Folha de S. Paulo
Folha de S. Paulo: Brasil sofre vácuo de lideranças, e polarização é ameaça, diz FHC
Para tucano, ataque de Jair Bolsonaro a repórter da Folha é inaceitável e ele deveria se comportar como presidente
Igor Gielow, da Folha de S. Paulo
O Brasil precisa de liderança, e o posto hoje está vago. A opinião é do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB), que governou de 1995 a 2002.
Para ele, o comportamento de Jair Bolsonaro, que insultou a repórter da Folha Patrícia Campos Mello, foi "inaceitável". O atual titular do Planalto precisa se comportar como um presidente, avalia FHC.
Ele descarta risco institucional. Afirma, contudo, que "o alarme precisa ser dado" porque a polarização vigente no país ameaça a democracia —e aponta para a rejeição à corrupção e ao PT como ponto de partida do debate atual.
No seu campo político, de olho no Planalto em 2022, ele elogia o governador Eduardo Leite (PSDB-RS) pela gestão e pela juventude (34 anos).
Sobre um protegido político seu, Luciano Huck, ele disse que o apresentador da TV Globo precisa "se transformar num líder político", porque hoje "conhece o caldeirão" [referência ao nome de seu programa e ao contato com a população em quadros da atração]. Já o governador João Doria (PSDB-SP) "conhece o poder".
O tucano, 88, elogiou os presidentes da Câmara (Rodrigo Maia, DEM-RJ) e do Senado (Davi Alcolumbre, DEM-AP). Ele falou no fim da tarde de quarta (19), na Fundação FHC, no centro paulistano.
Como o sr. vê o clima político do país?
O risco é a polarização. Você não pode deixar que a polarização afete o jogo democrático, que supõe a diferença. É preciso que algumas pessoas que têm responsabilidade institucional, como foi o caso dos presidentes da Câmara e do Senado, manifestem sua estranheza.
Eu sou bastante cuidadoso, sobretudo no exterior, porque fui presidente e sei que as coisas são difíceis. Mas está chegando um momento em que os que são responsáveis pelas chefias do aparelho institucional se comportem institucionalmente. Quem tem função presidencial tem de se comportar como tal. Eu sei que às vezes você fala por falar.
No episódio da repórter da Folha, o limite foi ultrapassado, não?
Aí a coisa passou para outro plano. É inaceitável, não tem cabimento você fazer referências assim a qualquer mulher, pelo que apareceu na mídia. Não acho que haja risco institucional, não sou alarmista. Acho apenas que é preciso ter um certo cuidado. Vamos pegar uma pessoa que me deu muita dor de cabeça política, o Lula. Ele agiu institucionalmente no cargo —no que diz respeito às questões pelas quais ele foi preso.
Nós sentimos o gostinho da liberdade. Só quem viveu com censura, como eu vivi, sabe. Isso acabou. Você não pode atacar todo dia a mídia. Eu sei que a mídia exagera também, talvez até seja sua função.
Quem tem poder político não pode utilizá-lo contra isso. Pode reclamar, mas não pode usar sua força para coibir. Não vai dar certo, vai abrir espaço para o regime que não se quer.
Mas o sr. vê risco disso?
A democracia é uma planta tenra, não pode dar de barato que não vai virar outra coisa. Temos de dizer: "Cuidado, hein? Não passe desse ponto, senão passa". O alerta tem de ser dado, sem alarmismo. Quem tem poder não pode exagerar. Você tem de se autocontrolar.
Como vê a renovada militarização do governo?
Eu não tenho nenhuma versão negativa das Forças Armadas, nem poderia ter. Meu pai era general, meu avô foi marechal.
Quando vejo os generais nomeados, tudo bem, é preciso ver como é a pessoa, se funciona ou não funciona. Agora, tem limite para tudo. Tem de haver um certo equilíbrio que, quando é rompido, as prejudicadas são as Forças Armadas. Você não pode confundi-las com o poder político.
Governadores escrevem carta contra o presidente, Maia bate-boca com o general Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucional), o Congresso toca a agenda mais positiva. Como o sr. vê isso?
Veja as reformas. O Parlamento assumiu a primazia, o que leva a crer que uma parte do Executivo não assumiu como tarefa sua fazer passar.
Isso é inegável. O Brasil não é uma República parlamentarista, o povo rejeitou isso. Num regime presidencialista, a iniciativa é do Executivo, o Parlamento não pode substituir, pode suprir lacunas.
E levar adiante as reformas não significa só mandar a reforma. Tem de falar com os parlamentares e tem de convencer a nação sobre a necessidade delas.
Como o sr. vê a atuação do Paulo Guedes? Em todo governo há um ministério cujo titular é mais capaz de liderar. Eu não conheço o Guedes, mas sou favorável à reforma da Previdência, tentei fazer uma também. Está faltando falar com o país. Quando o presidente não tem interesse ou qualidade, o ministro precisa falar.
Sim, mas aí o ministro falou que as domésticas não deveriam ir tanto à Disneylândia.
Ele não tem experiência política.
Isso não trai um espírito da certa elite brasileira?
É algo cultural. Nos Estados Unidos, eles conseguiram acreditar na Constituição, em que todos são iguais perante a lei. Aqui não é bem assim. As pessoas não se sentem iguais. Todos nós temos, em graus diferentes, impulsos que não são democráticos, que não são de igualdade.
Não deveria ser assim. Então, acho que essas expressões contra mulheres, contra pobres, vêm daí, de um desprezo de classe que é incompatível com a regra democrática.
Fala-se muito em uma extensão do mandato do Rodrigo Maia, por exemplo, vamos mudar a Constituição.
Não acho que seja solução, nem creio que ele aceite isso. Tem de respeitar as regras. Se você as desrespeita no Congresso, vai começar a desrespeitar no Executivo.
O sr. promoveu mudança em 1997, com a adoção da reeleição. Não é contraditório? É diferente agora?
Veja, eu sempre fui favorável a um mandato maior. Nós não discutimos na Constituinte, e quatro anos não é nada para alguém governar. É melhor ter uma reeleição. Mas você não pode ser favorável à permanência. Tem limite.
O tumulto político segue até a eleição de 2022?
