Folha de S. Paulo

Folha de S. Paulo: Brasil precisa sair da tormenta sem eleger um autoritário, diz professor de Harvard

Autor do livro 'Como as Democracias Morrem', Steven Levitsky afirma que cenário brasileiro inspira preocupação

Marco Rodrigo Almeida, da Folha de S. Paulo

SÃO PAULO - Nada de tanques nas ruas, conspirações militares, palácios em chamas. Nas últimas décadas, dizem os cientistas políticos Steven Levitsky e Daniel Ziblat, a maior parte dos políticos autoritários chegou ao poder pelo voto dos eleitores.

Nesse cenário, a democracia é corroída aos poucos, muitas vezes de maneira quase imperceptível. Os cidadãos continuam a votar, Constituições e instituições permanecem vigentes, mas os líderes encontram brechas para aumentar seus poderes, alongar mandados, enfraquecer órgãos de controle, intimidar oponentes e cercear a imprensa.

É o que ocorreu, com diferentes graus de retrocesso, em países como Venezuela, Peru, Rússia, Hungria e Nicarágua.

No livro “Como as Democracias Morrem”, Levitsky e Ziblat, ambos professores da Universidade Harvard, estudam esses casos e dão um passo além: sistemas constitucionais mais tradicionais também estão sujeitos a riscos.

Há razões para alarme nos Estados Unidos, argumentam, uma vez que a polarização partidária extrema entre os partidos Democrata e Republicano desgastou as normas democráticas, processo que teria se acelerado com a eleição de Donald Trump em 2016.

“Nenhum outro candidato presidencial decisivo na história moderna dos Estados Unidos demonstrou um compromisso público tão frágil com direitos constitucionais e normas democráticas”, afirmam os acadêmicos.

Na semana passada, Levitsky veio ao Brasil para divulgar o livro, cujo lançamento será em setembro pela editora Zahar. Em entrevista à Folha, diz que a democracia brasileira também inspiração preocupação: a convergência de recessão e escândalos de corrupção favorece a ascensão de políticos demagogos e potencialmente autoritários. Para o autor, este seria o caso de Jair Bolsonaro (PSL).

• O senhor diz no livro que o sistema político dos EUA já sobreviveu à Guerra Civil, à Grande Depressão, à Guerra Fria e a Watergate, mas que não tem tanta certeza de que sobreviverá a Trump. Ele é o maior perigo que o país já enfrentou?

Eu diria que é a primeira vez que elegemos alguém tão pouco compromissado com as normas constitucionais e democráticas. A combinação de um presidente demagogo e um quadro de polarização extrema, como o dos EUA, causa grande preocupação.

•Muitas propostas de Trump foram barradas por outros Poderes. Isso não prova que a democracia está funcionando?

Depende de que parte. Há instituições que funcionam bem e outras que funcionam menos bem. Eu diria que o Poder Judicial até agora está funcionando bem. O Congresso, como o tempo, tornou-se menos ativo, está controlado pelo partido de Trump, o Republicano.

Cada republicano que enfrentou Trump nos últimos dois anos foi destruído politicamente. Então, com o tempo, o Partido Republicano se converteu em um instrumento de Trump. O Congresso controlado por um partido que se tornou trumpista já não é um Poder independente.

• Instituições fortes e tradicionais, como a dos EUA, não são suficientes para controlar líderes autoritários?

Eu diria que instituições bem desenhadas não necessariamente são suficientes. Precisam ser complementadas por normas democráticas informais, não escritas. Focamos duas no livro. A tolerância mútua, o entendimento de que as partes se aceitem umas às outras como rivais legítimos, e a reserva institucional, a ideia de que os políticos devem ser comedidos ao fazerem uso de suas prorrogativas institucionais.

Isso é o que torna forte uma instituição. O problema é que essas normas vêm perdendo força com a polarização.

• O senhor diz que sempre houve candidatos demagogos e autoritários nos EUA, mas todos foram barrados pelos partidos. A exceção, em sua opinião, seria Trump. O que deu errado desta vez?

Houve uma mudança no sistema de seleção de candidatos. Historicamente os líderes partidários selecionavam os candidatos. Era um processo pouco transparente, pouco democrático, no qual os líderes mais importantes negociavam as candidaturas. Isso durou do princípio do século 19 até 1968.

