Folha de S. Paulo
Fernando Schüler: O protagonismo do Congresso
Esse é o melhor caminho de que dispomos para conduzir as reformas
Um dos mantras preferidos do governo é afirmar a autonomia do Congresso. Quem gosta do governo diz que se trata de respeito às instituições; quem não gosta diz que é desleixo ou incompetência. Ambas as opiniões valem pouco em um debate complexo como esse.
É fato que o Parlamento assumiu um novo protagonismo na democracia brasileira. O governo não perdeu propriamente a condução da pauta política. Estão aí o plano Mais Brasil e as três PECs, bem como o projeto de autonomia do Banco Central. E Rodrigo Maia já disse que a reforma administrativa não anda se o governo não assumir a paternidade.
Mas estamos diante de um novo modelo. A equação anterior, em que o governo distribuía a máquina púbica para obter maioria no Congresso, simplesmente se esgotou. Em nosso quadro de extrema fragmentação partidária, tudo ficou caro demais. Haverá tempo para um diagnóstico cuidadoso disso tudo.
O conceito que bem define o novo cenário é a corresponsabilidade. Podem-se buscar outros nomes, mas é disso que se trata. Equação feita de tensões e maiorias provisórias. Consensos construídos a cada projeto. Foi o que se viu nesta semana, no acordo em torno do orçamento impositivo.
A pergunta é se tudo isso faz bem à democracia e favorece a governabilidade do país. Para a democracia não me parece haver dúvidas. O argumento da coalizão majoritária, nos moldes praticados desde a redemocratização, parte de duas premissas frágeis.
A primeira atribui demasiada racionalidade ao Executivo. É o argumento do Executivo-príncipe. Quando lembro do plano Collor, dos desmandos fiscais de meados da década passada, ou mesmo da atual "agenda conservadora", o argumento me parece perturbador.
Uma das funções essenciais do Parlamento é exatamente conter o Executivo. Isso é bom para a democracia. Não há lógica em quem ataca dia e noite a agenda do governo e, ato seguinte, reclama que o governo não tem maioria no Congresso.
A segunda fragilidade é atribuir virtude aos instrumentos constitucionais colocados à disposição do presidente para formar base, no modelo habitual de coalizão. Distribuir emendas e cargos aos deputados amigos é reproduzir cansativamente nosso surrado patrimonialismo político.
Pode-se conceber, em abstrato, a ideia de uma coalizão em bases programáticas. Quando, exatamente, isso aconteceu? Em momentos de ruptura, como no governo Itamar? No primeiro mandato de Fernando Henrique, como li recentemente? É possível que no futuro andemos nessa direção, mas não sem uma mudança de incentivos institucionais. A reforma política que não está no horizonte de ninguém.
Quanto à governabilidade, Christopher Garman sugere uma visão positiva do protagonismo parlamentar. As restrições da PEC do Teto e o avanço do Parlamento sobre a execução orçamentária tornariam racional para a liderança legislativa apoiar a agenda reformista, além de algum incentivo à responsabilidade fiscal.
Boa tese, ainda que enfrente um problema de ação coletiva. É preciso coordenar a ação de uma base fluda de 17 partidos, 400 parlamentares e uma profusão de interesses paroquiais. Com a execução obrigatória de emendas e sem cargos no varejo, para que mesmo lealdade ao governo?
A melhor posição para o parlamentar seria a do "caroneiro". Podendo colher um ganho coletivo com as reformas e deixar que os outros assumam o ônus de medidas impopulares, por que não? Não foi por isso que estados e municípios ficaram de fora da reforma da Previdência?
Não penso que exista um modelo comparável globalmente para saber o destino da atual experiência brasileira. O governo Bolsonaro não é minoritário no Congresso. É apenas inorgânico, mas com uma agenda que vem se mostrando majoritária nos temas cruciais.
Seu maior erro seria precisamente tentar fazer o que até hoje nunca se dispôs ou teve capacidade para fazer: vincular o apoio à agenda econômica à lealdade ao governo. Sua melhor chance é manter a distância e a fluidez da base, ao contrário do que muitos pregam.
Por fim, um dado pragmático. O governo não irá mudar seu modo de condução política. Se o protagonismo do Congresso não é o melhor caminho para a viabilidade das reformas nestes tempos de incerteza, diria que é o único caminho do qual dispomos.
*Fernando Schüler, professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo.
Maria Hermínia Tavares: O último dique
Sociedade e instituições são diques contra populistas
Sob presidentes populistas, as democracias sempre correm risco. Mas elas podem morrer, como na Venezuela, Hungria e Filipinas, ou continuar vivas, como na Itália e Estados Unidos.
