de aglomerações, suspensões localizadas de atividades produtivas.
China e EUA preferiram, porém, o caminho do arbítrio estatal ilimitado. O pânico, a histeria servem a Xi Jinping e Trump. Você conhece algum “inimigo do povo” mais perfeito que um vírus?
*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.
Julianna Sofia: Um estranho no ninho
Novo ministro do Minha Casa Minha Vida taxou seguro-desemprego e endureceu regras de aposentadorias
Na gênese da demissão de Gustavo Canuto do comando do Ministério do Desenvolvimento Regional, diferenças irreconciliáveis. Técnico metódico, alheio ao tempo da política, o quinto ministro exonerado por Jair Bolsonaro não só falava dialeto diferente dos ocupantes do Congresso como divergia entre quatro paredes dos gabinetes ministeriais do ideário ultraliberal da equipe de Paulo Guedes (Economia).
Sua instabilidade no cargo começou ao sentar na cadeira. A pasta, que sucedeu o antigo Ministério das Cidades, é cobiçada historicamente pela classe política por seu volume de recursos e capilaridade. É lá que sempre se praticou o toma lá, dá cá das emendas parlamentares com verbas para cisternas, saneamento, habitação e transporte urbano.
Por não ser um animal político, Canuto vinha sendo fritado em fogo brando. No final do ano passado, houve coro de parlamentares pelo acerto de pendências governistas na liquidação da fatura da reforma da Previdência, e a batata passou a assar em temperatura mais elevada.
Foi a dissonância com a equipe econômica, no entanto, que fez Guedes pedir sua cabeça na bandeja. O ex-ministro foi contra o modelo de marco do saneamento do Ministério da Economia por discordar da privatização irrestrita do setor. Em outra frente, divergia da linha do Posto Ipiranga ao defender uma política habitacional para o país.
Se o Minha Casa Minha Vida travou, auxiliares do ex-ministro culpam Guedes: cortou os recursos previstos para 2019 e encolheu o orçamento de 2020 —redução de 40%. A Economia foi contra a reformulação do programa apresentada por Canuto, que previa subsídio federal para baixíssima renda via voucher.
Com Rogério Marinho agora no Desenvolvimento Regional, o Palácio do Planalto pretende azeitar o jogo legislativo e Guedes passa a ter um aliado no ministério. Para elucidar os novos rumos da pasta, essencial buscar pelas palavras-chave: reforma trabalhista e da Previdência e taxação do seguro-desemprego.
Hélio Schwartsman: Missão impossível
Salta aos olhos a obsessão do protocensor de Rondônia com Rubem Fonseca
"Conteúdos inadequados às crianças e adolescentes" é uma frase impossível. Não há como um burocrata lotado num gabinete na capital saber de antemão o que indivíduos que ele nem sequer conhece estão aptos a compreender. Conheço jovens cuja capacidade cognitiva supera a de autoridades, eleitas, nomeadas e até concursadas. E não me venham falar em entendimento médio. Na média, a humanidade tem um testículo e uma mama.
Só isso já deveria bastar para afastar definitivamente qualquer pretensão do poder público de decidir a quais obras, espetáculos e outras manifestações culturais menores de 18 anos podem ter acesso. O máximo que o Estado pode fazer é exigir, no caso de exibições públicas, que tragam uma breve descrição da natureza do conteúdo para que os pais possam decidir.
Não obstante tais truísmos, essa turma que chegou recentemente ao poder insiste em promover uma cruzada para livrar a juventude de uma imaginada influência perversa de autores perigosos. Na mais recente emanação desse delírio censório, autoridades educacionais de Rondônia tramaram para recolher das escolas 43 títulos de livros que julgaram "inadequados". Depois que a maquinação foi revelada, recuaram, não sem tentar mentir sobre o ocorrido.
O que já era absurdo na forma torna-se ridículo no conteúdo. Quando se confere a lista de obras que seriam proscritas, o que salta aos olhos é a obsessão do protocensor com Rubem Fonseca, autor de 18 dos 43 títulos malditos. Mas sobrou também para o saudoso Cony, Kafka e Poe. Até "Macunaíma", leitura exigida nos principais vestibulares do país, teria sido banido.
