Folha de S. Paulo

Ranier Bragon: Papel passado

Bolsonaro preferiria que relação com miliciano estivesse enterrada

"O então tenente Adriano foi condecorado em 2005. Até a data de sua execução, 9 de fevereiro de 2020, nenhuma sentença condenatória transitou em julgado em desfavor do mesmo." A declaração assinada por Jair Bolsonaro foi elaborada ao lado de seu chefe da comunicação, Fabio Wajngarten, dentro do carro presidencial parado por 38 minutos na entrada do Palácio da Alvorada, na noite de sábado (15). Ela integra nota em resposta a um tuíte do governador Rui Costa (PT-BA).

A aparente trivialidade da tarefa esconde um marco nessa história, toda ela capaz de arrepiar os cabelos de qualquer um que os tenha.

>Horas antes, Jair e Flávio Bolsonaro falaram pela primeira vez sobre a morte do ex-capitão da PM Adriano da Nóbrega. "Querem me associar a alguém por uma fotografia, uma moção", esbravejou o presidente, em referência às honrarias dadas pelo filho ao PM. Bolsonaro talvez tenha se esquecido, mas em 2005 ele contou na Câmara ter ido ao julgamento do "brilhante oficial" Adriano. Afirmou, inclusive, ter descoberto uma linha de defesa que nem o advogado do PM havia imaginado na época.

A partir de 2010, a sogra e a mulher de Adriano foram para o gabinete de Flávio. Quem mandou contratar? A repórter Ana Luiza Albuquerque fez a pergunta, já que Bolsonaro havia admitido ter mandado Flávio homenagear Adriano. "Vamos encerrar essa conversa aqui." Outra pergunta é: Quem mandou exonerar as duas, Fabrício Queiroz —pivô do caso das rachadinhas— e seus familiares no fim de 2018, quando a família se deu conta de que o zé-ninguém da Câmara iria mesmo virar presidente? Os filhos entraram para a política pelas mãos do pai, que sempre coordenou seus gabinetes.

Nenhuma das 2.543 pessoas mortas por policiais só em São Paulo e no Rio, em 2019, mereceu a deferência dada ao ex-capitão do Bope, suposto chefe de milicianos e matadores de aluguel.

Involuntariamente, a nota deste sábado autentica em cartório uma relação que Bolsonaro preferia ver morta e enterrada.


Leandro Colon: Caso Secom é hora da verdade para Comissão de Ética da Presidência

Se a comissão topar manobra de Wajngarten e aplicar inútil advertência, é melhor deixar de existir

A Comissão de Ética Pública, vinculada à Presidência, deve discutir nesta terça-feira (18) o caso de conflito de interesses, revelado pela Folha, envolvendo o chefe da Secom do Planalto, Fabio Wajngarten.

Investigado pela Polícia Federal sob suspeita de corrupção, peculato e advocacia administrativa, Wajngarten aposta em um salvo-conduto do colegiado para estancar o desgaste que vem sofrendo no cargo.

Criada em 1999, a comissão teve poucos efeitos práticos até agora. É um órgão consultivo, sem poder para demitir servidores que corrompam princípios éticos. No máximo, recomenda a exoneração ou aplica uma advertência. Não pune para valer.

Até hoje, por exemplo, apenas um ministro foi alvo do pedido de demissão: Carlos Lupi, no governo de Dilma Rousseff, em 2011, pelas relações promíscuas de ONGs ligadas ao PDT, seu partido, e a pasta que comandava, o Ministério do Trabalho.

Como mostrou este jornal, Wajngarten, ao assumir a chefia da Secom de Jair Bolsonaro, omitiu da comissão da Presidência que era sócio de uma empresa que mantém contratos há anos com emissoras de televisão e agências de publicidade contratadas pelo governo com verbas destinadas pela própria Secom.

A lei 12.813, do conflito entre interesses público e privado, proíbe o servidor de exercer atividade que implique “a prestação de serviços ou a manutenção de relação de negócio com pessoa física ou jurídica que tenha interesse em decisão dele ou de colegiado do qual participe”.

Se não bastasse a omissão dos negócios fora do Planalto, Wajngarten fez uma proposta estapafúrdia à comissão: transferir à sua mulher a empresa da qual tem 95% das cotas.