Os autocratas tratam de enfraquecer o sistema, atacando a imprensa independente, desqualificando os adversários e atiçando os seguidores com a linguagem chula que uns e outros tanto apreciam. Só que o desfecho da ofensiva depende de muito mais do que isso.
Aqui, como em toda parte onde populistas ascenderam ao poder, a sociedade organizada e, especialmente, as instituições políticas, funcionam como diques de contenção aos seus piores intentos. Assim têm se conduzido —para surpresa de céticos e cínicos— o Congresso, as instâncias superiores do Judiciário, setores do Ministério Público e as Defensorias.
Outra barreira robusta é a reação de governadores eleitos sob diferentes equações políticas, a demonstrar o papel do sistema federativo para limitar o raio de ação do governo nacional. Numa Federação, é pouco provável, se não impossível, o alinhamento automático dos estados a Brasília —mesmo quando são amplos os recursos de poder concentrados no Executivo federal.
Além de sua relativa autonomia, os governadores fazem seus cálculos políticos de olho naqueles que os escolheram e podem reelegê-los ou apoiá-los em voos mais ambiciosos. Do paulista Doria ao maranhense Dino, governadores têm voz própria, e alguns deles a usam de forma incisiva sempre que Bolsonaro ensaia alguma iniciativa mais desastrada e danosa ao pluralismo democrático e aos direitos dos cidadãos.
Mas nossa Federação não termina nos estados. Sua base é formada por 5.570 municípios, que têm em comum governos escolhidos pelo voto popular. Ele será exercido outra vez neste ano. As eleições locais têm pelo menos dois efeitos importantes sobre a política nacional. De um lado, tende a haver uma correlação entre os resultados obtidos nos municípios e a composição da Câmara Federal dois anos depois. Afinal, prefeitos e vereadores atuam como cabos eleitorais de candidatos à Casa.
De outro lado, embora falte à maioria dos municípios cacife para influir no jogo nacional, o resultado em algumas capitais é politicamente relevante. Faz diferença para a saúde da democracia no país que, por exemplo, São Paulo continue a abrigar manifestações artísticas que o governo federal tentou censurar. Ou que Porto Alegre possa seguir inovando no transporte coletivo. Ou ainda que, no futuro, sob um governo progressista, o Rio de Janeiro venha a ser um modelo de política civilizada de segurança pública.
*Maria Hermínia Tavares, professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap.
Bruno Boghossian: Bolsonaro se afasta mais da política ao buscar novo ministro militar
Saída de Onyx simboliza desapreço do presidente por trabalho de articulação
Ao buscar um homem das Forças Armadas para ocupar o principal ministério do Planalto, Jair Bolsonaro elimina as migalhas políticas que restavam no coração do governo. O presidente já havia esvaziado as funções do deputado Onyx Lorenzoni na Casa Civil. Agora, pretende entregar a um militar as chaves do último gabinete do palácio.
Bolsonaro bateu à porta do Quartel-General do Exército e convidou o quatro estrelas Walter Braga Netto para ajeitar as confusas atividades do governo. Cada vez mais fraco, Onyx não dava conta do recado e já não participava da interlocução com o Congresso. Era um bibelô político que deve dar lugar ao quarto ministro de farda no Planalto.
O presidente nunca escondeu seu desapreço pelo trabalho de articulação. De saída, ele se recusou a montar uma base de apoio no Congresso e distribuiu de maneira descuidada entre seus auxiliares a missão de conversar com parlamentares.
A divisão de tarefas funcionou mal, e o Planalto foi perdendo credibilidade. O ex-ministro Santos Cruz, que chegou a dividir com Onyx o relacionamento com deputados e senadores, já disse que a falta de nitidez nas funções de articulação política e coordenação de programas prejudicava o funcionamento do governo.
Depois de provocar uma sequência de colisões com o Congresso, o presidente ainda tentou concentrar o trabalho político nas mãos de outro militar. Sete meses após assumir o cargo, o general Luiz Eduardo Ramos ainda é visto com desconfiança até por parlamentares aliados.
Bolsonaro parece transferir essa função para fora do palácio. Agora, o ex-deputado Rogério Marinho é a aposta do governo para azeitar a relação com o Congresso. Novo ministro do Desenvolvimento Regional, ele vai gerenciar um orçamento milionário, cobiçado por parlamentares.
Ao defenestrar o único ministro político do Planalto, o presidente terceiriza uma tarefa que despreza. A decisão de pintar mais um gabinete de verde-oliva mostra de vez que o pilar de seu governo é outro.