A partir da eleição de 1972, introduzimos um sistema totalmente distinto de primárias, que é muito mais democrático, mais transparente, mais participativo, mas que limita o poder dos líderes partidários e dá muito poder aos votantes de cada partido.

O velho sistema tinha um monte de defeitos, mas funcionava muito bem como filtro para prevenir a chegada de figuras extremistas ou autoritárias. O novo sistema é mais democrático, mas sempre há o risco de que alguém famoso ou rico, como Trump, seduza o eleitorado.

• É perigoso dar muitos poderes aos eleitores?

Precisamos distinguir a democracia dentro dos partidos e fora dos partidos. Obviamente a democracia não existe se as eleições não estão nas mãos dos eleitores. Temos que confiar nos eleitores. No entanto, a respeito da decisão de quem será o candidato há um debate. Em muitas democracias no mundo, sobretudo na Europa ocidental, não ocorrem primárias, não há democracia dentro dos partidos. Os candidatos são escolhidos pelos caciques. Há aspectos muito positivos na democracia interna, mas também riscos.

• O livro aponta um paradoxo. A estabilidade política dos EUA, do fim da Guerra de Secessão aos anos 1980, foi alcançada às custas da exclusão racial. A luta dos direitos civis nos anos 1960 expandiu a democracia, mas provocou uma polarização social que hoje desafia o sistema. A democratização tornou-se uma ameaça à democracia?

Sim, esse é um paradoxo trágico. Nos EUA não houve o que chamamos de plena democracia até os anos 1960, quando os negros obtiveram o direito de votar em todo o país. Essa democratização é que iniciou a lenta polarização que há hoje entre os partidos Democrata e Republicano.

Sim, é um paradoxo, mas precisamos enfrentá-lo. Agora temos, como sociedade e sistema político, de nos adaptar às mudanças. Somos um país multirracial e cada vez mais diverso. Isso gera polarização, mas não há como andar para trás.

• Quais são os caminhos para diminuir a polarização?

O Partido Republicano tem um grande paradoxo também. Nasceu no século 19 sendo um partido antiescravidão, pró-direitos civis. Um século mais tarde, termina sendo um partido que basicamente representa brancos que temem a perda de sua maioria. É um partido branco, cristão e reacionário. Continuando assim, teremos um ambiente ainda mais dividido.

É necessário que o Partido Republicano decida ser mais diverso, decida atrair pessoas que não são brancas nem cristãs. Precisa falar com o país inteiro, e não apenas com uma parte dele.

• O bipartidarismo do modelo político dos EUA favorece essa polarização?

O número não necessariamente afeta a polarização. O Brasil se polarizou, apesar de ter 35 partidos. Uma certa fragmentação de poder político certamente é salutar para a democracia. No entanto, vemos que geralmente em países com muitos partidos quase todos são frágeis. Assim um líder populista acumula muito poder.

A vantagem dos EUA é que o Partido Democrata é uma oposição forte, tem cerca de 40% dos votos em todas as eleições, tem ativistas em todos os estados, tem verba. Uma das razões de tantos autoritários se consolidares no poder é a existência de uma oposição muito fraca.

• O senhor cita no livro alguns critérios que permitem identificar um político autoritário. Algum dos candidatos à Presidência no Brasil se enquadra nessa categoria?

Não sou especialista em política brasileira, mas fizemos uma investigação e constatamos que sim, que Jair Bolsonaro (PSL) se revela como potencialmente autoritário.

Ele já se manifestou a favor da ditadura militar, já pediu o fechamento do Congresso, disse que pretende governar com as Forças Armadas, questionou a legitimidade do sistema eleitoral. Para mim, são evidências de que não está comprometido com as regras democráticas.

• O que explica o apelo popular de tantos líderes autoritários?

O Brasil é um bom exemplo. Vocês enfrentam ao mesmo tempo uma tremenda crise econômica e a pior crise de corrupção que já se viu numa democracia. É uma tempestade perfeita.
Em momentos assim é muito comum a aparição de populistas que prometem limpar o sistema, combater a classe política. Resulta atrativo para a população. O desafio do Brasil é sobreviver à tormenta sem eleger um autoritário.

• Aqui também criou-se grande polarização com o impeachment de Dilma Rousseff. Que avaliação faz desse episódio?

Não diria que foi um golpe de Estado, não compartilho da posição do PT. Foi um processo legal, constitucional. Mas diria que foi algo politizado. Parece-me que o governo violou a lei, mas utilizaram isso como desculpa para justificar um ato essencialmente político. Embora seja legal, constitucional, o ato pode ser danoso à democracia.