Depois da eleição municipal de outubro, tudo vai girar em torno da expectativa de futuro. Apesar das instituições, elas não funcionam sem lideranças. É preciso ter pessoas. Você não leva o eleitorado a votar pelo que você fez, mas sim pelo que você pode fazer. Alguém vai encarnar esse futuro. Pode ser o próprio Bolsonaro, com a permanência da polarização. Eu não gostaria.
Quem é o tal centro? Huck, Doria e Eduardo Leite?
Eu vejo o Eduardo Leite positivamente porque ele faz um bom governo e é jovem. Eu vou fazer 90 anos no ano que vem, é preciso passar o bastão.
Veja os movimentos de renovação da política, eles não estão nos partidos. Mas não basta ser jovem. O que eu vejo, em renovação, está por aí, neles [o trio acima]. Quem vai ser, vai depender do que vai acontecer.
E o ar está sulfuroso, a polarização de 2018 ainda está presente.
Exatamente, ela vem de trás. A polarização vem da oposição ao PT, é isso. Corrupção e PT. Aí você vem imaginar que tem comunismo no mundo? Isso é ridículo, é anacrônico, para dizer o mínimo.
E o Huck? Ele se colocou, não?
Ele se colocou um pouco mais. Mas o Huck por enquanto é uma celebridade. Ele está se transformando num líder político. Vai ter que se transformar se quiser ser presidente, vai ter de passar por essa etapa. Pode? Pode.
E o Doria?
Ele tem, digamos, virtudes diferentes. O Huck conhece o caldeirão. O João conhece o poder. É difícil saber o que vamos precisar mais daqui a um ano e meio, o que vai sensibilizar mais o povo. Será a capacidade de conhecer o Estado e trabalhar com as forças organizadas ou será a erupção de um sentimento coletivo? Eu não sei. Idealmente, todos deveriam se unir.
Parece difícil.
É difícil. E é indiscutível que o presidente tem força, a hipótese de reeleição precisa sempre ser considerada. Ele já se elegeu e a polarização rende para quem está polarizando. Ela é ruim para o país e para a democracia, mas rende voto.
Em 1995, o sr. enfrentou aquela greve dos petroleiros. Eles estão parados de novo. O sr. faz algum paralelo de pressão, vê a possibilidade de outras agitações sociais?
Essa é a principal questão do mundo, a crise das instituições. A explosão moderna se dá não só nas relações formais de classes, há curtos-circuitos em qualquer coisa.
Eu me lembro que encontrei por acaso o ministro Eliseu Padilha [Casa Civil de Michel Temer] durante a greve dos caminhoneiros de 2018 e ele não tinha com quem conversar. Não havia líder, partido, sindicato. Isso obriga a liderança de pessoas, que falem com a nação. Pode acontecer de novo? Pode.
Os protestos de 2013 tiraram algo dessa pressão, não?
Sim, mas mostraram a possibilidade. Não sei quando vai estourar de novo ou em que setor. Há um mal-estar, insegurança, basta ver o desemprego. As pessoas se sentem inseguras, precisam de liderança. Não quero ser injusto com quem exerce a liderança, é difícil.
A liderança também se impõe pela situação, como ocorreu quando Winston Churchill virou premiê britânico no começo da Segunda Guerra Mundial. O posto de líder no Brasil está vago?
Acho que sim. Há alguns candidatos.
O Brasil é um país muito diverso, é difícil você exercer influência. Estamos em um momento em que é preciso construir pontes. É mais difícil do que saltar no vazio. E estamos construindo muralhas.
Vinicius Torres Freire: São Paulo cresce mais do que o Brasil; o Nordeste, bem menos
Região Nordeste tem sequelas da recessão; PIB de 2020 ainda é incógnita
A economia paulista cresceu 2,75% em 2019, segundo contas feitas com dados do Banco Central. O Nordeste cresceu um quarto disso. O Brasil, 0,89% (1,1%, na mediana da projeção “do mercado”).
São apenas estimativas, que nos últimos anos não têm ficado longe dos resultados do IBGE para o crescimento do PIB, no entanto. Nas contas do Seade, o “IBGE paulista”, São Paulo teria crescido 2,5% nos 12 meses contados até novembro.
A recessão em São Paulo começou antes. O estado começou a afundar no vermelho em 2014 (quando o Brasil ainda cresceria o quase nada de 0,5%). A recessão foi mais profunda. A economia encolheu 8,2% entre 2014 e 2016, ante 6,2% de queda no Brasil; a baixa foi maior do que a de qualquer grande região.
Desde 2018, São Paulo anda mais rápido, em particular pela aceleração do setor de serviços. A média nacional é mais lerda por causa do Nordeste e de resultados ruins ou fracos de grandes economias com governos em crise fiscal feia como a de Minas Gerais (também prejudicada pelo desastre de Brumadinho) e a do Rio de Janeiro, que se recuperou um pouco por causa do petróleo.
O Nordeste cresce menos do que a média nacional, a julgar pelas estimativas do PIB regional, sempre sujeitas a muitas revisões, embora os números já oficiais de rendimentos do trabalho, da indústria e do comércio evidenciem a fraqueza.
A região não se recuperou do fim do ciclo de obras dos anos petistas, algumas delas de resto desastrosas (como a refinaria Abreu e Lima). Meia dúzia de anos de seca até 2018, colapso de preços e produção de petróleo e da quimérica indústria naval deixaram sequelas.
Mais recentemente, a indústria nordestina tem apanhado muito mais que a do restante do país. Foi muito prejudicada pela baixa da produção de veículos, arrastada pela crise argentina, pela retração na petroquímica e na celulose.
O desemprego é cronicamente mais alto na região, mas a oferta de trabalho se recupera de modo ainda mais lento do que a lerdeza desesperadora do país inteiro. A limitação do crescimento de benefícios sociais (contidos ainda pelos reajustes quase nulos do salário mínimo) deve também ter tido impacto na região.
No conjunto do Brasil, a virada do ano ainda é uma incógnita com cheiro de queimado. Os dados de comércio, indústria e serviços para o trimestre final de 2019 foram frustrantes, ainda mais para quem fazia festinha na praça financeira. No entanto, os dados das contas nacionais, do PIB, do IBGE têm informações mais completas –saem daqui a duas semanas. Logo, é prematuro decretar o fracasso do final de 2019.