Paradoxalmente, o "Putsch" cultural rondoniense faz avançar a causa liberal. Eles acabaram de me convencer da necessidade do Estado mínimo, desde que seja para livrar a molecada desse gênero de educateca. Ops, já ia esquecendo que a palavra "gênero" também precisa ser banida.
Igor Gielow: Elite militar brasileira vê França como ameaça nos próximos 20 anos
Minuta secreta vê guerra pela Amazônia, base americana, ação chinesa e até terror no Rock in Rio
A França, com sua renovada defesa da internacionalização da Amazônia, tomou o centro das preocupações da elite militar brasileira como principal fonte de ameaça estratégica para o país nos próximos 20 anos.
A visão foi colhida pelo Ministério da Defesa com 500 entrevistados em 11 reuniões no segundo semestre de 2019.
Trata-se da minuta sigilosa "Cenários de Defesa 2040", à qual a Folha teve acesso. Ela ajuda a embasar a revisão em curso da Estratégia Nacional de Defesa, a ser enviada ao Congresso até junho.
Suas visões poderão ou não ser acatadas pela pasta, mas traduzem um sentimento médio entre o oficialato —as reuniões ocorreram em comandos militares, organizadas pela Escola Superior de Guerra.
A pasta diz que falou com pessoas do "âmbito interno e externo". Segundo envolvidos no processo, militares são a maioria absoluta dos ouvidos.
O texto de 45 páginas traz considerações geopolíticas realistas e hipóteses algo delirantes. Ali, há a previsão da instalação de bases americanas no Brasil, guerras e até o ataque com um coronavírus contra o Rock in Rio de 2039.
Os cenários gerais são quatro: alinhamento automático do Brasil aos Estados Unidos com ou sem restrições orçamentárias para defesa, e relacionamento global do país, também em versões verbas fartas ou exíguas.
A única ameaça constante em todas as hipóteses é a França, reflexo do embate entre Bolsonaro e o presidente Emmanuel Macron no segundo semestre de 2019, quando o francês sugeriu a internacionalização da Amazônia ante a crise dos incêndios na região.
A floresta está no coração do pensamento militar local. O livro "Aspectos Geográficos Sul-Americanos" (1931), do capitão do Exército Mário Travassos (1891-1973), consolidou a geopolítica do "integrar para não entregar" dos quartéis.
Segundo um dos cenários descritos, em 2035 Paris "formalizou pedido de intervenção das Nações Unidas na Região Ianomâmi, anunciando o seu irrestrito apoio ao movimento de emancipação daquele povo indígena" e, dois anos depois, "mobilizou um grande efetivo suas forças armadas, posicionando-os na Guiana Francesa".
O texto se furta a dizer o que aconteceria se os países fossem às vias de fato, contudo. Nos anos 1960, os países se estranharam numa questão pesqueira, a chamada Guerra da Lagosta.
A minuta ignora que a França é a principal parceira militar do Brasil, com quem tem um amplo acordo para produção de submarinos e helicópteros.
O atual espectro da região, a ditadura chavista da Venezuela, recebe tratamento diverso. Em uma simulação realista, o país aproveita os mísseis balísticos que recebeu da Rússia e da China e invade a vizinha República da Guiana (antiga Guiana Britânica) atrás de territórios que disputa.
A briga desanda para Roraima, o que obriga a entrada do Brasil no conflito —o desfecho não é dado, mas aparentemente somos salvos pelo "escudo antimíssil, sistema desenvolvido pelo Brasil, com apoio israelense e material norte-americano".
Já em outros cenários, há uma pacificação da crise venezuelana, com ou sem os brasileiros na equação. A índole pacífica do Brasil, que não se envolve em conflitos na região desde a Guerra do Paraguai (1865-70), só é mantida em um dos quatro cenários, aquele no qual falta orçamento e o país busca equidistância dos EUA e da China.
Nos demais, além dos embates com franceses e venezuelanos, é antevista uma intervenção militar brasileira em Santa Cruz de la Sierra após o governo da Bolívia expulsar fazendeiros brasileiros.
A continuada crise da Argentina é vista como superada no documento, mas o antigo adversário geopolítico do Brasil não é visto como ameaça exceto quando tenta instalar uma base militar chinesa em seu território em 2034. Brasília demove Buenos Aires da ideia diplomaticamente.