Agora vocês têm um partido importante, o PT, que pensa que o outro lado está jogando sujo. Isso foi reforçado, claro, pela prisão de Lula. Então o PT, corretamente ou não, avalia que foi ilegitimamente removido do poder em 2016 e que agora seus rivais utilizam medidas antidemocráticas para evitar que voltem ao poder, destruindo seu candidato mais popular.

Não digo que o PT tenha razão. Entretanto, quando um dos principais partidos do país tem a percepção de que seus rivais estão jogando sujo, e parcela significativa da população pensa o mesmo, temos um problema de legitimidade bastante forte.

• O que fazer nesse cenário?

Não há uma só receita. A recuperação da saúde em uma democracia é inevitavelmente um processo lento. Alguns passos já podem ser tomados: os grandes partidos, PSDB e PT, têm que voltar a um lugar em que estavam entre 1994 e 2010, onde competiam, aceitavam-se mutualmente como rivais legítimos, podiam sentar, falar e negociar.

Não há saídas rápidas na democracia. Todos os processo são lentos, de construção de alianças. Tudo requer muito trabalho político.

Isso gera impaciência , pessimismo e certa nostalgia do autoritarismo. A democracia é sempre lenta, imperfeita, é um processo de negociação. Num país tão grande e heterogêneo como o Brasil, tudo inevitavelmente é super lento.

O problema é que alguns grupos ficam impacientes e tentam uma saída autoritária.

• O senhor está otimista em relação aos EUA?

Acreditamos que nossas instituições democráticas são fortes. Não somos Rússia, Turquia ou Venezuela.

A nossa democracia é muito mais dura de matar. Mas há razões para nos preocuparmos. Não somos pessimistas, mas sim preocupados.

• E em relação ao Brasil?

Sou mais otimista que muitos brasileiros [risos]. Creio que o regime democrático brasileiro na época pós-Collor, de 1994 a 2013, representou uma ampliação de direitos como poucas vezes se viu na América Latina.

É fato que hoje tudo parece estar na merda [risos], mas isso não significa que todas as conquistas anteriores estejam perdidas. Como nós nos EUA, aqui também vocês precisam ser bastante vigilantes.

Steven Levitsky, professor de ciência política da Universidade Harvard, tem 50 anos. Desenvolve pesquisas sobre América Latina, sistemas políticos, democracias e ditaduras. Escreveu, com Daniel Ziblat, o livro “Como as Democracias Morrem”, que sai em setembro no Brasil.

4 SINAIS PARA RECONHECER UM AUTORITÁRIO
Segundo Levitsky, devemos nos preocupar quando políticos:
1) Rejeitam, em palavras ou ações, as regras democráticas do jogo
2)Negam a legitimidade dos oponentes
3)Toleram e encorajam a violência
4) Dão indicações de disposição para restringir liberdades civis de oponentes, inclusive a mídia

AUTORITÁRIOS QUE CHEGARAM AO PODER ELEITOS PELA POPULAÇÃO
Casos citados no livro de Steven Levitsky

Hugo Chávez
Após comandar tentativa de golpe frustrada em 1992, elegeu-se presidente da Venezuela em 1998. Nos anos seguintes, alterou a composição e aparelhou a Suprema Corte, fechou emissora de TV, prendou ou exilou oposicionistas e eliminou barreiras que limitavam a ampliação de seus mandatos

Alberto Fujimori
Venceu nas urnas o escritor Mario Vargas Llosa em 1990, em meio ao colapso da economia peruana, prometendo renovação e combate à corrupção. Inábil para a negociação política, atacava publicamente políticos da oposição e juízes. Em abril de 1992 dissolveu o Congresso.

Recep Tayyip Erdoğan
Depois de tentativa de golpe contra seu governo, o presidente turco declarou estado de emergência e lançou mão de onda maciça de repressão, com o expurgo de cerca de 100 mil funcionários e funcionários públicos, o fechamento de jornais e mais de 50 mil prisões.