Hoje, o chefe da Secom distribui verba do governo para seus clientes. Com a mudança sugerida, mandará dinheiro para clientes da própria mulher. O conflito de interesses continua. Por que Wajngarten não rompe seus contratos privados com as emissoras? Se a comissão topar a manobra e ainda aplicar uma inútil advertência, é melhor deixar de existir.

*Leandro Colon, Diretor da Sucursal de Brasília,


Vinicius Mota: O que é pior? fake news ou seus caçadores?

A pretexto de combatê-las, autoridades promovem censura, abuso e mais fake News

O que é pior? A difusão das chamadas fake news ou as tentativas das autoridades de combatê-la?

Na terça-feira (11), tivemos mais um exemplo que reforça a segunda hipótese. Uma comissão de deputados e senadores instalada para investigar fraudes informativas nas eleições tornou-se, ela própria, cenário de uma farsa, que deflagrou uma torrente de ofensas à honra da jornalista Patrícia Campos Mello, da Folha.

Também com o fito republicano de detectar quem disseminava conteúdo difamatório e ameaças contra ministros do Supremo Tribunal Federal, a corte inventou um inquérito esquisito, contornando o Ministério Público, no qual a vítima apura, manda a polícia agir e julga. Censurou a revista Crusoé nessa toada.

Nas eleições de 2018, o Tribunal Superior Eleitoral, autoproclamado caçador de fake news, mandou suspender, como se fossem mentirosas, mensagens partidárias publicadas numa rede social que se baseavam em notícias verídicas veiculadas pela imprensa profissional.

Inspirado em valores não menos elevados, em 2019 o Congresso Nacional tornou crime, punível com até 8 anos de cana, divulgar, “ciente da inocência do denunciado e com finalidade eleitoral, (...) ato ou fato que lhe foi falsamente atribuído”. O TSE de 2018, se já existisse a norma, poderia condenar à prisão quem publicou a notícia que considerou mentirosa, mas que era fidedigna.

Deus nos livre de autoridades bem-intencionadas à caça de fake news.

Que tal a alternativa de voltar ao básico? Não é preciso fabricar leis, CPIs ou inquéritos de exceção para apurar o que há de difamatório, injurioso, ameaçador ou calunioso numa manifestação. Vale o mesmo para as indenizações por dano moral, com função não só de recompensar o agredido mas também de desestimular novas agressões e agressores.

O Supremo fará melhor substituindo as invencionices penais pela discussão da imunidade parlamentar: ela abona o achincalhe de cidadãos comuns? Está aí o caso de Eduardo Bolsonaro para servir de precedente.

*Vinicius Mota, Secretário de Redação da Folha


Vinicius Torres Freire: Ocupação militar do Planalto pode ajudar aloprados ideológicos do governo

Governo pode ficar mais livre para fazer demagogia, da gasolina à religião

A “ala militar” deu um chega para lá na “ala ideológica” do governo, a gente lê por aí. Hum.

É verdade que a seita de aloprados reacionários perdeu cadeiras no Planalto, mas a turma ainda mora de pijaminha no coração do presidente, de resto líder de torcida das milícias virtuais. Se por mais não fosse, a seita é liderada politicamente pela filhocracia bolsonariana.

No mais, a “ala ideológica” continua fora da casinha e vivíssima, o que é evidente por exemplo na demagogia com a gasolina ou no ataque à razão, à cultura ou a jornalistas, como na campanha imunda contra Patrícia Campos Mello, jornalista desta Folha, aliás difamada com apoio do Twitter.

O ministro-general Augusto Heleno é “ideológico” ou “militar”? Acaba de acusar até o papa de “confraternizar com um criminoso” (Lula), “exemplo de solidariedade a malfeitores, tão a gosto dos esquerdistas”.

Dá-se pouca bola para demagogias como a da gasolina, que pegou. Quem conversa com o povo na rua e nas redes ouve que “o Bolsonaro quer baixar a gasolina, mas os governadores e os deputados não deixam” e variantes.

Preços de comida, gasolina, ônibus e dólar são indicadores econômicos “pop” importantes, qualquer demagogo grosso sabe. O índice de irritação com a gasolina, o “Irrigás”, digamos, está no nível mais alto desde pelo menos 2012, com exceção de maio de 2019 (época de mau humor na economia) e da greve dos caminhoneiros, baderna apoiada por Bolsonaro e empresários bolsonaristas e espertalhões em geral.