Por outro lado, o Itamaraty é visto como mediador de guerras entre Bolívia e Chile e entre Colômbia e Venezuela.
Num registro mais concreto, a questão dos crimes transnacionais ligados ao tráfico de drogas está presente nas preocupações, assim como a militarização do Atlântico Sul.
Aqui, avanço chinês na área com a ampliação de sua instalação na Namíbia e a previsão do estabelecimento da maior força do Hemisfério Sul na forma de uma base da Otan (aliança militar ocidental) em São Tomé e Príncipe não são hipóteses irrealistas.
A dicotomia de um mundo em que a China ascendente desafia os EUA é onipresente. Pequim já tem forte presença econômica no Brasil e vizinhos. Mas o fato de estarmos próximos da maior potência militar do mundo leva à sua preponderância natural.
Mas o texto deixa claro que isso foi reforçado pelo "alinhamento iniciado em 2019" pelo governo de Jair Bolsonaro.
Isso é descrito como uma vantagem competitiva para os militares no caso de haver orçamento farto. Aí, é vista a compra de um porta-aviões com sete navios de escolta para a sonhada 2ª Esquadra, baseada no Maranhão.
Curiosamente, o texto diz que será possível "modernizar a frota de aviões de patrulha" com a aquisição de oito modelos P-3 Orion em 2029 —o avião já é ultrapassado hoje.
Já o submarino nuclear brasileiro poderia estar operacional em 2035, e um segundo talvez fosse lançado ao mar, nessa visão muito otimista.
Ao mesmo tempo, no caso de os brasileiros estarem sob estiagem econômica, a instalação de bases americanas no país e em vizinhos é prevista, assim como o "fortalecimento da Quarta Frota" da Marinha dos EUA, que cobre a região.
A questão econômica permeia o texto e reflete demandas usuais dos militares. O orçamento de 2020, na casa dos R$ 80 bilhões, é o menor em 15 anos, e aproximadamente 80% do valor vai para pessoal.
Bolsonaro, capitão do Exército reformado, preservou contudo programas específicos, encaminhou uma reforma de carreira há muito desejada pelos militares e faz gestos à categoria. Nesta sexta (7), será recriada a 6ª Divisão do Exército, seis anos após ser fechada.
Não são elaborados no texto riscos terroristas de adversários dos EUA no Brasil, cortesia de tal alinhamento.
Quando o texto se dá a fazer leituras políticas, há platitudes: governos estáveis com economia em ordem permitem avançar iniciativas militares, do contrário as Forças Armadas são usadas para conter crises na área da segurança.
Duas curiosidades ecoam discursos bolsonaristas. O voto impresso é visto como tão decisivo quanto o distrital para melhorar a política.
E, num cenário, dois ministros do Supremo são presos por corrupção, resultado de reformas do Código Penal sob o "governo Maria Fernanda", daqui a 15 anos. Já o Ministério da Segurança Pública, objeto de polêmica há duas semanas, seria recriado só após crise em 2031.
Há saborosos voos de imaginação. Num deles, a pujança brasileira leva à irritação de ultranacionalistas do Sudeste Asiático, que espalha, o coronavírus que provoca a Sars (Síndrome Respiratória Aguda Grave) durante a edição do Rock in Rio 19 anos à frente.
Noutro, um terrorista envia o bacilo antraz em cartas para o ministro da Defesa em 2039, como ocorreu nos EUA após o 11 de Setembro de 2001. Cartas físicas daqui a quase 20 anos não sugerem um exercício arguto de futurologia.
Ainda na linha de paranoia ambiental, "atentado terrorista do grupo ambientalista Nature, realizado em Belém em 2037 contra a empresa norueguesa que explora alumínio na região, levou à morte de dezenas de brasileiros".
No Brasil, historicamente o Exército era o responsável por esse tipo de estudo. É a primeira vez que o Ministério da Defesa elabora algo nesta linha —em 2017, publicou cenários com afirmações gerais e abordagem mais científica.
A minuta não especifica métodos. "O arranjo metodológico para composição de um texto flexível utilizou técnicas e métodos qualitativos", disse o ministério, em nota.