Donald Trump
Tentou punir ou expurgar agências que atuavam com independência e reescrever regras eleitorais de identificação de eleitores para favorecer seu partido


Elio Gaspari: A dissimulação do general Mourão

Vice de Bolsonaro disse que sua teoria da maldição das raças deriva do seu orgulho pela miscigenação. Falso

O general Hamilton Mourão expôs em Caxias do Sul sua teoria da formação da identidade nacional a partir do gosto dos portugueses pelas sinecuras, da indolência do índio e da malandragem dos africanos. Pegou mal e no dia seguinte ele se explicou:

"Não sou racista, muito pelo contrário. Tenho orgulho da nossa raça brasileira. O que eu fiz foi nada mais nada menos que mostrar que nós, brasileiros, somos uma amálgama de três raças, a junção do branco europeu com o indígena que habitava as Américas e os negros africanos que foram trazidos para cá. (...) Somos a junção desses três povos, com as coisas boas e ruins que eles têm, sem colocar estigma em nenhum deles."

Teria sido mal-interpretado: "O que acontece é que as pessoas pinçam determinadas frases e querem retirar do contexto em que foram colocadas."

Coisa desses malditos jornalistas.

Mourão não é a única pessoa que atribui a uma mítica herança do passado as desgraças do presente. Cada um tem direito de achar o que quiser, mas a explicação do general, atribuindo o mal-estar a uma pinçagem foi um exercício pueril de dissimulação.

Em dezembro do ano passado, durante uma palestra, o general Mourão expôs a sua teoria das raças com mais precisão. O vídeo está na rede. Foi uma fala articulada, o general estava fardado e seguiu um roteiro ilustrado por transparências. No 43º minuto, ao concluir, anunciou:

"E aqui, minha gente, existe a maior de todas as reformas, que é a reforma moral, em cima dos valores da sociedade, a reforma cultural. Nós carregamos dentro de cada um, uma herança cultural tripla. Nós temos a herança cultural ibérica, que é a do privilégio e da sinecura. Todo mundo quer se dar bem. Temos a herança cultural indígena, que é a da indolência. É o índio deitado na rede e a mulher cavando lá, carregando filho. E temos a herança cultural africana que é a da magia. Vai dar certo, vai dar tudo certo. A malemolência, o samba. Nós somos melhores. A embaixadinha. Nós temos que romper esse ciclo. Essa é a realidade."

A realidade é que o general não se orgulha de coisa alguma. Pelo contrário, seriam vícios que exigem uma "reforma moral".

Gilberto Freyre orgulhava-se do amálgama da formação do brasileiro, já o conde Gobineau, o embaixador francês no Brasil durante o Segundo Império, previa que a miscigenação provocaria o colapso da sociedade brasileira ainda na primeira metade do século 20. Mourão está mais para Gobineau do que para Gilberto Freyre.

Entre os defeitos que Mourão atribuiu a portugueses, índios e negros, ele não incluiu a dissimulação. Certamente há portugueses, índios e negros dissimulados, mas isso não caracteriza os conjuntos. O dissimulador é apenas um dissimulador, quer seja português, índio, negro, chinês ou ucraniano.

ALCKMIN E CIRO SE DERAM BEM NA BAND
Quem viu as entrevistas de Jair Bolsonaro no Roda Viva e na GloboNews achou que no debate da Band ele teria uma oportunidade preciosa. Sem tempo no horário gratuito de televisão, Bolsonaro estaria em igualdade de condições com os rivais. Perdeu-a, não pelo que disse, mas porque disse o mesmo de sempre.

Quando foi colocada a questão da segurança pública, Geraldo Alckmin expôs as estatísticas do seu governo em São Paulo (a queda dos homicídios anuais de 13 mil para 3.000), Bolsonaro sacou a conveniência de armar os cidadãos e condenou as leis que protegem os direitos humanos.

Pela primeira vez Bolsonaro esteve diante de interlocutores que não queriam alvejá-lo com uma bala de prata. Com sua monotonia, Alckmin, amarrado às limitações do tempo, acabou sendo favorecido. Afinal, em um minuto não cabem dez estatísticas embutidas em platitudes.

Diante de uma pergunta sobre educação, Bolsonaro louvou os êxitos das escolas militarizadas. Ciro Gomes respondeu com a eficácia do sistema educacional do seu estado. A cordialidade de Ciro levou Bolsonaro a uma tréplica gentil, mas tudo o que ele tinha a oferecer era a construção de uma megaescola militar em São Paulo, no Campo de Marte. E o pessoal do seu Vale do Ribeira, que fica a 358 km, vai para onde?