Pode se medir o “Irrigás” comparando o custo de encher o tanque de um carro popular com o salário médio. Tende a ficar nesse nível alto ou subir. O salário quase não sobe, o dólar vai ficar nas alturas, o preço do petróleo não deve cair mais, afora em caso de derrocada na economia mundial.

Pode haver mais rolo: o Supremo está para julgar a inconstitucionalidade do tabelamento do frete. Se o tabelamento cair, há risco de rolo, o que assusta Jair Bolsonaro, que não teria como apoiar caminhonaços, como o fez em 2018.

Essa digressão da gasolina ilustra como a “ala ideológica” vai além dos disparates atrozes e desumanos do governo. Bolsonaro cria atrito político ou desordem nas expectativas de gestão racional da economia por fazer essas e outras demagogias, que abalam mesmo as sagradas reformas.

Decerto chamou o Exército com o objetivo de evitar trabalho administrativo, que o exaure, e porque foi aconselhado a conter a desordem. Também porque não conhece outros quadros. Passou a vida a circular por quartéis, por sua paróquia mental de ressentimento odiento, pelo porão da ditadura e pelo baixíssimo clero parlamentar.

Se conseguir terceirizar o governo para generais, para o premiê Rodrigo Maia e para Paulo Guedes, pode se dedicar mais à reeleição e ao comando da seita, que quer transformar em partido.

Além da desordem ruinosa, prepara-se na Educação um plano de doutrinação ignara, com livros didáticos e com tudo. Mesmo tutelado pelo vice-general Mourão, o Ministério do Mau Ambiente continuará a ofensiva mineradora e ruralista contra indígenas e matas.

A ministra dos Costumes, Moral e Cívica, Damares Alves, continuará a campanha contra o Estado laico e de arregimentação de simpatias neopentecostais.

Militares não gostam de bagunça, da cama desarrumada à agitação social, passando pelo governo. Se tiverem sucesso, os Bolsonaro estarão mais livres e fortes para comandar a “ala ideológica”.


Bruno Boghossian: Na guerra ideológica, Bolsonaro ganha até quando perde

Presidente estimula sua base mesmo quando não consegue entregar soluções concretas

Dias depois da eleição, Jair Bolsonaro anunciou a transferência da embaixada brasileira em Israel para Jerusalém. Parecia uma simples mudança de CEP, mas não era assim. Ainda no primeiro ano de mandato, os militares desmontaram a armadilha, já que o plano era visto como afronta pelos países árabes.

O presidente perdeu a queda de braço dentro do governo, mas não admitiu desistir e passou a empurrar a ideia com a barriga. Em dezembro, disse ao primeiro-ministro israelense que a troca aconteceria em 2020. Dois meses depois, deu uma entrevista a um pastor evangélico e disse que tudo seria feito até 2021.

Para Bolsonaro, as bravatas e a propaganda valem mais que resultados objetivos, na maior parte das vezes. O presidente se especializou em vender planos de difícil execução e soluções impossíveis para problemas fantasiosos, apenas para manter sua base política estimulada.

O governo sabe que uma transferência definitiva da embaixada para Jerusalém criaria complicações desnecessárias para o Brasil. Bolsonaro dá sinais de hesitação, mas continua balançando a cenourinha na frente de cavalos famintos pela mudança. Assim, ele reforça um discurso caro à comunidade evangélica, mesmo que o projeto não se concretize.

A mesma lógica está por trás de sua recente tentativa de emparedar os governadores no debate sobre o preço dos combustíveis. O presidente sabia que nenhum estado poderia zerar a cobrança de ICMS nesses casos, mas o próprio lançamento da ideia fracassada fez com que ele acumulasse pontos com seu eleitorado.

Incapaz de construir acordos, Bolsonaro deixou no papel sua pauta de costumes e viu o Congresso derrubar propostas como a flexibilização do acesso a armas de fogo. Ele não se importou. No círculo de seguidores fiéis, o mito ganha até quando perde.

Os acenos simbólicos são suficientes para reforçar as trincheiras ideológicas de Bolsonaro. Basta prometer acabar com o comunismo e combater a depravação nas escolas enquanto espera as curtidas nas redes.