A Folha enviou o texto para o especialista Vinicius Mariano de Carvalho, professor no Brazil Institute e no Departamento de Estudos da Guerra do King´s College, de Londres.
Ele preferiu não comentar os cenários em si, mas apontou algumas dúvidas. "Seria relevante haver transparência acerca da metodologia aplicada e sobre que pesquisadores participaram. A leitura não parece trazer a perspectiva das três Forças de forma equilibrada. Sugere uma preponderância de uma voz", afirmou.
Vinicius Torres Freire: Tirar imposto da gasolina quebra governos e promove Bolsonaro
Sem tributo, educação ficaria sem dinheiro. Ideia é demagogia agressiva
Zerar os impostos sobre combustíveis é uma ideia obviamente lunática. Os motivos do desvario são mais obscuros.
Foi apenas mais um tiro da roleta russa de disparates de Jair Bolsonaro? Ou foi tentativa muito vulgar e manjada, nem por isso ineficaz, de fazer demagogia, de arrumar bodes expiatórios?
Ou seja, o governo lança uma ideia inexequível, de apelo popular, mas que será criticada por qualquer governante equilibrado ou observador razoável dos assuntos públicos. Assim, o povo desavisado ou fanático recebe mais uma mensagem de que “o sistema não deixa o mito trabalhar”. É propaganda e um trabalho de destruição institucional.
Por que o imposto zero é disparate?
Caso o governo federal e os estados deixassem de cobrar impostos sobre combustíveis, perderiam receita equivalente a 1,6% do PIB, uns R$ 115 bilhões, por aí. É a ordem de grandeza, pois não há dados recentes e detalhados da carga tributária. Os estados perderiam 1,2% do PIB.
O que é 1,2% do PIB? Mais ou menos a metade do que estados gastam em educação ou o gasto nacional em ensino médio. Etc.
O governo federal perderia uns R$ 28 bilhões por ano (de PIS/Cofins e Cide). É quase um ano inteiro de Bolsa Família. Há outros problemas fiscais, econômicos e legais de acabar com essa receita de impostos, mas já deve ter dado para entender o tamanho do problema.
"Eu zero o [imposto] federal se eles [governadores] zerarem o ICMS. Está feito o desafio aqui, agora. Eu zero o federal hoje, eles zeram o ICMS. Se topar, eu aceito. Tá ok?", disse Bolsonaro em uma das suas saidinhas do Palácio da Alvorada.
Essa conversa vem desde domingo passado. Até o meio da tarde desta quarta-feira, gente de sites de divulgação bolsonarista e de extrema direita em geral fazia campanha barulhenta na mídia social, em especial na rede do piado.
As tropas de choque digitais tentavam emparedar e enxovalhar governadores enquanto pintavam Bolsonaro como um herói de mãos atadas. Era um esforço coordenado. Não é possível dizer que fosse ofensiva controlada pelos porões digitais do Planalto, mas era propaganda conveniente depois de quase um mês de crises provocadas pelo próprio governo.
Quanto ao ICMS dos combustíveis, trata-se mesmo de um problema. O imposto, cobrado como porcentagem do valor de referência de venda, acaba por amplificar as variações de preço. Houve discussão sobre o assunto no governo de Michel Temer, pouco antes do caminhonaço de 2018.
É possível cobrar um valor fixo de imposto (tantos centavos por litro). De quanto seria? Caso aceitassem a ideia (improvável), os governadores demandariam valor alto o bastante para arrecadar tanto quanto nos tempos de preço de combustível nas alturas. Os preços não cairiam, de qualquer modo. Apenas a variação extra provocada pelo imposto seria menor.
Em vez de “zerar” impostos sobre combustíveis, convém reduzi-los? Não.
Primeiro, porque não há dinheiro. Na média, os estados estão ainda mais quebrados do que o governo federal. O ICMS sobre combustíveis é cerca de 15% da receita estadual, na média.
Segundo, caso houvesse dinheiro, haveria mais o que fazer: obras de infraestrutura física e social, de estrada e corredor de ônibus a hospital.
Terceiro, é ainda mais tolo gastar dinheiro escasso em estímulo do uso de combustível fóssil.
Essa é uma discussão racional, porém, uma raridade no governo. Bolsonaro mais uma vez degradou o debate público com uma mistura de ignorância e demagogia agressiva.