Ciro e Alckmin foram a um debate, Bolsonaro foi a mais uma entrevista.

TUNGA
Um brasileiro que sabe fazer contas jura que queria trocar US$ 100 no guichê do banco Safra da área de desembarque do aeroporto de Guarulhos e disseram-lhe que receberia R$ 250.

O dólar estava cotado a R$ 3,70.

A turma do Safra informa que nada tem a declarar. Talvez o Banco Central tenha.

Eremildo, o idiota, aceita ficar ao lado do guichê do Safra oferecendo R$ 3 por cada dólar, mas se fizer isso, vai preso.

CHAPA ESTREITA
Lula estreitou o alcance da chapa do PT ao colocar Manuela D'Ávila, do Partido Comunista do Brasil, na chapa encabeçada por Fernando Haddad.

Ele sabe que prevaleceu em duas eleições quando ampliou-a, colocando na sua vice o empresário José Alencar.

URUCUBACA
Numa malvadeza do calendário, o ministro José Antonio Dias Toffoli foi eleito para a presidência do Supremo Tribunal Federal no mesmo dia em que o pretório excelso decidiu por 7 x 4 pedir ao Congresso umaumento de 16,38%. Cada eminente ministro pretende receber R$ 39,3 mil mensais.
Toffoli votou a favor do mimo e disse o seguinte:

"Não se está encaminhando para o Congresso um acréscimo ao orçamento do Supremo. Está se encaminhando uma previsão para uma recomposição remuneratória parcial de 2009 a 2014. Não se está tirando de saúde, de educação. Está-se tirando das nossas despesas correntes, dos nossos custeios."

De duas uma, ou Toffoli não sabe que o aumento dos ministros do Supremo desencadeia um efeito cascata que pode custar entre R$ 3 bilhões e R$ 4 bilhões à Viúva, ou sabe e acha que a choldra é boba.

Tomara que ele acredite na segunda hipótese, pois se o novo presidente do Supremo não sabe como funciona o teto dos salários dos servidores, sua presença na cadeira é uma ameaça à ordem pública.

MADAME NATASHA
Madame Natasha criou uma operadora de plano de saúde vocabular para atender incorrigíveis malbaratadores do idioma. Seus primeiros clientes serão a Agência Nacional de Saúde e as empresas que lidam com ela.

A ANS chama de "expostos" os "beneficiários cujo risco está efetivamente coberto pelo plano".
Chamar os clientes das operadoras de "beneficiários" já é uma impropriedade. Eles são fregueses e, muitas vezes, vítimas. Chamá-los de "expostos" é um insulto. Durante o período colonial, "exposto" era o recém-nascido colocado na roda dos enjeitados, para abandoná-lo ao cuidado de instituições de caridade.

Em alguns casos, os "expostos" eram bebês que as mães não conseguiriam criar. Em outros, crianças cuja maternidade as mães queriam esconder. Esse foi o caso do futuro padre Diogo Feijó, que governou o Brasil de 1835 a 1837. Ele era filho de uma jovem solteira da poderosa família dos Camargo.


Demétrio Magnoli: Alckmin e o pecado

Se chegar ao Planalto, Alckmin não terá governabilidade, a não ser no mesmo perverso sentido que tiveram Lula e Dilma

“Um governo de qualidade requer alianças. Aqueles que dizem que aprovarão reformas sem o apoio da maioria dos partidos mentem.” Alckmin tem, ao lado do PSDB, oito partidos. A aliança com o centrão, firmada para garantir palanques regionais, capilaridade nos estados e tempo interminável no horário eleitoral, já é alvo da artilharia dos concorrentes, que a exibem como prova de um pecado ético mortal.

O tucano reage, pintando-a não como ferramenta de uma governabilidade de ruptura: a espada das reformas. De fato, não é nem uma coisa, nem a outra.

Se é pecado, quem não é pecador? O centrão ofereceu sustentação parlamentar a Lula e Dilma, durante 13 anos, até a “traição” do impeachment. Se Lula pudesse ser candidato, o centrão ficaria com ele. Haddad menciona a aliança de Alckmin com esgares situados na faixa que se estende do escárnio ao puro nojo, mas seu PT participa de coligações com partidos do centrão em diversos estados, inclusive alguns nos quais não ocupa a cabeça da chapa.