Tampouco haverá sucesso. A expectativa mais razoável e menos deprimida ainda é a de continuidade do ritmo de crescimento que vem desde a metade do ano passado. Mantido esse passo até o final deste 2020, o país terá crescido um tico mais de 2%. É pouco, mas seria o primeiro ano com algum avanço do PIB per capita.
Os dados mais recentes para este ano, vagos e precários, indicam que a confiança da indústria continuou a crescer, assim como a intenção de consumo das famílias. Por ora, não dá para dizer que haverá frustração grande de expectativa, como vimos no vexame do início de 2019.
Afora a possibilidade de catatonia estrutural da economia brasileira, os riscos maiores são a baderna política promovida pelo governo e a doença do novo coronavírus, um bicho ainda mal conhecido, mas que terá algum impacto também no Brasil.
Fernando Schüler: A dupla face do reacionarismo brasileiro
Movimento é uma mistura de conservadorismo de costumes com estatismo econômico
Há um duplo reacionarismo no debate brasileiro. O primeiro deles é de base cultural. Poderia chamá-lo de “conservadorismo de costumes”, mas sempre que faço isso alguém lembra que o termo conservadorismo é mais amplo, que há a grande tradição de Burke a John Kekes.
Não é disso que estamos falando. É algo bem mais caseiro. Não se trata de Oakeshott, mas de Marcelo Crivella. O “militante de sua nostalgia”, na frase de Mark Lilla. Aqui pelos trópicos, seu grande momento foi a censura à revista com o beijo gay, na Bienal do Livro.
Luc Ferry criticou essa visão dizendo ser um absurdo supor que a natureza deva definir a ética. Perfeito. Hayek, em seu clássico “Porque Não Sou Um Conservador”, ironizou a posição que aplaude a gradual evolução dos costumes no tempo, mas decide que o raciocínio só vale para o passado. Em algum momento tudo deveria ser congelado.
São críticas elegantes, que vão muito além do que merece o nosso conservadorismo de programa de auditório. Ele é legítimo e expressa a visão de uma parcela relevante do eleitorado, mas é um tigre sem dentes no mundo real da política. Rodrigo Maia nem sequer coloca seus temas em pauta no Congresso.
O segundo reacionarismo brasileiro diz respeito ao Estado e à economia. Ele tem apoios na academia, nos sindicatos e na intelectualidade bacana. Faz menos barulho, mas é mais efetivo.
Seu mote é a defesa do Estado. Sua paixão são as autarquias e repartições públicas. O status quo de nossas escolas e hospitais estatais quebrados, dos quais todos que têm recursos, incluindo-se aí a elite pensante, fogem como o diabo da cruz.
Sua pedra de toque é a rejeição de qualquer ideia de reforma do Estado. Foi assim nos anos 1990, à época da emenda 19 à Constituição e da criação das organizações sociais; foi assim com a Lei de Responsabilidade Fiscal; foi assim mesmo quando Lula, em 2003, fez a mini reforma da Previdência com o apoio da oposição, do DEM e do PSDB.
Mais recentemente foi assim com as reformas que o país fez a partir de 2016. A ridícula negação do déficit previdenciário, a defesa do velho imposto sindical. A lista é grande e conhecida. Sua última façanha é cruel: a recusa de que os estudantes possam fazer sua carteirinha pela internet, sem custos. Tudo para alimentar, ainda que pareça risível, os cartórios do movimento estudantil oficial.
Ninguém percebeu, entretidos que andamos com bobagens do dia, mas um episódio na última semana reuniu os dois reacionarismos brasileiros. O prefeito Crivella resolveu reestatizar os servidos de atenção à saúde no Rio de Janeiro, extinguindo os contratos de gestão com as organizações sociais.
A medida foi elogiada pelo PSOL. Encontro do bispo com Marcelo Freixo, com tudo que tem direito. Engorda a máquina, abre concurso, põe o sistema sob o mando político. Tudo que soa “progressista” em dia de comício, mas inferniza a vida das pessoas comuns na segunda-feira pela manhã, na fila do posto de saúde.
O próximo teste para a modernização brasileira é a reforma administrativa. As hesitações de Bolsonaro são previsíveis. Bolsonaro foi, no passado, uma síntese do reacionarismo brasileiro: conservador nos costumes, estatizante na economia. De uns anos para cá se aproximou de posições liberais, ainda que pareça sem sentido chamá-lo de um político liberal.
A reforma começou mal. Ela deveria ter sido apresentada logo após a aprovação da reforma da Previdência. Não foi. Deveria abranger não apenas os futuros servidores, mas também os atuais; deveria abranger todos os Poderes, sem distinção, para ter força moral e capturar o apoio da sociedade.
De qualquer modo, é uma reforma a ser feita. O debate nem sequer iniciou mas já milita no Congresso a Frente Parlamentar em Defesa do Serviço Público, com o velho discurso do “desmonte do Estado.” A nostalgia no Brasil não tem lá grande criatividade, mas não duvido que possa ganhar o jogo.
*Fernando Schüler, professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo.
Maria Hermínia Tavares: Perigo no terceiro piso
Militares somam 9 dos 22 ministros deste governo
"Ficou completamente militarizado o meu terceiro andar", disse o presidente Bolsonaro ao substituir por um general do Exército na ativa o ministro Onyx Lorenzoni, até então chefe da Casa Civil e último político profissional a ter gabinete no Palácio do Planalto. Agora, são todos militares os ministros instalados no coração do governo: coordenando a ação dos diferentes ministérios, fazendo a articulação do Executivo com o Legislativo ou ainda assessorando a Presidência em assuntos de segurança.
Ao todo, eles somam pouco mais de 40% dos que comandam o primeiro escalão: 9 em 22 ministros, sem contar o vice-presidente Mourão. Essa porcentagem supera a da Venezuela de Maduro, onde membros das Forças Armadas comandam 30% das pastas. E é inédita entre as democracias dignas do nome.