Fernando Schüler: Ódio do bem
Se alguém quiser ajudar, pare de fingir que está tudo certo do seu lado e errado do outro
Zé de Abreu sairá intacto depois de dizer o que disse de Regina Duarte. Habituais feministas, como previsível, não saíram em defesa de Regina, pela exata razão posta pelo Zé: não basta ser mulher para merecer alguma coisa (respeito?). É preciso mais.
Fundamentalmente, é preciso não ser uma “fascista”, sendo o fascismo, nos dias que correm, um conceito bastante flexível. Tudo, aliás, parece bastante flexível. Ninguém larga a mão de ninguém, desde que seja uma mão amiga. Se for a mão da Regina Duarte, larga. Sem pena. Afinal ela é uma “fascista”, um tipo abaixo do “ser humano”, não é mesmo?
É a mesma lógica que permite dizer que não basta ser negro, é preciso pensar do jeito certo, e a partir daí achar normal chamar o vereador negro Fernando Holiday de “capitãozinho do mato”. Afinal, a cor da pele é apenas um critério muito frágil para o respeito. A questão central continua sendo a mesma: qual é mesmo o seu “lado”?
No caso de Holiday, a Justiça não caiu nessa conversa. Condenou Ciro Gomes por injúria racial. Racismo é crime no Brasil, independentemente da orientação ideológica e da cor da pele de agressores e agredidos. Talvez Ciro tenha imaginado que iria escapar da Justiça por ofender alguém de “direita”. Não colou.
Desconfio que Zé de Abreu pensou o mesmo sobre Regina Duarte. Agredir uma mulher de direita não dá nada, certo? É o machismo do bem, como bem definiu o Pedro Fernando Nery. Nesse caso parece que colou.
Há muito o que aprender com essas coisas todas. A primeira delas é que elas ocorrem em torno da internet. Sempre lembro da tese da neurocientista Susan Greenfield: a internet é um espaço de baixa empatia. “Não vemos a pessoa ficar vermelha, engolir a seco, ficar nervosa”. É mais fácil atacar um boneco do que um ser humano.
Outra lição é que o ódio não tem lado. Por algum tempo se cultivou a lenda de que havia uma direita intolerante e uma esquerda bacana. Na campanha eleitoral, lembro da turma que achava que as fakenews vinham apenas de um lado do jogo.
Fascinante é esse fenômeno do ódio do bem. Significa o seguinte: eu cuspo no outro, chamo de fascista, digo que ele destrói a democracia, a civilização, que nem sequer devia existir. Mas excluo meu ódio do conceito de intolerância. E durmo tranquilo.
Tudo isso vem de muito longe, mas ganhou contornos dramáticos em nossas democracias polarizadas. Li um estudo recente mostrando como a polarização não define apenas ideias, mas também a visão “objetiva” que cada um faz da realidade. Diria que também afeta nossa sensibilidade moral.
Foi o que vimos na sessão do Estado da União, um dos mais solenes momentos da democracia americana. Quem gosta de Trump achou indigna a cena de Nancy Pelosi rasgando o discurso presidencial; quem não gosta, ficou indignado com a imagem de Trump recusando a mão estendida por Pelosi.
A pergunta óbvia a fazer é a seguinte: o que ganhamos, coletivamente, quando tudo for submetido, incluindo-se aí nossos juízos morais, à lógica da polarização política?
A resposta é simples: coletivamente não ganhamos nada, mas cada um supõe levar alguma vantagem. A democracia se torna um jogo não cooperativo. Em seu clássico dos anos 1950, Anthony Downs já alertava para os riscos da polarização. “Metade do eleitorado acha que a outra metade está impondo políticas repugnantes”.
Tem uma receita aí. Se alguém quiser ajudar, pare de fingir que está tudo certo do seu lado e errado do outro. A sugestão é meramente retórica. As pessoas não farão isto.
Quem sabe a solução venha de uma nova divisão de trabalho: na epiderme do mundo político, definido basicamente pelas mídias sociais, o bate-boca diário; um degrau abaixo, no plano das instituições, consensos provisórios vão se produzindo.