Vinicius Torres Freire: Governo paga a conta de bobagens, e ano começa mal no Congresso
Plano de zerar imposto de combustíveis morre, mais vetos de Bolsonaro caem
O governo começa o ano no Congresso pagando contas de sua balbúrdia boquirrota, de sua falta de planejamento, de articulação política e de prioridades. Mau sinal para um ano parlamentar curto e mais difícil por causa da eleição e porque a boa vontade parlamentar já não é a mesma de 2019.
O programa reformista ainda deve andar neste ano, no essencial. Mas, como previsto, muito deputado e senador se pergunta por que deve sustentar a estabilidade político-econômica do governo de Jair Bolsonaro, aprovando leis duras, sem nenhum bônus e, além do mais, sofrendo campanhas de difamação das milícias virtuais bolsonaristas.
Para começar, era bravata e bazófia aquela história de “zerar” impostos sobre combustíveis (“zere o seu que eu zero o meu”, disse mais ou menos Bolsonaro). O presidente e suas milícias fizeram chacrinha nas redes por uns dias com essa ideia obviamente lunática de deixar de tributar combustíveis, começando pelo ICMS, o que quebraria de vez os estados.
O ministro Paulo Guedes e os governadores, avacalhados por Bolsonaro, “concordaram” em deixar que o assunto seja tema dos debates da reforma tributária e do pacto federativo —“na volta a gente compra”, como diziam as mães. Em resumo, houve uma tentativa de sair de fininho do vexame de uma ideia inviável, mera demagogia agressiva.
O saldo da bravata é um tanto mais de desmoralização político-intelectual do Planalto, como se fosse possível, e ainda mais desconfiança dos governadores.
Para continuar, os parlamentares vão derrubar mais vetos de Jair Bolsonaro a novidades na lei que dá diretrizes para a proposta e a organização do Orçamento, algumas de fato amalucadas.
No essencial de um assunto muito enrolado, o Congresso acabou ficando com mais poderes para definir investimentos. Para tanto, vai derrubar vetos de Bolsonaro, mas fez um acordo para não passar um trator na vontade presidencial, acordo o que deixou muito parlamentar com ainda mais má vontade com o governo, para dizer a coisa de modo suave.
“Pelo visto a promessa de empoderar o Parlamento não era 100% verdadeira, mas tudo bem, não vamos brigar por isso”, escarneceu, de leve, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia.
Como se não bastasse, o dia foi de fofoca e idas e vindas a respeito do que, faz semanas, era uma das prioridades do governo neste ano, a reforma administrativa (revisão de carreiras, cargos, reajustes, estabilidade e avaliação do funcionalismo). O governo não conseguia se decidir se manda ou não a emenda constitucional para o Congresso.
Por que a indecisão? Em parte, Bolsonaro teme causar revolta contra seu governo. Em parte, o filme dessa reforma ficou queimado ou pelo menos borrado pelo fato de Paulo Guedes ter chamado servidores de “parasitas”, na semana que passou.
Em parte, ainda não se sabe qual será a recepção do projeto no Congresso, que começa o ano de mau humor com o governo e menos disposto a carregar nas costas e sozinho, sem apoio do Planalto, projetos em tese impopulares.
Os parlamentares ainda esperam sinais da opinião pública antes de pensar se vão embalar outro Mateus que não pariram, ainda mais em ano eleitoral (e, pior ainda, desagradando a parentes, agregados, bases eleitorais e tantos amigos do funcionalismo na Casa).
Pelo jeito, até que o “parlamentarismo branco” organize a pauta do governo, não saberemos bem o que será do governo (sic).
Bruno Boghossian: Governo abusa de barbeiragens e hesitações na agenda econômica
Ofensa de Guedes a servidores só deu combustível a políticos que não querem reforma
No famoso episódio em que Fernando Henrique Cardoso tentou estabelecer uma idade mínima para as aposentadorias, a proposta foi derrotada por um voto. O deputado Antonio Kandir disse que se enganou e apertou o botão errado no plenário. Um colega fez troça: “Se for difícil apertar botão, fica difícil viver”.
O governo tinha maioria no Congresso, mas tombou com trapalhadas desse tipo. Dias depois, FHC ainda chamou de “vagabundos” aqueles que se aposentam cedo demais. Tentou se explicar, mas pagou caro e bloqueou discussões mais profundas sobre a reforma da Previdência.
Jair Bolsonaro conseguiu mudar as regras de aposentadoria, mas dá outras trombadas na agenda econômica. Na prometida reforma administrativa, que deveria mudar normas do serviço público, o governo abusa de barbeiragens e hesitações.
A ofensa de Paulo Guedes a funcionários que chamou de “parasitas” só deu combustível a políticos que não queriam reformar coisa alguma. Parlamentares e integrantes do governo passaram a levantar dúvidas sobre o clima para aprovar o projeto.