Ao mesmo tempo em que se cercou de fardas, Bolsonaro —ele mesmo ex-capitão de carreira tumultuada— tratou de blindar o sistema de previdência dos militares do enxugamento geral promovido pelo ministro da Economia, Paulo Guedes.
Por fim, no primeiro ano de seu governo, pautado pelos esforços de austeridade fiscal, o presidente encontrou recursos para projetos importantes da Marinha e protegeu o orçamento da Defesa de cortes que atingiram outros setores. Como observou o professor Octavio Amorim Neto, da Fundação Getúlio Vargas, no Boletim Macro do IBRE-FGV de fevereiro, que circula esta semana, o Orçamento de 2020 deixa patente a preferência aos gastos com Defesa sobre os dispêndios na área social.
É possível que as Polianas de costume, embaladas pela ilusão de vivermos em tempos normais, considerem que não há nada de incomum nos afagos do governo à instituição militar. Muito menos no engajamento de lideranças reconhecidas da corporação no dia a dia da gestão nacional. Afinal, argumentam, a nação precisa contar com três Armas bem equipadas; remuneração e previdência decentes são devidas a quem tem como missão proteger o país; além disso, mais do que a vestimenta, contam a dedicação e competência na condução das tarefas de governo.
É fato. Mas sabemos também, por dura experiência própria, que, ao deixarem as Forças Armadas sua posição de defensoras do Estado e da Constituição, sendo arrastadas pelas disputas políticas do dia a dia dos governos, o resultado é igualmente desastroso para a corporação e para a democracia.
Mais perigoso ainda se os governos têm inclinação populista. Veja-se a Venezuela de Maduro, hoje sustentado nas Forças Armadas, primeiro cooptadas, depois corrompidas e, enfim, transformadas em guarda pretoriana do ditador.
*Maria Hermínia Tavares, professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap
Mariliz Pereira Jorge: Não há opção
É impossível não reportar o espetáculo grotesco a que somos expostos
Por que jornalistas se prestam a aguentar insultos diários de Jair Bolsonaro na porta do Palácio da Alvorada? Por que os jornais reproduzem ofensas, falas criminosas e dão espaço ao discurso de ódio protagonizado pelo presidente contra imprensa, adversários políticos, entidades internacionais, líderes estrangeiros, Greta e DiCaprio?
Tenho lido e ouvido esse questionamento com frequência. Por que não restringimos a cobertura às notícias que envolvem a administração? Porque é dever do jornalismo se opor ao arbítrio, ao autoritarismo e à opressão, e o trabalho envolve o desconforto de lidar com um sujeito asqueroso feito nosso atual mandatário.
Aguentar as grosserias de Bolsonaro sem que haja réplica, o que transformaria suas saídas diárias numa baixaria ainda pior, mostra a competência dos profissionais que têm a dura missão de cobrir o presidente.
Mas não é só isso, é necessário que se registrem falas, gestos, atitudes e detalhes da personalidade que contarão a história de um país por meio do raio-x do seu representante maior. Um governo não é feito apenas dos números da economia, das vitórias e das derrotas na educação, na saúde e no desenvolvimento.
Em décadas, os brasileiros talvez não saibam os dados sobre desemprego, preço do dólar ou da gasolina, quantas crianças estavam fora da escola ou a quantidade de miseráveis na fila do Bolsa Família. Mas saberão que tivemos um presidente misógino, racista, homofóbico, que não respeita instituições, despreza o jogo da democracia e flerta descaradamente com um autogolpe.
Muito antes de as redes sociais darem espaço a qualquer baboseira que uma pessoa pense, Millôr já dizia, "não se amplia a voz dos imbecis". Difícil discordar, mas o mundo está cheio deles em posições estratégicas. Infelizmente, não é uma opção deixar de reportar o espetáculo grotesco de falta de educação, de empatia e de humanidade a que somos expostos todos os dias.
Bruno Boghossian: Bolsonaro pratica autossabotagem em novo choque com o Congresso
Explosão de ministro contra parlamentares esvazia oxigênio político do governo
Jair Bolsonaro abriu mão de uma parte de seus próprios poderes ainda no ano passado. Em março, o presidente quis emparedar o Congresso pela primeira vez e acusou parlamentares de corpo mole na discussão da reforma da Previdência.
"Fizemos nossa parte, encaminhamos a proposta ao Parlamento. A bola agora está com o Parlamento", disse, para depois provocar deputados e senadores: "O que é articulação? O que está faltando eu fazer?".
O presidente se elegeu apoiado numa repulsa teatral à atividade política. Para se afastar da tarefa de dialogar com outros Poderes, anunciou que sua tarefa seria apenas elaborar ideias e atirá-las ao mundo. Acabou entregando ele mesmo a chave do governo nas mãos do Congresso.
A explosão de Bolsonaro e seus aliados contra as manobras dos parlamentares para sequestrar os últimos bilhões do Orçamento dão a medida da operação desastrosa que toca o dia a dia do Palácio do Planalto.
Deputados e senadores aprovaram em dezembro uma regra que obriga o governo a pagar mais R$ 30 bilhões indicados pelo Parlamento nas contas deste ano. A equipe de Bolsonaro levou dois meses para perceber que não conseguiria retomar o controle desse dinheiro. Quando tentou reagir, protagonizou mais um espetáculo de autossabotagem.
Enviado pelo presidente, o general responsável pela articulação política costurou com os parlamentares um acordo de redução de danos, que desataria ao menos um pouco as mãos do governo. Abriu-se então a cortina para outro militar.
Sem saber que estava sendo gravado por um assessor, o general Augusto Heleno vocalizou os delírios absolutistas do governo e chamou de chantagem a negociação conduzida pelo colega. Sugeriu ainda que Bolsonaro mandasse apoiadores às ruas contra o Congresso e lascou um "foda-se" para os parlamentares.
A atitude incendiária e a incompetência clara esvaziam o pouco oxigênio político que ainda restava ao Planalto. O maior patrono do parlamentarismo é o próprio Bolsonaro.
Entidades de jornalismo e OAB dizem que insulto de Bolsonaro a repórter é ataque à democracia
Nesta terça-feira, presidente insultou jornalista da Folha com insinuação sexual
SÃO PAULO - Entidades de jornalismo repudiaram e classificam como um ataque aos jornalistas e à democracia o insulto do presidente Jair Bolsonaro, com insinuação sexual, à repórter Patrícia Campos Mello, da Folha.