Não é assim que funciona no Brasil de hoje? No primeiro plano, andamos na Alemanha dos anos 1930, à beira do abismo; no segundo, o presidente da Câmara comemora o inédito protagonismo do Congresso em nossa democracia.
É possível que este seja apenas um experimento brasileiro. É possível que a contaminação do ódio digital sobre o mundo real da decisão pública seja muito mais profunda. É tudo bastante novo, e por isso vale a pena pensar a respeito.
*Fernando Schüler, professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo.
Mariliz Pereira Jorge: Mais ódio no gabinete do ódio
Perto de Galeazzo, Weintraub parece um coroinha
A gestão Bolsonaro parece ter decidido dobrar a meta de gente asquerosa entre seus contratados. Só isso explica a possível nomeação do publicitário Luiz Galeazzo para cuidar da área digital do governo. Perto dele Abraham Weintraub parece um coroinha.
Galeazzo é figura conhecida nas redes sociais. Bolsonarista radical, faz piadas grotescas, insulta mulheres, dispara críticas raivosas contra o STF, compartilha fake news, diz que gente de esquerda não merece ser tratada como "pessoas" e, baixaria das baixarias, postou foto da vereadora assassinada Marielle Franco com a legenda "morri kkkkk".
Como sabemos, toda canalhice em favor desse governo será recompensada. Na semana passada, Galeazzo foi convidado pelo encrencado Fabio Wajngarten, da Secom, e sua nomeação aguarda aprovação do Gabinete de Segurança Institucional, que analisa, por exemplo, seus antecedentes criminais. O comportamento abjeto de Galeazzo nas redes parece não ter importância nessa vistoria.
Quando a notícia vazou nesta quarta (5), o publicitário precisou adiantar a recomendação que recebeu de deletar sua presença virtual para assumir o cargo, justamente pelo conteúdo ofensivo que poderia ser usado contra ele e o governo. No Twitter, onde ainda mantinha uma conta, ele teve outros perfis banidos por causa de seus posts agressivos.
É um tipo desse, alinhado com o de outros integrantes do que é chamado de Gabinete do Ódio, que vai cuidar da área digital, que envolve toda a presença do governo nas mídias sociais e também a publicidade nessas plataformas.
A encomenda de Wajngarten é que Galeazzo tenha um comportamento diferente do seu habitual e que dê uma roupagem mais profissional à comunicação do governo. Pensando bem, até que faz algum sentido, a Secom contrata uma pessoa que precisa fazer de conta que é decente para divulgar uma gestão que também só faz de conta que não é ordinária.
Bruno Boghossian: Bolsonaro tira bomba do colo com manobra em debate sobre gasolina
Presidente ganha fôlego e evita choques ao fabricar impasse com governadores
Jair Bolsonaro sabe o prejuízo que um governante pode ter com o giro dos centavos nas bombas de combustíveis. Quando caminhoneiros bloquearam estradas em protesto contra o preço do diesel, em 2018, ele incentivou o movimento e disse que só uma paralisação poderia "forçar o presidente da República a dar uma solução para o caso".
Embora o valor cobrado nos postos envolva fatores como custos de produção, preços internacionais e tributos, a ira dos motoristas costuma ficar concentrada nos inquilinos do Palácio do Planalto. Michel Temer e Dilma Rousseff foram alvos de ataques. Bolsonaro aplicou um drible para se proteger desse mau humor.
O presidente fabricou um impasse com os 27 governadores e ganhou fôlego para enfrentar os choques provocados por futuras altas nos preços. Nas últimas semanas, Bolsonaro insistiu que o aumento dos combustíveis não era culpa sua, mas dos impostos cobrados nos estados.
O argumento fazia pouco sentido, já que três tributos federais também incidem sobre a gasolina, o diesel e o etanol. Nesta quarta (5), o presidente emendou uma provocação: desafiou os governadores e disse que zeraria essas cobranças da União se os estados fizessem o mesmo. Ele sabe que isso jamais acontecerá, mas pode se dar por satisfeito.
Foi uma jogada política barata, mas eficaz. Bolsonaro apresentou uma solução impossível e tirou temporariamente essa bomba de seu colo. Se o custo nos postos não mudar, ele pode voltar a alimentar dúvidas sobre os responsáveis pelos preços.