Um deles, com toda a certeza, é o próprio presidente. Ainda no ano passado, Guedes adiou a reforma pela primeira vez. A culpa era dos protestos no Chile, que impressionavam Bolsonaro e criavam o temor fantasioso de protestos violentos aqui.
O ministro jura que o presidente ainda apoia a mudança para os servidores, mas afirma que o timing é o problema. Há 40 dias, o presidente vacilou de novo e disse que o projeto ainda precisava de “um polimento”.
O texto deveria ter chegado nesta terça (11) ao Congresso, mas o governo vacilou. Guedes pode ter apertado o botão errado na cabeça do chefe.
Um depoente mentiu nove vezes e insultou a jornalista Patrícia Campos Mello na sessão desta terça da CPI das fake news. Para atacar mais uma vez a imprensa, aliados do presidente passaram a reproduzir a imundície. As redes de apoio ao governo nadam de braçada no esgoto.
Ruy Castro: Amigos 'tóxicos'
Hoje, Bolsonaro quer distância de gente que o serviu tão bem nos velhos tempos
A família Bolsonaro sabe escolher os amigos. Eles não precisam ler Dostoievski, mas devem ter a ver com violência, crime, tráfico de influência, extorsão, contravenção, transações escusas, álibis mal explicados, sentenças judiciais suspeitas, destreza no gatilho e um quê de cafajestice musculosa.
Vide Adriano da Nóbrega, ex-capitão da PM prematuramente executado na Bahia neste domingo (9). Aos 43 anos, seu currículo incluía condenações por assassinato, intimidação de testemunhas, prestação de serviços de proteção a bicheiros, chefia das milícias de Rio das Pedras, comando de um grupo de assassinos profissionais e, no passado, agraciado pelos Bolsonaro com medalhas e menções honrosas. Se não tivesse sido morto, quem sabe a que alturas não chegaria?
Outros amigos da família, os também ex-PMs Ronnie Lessa e Élcio de Queiroz, são réus na morte da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes, em 2018 —Ronnie, como autor dos tiros, e Élcio, por dirigir o carro da emboscada. Ronnie é vizinho de Bolsonaro num condomínio no Rio, mas isso só fala a favor do ecletismo do endereço: abriga tanto um presidente da República quanto um criminoso.
E há o impagável Fabrício Queiroz, ex-paraquedista, ex-PM (ninguém conhece mais ex-PMs que os Bolsonaro) e encarregado de contratar fantasmas para o gabinete do então deputado estadual Flávio Bolsonaro e recolher seus salários para posterior rachadinha com o chefe.
Durante anos, eles serviram à família com dedicação e às claras. Agora que Bolsonaro é presidente e poderiam gozar o poder, são obrigados a fugir, esconder-se —ficaram “tóxicos”. O próprio Bolsonaro quer vê-los longe, e está conseguindo. Adriano virou presunto; Ronnie e Élcio estão num presídio federal em Mossoró, RN; e Fabrício anda sumido, à espera de, segundo disse, “uma pica do tamanho de um cometa” na sua direção.
*Ruy Castro, jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues.
Ranier Bragon: As bolsonaradas de Fux e Alcolumbre
Ministro e senador dão sua particular contribuição ao enxovalhamento das instituições
Em tempos de descrédito das instituições, o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), e o futuro presidente do Supremo, Luiz Fux, acharam por bem se apegar a mesquinhos interesses corporativos para dar as suas bolsonaradas.
Autor de algumas das decisões mais desarrazoadas do atual colegiado —como as de caráter liminar que garantiram por quatro anos o indiscriminado pagamento de auxílio-moradia a juízes até que eles ganhassem um reajuste salarial—, Fux suspendeu por tempo indeterminado a implantação do juiz das garantias. A lei foi aprovada pelo Congresso e sancionada pelo presidente da República, aqueles que, pelas regras republicanas, detêm tal atribuição.
A Fux caberia promover, preferencialmente de forma colegiada, a análise do caso à luz da Constituição. Em vez disso, preferiu inovar, ganhando o aplauso da Lava Jato e das associações de magistrados.
Já o presidente do Senado ameaça não só estabelecer um rito procrastinatório para retirar o mandato de parlamentares cassados pelo Tribunal Superior Eleitoral como até se insurgir contra uma decisão judicial.
A Câmara restabeleceu na semana passada o mandato do deputado Wilson Santiago (PTB-PB), acusado de embolsar dinheiro de obras contra a seca. Um ato claramente corporativista, mas que respeita o entendimento estabelecido pelo próprio STF. A corte decidiu em 2017 que cabe ao Legislativo a palavra final sobre o afastamento de parlamentares contra os quais não há condenação.