Para a ANJ (Associação Nacional de Jornais), a Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo), e o Observatório da Liberdade de Imprensa da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), a fala de Bolsonaro desrespeita a imprensa e o seu trabalho essencial na democracia.
A ABI (Associação Brasileira de Imprensa) chamou a agressão de "covarde" e pediu à PGR (Procuradoria-Geral da República) que denuncie a quebra de decoro de Bolsonaro.
O Sindicato dos Jornalistas Profissionais de São Paulo afirma que a fala do presidente pode ser classificada como injúria e é passível de responsabilização criminal. A Fenaj (Federação Nacional dos Jornalista), em nota assinada pela Comissão Nacional de Mulheres, diz que o episódio foi de "machismo, sexismo e misoginia".
"As insinuações do presidente buscam desqualificar o livre e exercício do jornalismo e confundir a opinião pública. Como infelizmente tem acontecido reiteradas vezes, o presidente se aproveita da presença de uma claque para atacar jornalistas, cujo trabalho é essencial para a sociedade e a preservação da democracia", afirma a ANJ.
"O desrespeito pela imprensa se revela no ataque a jornalistas no exercício de sua profissão. [...] Com sua mais recente declaração, Bolsonaro repete as alegações que a Folha já demonstrou serem falsas. Na mesma entrevista, Bolsonaro chegou a dizer aos repórteres que deveriam aprender a interpretar textos, assim ofendendo todos os profissionais brasileiros, não apenas a repórter da Folha", afirmam Abraji e OAB.
"Os ataques aos jornalistas empreendidos pelo presidente são incompatíveis com os princípios da democracia, cuja saúde depende da livre circulação de informações e da fiscalização das autoridades pelos cidadãos. As agressões cotidianas aos repórteres que buscam esclarecer os fatos em nome da sociedade são incompatíveis com o equilíbrio esperado de um presidente", conclui o texto.
O presidente da OAB, Felipe Santa Cruz, avalia que o insulto de Bolsonaro à repórter da Folha configura uma "clara tentativa de intimidação" e demonstração de "mau-caratismo institucional".
"O presidente incentiva os fanáticos e robôs que lhe servem de base radicalizada nas redes sociais contra uma jornalista séria. É a busca da opressão pela força do ódio público. Uma clara tentativa de intimidação que demonstra um mau-caratismo institucional inédito em nossa história republicana. Há mais um sério limite sendo flagrantemente ultrapassado", disse.
Santa Cruz ainda cobra dos Poderes resposta à declaração de Bolsonaro para não se omitirem "diante do autoritarismo".
"É obrigação dos democratas uma reação forte. Concordar ou se omitir é garantir ao nosso país a paz dos cemitérios, da abdicação e da rendição. Nosso dever é o confronto com os que ameaçam a cidadela das liberdades, da legalidade e da democracia que juramos sempre defender, a qualquer preço", afirmou .
"Se a timidez e a prudência do medo estiverem em toda parte, a coragem não estará em lugar algum. Estamos com a liberdade de imprensa e em especial com a profissional, mulher, mãe vilmente atacada de forma injusta e desproporcional por quem deveria guardar o decoro do cargo que ocupa", continua.
Santa Cruz terá encontro com o procurador-geral da República, Augusto Aras, nesta terça, e cobrará punição ao procurador Alexandre Schneider, que também insultou Patrícia Campos Mello nas redes sociais.
"Cuidado para você que quer ser jornalista: não confunda dar furo de reportagem com dar o furo pela reportagem", escreveu o procurador lotado Rio Grande do Sul.
Vinicius Torres Freire: Baderna de Bolsonaro cresce muito mais que o PIB
É tumulto no Congresso, nos modos, nas relações institucionais; PIB fraqueja
O começo do ano no Congresso ficou para depois do Carnaval, para março, na prática. A balbúrdia provocada por Jair Bolsonaro é intensa desde janeiro. Neste mês, o tumulto presidencial continua e desdobra-se em pequenas crises políticas, que dificultam o programa administrativo e parlamentar do governo, é meio ridículo dizer, como se planejamento racional fosse o objetivo do Planalto.
O torvelinho de disparates, a inoperância administrativa e a desarticulação parlamentar obviamente não inspiram confiança. Há indícios ainda incertos, mas preocupantes, sobre a fraquejada da economia. Por uma estimativa do Banco Central, o PIB teria crescido 0,9% em 2019; por outra, do Ibre-FGV, 1,2%.
Em um mundo político e econômico menos anormal, essa diferença seria uma insignificância, na verdade. Mas, no mui curtíssimo prazo e nesta balbúrdia, o resultado menor pode suscitar mais desânimo e ainda mais zunzum político.
Dizer que o ministro Paulo Guedes (Economia) “não pediu para sair” tampouco melhora o ambiente. Na tentativa de passar a mensagem de que Guedes fica e, ao mesmo tempo, de se afastar dos “deslizes” do ministro (empregadas na Disney e servidores parasitas), Bolsonaro estimula a fofoca na praça financeira.
Como se não bastasse, a demagogia de Bolsonaro com os preços de combustíveis, pedágio e dólar pode ficar cara. Estimula, de modo oportunista e irresponsável, mais insatisfação com o custo da gasolina e do diesel, o que incita mais burburinho grevista de caminhoneiros. Um grupo deles fez um chamado de greve para esta quarta-feira, meio para inglês ver, mas fez.
A falação disparatada, desvairada ou ultrajante, insultando jornalistas e mulheres em geral, teve mais consequências.
Em menos de 15 dias, Bolsonaro recebeu duas cartas de protesto de governadores. Uma delas, criticava a demagogia com combustíveis e a tentativa de jogar nas costas dos estados a responsabilidade sobre o preço da gasolina. A outra deplorava as declarações presidenciais sobre a ação da polícia na morte de Adriano da Nóbrega, miliciano morto na Bahia e amigo e parente de agregados dos Bolsonaro.