Ciro disputou o apoio do bloco com Alckmin. Mesmo a Rede, da imaculada Marina Silva, coligou-se, em vários estados, com partidos do que crisma como “velha política”. Atire a primeira pedra etc...

“Todo mundo disputou” o apoio do centrão, “eu ganhei”. O argumento verídico de Alckmin propicia duas leituras. A mais óbvia, que a degradação de nosso sistema político, expressa na fragmentação partidária, define um campo de regras do qual nenhum partido pode escapar. Por aí, Alckmin encontra seu álibi.

Contudo, há uma segunda leitura, menos óbvia: se “todo mundo disputou”, como efetivamente aconteceu, segue-se que o apoio do centrão carece de conteúdo doutrinário ou ideológico. E, portanto, não servirá a um hipotético presidente Alckmin como espada das reformas.

“Presidencialismo de coalizão” é o que tinha FHC. A cola que unia PSDB e PFL (atual DEM), núcleo de sua coalizão, era o compromisso com uma plataforma política. O “fisiologismo” obviamente existia, mas como elemento periférico. Lula inaugurou o “presidencialismo de cooptação” (apud FHC).

Na falta de um mínimo de unidade ideológica, a coalizão do PT com o MDB e o centrão baseava-se no impulso de colonização do aparelho de Estado e dependia da infusão perene de dinheiro sujo (mensalão, petrolão). Hoje, assim como seus concorrentes, Alckmin opera no universo do “presidencialismo de cooptação”.

A aliança do ex-governador paulista, que receberá 48% do total do fundo público de campanha, serve para lhe dar 44% dos minutos de TV. No baile da naftalina, só falta o MDB de Temer e Meirelles. Contudo, se chegar ao Planalto, Alckmin não terá governabilidade, a não ser no mesmo perverso sentido que tiveram Lula e Dilma.

E, certamente, não contará com base parlamentar sólida para avançar uma agenda de reformas. O centrão, sempre é bom lembrar, tem interesses, não convicções.

O pecado do PSDB não está no frio pragmatismo com que Alckmin montou seu edifício de campanha, mas lá atrás, nos longos anos de oposição e nos pactos firmados para obter o impeachment de Dilma. Ao longo dessa trajetória, os tucanos engajaram-se em incessantes conflitos internos e reduziram seu discurso a um primário antipetismo, fracassando em liderar um movimento de renovação política de centro-esquerda.

A “operação Luciano Huck”, de produção farsesca da novidade absoluta, e o recuo até a “realista” aliança eleitoral de Alckmin formam as imagens simétricas do fracasso. As candidaturas “antissistema” de Marina e Alvaro Dias são um de seus resultados –mas não o único.

De 2013 a 2016, Lula foi a face da velha ordem política, do “antigo regime” em declínio. O PSDB tanto fez que essa face é, agora, largamente identificada à aliança Alckmin/centrão. Há alguma surpresa no fato de que um quinto do eleitorado se deixa seduzir por um certo capitão baderneiro?

*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.


Marianne Costa: Visitar um povo indígena requer humildade

Cacique de aldeia xavante no Mato Grosso explica que visitação turística é parte de estratégia

Por Marianne Costa

Recentemente retornei de viagem da Aldeia Xavante Etenhiritipá, que foi uma das experiências mais lindas e especiais da minha vida. E olha que eu tenho rodinhas nos pés e asinhas nas costas, já diriam meus amigos. Passei alguns dias, o suficiente para perder a noção de tempo, de calendário, sem relógio, celular ou internet, próximo ao município de Canarana (MT).

Viajei de Goiânia para lá numa viagem de ônibus de mais de 12 horas, onde formamos um grupo muito especial, liderados por Israel e Tadeu da Ambiental, e seguimos num ônibus escolar bem antigo, mas perfeito para as estradas precárias que enfrentaríamos por quase duas horas até chegar à Aldeia (pode ser um pouco mais ou menos, mas eu realmente me desprendi deste tipo de controle).

Como profissional do turismo, desde quando saí de São Paulo já me preocupei sobre como poderíamos desfrutar de uma logística mais confortável sob o ponto de vista da experiência do turista, sem nem ao menos ter começado a jornada. Chegando lá e depois de toda a experiência, percebo o quanto fez e faz sentido essa jornada de ida, as longas esperas, o carrega e descarrega de mala, o tira e põe de casacos.