Alcolumbre quer forjar ritos e aventar opções para uma situação em que a única atitude legal é a declaração da perda do mandato da senadora Juíza Selma (PODE-MT), condenada por caixa dois eleitoral.
Em qualquer momento histórico, as atitudes de Fux e Alcolumbre seriam motivo de constrangimento institucional. No atual, em que justamente Supremo e Congresso são apontados, e com razão, como freios aos arroubos antirrepublicanos vindos do Palácio do Planalto, elas são nada menos do que inadmissíveis.
Hélio Schwartsman: Queima de arquivo?
Não há, por ora, elementos objetivos a sustentar essa tese no caso Adriano da Nóbrega
Não há, por ora, elementos objetivos a sustentar a tese de que a morte do miliciano Adriano da Nóbrega tenha sido uma operação de queima de arquivo para beneficiar o clã Bolsonaro. O chocante é constatar que essa hipótese é verossímil, a ponto de os principais órgãos de imprensa terem publicado textos em que ela é contemplada.
Não faz tanto tempo, seria inconcebível imaginar um presidente da República e seus filhos envolvidos nesse tipo de noticiário. Não que só tenhamos tido líderes impolutos, mas não era comum ver políticos de alto coturno com ligações tão abertas com a baixa criminalidade. Se as tinham, ao menos as escondiam.
Não os Bolsonaros. O próprio presidente fez, quando ainda era deputado federal, um discurso em que defendeu o miliciano de uma acusação de assassinato. O primeiro filho, Flávio, foi mais longe e, além de defendê-lo e condecorá-lo, contratou-lhe a mãe e a irmã. As familiares de Nóbrega só se desligariam do gabinete de deputado estadual de Flávio em novembro de 2018.
Pelo menos parte dessas ligações perigosas apareceu nos jornais antes do pleito e, apesar disso, Bolsonaro foi eleito. Como explicar isso?
No que talvez seja um subproduto da polarização, nós nos tornamos hipercéticos e passamos a aplicar categorias jurídicas mesmo onde elas não cabem. É claro que todos são inocentes até prova em contrário, mas isso vale na esfera penal, não na vida em geral. Não é porque ainda não houve trânsito em julgado, que você precisa oferecer um cargo de diretor de “compliance” ao suspeito de corrupção ou pedir em casamento a mulher acusada de matar seus quatro maridos anteriores.
Para a sociedade funcionar bem, precisamos, muitas vezes, nos fiar em juízos morais sumários. O risco de que cometamos injustiças é real, mas pior, me parece, é colocar em cargos-chave da República pessoas que não têm qualificação ética para ocupá-los.
Leandro Colon: Com morte de miliciano, perguntas sobre família Bolsonaro podem ficar sem respostas
Sobram pontos de interrogação sobre o envolvimento do clã com Adriano da Nóbrega
A morte do ex-PM Adriano da Nóbrega, apontado como chefe de uma das principais milícias do Rio, pode deixar sem respostas uma série de perguntas sobre suas relações nebulosas com a família Bolsonaro.
A prisão de um dos homens mais procurados do país era importante para esclarecer o esquema das "rachadinhas" no gabinete de Flávio Bolsonaro, filho do presidente da República, nos tempos de deputado na Assembleia do Rio.
Hoje senador, Flávio empregou até novembro de 2018 a mãe e a mulher de Nóbrega. Na época da exoneração, cada uma ganhava um salário de R$ 6.490,35. A mãe do miliciano, Raimunda, repassou dinheiro para Fabrício Queiroz, policial aposentado e homem de confiança dos Bolsonaros há mais de 30 anos.
Queiroz recebeu R$ 92 mil em 18 depósitos feitos em uma agência próxima a um restaurante de Raimunda e na mesma rua onde seu filho também tinha negócio. Segundo o Ministério Público, contas controladas por Nóbrega abasteciam Queiroz.
As autoridades investigam Flávio e Queiroz pela suspeita de integrarem um esquema de lavagem e ocultação de bens. Funcionários do gabinete de Flávio repassariam parte dos seus salários ao policial aposentado.
Sobram pontos de interrogação sobre o envolvimento da família Bolsonaro com o miliciano. Em 2005, por exemplo, então deputado federal, Jair Bolsonaro usou a tribuna para elogiar Adriano da Nóbrega e criticar as acusações de dentro da polícia contra ele.
Segundo Bolsonaro, Nóbrega era um "brilhante oficial" e estava sendo injustiçado em um caso de homícidio de um guardador de carro.