Não satisfeito, o presidente contribuiu para mais intranquilidade institucional ao dizer que tomou “providências legais” para que seja realizada uma “perícia independente” sobre a morte de Nóbrega. Um filho, senador, colocou em redes sociais um vídeo de um cadáver que diz ser o do miliciano morto, criticando inimigos políticos e aumentando o sururu político sórdido.
A desordem na articulação parlamentar está à beira de criar uma crise. O Congresso se deu poderes maiores de impor a execução do Orçamento, alguns de fato fora da realidade (em suma, em parte impedem a contenção de gastos em caso de falta de recursos). Bolsonaro vetou a coisa.
O Congresso estava para derrubar o veto. Houve uma negociação de um meio termo, que foi para o vinagre, porém. Bolsonaro diz nas internas que, caso seus vetos sejam derrubados, irá ao Supremo contestar a constitucionalidade da lei aprovadas pelos parlamentares.
Deputados e senadores começaram o ano de mau humor com o governo. Não está melhorando; piora, como no caso da indecisão politiqueira e populista do Planalto sobre a prioridade das reformas a enviar ao Congresso. A militarização do centro do governo suscitou desconfiança.
É um retrato de baderna. Vai ser o filme do ano?
Elio Gaspari: As PMs recrutaram os governadores
Amotinados foram socorridos por anistias votadas pelas Assembleias Legislativas e pelo Congresso
O manifesto dos 20 governadores dizendo-se confrontados por Jair Bolsonaro porque, entre outras coisas, ele se “antecipou a investigações policiais para atribuir fatos graves à conduta das polícias” foi um monumento à dissimulação da cumplicidade corporativa dos signatários. Os governadores decidiram sentar praça nas suas polícias militares.
Bolsonaro lançou suspeitas sobre a conduta da polícia baiana no episódio da morte do miliciano Adriano da Nóbrega. O presidente não foi a única pessoa a sentir cheiro de queimado naqueles tiros. Ademais, essa não foi a primeira batatada de Bolsonaro, com sua vulgar loquacidade.
O governador Wilson Witzel (Harvard fake '15) assinou o manifesto. Em matéria de “fatos graves”, a PM do Rio tem uma galeria de troféus. O capitão Adriano pertenceu ao seu Bope. Na PM esteve o subtenente Fabrício Queiroz, chevalier servant dos Bolsonaro, que empregou familiares de Adriano nos gabinetes parlamentares da família. Aos dois somam-se o sargento reformado Ronnie Lessa (ex-guarda-costas de bicheiros) e o ex-PM Elcio Queiroz (ex-segurança de cassinos), ambos presos, acusados de terem matado a vereadora Marielle Franco.
Fala-se muito da militarização do governo Bolsonaro porque há três generais de quatro estrelas no Planalto. Essa é uma questão real, mas eles comandam mesas e dois estão na reserva. Quem comanda tropa são os comandantes do Exército, Marinha e Aeronáutica. Há 30 anos as Forças Armadas brasileiras mantêm-se dentro da disciplina e nelas os casos de corrupção foram pontuais. Conhece-se o episódio escabroso do sargento da FAB apanhado com 37 quilos de cocaína. Não se conhece o resultado da investigação, mas até agora não se pode dizer que existisse uma quadrilha de traficantes dentro da Força.
O manifesto de solidariedade dos governadores às suas Polícias Militares acende a luz noutra direção. Somadas, essas corporações têm cerca de 500 mil homens e mulheres. Esse número supera o efetivo da Forças Armadas e, ao contrário do que acontece no Exército com os conscritos, seus soldados são profissionais.
Nos últimos 20 anos deram-se pelo menos 12 motins e seis greves de policiais militares. Só na Bahia, cujo Bope matou o miliciano Adriano, as rebeliões foram três, numa das quais foi necessária a intervenção do Exército, como sucedeu também no Rio de Janeiro, Ceará, Minas Gerais, Tocantins e Espírito Santo. Em todos os casos, os amotinados foram socorridos por anistias votadas pelas Assembleias Legislativas e pelo Congresso. O último perdão beneficiou os amotinados do Espírito Santo, e o anterior afagou indisciplinados de 19 estados. Vetado por Dilma Rousseff , durante a presidência de Michel Temer o Legislativo derrubou o veto e promulgou a anistia. Ninguém deu um pio. Quase sempre, tiveram no deputado Jair Bolsonaro um aliado.
Governadores não gostam de atritos com suas polícias, muito menos com as PMs. Tanto é assim que o mineiro Romeu Zema, signatário do manifesto, pediu um aumento de 41,7% para os policiais civis e militares. O doutor gosta de expor a situação falimentar em que recebeu o governo mineiro e intitula-se, como seu partido, o Novo na política. Põe velho nisso.
Prestigiar a Polícia Militar é uma coisa, sentar praça é bem outra.
Folha de S. Paulo: Em carta, 20 governadores criticam fala de Bolsonaro sobre morte de miliciano ligado a Flávio
Presidente insinuou que polícia da Bahia, governada pelo PT, matou Adriano de propósito
Vinte governadores elaboraram uma carta "em defesa do pacto federativo" na qual criticam declarações de Jair Bolsonaro, feitas no último final de semana, sobre a morte do miliciano Adriano da Nóbrega, na Bahia.
Na nota, divulgada nesta segunda (17), os governadores citam recentes falas de Bolsonaro "confrontando os governadores" e "se antecipando a investigações policiais para atribuir graves fatos à conduta das polícias e seus governadores".
A iniciativa de se posicionar contra as falas de Bolsonaro partiu do governador Wilson Witzel (PSC-RJ), endossada em seguida por João Doria (PSDB-SP). Ambos são adversários políticos do presidente. Depois, outros governadores chancelaram a proposta.
A carta, divulgada pelo Fórum dos Governadores, começou a ser gestada no final de semana, após Bolsonaro ter acusado a "PM da Bahia, do PT" de ter promovido a "provável execução" de Adriano, ex-capitão do Bope morto em operação conjunta das polícias baiana e fluminense no último dia 9.
O presidente insinuou que pode ter havido queima de arquivo pela polícia da Bahia, o que foi rebatido pelo governador do estado, Rui Costa (PT).