Janio de Freitas: Banana de Bolsonaro a jornalistas é síntese e símbolo da concepção que a gorilagem faz

A banana gestual que Bolsonaro dirigiu a um grupo de jornalistas, sem sequer pergunta ou observação que o incomodasse, fez mais do que um instante apalhaçado em telejornais mundo afora.

Proporciona uma síntese e um símbolo da concepção que a gorilagem faz não só dos jornalistas, mas de toda a sociedade que eles representam, na intermediação entre os homens e a vida do seu planeta.

No país em que ao ocupante da Presidência é admitido gesticular bananas, quando não insultos verbais, o que um moleque faz ao caluniar uma jornalista admirável por todos os bons motivos, como Patrícia Campos Mello, é identificar-se com o seu presidente.

Note-se, também como próprio deste tempo, outro fator que os identifica. Liga-os até em comprometimento pessoal e de fora da lei. O moleque trabalhou na produção de mensagens em massa, por internet, que fraudaram a disputa eleitoral para favorecer Bolsonaro.

Coisas assim permitem alargar muito o conceito de parasita restringido por Paulo Guedes aos funcionários públicos (sem esquecer, nesse conceito, que os militares também são funcionários públicos).

O próprio Paulo Guedes é, em pessoa, um exemplar notável de parasitismo, na margem do serviço público mas às custas dele. Sua riqueza veio de operar com e para fundos de pensão. De servidores.

Nada mais parasitário do que esse tipo de atividade, que faz fortunas com o que servidores trabalharam para ganhar e dispor no futuro (e nem sempre receber, ao menos na porção correta, como está implícito nos escândalos de desvios e alegadas más aplicações de vários fundos, por dirigentes e seus operadores. Também isso o hoje ministro conhece como especialista do setor).

Paulo Guedes é um exemplar típico do economista de mercado, esses que adulteram o conceito de liberal para sob ele se esconderem. São economistas transgênicos. Condição em que Paulo Guedes constrói com palavras as bananas dirigidas à população.

Com elas e com seus projetos de reforma, tem mostrado o que de fato querem os liberais transgênicos.

Em breve confissão da sua repugnância à ida de empregadas domésticas à Disney, seja por conta própria ou como empregadas mesmo, Guedes desnudou o inimigo da redução de desigualdades —sociais, econômicas, étnicas, educacionais— que há em cada economista de mercado e nos seus seguidores na política e no jornalismo.

AOS PEDAÇOS
Parte da Petrobras está em greve há 15 dias. Os que publicam críticas à censura de livros, como devem, não fazem cobertura da greve.

Os grevistas protestam contra a possível privatização da empresa, como desfecho da atual e pouco conhecida venda a varejo de subsidiárias e outros componentes do patrimônio. Por decorrência da venda de suas ações, o Estado conta agora, para o controle firme da Petrobras, com apenas 0,3% acima do necessário em ações com direito a voto. Está com 50,3%.

Quando isso mesmo ocorreu no tempo de Figueiredo, o Estado brasileiro chegou a perder, certo dia, o controle acionário da Petrobras. Houve uma correria de pânico no governo, para restabelecer o domínio. O segredo foi quebrado, na ocasião mesma, por artigo aqui.

ESTÁ CLARO
A medida provisória 910/2019, que aumenta em quatro vezes a regularização de posse particular de terras da União, não precisa de explicações. Uma coisa dessas nunca nasce sem endereço. Dessa vez é ate mais caprichada: para dar as terras de propriedade do país, basta que o suposto ocupante se declare ocupante de fato.

Depois o governo decide a quais peticionários atenderá.

POR ORA, NADA
É aconselhável não dar maior consideração a qualquer das informações oficiais ou oficiosas sobre o assassinato do miliciano capitão Adriano da Nóbrega. Nem mesmo, ou sobretudo, às da petista Secretaria de Segurança da Bahia.

*Janio de Freitas, jornalista


Julianna Sofia: Chama o síndico

Com Guedes fora da casinha, reformas e medidas econômicas correm risco.

As falas destrambelhadas do ministro Paulo Guedes (Economia) parecem traços de uma irritação enrustida pelas dificuldades de levar a cabo seus planos. No grito, na prensa, na declaração estapafúrdia, uma forma de fazer o Palácio do Planalto, o Congresso, a sociedade compreenderem a necessidade premente de efetivar suas propostas.