Como deputado estadual, Flávio homenageou o ex-PM duas vezes. Em 2003, disse que o hoje miliciano morto desenvolvia sua função pública com "dedicação, brilhantismo e galhardia". Dois anos depois, concedeu a ele a Medalha Tiradentes.
Até ser morto neste domingo em uma cidade da Bahia, o foragido Nóbrega era acusado de ligação com homicídios e de comandar a milícia de Rio das Pedras. É também suspeito de ligação com a morte de Marielle Franco.
Por que Flávio exaltava tanto o ex-policial e empregava seus parentes? O que levou Jair Bolsonaro a gastar tempo na tribuna para defendê-lo com tanta garra? Por que a mãe do miliciano mandou dinheiro para Queiroz?
Com a morte de Nóbrega, essas perguntas podem nunca mais serem respondidas.
*Leandro Colon, Diretor da Sucursal de Brasília,
Vinicius Torres Freire: A gasolina e o dólar estão caros?
País está mais pobre do que em 2010, mas certos preços apenas estão no lugar
“Devolve meu dólar a R$ 1,99.” Houve gente que foi às ruas pedir a cabeça de Dilma Rousseff carregando cartazes que criticavam a desvalorização do real, alguns por chacota, outros a sério. Nas manifestações finais a favor do impeachment, o dólar andava pela casa dos R$ 3,50.
A cada vez que o real cai da escada, como agora, a chacota muda de lado. As fotos dos manifestantes de amarelo se tornam objeto de ridículo e de memes que escarnecem também do governo, antes de Michel Temer, agora de Jair Bolsonaro.
O povo ainda faz troça de Eduardo Bolsonaro, republicando o tuíte em que o filho 03 recomendava “Não compre dólar agora!” em 14 de abril de 2016 (o dólar custava R$ 3,51).
É a conversa comum sobre economia no mundo real das redes sociais, feita de ódio ou deboche do preço do tomate, do bife, da gasolina ou do dólar. Graças à demagogia agressiva de Bolsonaro, os combustíveis voltaram a ser motivo de “tretas”, piadas e ódios.
A gasolina está cara? Flutua em torno da média de R$ 4,41 desde janeiro de 2018. Custava R$ 4,58 na última semana de janeiro, segundo pesquisa semanal da Agência Nacional do Petróleo (esses valores são médias nacionais). Subiu uns 5% em um ano, um pouco mais do que os salários.
O salto grande de preços mais recente ocorreu no final de 2017. Em três anos, a gasolina subiu 23%; o salário médio, 14%. A inflação média foi de uns 11%. Na percepção e no bolso do povo mediano, a gasolina está cara.
O dólar está caro? Embora uma variação abrupta do preço da moeda americana possa ser importante, é tristemente tolo dizer que o dólar “bate recordes”, como a gente lê por aí (dizer que o recorde é “nominal” apenas lambuza a tolice de ridículo).
Feitas as contas relevantes, em termos reais o dólar está onde esteve entre mais ou menos 2007 e 2009 (para ser específico, trata-se aqui de taxas de câmbio real). Entre 2010 e 2014, a moeda brasileira ficaria loucamente forte, em parte por causa da política econômica dos países centrais em crise braba, em parte devido às barbaridades da política econômica brasileira.
Foi a época do Bolsa Miami (gastos no exterior) e de alguma farra de importados. Foi também uma paulada extra na indústria brasileira, que desde 2010 parou de crescer.
O dólar nominal de janeiro de 2020 ficou 11% mais caro que o de um ano antes (30% em relação a janeiro de 2018). Suscita uma sensação de empobrecimento, em parte correta, embora de um ano para cá os gastos dos brasileiros em viagens no exterior tenham ficado praticamente na mesma.
O preço dos combustíveis, claro, sobe também com a alta do dólar. No entanto, essa desvalorização recente do real não buliu com a inflação geral, convém notar.
E daí? Por qualquer critério, estamos na média mais pobres do que em 2010: neste país já caro (de tão ineficiente), a crise aumentou a penúria, óbvio. Quanto a esses preços que causam celeuma, há mais realismo, é duro dizer, é duro ouvir.
Não há subsídio disfarçado no preço dos combustíveis. O dólar desvalorizado resulta de gasto público e inflação mais controlados, que contribuem para reduzir a taxa de juros (além da estagnação econômica). Bulir com esses preços, com tabelamentos e subsídios, não vai resolver nosso problema, apenas criar outros, como se fez em particular entre 2011 e 2014. Não resolve a falta de crescimento e de investimento, o emprego precário. É demagogia ou burrice ou as duas coisas.