Investigações apontam que Adriano atuava em diferentes atividades ilegais: milícia, jogo do bicho, máquinas caça-níqueis e homicídios profissionais.
Homenageado duas vezes na Assembleia Legislativa do Rio pelo hoje senador Flávio Bolsonaro (sem partido), o ex-PM é citado na investigação que apura a prática de "rachadinha" (esquema de devolução de salários) no gabinete do filho do presidente quando ele era deputado estadual.
O miliciano teve a mãe e uma ex-mulher nomeadas por Flávio.
O próprio Bolsonaro defendeu Adriano em discurso no plenário da Câmara dos Deputados, em 2005, quando era deputado federal. Ele criticou a condenação por homicídio do ex-policial militar e o chamou de “brilhante oficial”.
Na época, Adriano havia sido condenado pelo assassinato do guardador de carro Leandro dos Santos Silva, 24. Mais tarde, em um novo julgamento, foi absolvido.
A carta dos governadores também aborda declarações de Bolsonaro sobre a reforma tributária. Segundo eles, o presidente se referiu à reforma, "sem expressamente abordar o tema, mas apenas desafiando governadores a reduzir impostos vitais para a sobrevivência dos estados".
No último dia 5, Bolsonaro disse que zeraria o imposto federal sobre os combustíveis se os gestores estaduais zerassem o ICMS. "Eu zero o [imposto] federal se eles zerarem o ICMS. Está feito o desafio aqui agora. Eu zero o federal hoje, eles zeram o ICMS. Se topar, eu aceito. Tá ok?", disse.
A conduta do presidente, avaliam os governadores, não contribui "para a evolução da democracia no Brasil".
"É preciso observar os limites institucionais com a responsabilidade que nossos mandatos exigem. Equilíbrio, sensatez e diálogo para entendimentos na pauta de interesse do povo é o que a sociedade espera de nós", diz a nota.
"Trabalhando unidos conseguiremos contribuir para melhorar a qualidade de vida dos brasileiros, pela redução da desigualdade social e a busca pela prosperidade econômica. Juntos podemos atuar pelo bem do Brasil e dos brasileiros", continua a carta.
Ao final, eles convidam Bolsonaro a participar de um encontro do fórum em 14 de abril.
Assinam a nota governadores de 20 estados: São Paulo, Rio de Janeiro, Espírito Santo, Rio Grande do Sul, Sergipe, Piauí, Rio Grande do Norte, Bahia, Paraíba, Distrito Federal, Minas Gerais, Pará, Maranhão, Acre, Amapá, Ceará, Pernambuco, Alagoas, Mato Grosso do Sul e Amazonas.
Não assinaram a carta Carlos Moisés (PSL-SC), Marcos Rocha (PSL-RO), Antonio Denarium (PSL-RR), Ronaldo Caiado (DEM-GO), Mauro Mendes (DEM-MT), Mauro Carlesse (DEM-TO) e Ratinho Júnior (PSD-PR).
Em entrevista à imprensa nesta segunda-feira, Rui Costa afirmou que as últimas declarações do presidente foram recebidas com indignação pelos governadores.
“Estados e municípios não podem ser agredidos de forma regular e constante pelo presidente da República. Governar não é isso, não é agredir prefeitos e governadores toda semana. É preciso dar um basta”, afirmou o petista.
Além de criticar o comportamento de Bolsonaro, Costa sugeriu que o presidente se ocupasse mais dos problemas do país e menos dos problemas dos filhos.
“Espero que o presidente dedique seu tempo para cuidar do desemprego, do aumento da pobreza e de parar de tirar o Bolsa Família do Nordeste. [...] Ao invés de ficar cuidando os problemas dos filhos, ele deveria cuidar dos problemas do país”, afirmou.
Ele afirmou ainda que não será a polícia da Bahia, mas a do Rio, que vai investigar as possíveis relações do miliciano Adriano da Nóbrega com autoridades do país. Os celulares apreendidos com o ex-capitão, diz o governador, foram remetidos para o Ministério Público do Rio.
“Se há receio de alguém em saber se naqueles telefones existem contatos com autoridades do país, quem vai responder isso é o Ministério Público do Rio de Janeiro. Não é a Bahia que vai apurar com quem aquele bandido, aquele marginal, mantinha conversas e negociações”.
Na primeira vez em que falou sobre a morte do ex-PM, no sábado (15), o presidente driblou antigas convicções para colocar em xeque a gravidade da atuação criminosa do miliciano.
Bolsonaro criticou a polícia da Bahia por não ter preservado a vida do ex-capitão durante a operação. Normalmente, o presidente é um forte apoiador das polícias, mesmo quando as ações resultam em mortes.
Ele é crítico de defensores de direitos humanos, aos quais geralmente se refere com deboche.
Em outubro do ano passado, por exemplo, durante solenidade no Palácio do Planalto para lançamento de campanha do pacote anticrime, o presidente defendeu policiais que acumulam autos de resistência (mortes em decorrência de ação da polícia).
"Muitas vezes a gente vê que um policial militar ser alçado para uma função e vem a imprensa dizer que ele tem 20 autos de resistência. Tinha que ter 50! É sinal que ele trabalha, que ele faz sua parte e que ele não morreu", afirmou.
No sábado, Bolsonaro também ensaiou uma defesa da presunção de inocência, não replicada no passado diante de condenações de adversários. "Não tem nenhuma sentença transitada em julgado condenando capitão Adriano por nada, sem querer defendê-lo", afirmou.
Quando o ex-presidente Lula foi solto, em novembro do ano passado, Bolsonaro disse que o petista estava momentaneamente livre, mas carregado de culpa, e o chamou de criminoso. Assim como o ex-PM, Lula não tem sentença transitada em julgado.
Os laços de Adriano com a família do presidente podem ir além das contratações. Segundo o MP-RJ, contas do ex-capitão foram usadas para transferir dinheiro a Fabrício Queiroz, suspeito de comandar o esquema de devolução de salários no antigo gabinete de Flávio Bolsonaro.
PERGUNTAS SEM RESPOSTA
- Por que Adriano estava escondido na Bahia?
- Por que Leandro Guimarães deu abrigo a Adriano em sua fazenda?