A reforma administrativa da equipe econômica, depois de arestas aparadas e vários reparos a pedido de Jair Bolsonaro, jaz pronta na mesa do presidente. Nem por isso de lá saiu —graças a pressões das alas política e militar do Planalto e à má vontade presidencial com a mudança considerada impopular. Já estava travada quando o "Posto Ipiranga" decidiu chamar servidores públicos de parasitas. Com a manifestação, quase degringolou, e agora Bolsonaro afirma que, se não houver "marola", será encaminhada na próxima semana.

A impaciência de Guedes para lidar com contrariedades e seus espasmos sincericidas provocam danos. Com o PIB rodando abaixo das expectativas, ninguém precisa de um ministro da Economia fora da casinha a fazer companhia ao núcleo ideológico radical do governo, distribuindo munição gratuita a opositores da agenda reformista.

Enquanto Guedes falava a uma plateia esvaziada barbaridades sobre o câmbio e a "festa danada" de empregadas domésticas na Disney com o real valorizado, o governo não conseguia cumprir um acordo para impedir que o Legislativo abocanhe um naco de R$ 30 bilhões do Orçamento. Sem um gerentão, o Executivo não conseguiu elaborar a tempo um projeto de lei para honrar o acerto.

O resultado de muita parolagem e pouca articulação também põe em risco uma das PECs do trio de propostas do ajuste fiscal, em tramitação no Senado. A equipe de Guedes comeu mosca, e uma manobra de aliados pode fazer com que a medida para extinção de 200 fundos públicos permita um furo de R$ 32 bilhões no teto de gastos.

Com o ministro a cometer asneiras, alguém chama o síndico?


Demétrio Magnoli: Repórter cometeu o pecado capital de expor fábrica da 'guerra da informação'

Nesse passo, Patrícia Campos Mello mostrou o caminho que a imprensa precisa seguir, se pretende sobreviver

O governo Bolsonaro odeia o jornalismo profissional. No caso da jornalista Patrícia Campos Mello, porém, o caso é visceral. Na campanha de 2018, Bolsonaro declarou uma “guerra” à imprensa, dando a senha para uma enxurrada de calúnias e ameaças à repórter que investigava a máquina eleitoral de difusão de fake news.

Agora, na CPMI das Fake News, Eduardo Bolsonaro apoiou-se nos ombros de um pulha para, num exercício de covardia, atingir sua integridade pessoal. Não é casual: Patrícia cometeu o pecado capital de invadir uma redoma proibida, expondo os contornos da fábrica da “guerra da informação”. Nesse passo, mostrou o caminho que a imprensa precisa seguir, se pretende sobreviver.

Fake news são o complexo de notícias falsas, operações de difamação e campanhas de promoção do ódio que ganhou dimensões inéditas com a universalização da internet. O fenômeno novo é a sofisticação do arsenal empregado na guerra virtual da informação.

No início, mais de uma década atrás, tudo se resumia a blogueiros de aluguel recrutados por partidos políticos para o trabalho sujo na rede. A imprensa, ainda soberana, decidiu ignorar o ruído periférico. Hoje, o panorama inverteu-se: a verdade factual sucumbe, soterrada pela difusão globalizada de fake news.

Os jornais converteram-se em anões na terra dos gigantes da internet. Nos EUA, entre 2007 e 2016, a renda publicitária obtida pelos jornais tombou de US$ 45,4 bilhões para US$ 18,3 bilhões. Em 2016, o Google abocanhava cerca de quatro vezes mais em publicidade que toda a imprensa impressa americana —e isso sem produzir uma única linha de conteúdo jornalístico original.

O novo sistema, baseado na elevada rentabilidade da fraude, descortinou o caminho para a abolição da verdade factual na esfera do debate público.

A fabricação de fake news tornou-se parte crucial das estratégias de Estados, governos, organizações terroristas e supremacistas. A China, que prioriza o público interno, e a Rússia, que se dirige principalmente à opinião pública europeia e americana, são atores centrais nesse palco.

Graças ao Facebook, as forças armadas de Mianmar deflagraram uma eficiente campanha de limpeza étnica contra a minoria rohingya e o governo nacionalista indiano consegue inflamar a xenofobia contra os muçulmanos de Assam.

Perde-se no passado o esforço amador do PT para criar um Pensador Coletivo por meio de núcleos de militantes treinados no que o responsável pelo setor classificou como “guerra de guerrilha da internet”.