Elio Gaspari: O caótico MEC de Weintraub
Se os educatecas não conseguem fazer um exame que preste, como farão três?
Depois de ter anunciado “o melhor Enem” e de ter entregue o pior, o Ministério da Educação de Abraham Weintraub saiu-se com uma ideia nova, fatiando-o em três exames que seriam aplicados a partir do primeiro ano do ensino médio. Trata-se de uma parolagem típica de burocratas que não fazem seu serviço e, diante do fracasso, propõem uma reforma. Se os educatecas não conseguem fazer um exame que preste, como farão três?
O Enem é uma praga que aflige a juventude brasileira há mais de 50 anos, desde quando se chamava vestibular. Em julho passado, o ministro Weintraub pôs luz nessa questão anunciando que a partir deste ano as provas seriam feitas por meio eletrônico. Prometeu tudo direitinho, dizendo que até 2026 a nova modalidade estaria implantada em todo o país: “Há cem anos a gente faz exame do mesmo jeito, em papel. Queremos fazer como é feito lá fora”.
Lá fora, tomando-se o exemplo do SAT americano, o exame é feito por meio eletrônico e os jovens têm sete oportunidades a cada ano para fazer a prova. Foi mal num, tenta outro. Se a promessa de Weintraub fosse adiante, algum dia seria possível fazer mais de um exame por ano.
Passaram-se oito meses e um fracasso. O que se vê é o início de uma discussão maluca para esquecer o que foi dito. Não se pode pedir que Weintraub faça o que prometeu, mas não seria muito pedir que faça pelo menos o que está combinado, um Enem por ano, mesmo no papel, sem desastres como o das últimas semanas.
Weintraub foi o quarto ministro a prometer o Enem digital. Ele e todos os outros seguiram a mesma metodologia: prometeram a mudança e nunca mais tocaram no assunto.
Que eleição?
Uma pesquisa realizada em São Paulo revelou que dois terços dos entrevistados não sabiam que em outubro haverá uma eleição municipal para a escolha do prefeito e dos vereadores.
Esperando Bloomberg
Até o dia 3 de março, quando 14 estados americanos realizarão suas prévias, os democratas e a torcida mundial contra Donald Trump continuarão ralando um inferno astral. Só então entrará na disputa Michael Bloomberg, o bilionário ex-prefeito de Nova York.
Os resultados de Iowa e o que virá nesta semana de New Hampshire indicam o caminho para uma derrota quase certa dos democratas, provavelmente enorme. Ficaram na frente o jovem Pete Buttigieg e o veterano Bernie Sanders. Quem acha que o eleitorado americano pode colocar na Casa Branca um gay (Buttigieg) ou um neossocialista (Sanders) pode torcer à vontade, mas terá mais quatro anos de Donald Trump.
Bloomberg entrará na Superterça com 78 anos e uma fortuna de US$ 61 bilhões. Ele já foi republicano e politicamente incorreto. No andar de cima, sua conversão poderá ser absorvida, mas, no de baixo, ele terá que ralar para buscar o voto do eleitorado negro.
O candidato pelo partido democrata tem um ego comparável ao de Trump, mas essa é a única semelhança. Judeu, nasceu na classe média, não herdou um tostão e construiu um império jornalístico. O outro herdou a fortuna do pai e quebrou várias vezes.
Serpentário
Jair Bolsonaro não gosta da imprensa e reclama das notícias de que pretende mexer no Ministério. Tudo bem, mas, de dez frituras que são noticiadas, nove partem do serpentário do Planalto.
Tanto é assim que a saída do ministro Gustavo Canuto do Ministério do Desenvolvimento Regional e sua substituição por Rogério Marinho, uma decisão pessoal de Bolsonaro, passou ao largo dos radares dos fabricantes de frituras.
Energia solar
A turma que pretende taxar a energia solar de forma ampla, geral e irrestrita continua ativa, trabalhando no escurinho do Congresso.
Um curioso acaba de descobrir um documento capaz de subsidiar essa discussão. Trata-se de um manifesto dos produtores de velas, paródia escrita em 1845 pelo economista francês Frédéric Bastiat. Ele defendia a liberdade de comércio e redigiu a petição destinada a enfrentar um concorrente estrangeiro (o Sol), pedindo uma lei que mandasse fechar janelas e claraboias para impedir a entrada de sua luz, protegendo a indústria, o comércio e milhares de empregos.
Bastiat queria preços livres e na sua paródia argumentava que, se a luz do Sol podia concorrer com a das velas, o governo não poderia taxar a importação de laranjas portuguesas, mais baratas que as francesas porque a lavoura de Portugal era beneficiada porque lá havia mais Sol.