Essa manipulação foi tão elementar que não assustou nem os cães de guarda liberais dentro e fora do governo. Se Bolsonaro zerasse os tributos, Paulo Guedes perderia cerca de R$ 27 bilhões no ano, mas o ministro nem piscou. No mercado financeiro, o silêncio também foi revelador.
A manobra pode ter dado certo por enquanto, mas as pressões não desapareceram. Hipersensível ao tema, o presidente já mostrou que poderá ficar tentado a fazer interferências mais radicais no futuro.
Vinicius Torres Freire: Exportação e indústria estão com vírus, que ainda não é o da China
País vende menos do exterior, fábricas batem pino: recuperação ainda é frágil
Não é o coronavírus, mas exportações e indústria estão com um bicho ruim. Os números da virada do ano são sintomas preocupantes.
As vendas do Brasil para o exterior caem rapidamente desde julho do ano passado, o que ficou ainda mais evidente com os dados de janeiro.
Em parte, a indústria vai mal porque o país perde mercados, que se implodiram (Argentina) ou andam devagar quase parando (Europa), e não consegue outros clientes relevantes; porque o comércio mundial teve um ano historicamente ruim em 2019.
Diz-se que o desastre assassino de Brumadinho explica o resultado ruim da indústria nacional, que encolheu 1,1% em 2019, número divulgado nesta terça-feira (4) pelo IBGE. É verdade, em parte; é conversa mole, em parte.
A produção da indústria extrativa encolheu quase 10% no ano passado, resultado de país em guerra. Mas a indústria de transformação (as “fábricas”) tem peso de 89% na produção industrial total. Em 2018, havia crescido 1,1%. Em 2019, apenas 0,2%. Ficou na prática estagnada porque setores grandes como montadoras, metalúrgicas e fábricas de máquinas e equipamentos tiveram um ano entre fraco e horrível.
A indústria de alimentos, muito importante, deu uma respirada, mas não bastou para melhorar o resultado geral, nem de longe.
As montadoras de veículos, por exemplo, cresceram quase 13% em 2018 e apenas 2,1% em 2019. As metalúrgicas estão em recessão. A indústria de máquinas e equipamentos mal ficou no zero a zero. Juntas, têm peso de uns 20% na produção industrial, com impactos em cadeia dos mais significativos entre as manufaturas e no PIB em geral.
As exportações dos últimos três meses caíram 14% em relação ao mesmo período igual do ano passado; baixam cada vez mais rápido desde meados de 2019. Estão caindo os preços e as quantidades de soja e petróleo.
Por ora, os tropeços feios de exportações e da indústria não desqualificam ou degradam as previsões de crescimento do PIB brasileiro para este 2020, de algo além de 2%. Mas são evidências da fragilidade da recuperação, uma convalescência difícil, que ainda por cima corre o risco de ser abalada pela infecção do coronavírus, por exemplo, que ainda não há como prever e muito menos medir, por ora.
O que fazer? A receita banal de sempre: cuidar da própria saúde, não importa que bicho ruim venha bater à porta. Para tanto, muito contribuiria termos um governo dedicado ao essencial, que não fosse desvairado etc., o que qualquer pessoa adulta pode imaginar.
Em vez disso, o que se passa? Basta lembrar apenas dos problemas dos últimos dias e horas.
Jair Bolsonaro faz espuma diversionista, culpando os governadores pelo preço alto dos combustíveis (se o ICMS baixar, o governo federal vai bancar as contas de estados arrebentados, quase todos?).
O governo não tem prioridade clara no Congresso, onde já começa a levar tundas, na primeira semana legislativa. Passou janeiro quase inteiro dando tiros no pé, criando crises de moto próprio (Cultura, Educação, Ambiente, Casa Civil, Justiça etc.).
A recuperação é muito lerda e frágil, com o precário e lentíssimo aumento da massa de rendimentos, com alguma animação de crédito e com a construção civil (residencial) saindo do buracão da recessão.
No mais, investimento mesmo quase não tem e pode haver ainda menos devido à incerteza derivada de um choque externo (coronavírus), piorada pelo desvario contínuo do governo. Está fácil de pegarmos uma gripe.