Atualmente, no mundo todo, governos e partidos populistas, na direita e na esquerda, empregam aparatos especializados na difusão massiva de fake news. O governo Bolsonaro estabeleceu, com verba pública, dentro do Planalto, um “gabinete do ódio” destinado a coordenar sua “guerra da informação”. No fim, o que está em jogo é o funcionamento da democracia, como explica o jornalista Eugênio Bucci no livro “Existe Democracia sem Verdade Factual?”.

A imprensa também está em perigo, junto com a democracia. Se, no plano dos fatos, verdade e falsidade tornam-se narrativas indistinguíveis, o jornalismo profissional perde seu objeto. Daí, emerge uma nova missão jornalística: pautar as fake news, como se pautam políticas públicas, eleições, debates parlamentares, guerras reais, inundações.

A checagem ritual de notícias falsas, iniciativa útil, é totalmente insuficiente. No campo analítico, trata-se de iluminar os sentidos políticos das campanhas de fake news, evidenciando suas estruturas de linguagem, seus alvos imediatos e suas metas estratégicas. No campo investigativo, é preciso descerrar o véu que cobre as engrenagens de fabricação das fake news, expondo os atores políticos e empresariais envolvidos na guerra contra a verdade. Patrícia engajou-se nisso —e, por isso, virou alvo.

*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.


Vinicius Torres Freire: Com desvarios do governo, 2020 começa com certo cheiro ruim de 2019

Economia frustrou um tanto, desvarios de Bolsonaro afetam mudanças econômicas

Este 2020 começa com algum cheiro ruim de 2019, com um pouco de mofo e poeira. Há pelo menos paralelismos entre o primeiro e o segundo ano da “nova era”.

1) O crescimento da economia na virada do ano foi frustrante, pelos dados conhecidos até agora, oficiais. Indústria e comércio cresceram menos em 2019 do que em 2018; serviços, um tico mais. O investimento em máquinas, instalações produtivas e residências foi menor, pela estimativa do Ipea.

2) O governo cria crises políticas e de imagem gratuitas e grotescas, atirando no próprio pé, tentando mirar na própria cabecinha.

3) Embora o “parlamentarismo branco”, a nova preponderância do Congresso, tenda a permanecer, mudanças ministeriais, a militarização do Planalto, incompetências políticas e outras barbaridades do governismo vão exigir algum rearranjo da relação com o Parlamento.

4) A demagogia de Jair Bolsonaro levanta outra vez a suspeita, ainda que risco ora remoto, de que o presidente avacalhe de vez a dita “agenda de reformas”, o programa da elite econômica.

Como se sabe, Bolsonaro causou confusão ao tratar de impostos sobre combustíveis ou de dólar, além de fraquejar com a reforma administrativa.

5) O governo parece uma balbúrdia mesmo em assuntos cruciais, de interesse do “bloco de poder”. Bolsonaro, numa contradança com Paulo Guedes, cria confusão sobre a reforma tributária. Em parte, o governo não sabe o que quer; em parte, ideias de Guedes têm sido vetadas em público pelo presidente (CPMF, “imposto do pecado”).

As perspectivas, no entanto, pelo menos até agora, são certamente melhores do que as de 2019, ao menos no que diz respeito à retomada da economia (para quem considera “retomada” um crescimento de uns 2% neste ano).

Ainda assim, o investimento continua catatônico e o governo não consegue colocar na rua um programa de concessões para a iniciativa privada ou medidas que removam o entulho burocrático da economia. Vai tudo ficando para 2021.

Os dados de indústria, comércio e serviço foram frustrantes, mas não há cheiro de queimado ou chabu. Além do mais, os dados publicados até agora não cobrem toda a produção que acaba aparecendo na medida do PIB. Pode haver surpresa (até surpresa ruim, claro).

O regime acidental do “parlamentarismo branco’’, que inexistia até março de 2019, tende a durar pelo menos até o final do ano, o que deve permitir a aprovação de alguma reforma, como a do arrochão dos gastos (PEC Emergencial), sem o que o teto de gastos vai ser furado em 2021. No entanto, o Congresso está meio farto de Bolsonaro.

Com o começo do ano legislativo e protestos dos donos do dinheiro grosso, é possível que Bolsonaro se controle ao menos no que diz respeito a esses interesses econômicos maiores.