Transição
Em 2018, a ministra Cármen Lúcia passou a presidência do Supremo Tribunal Federal ao seu colega Dias Toffoli com grande suavidade.
Depois do barraco dos juízes de garantia, deve-se temer que a transição de Toffoli para Luiz Fux tenha sobressaltos.
Cabral falou
O ministro Edson Fachin homologou a colaboração de Sérgio Cabral, feita à Polícia Federal, determinando que seus anexos fiquem sob sigilo. Eles poderão chegar à centena.
A última colaboração de magano à Federal, também rejeitada pelo Ministério Público, foi a de Antonio Palocci e teve um percurso desastroso. Vazou mais que coador de macarrão e um de seus anexos foi divulgado pelo juiz Sergio Moro durante a campanha eleitoral.
As confissões de Palocci, com 39 anexos, geraram muito barulho e poucos resultados. Pelo andar da carruagem, a colaboração de Cabral pode ir pelo mesmo caminho, a menos que seja acompanhada pelas devidas investigações e necessárias prisões.
Embaixador calado
Pelo menos um embaixador do Brasil numa capital do circuito Elizabeth Arden especializou-se na arte de ficar calado ou de repetir platitudes em jantares onde o colocam ao lado de senhoras estranhas ao mundo diplomático.
As mulheres de diplomatas de outros países sabem que certos assuntos devem ser evitados.
Guilherme Schelb
O procurador-geral Augusto Aras escolheu seu colega Guilherme Schelb para uma das vagas no conselho da Escola do Ministério Público e começou uma gritaria da turma da Casa.
A maior restrição feita a Schelb é a sua simpatia por Jair Bolsonaro e a defesa que faz do Escola Sem Partido. Esse é um direito dele.
A turma da grita tem memória seletiva. Em 2001, Schelb integrou a equipe de procuradores que investigou o assassinato de guerrilheiros do Araguaia no século passado. Alguns guerrilheiros foram executados depois de terem aceito as propostas de rendição feitas pelos militares por meio de panfletos e de convites transmitidos pelos alto falantes de helicópteros a partir de outubro de 1973. Um dos panfletos dizia: “Oferecemos a possibilidade de abandonar a aventura com vida, com tratamento digno e julgamento justo”. Era mentira.
O trabalho desses procuradores ajudou a levantar o véu de silêncio jogado sobre o fim da guerrilha pelo Exército e, sob outros aspectos, pelo PCdoB. Eles listaram nove “desaparecidos” que foram vistos nos aparelhos que o Centro de Informações do Exército mantinha na região.
Bruno Boghossian: Censura de livros em Rondônia é produto de uma máquina reacionária
Com poder nas mãos, grupos trabalham por agenda baseada em arbítrio e moralismo barato
Os dados do último Censo Escolar apontaram que só 8% das unidades estaduais de ensino de Rondônia estavam ligadas à rede pública de esgoto. Quatro em cada dez não tinham nem biblioteca, mas o governo local decidiu gastar seu tempo com uma batida para confiscar livros de autores consagrados.
A caçada obscurantista ensaiada pela Secretaria da Educação do estado mostra o que pode acontecer quando a gestão pública se torna refém de obsessões ideológicas. Com o poder nas mãos, grupos eleitos nos últimos anos passaram a trabalhar a favor de uma agenda baseada no arbítrio e no moralismo barato.
Na última quinta (6), o governo de Rondônia enviou um memorando a coordenadores regionais de educação para ordenar o recolhimento de livros "inadequados para crianças e adolescentes". Os censores incluíram no índex obras de escritores célebres como Machado de Assis, Mário de Andrade e Euclides da Cunha.
A lista sugere que os tiranos que comandam a burocracia do estado não estão nem aí para a educação dos jovens. A máquina reacionária quis proibir o contato de estudantes com livros que marcaram a literatura brasileira e costumam ser exigidos em vestibulares país afora.
O secretário da Educação praticamente confessou que a ideia era fazer tudo às escondidas. Primeiro, ele disse aos repórteres Paulo Saldaña e Ricardo Della Coletta que não havia ordem daquele tipo. Era mentira, pois a circular aparecia no sistema interno da pasta. Depois, ele anunciou que não haveria mais confisco.
A tentativa de censura é produto de uma visão obtusa das políticas públicas de ensino, que estabelece fantasmas comunistas e a depreciação dos bons costumes como os principais problemas da educação.
Essa, aliás, é uma das linhas mestras do bolsonarismo. Na campanha e no governo, o presidente estimulou a falsa ideia de que o mau desempenho dos estudantes brasileiros é fruto de depravações e de uma contaminação esquerdista nas escolas.
Seus discípulos estão escutando.