Hélio Schwartsman: O tamanho do perigo
Quando as pessoas não ficam muito doentes, circulam mais e são transmissores mais eficientes
Quão ameaçador é o novo coronavírus? Ainda é cedo para dizer com precisão, mas os dados vão se acumulando. Na manhã da terça-feira (4), o placar oficial apontava 20.679 casos confirmados e 427 mortes —uma letalidade de 2,06%. É o que temos, mas sabemos que não é isso.
Na fase inicial de uma epidemia, só portadores de quadros graves acabam sendo testados. Para ter uma ideia do número real de infectados, seria preciso testar também familiares e colegas dos pacientes, o que ainda não foi feito. Mas epidemiologistas como Joseph Wu e Kathy e Gabriel Leung não desistem fácil (https://www.thelancet.com/action/showPdf?pii=S0140-6736%2820%2930260-9). A partir do número de casos exportados de Wuhan para outros países e de posse da tabela da frequência mensal de voos ao exterior, eles inferiram o número de infectados na cidade. Concluíram que, nos últimos dias de janeiro, o total já era 13 vezes maior do que o número oficial, com a epidemia dobrando de tamanho a cada 6,4 dias. A taxa de reprodução do vírus (R0) foi por eles estimada em 2,68.
Na visão dos pesquisadores, mesmo com as quarentenas, seria difícil evitar surtos sustentados de transmissão em outras localidades da China. O ponto positivo é que a letalidade do vírus seria bem menor do que a sugerida pelos primeiros números. No cenário do trio, ela cairia para menos de 0,2%.
Em outro trabalho interessante, virologistas liderados por Vincent Munster especulam que o novo coronavírus possa produzir infecções mais leves do que a Sars por atacar as vias respiratórias altas e não as baixas. Um vírus menos patogênico é ótima notícia, mas, quando as pessoas não ficam muito doentes, circulam mais e se tornam transmissores mais eficientes.
Assim, paradoxalmente, podemos estar diante de um vírus que não representa perigo muito grande no plano individual, mas que poderá tornar-se um baita de um problema em escala populacional, devido ao impacto sobre os sistemas de saúde e a economia.
Bruno Boghossian: Bolsonaro desvia a máquina pública para projeto pessoal de poder
Ataque a Petra Costa mostra que interesse público fica abaixo de desejos particulares
Um ex-ministro definiu a conduta do presidente. "Ele confunde o Brasil com a pessoa física dele. Se você critica o Jair Bolsonaro, ele acha que você é inimigo do Brasil. Ele precisa se conscientizar de que é só um brasileiro", disse Gustavo Bebianno, no fim do ano passado.
Bolsonaro deformou o aparato estatal. O governo coleciona episódios em que a máquina pública foi explorada para atingir desafetos e alimentar picuinhas. Servidores e dinheiro público deixam de atender à sociedade e são desviados para um projeto particular de poder.
O ataque da Secretaria de Comunicação da Presidência à diretora Petra Costa é o exemplo mais recente. Em entrevista a uma TV americana, a cineasta fez críticas direcionadas a Bolsonaro e ao governo, mas foi alvejada por um órgão oficial e tachada como "militante anti-Brasil".
A tentativa de embaralhar a fronteira entre país e governante é típica de líderes autoritários, que se escondem atrás de apelos nacionalistas em busca de proteção. O Planalto não apenas abasteceu esse delírio como usou sua estrutura a serviço da defesa pessoal do presidente.
A cineasta cometeu erros e imprecisões ao descrever a eleição de Bolsonaro e suas bandeiras de extrema direita. O presidente e alguns ministros poderiam rebater esses argumentos individualmente, mas o aparelho do governo não pode ser usado para difamar seus rivais.
Essa distorção contamina toda a máquina estatal. Na semana passada, a Petrobras cancelou uma palestra da economista Deirdre McCloskey porque ela disse que Bolsonaro era qualquer coisa, menos liberal.
Em casos assim, o interesse público fica abaixo de desejos pessoais. Foi o que ocorreu quando o fiscal do Ibama que multou o presidente perdeu o cargo ou quando Bolsonaro criticou governadores e disse que não daria "nada para esses caras".
O princípio da impessoalidade não é um capricho. Ele serve para impedir que governantes de turno usem o Estado para financiar suas obsessões e asfixiar opiniões divergentes.