Ou seja, delegaria a condução da economia para o premiê acidental Rodrigo Maia e seu ministro Paulo Guedes, dedicando-se como de costume à sua preocupação maior, o desvario ideológico e ultrajes autoritários.

Enfim, em vez da guerra econômica sino-americana, neste ano temos o risco ainda sem medida do novo coronavírus, que vai morder algum crescimento no Brasil.

Em resumo, apesar das perspectivas melhores, o governo recria ou alimenta riscos velhos, engaja-se no desvario e não define prioridades racionais.

Com a economia frágil e a possibilidade normal de choques, por definição fora do nosso controle, conclui-se que o governo está dando muita chance para o azar.

Bolsonaro se importa?


Bruno Boghossian: No plano de Guedes, pobres só aparecem como detalhes inconvenientes

Insulto a empregadas domésticas reflete visão impiedosa da população de baixa renda

Quando solta alguma declaração absurda, o ministro Paulo Guedes costuma dizer que a frase só parece ruim porque foi retirada de contexto. Colocadas lado a lado, no entanto, essas barbaridades desenham um quadro bem coerente.

O insulto às empregadas domésticas que brotou na explicação de Guedes sobre o valor do dólar foi tão gratuito que só pode ser interpretado como uma manifestação autêntica. Ele traduz a face amarga de um pacote que trata a população pobre como um detalhe inconveniente no meio de planilhas econômicas.

Na defesa de seu grande salto liberal, o ministro acenou com propostas que cruzam a fronteira da crueldade. Primeiro, veio a ideia de mutilar o benefício pago a idosos miseráveis. Depois, chegou a proposta de taxar o seguro-desemprego.

Os projetos refletem uma visão impiedosa das políticas de proteção social. Ao defender a capitalização, Guedes insinuou que o povo de baixa renda não poupa para a aposentadoria porque gasta tudo o que ganha: "Os ricos capitalizam seus recursos. Os pobres consomem tudo".

O ministro chegou ao poder com a missão de implantar sua agenda de redução do peso da máquina estatal. O problema é enxergar os prejuízos enfrentados por parte da população como meros efeitos colaterais.

Guedes argumenta que a economia liberal criará condições para melhorar a vida dos mais pobres. "Não olhe para nós procurando o fim da desigualdade social. Nos dê um tempinho", afirmou, em dezembro.

Os pobres terão que esperar esse tempinho na fila do Bolsa Família, porque o governo não tem dinheiro para cadastrar novos requerentes, e sem aposentadoria, já que o INSS não consegue atender quem precisa.

Guedes, porém, está longe de produzir as vilanias de seu chefe. Quando era deputado, Jair Bolsonaro reclamou que os governos criavam uma "nefasta política de bolsas" e propôs a esterilização da população pobre. Não era só inexperiência. Depois que virou presidente, ele disse que "não se passa fome no Brasil".


Hélio Schwartsman: Guedes é bom?

Num governo funcional, ele talvez já estivesse no olho da rua

Tudo é relativo, de modo que, nos padrões da administração Bolsonaro, o Ministério da Economia desponta como uma ilha de racionalidade. Mas, se elevarmos um pouco a régua e utilizarmos critérios absolutos em vez de relativos, a avaliação de Paulo Guedes e sua equipe se torna bem menos efusiva.

É verdade que, ao longo do último ano, a paisagem econômica mudou para melhor, mas, sem prejuízo de algumas medidas acertadas, muito do desanuviamento se deu sem a participação direta do Executivo.

Parte da recuperação se deve à própria dinâmica dos ciclos econômicos. Embora Venezuelas sejam possíveis, o normal é que, depois de uma crise, venham mesmo dias melhores.

Um fator decisivo para o clima mais favorável foi a aprovação da reforma da Previdência. O Ministério da Economia decerto se esforçou para que ela ocorresse, mas quem preferir descrevê-la como uma obra tocada principalmente pelo Legislativo não estará errado. Houve até ocasiões em que o destempero verbal de Guedes atrapalhou. E ele continua sabotando a si mesmo quando impreca contra servidores públicos e domésticas.