- Por que Adriano deixou a fazenda de Leandro para se esconder no sítio de Gilsinho? Ele ficou sabendo que a polícia planejava uma operação? Se sim, como?
- A casa onde Adriano foi morto tinha um colchonete, alguns móveis e alimentos, sinais de que pode ter sido preparada para receber alguém. Alguém ajudou Adriano a se esconder?
- Se Adriano estava em um terreno cercado e com chances mínimas de fuga, por que a polícia, em vez de invadir a casa, não fez um cerco, reduzindo as chances de confronto e morte?
- Se a Secretaria de Segurança Pública da Bahia vai investigar as circunstâncias da morte, por que o local onde Adriano foi morto não foi protegido ou isolado, evitando contaminação?
- Qual a real extensão do relacionamento entre Adriano e a família Bolsonaro?
Vinicius Torres Freire: Bolsonaro faz festa danada com gasolina, pedágio e outras demagogias
No mês do Carnaval, presidente critica preços que o público comenta nas redes sociais
O fevereiro de Jair Bolsonaro tem sido uma festa danada de demagogia: o presidente critica o preço da gasolina, do pedágio, do dólar, as agências reguladoras e teme a reforma administrativa de seu próprio governo. O grito de Carnaval populista mais recente foi a crítica do preço dos pedágios, que, “quase todos, extrapolam aquilo que poderia ser o razoável para pagar”, disse no sábado (15).
O presidente quer que o reajuste do pedágio seja inferior à variação da inflação (do IPCA), talvez o equivalente a apenas 80% do aumento geral de preços. É uma conversa para “pensar a médio e longo prazo”, disse.
Em certos raros casos, a depender de conjuntura e contratos, pode ser que o reajuste de tarifas de pedágio não acompanhe a inflação. Decidir de antemão que a tarifa terá redução real (reajuste inferior à inflação) é querer afastar investidor, sem o que não haverá obras de infraestrutura.
Além do mais, o próprio governo Bolsonaro vai licitar estradas por um modelo que deixa de privilegiar empresas que oferecem uma tarifa menor no leilão de concessão.
No dia 2 de fevereiro, Bolsonaro culpou os governadores pelo preço da gasolina e disse que iria propor ao Congresso a redução do ICMS, imposto estadual. Dias depois, afirmou que zeraria os impostos federais se os estados zerassem seus tributos sobre combustíveis, o que era uma bravata, ideia inviável dada penúria dos governos, bazófia engavetada a seguir pelo ministro Paulo Guedes (Economia).
No dia 13, talvez para aliviar o insucesso de público e de estima do discurso de Guedes sobre dólar, Disney e empregados domésticos, Bolsonaro fez sua fezinha demagógica cambial: “Como cidadão, [considero que] está um pouquinho alto, está um pouquinho alto, o dólar”.
No sábado da conversa do pedágio, Bolsonaro voltou a bater nas agências reguladoras, um hábito de décadas, que tem repetido na Presidência. Insinuou que lá se fazem coisas escondidas “da população”, por “um interesse muito mais político do que técnico”. “Espero que a imprensa comece a mostrar as agências para que a população entenda como o destino do Brasil é conduzido”, disse.
Neste mês, também titubeou quanto à reforma administrativa (que revê regras de carreiras, salários, reajustes e estabilidade de servidores federais). Como o recuo pegou muito mal e parecia sinal de indisposição reformista, Bolsonaro reafirmou que a reforma vai adiante, frisando que valerá apenas para novos servidores –quer evitar protestos e, afinal, ele mesmo não gosta da reforma.
Bolsonaro talvez não esteja bem informado sobre a natureza de uma emenda constitucional que enviou ao Congresso no final de 2019, a “PEC Emergencial”. Esta emenda prevê que, caso o gasto do governo tenda da furar o limite do “teto” ou o endividamento supere a despesa de investimento, haverá um arrochão de gastos com servidores. Estariam suspensos concursos, reajustes e talvez o salário do funcionalismo seja talhado.
Por fim, note-se que pelo menos desde 2006, o reajuste do pedágio tem sido inferior ao da inflação média (do IPCA), segundo as medições do IBGE (embora não seja o caso de São Paulo, que tem a melhor rede de estradas do país, quase todas as maiores sob concessão a empresas privadas).
Hélio Schwartsman: O Bolsonaro do bem
Terá ele se convertido ao Iluminismo?
Jair Bolsonaro defendendo os direitos humanos e o garantismo judicial? O presidente criticou a polícia baiana por não ter preservado a vida de um foragido numa operação em que teria havido troca de tiros e sugeriu que todos devem ser considerados inocentes até que haja uma sentença judicial transitada em julgado. Terá Bolsonaro se convertido ao Iluminismo?
É pouco provável. Uma explicação bem mais verossímil para a mudança de tom está nas necessidades políticas imediatas do presidente. Ele agora precisa desvencilhar-se da suspeita de que teria mandado matar o miliciano Adriano da Nóbrega e ainda tem de justificar o fato de que, no passado, o elogiou e condecorou. Aí, nada mais conveniente do que tentar empurrar a responsabilidade da morte para a polícia de um estado governado pelo PT e se escudar numa interpretação forte da presunção de inocência.
A quem ele quer enganar, perguntar-se-á o leitor atento. A maioria das pessoas provavelmente percebe a contradição, mas é bastante provável que os militantes bolsonaristas processem a dissonância cognitiva na marra, isto é, dissolvendo a incongruência e comprando as pseudoexplicações presidenciais.
Num dos mais reveladores experimentos da neurociência aplicada à política, o psicólogo Drew Westen meteu militantes partidários em máquinas de ressonância magnética funcional e monitorou suas reações enquanto assistiam a cenas de seus líderes caindo em contradição. Westen não apenas foi capaz de detalhar os circuitos que o cérebro usou para apaziguar o conflito mas também descobriu que ele pode extrair sensações prazerosas desse exercício. Entre os mecanismos acionados estavam os sistemas de recompensa, os mesmos que se ativam quando o viciado em drogas toma uma dose de manutenção.
Daí a dificuldade que experimentamos quando tentamos afastar bolsonaristas ou lulistas fanáticos de suas narrativas de escolha.