Se voltarmos o olhar para as iniciativas do ministério propriamente ditas, o quadro que emerge é de hesitação e falta de prioridade. Num dia a reforma administrativa é fundamental, no outro já não é. O detalhamento de propostas prometidas para ontem nunca aparece. Agendas possíveis e necessárias como a abertura foram esquecidas. As privatizações, que na fala de campanha gerariam R$ 1 trilhão, andam infinitamente mais modestas.

Num governo funcional, Guedes talvez já estivesse no olho da rua.
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Sobre a campanha difamatória contra a jornalista Patrícia Campos Mello capitaneada por Eduardo Bolsonaro, só posso lamentar que o esgoto tenha chegado ao poder. O consolo é que os Bolsonaros passarão, e o jornalismo profissional bem-feito, do qual Patrícia é uma expoente, provavelmente permanecerá.


Vinicius Torres Freire: Generais ocupam Planalto, Congresso se irrita com governo

Congresso fica mais independente; núcleo original da gestão de governo se desfez

Jair Bolsonaro deve manter em 2020 o mesmo padrão de relacionamento com o Congresso observado em 2019: nenhum. Haveria ao menos um padrão mínimo de governo?

O Planalto é mais e mais ocupado por oficiais-generais.

Podem colocar ordem na zorra da coordenação administrativa, embora não tenham experiência de articulação de governo, ministerial, e ainda menos parlamentar.

O núcleo original de ministros “da casa”, com assento no Planalto, acaba de se desmanchar de vez com a provável nomeação de um oficial-general de quatro estrelas para a Casa Civil.

Gustavo Bebianno foi demitido da Secretaria-Geral ainda em fevereiro do ano passado; o general Santos Cruz caiu da Secretaria de Governo em agosto em junho. Ambos foram abatidos com humilhação pela filhocracia, adepta da seita do orvalho de cavalo. Onyx Lorenzoni deve deixar oficialmente a Casa Civil, onde de fato jamais esteve, por inoperância.

A Secretaria de Governo é ora comandada por um general de quatro estrelas da ativa, Luiz Ramos. A Casa Civil pode ir para outro general de exército da ativa, Braga Netto, que seria outro chefe de Estado-Maior do Exército a ir para o governo, como foi o caso do ministro da Defesa, Fernando de Azevedo. Como foi o caso, aliás, dos generais-ministros Sérgio Etchegoyen (Gabinete de Segurança Institucional, GSI) e Luna e Silva (Defesa) no governo de Michel Temer.

A Secretaria-Geral é ocupada por um major PM, Jorge Oliveira, de longa relação familiar com os Bolsonaro, que tenta ser um gerente-geral jurídico-administrativo. Depois de uma quarentena na geladeira política, em parte autoimposta, o vice-presidente-general Hamilton Mourão foi convocado para conter a balbúrdia em parte da área ambiental, assumindo o Conselho da Amazônia.

Depois de levarem rasteiras inesperadas por eles mesmos quando pareciam conter as áreas mais lunáticas do governo (Itamaraty, filhocracia fazendo bagunça no play do Planalto), os oficiais-generais parecem dar a volta por cima de modo também imprevisto. O comando do Exército fica ainda mais identificado com o governo.

O sentido da mudança ainda é difícil de decifrar, como tanto no governo Bolsonaro.

Ao que parece, para o presidente, militares teriam a capacidade de gerência, mas não estariam inclinados a fazer carreira política ou sombra para Bolsonaro.

Para lideranças do Congresso, os generais são criaturas com quem se pode dialogar de modo razoável, racional e profissional, mas que não têm traquejo para articulações políticas maiores. Enquanto o comando do Congresso tiver lideranças mais ou menos comprometidas com isso que se chama de “agenda de reformas”, toca e comanda o barco.

Isso vai durar? Os parlamentares pouco ganham do governo, têm cada vez mais poder sobre o Orçamento (emendas e investimentos em particular), são enxovalhados pelas milícias virtuais e aos poucos vão se cansando de carregar o piano de medidas impopulares.

Por ora, o governo tem maioria acidental, instável e desestruturada para aprovar linhas gerais da “agenda liberal”, que nem é exatamente a de Paulo Guedes. Mas por que continuariam a apoiar o programa geral da elite e de parte do governo se do governo não precisam ou dele pouco recebem?

Não há pontes entre governo e Congresso, apenas pinguelas. Os comandantes do Exército ocupam o Planalto. Ministros da ala lunática continuam quase todos fora da casinha. Assim começa a política do ano dois da nova era.