Todos esses aparentes desconfortos para nós, cidadãos urbanos, acostumados ao total controle de tudo, vão nos preparando para essa experiência peculiar: um verdadeiro despir-se de estigmas, preconceitos, valores arraigados, sentidos. Escrevo ainda sem saber se vou conseguir transmitir a profundidade da experiência, que, claro, é tão única e pessoal como a alma de cada indivíduo ali presente.

Força e Resistência

Fomos recebidos por Jurandir Siridiwe, cacique e principal liderança da aldeia. Jurandir é um dos que fala um bom português, pois fez parte de um grupo de meninos xavantes que, na década de 70, foi mandado para fora da aldeia para estudar e conhecer a cultura dos "brancos invasores".

Aparentemente os xavantes se renderam na década de 1940, quando desistiram de lutar com armas e aceitaram o contato "civilizatório" do homem branco. De fato, esta iniciativa fazia parte de uma estratégia que eles entendiam necessária, ou seja, eles precisavam pacificar o branco invasor e, para isso, era necessário dominar sua cultura. Como primeiro resultado, em 1988 tiveram a legalização da reserva, uma das aldeias do território indígena Pimentel Barbosa, onde vivem atualmente 3.200 pessoas.

Xavantes são tradicionalmente guerreiros. Falam e vivem o lema da força e resistência, entre homens, mulheres e crianças. Provavelmente a expressão sem mimimi foi inventada por eles. Sua força e a coragem podem ser observadas em cada detalhe das atividades do seu dia a dia e nos seus relatos. Até os cachorros de estimação são extremamente bravos, excelentes cães de guarda e fiéis aos donos e às casas que protegem.

Jurandir começou nos explicando que a visitação turística é parte da estratégia xavante. Para aquele povo pacífico, guerreiros de verdade estão sempre em guerra e na guerra cada um luta com as armas que tem. E guerreiro que é guerreiro tem estratégia. Os xavantes lutam pela sua sobrevivência, pela garantia do seu direito a terra e à vida.

O principal inimigo dos xavantes hoje é o agronegócio e a expansão ilegal da fronteira agrícola por meio da invasão e da grilagem das terras indígenas. Índio ignorante? Me desculpem, mas ignorante é quem acha que índio é burro, preguiçoso, não trabalha e outras coisas absurdas que a gente escuta com frequência por aí.

Deixe-me relembrar um pouquinho da história dos povos indígenas: “Desde que o mundo é mundo, os índios já estavam aqui neste território chamado Brasil”. Vivendo e sobrevivendo em sociedade, nômades ou permanentes, com seus costumes, cultura e língua própria. Agora de quem seria o direito legítimo a terra? Deles ou dos invasores, no caso, os ocidentais brancos?

Eles perceberam que não podem lutar sozinhos. Por isso, precisam se abrir para o Brasil, para o mundo. Segundo Jurandir, “a visitação é a forma de uma janela para nossa casa. Vocês vêm aqui e decidem se continuam reverenciando aos acadêmicos e autores de livros didáticos que estereotipam a nossa cultura e nos chamam de índio”.

Portanto: “A presença de vocês é uma maneira de vocês terem outra ideia, outro olhar. Nossa filosofia é receber o brasileiro e extinguir este estereótipo”. Com isso, me sinto não só no dever e na obrigação de contar para o mundo o que eu vi e vivi lá, de forma simples e objetiva, mas ainda de abraçar a causa indígena.

De seu cotidiano, destaco:

  • Xavantes são muito trabalhadores. O dia na aldeia começava entre 3h e 4h da manhã com rituais de danças circulares. Em seguida, há o banho gelado no rio. O frio era forte, afinal, no cerrado a amplitude térmica (diferença entre temperaturas máxima e mínima) chega a 25 graus;
  • Xavantes são muito inteligentes e espertos. Além de conhecerem suas tradições, rituais de passagem, artes de guerra, medicina natural, agricultura, caça, técnicas agrícolas e de bioconstrução, artesanato e artefatos, também conhecem das leis dos “brancos” e, por consequência, dos seus direitos, de respeito, de didática, de articulação política, de liderança e de distinções entre formas de convívio social. Ganhamos aulas de diplomacia e resistência;
  • Xavantes são sonhadores e sonho para eles é muito sério. É através dos sonhos que se comunicam com o outro plano, com a espiritualidade. É dos sonhos que saem as orientações para a vida, para as decisões que vão influenciar o dia a dia. É assim que eles equilibram o plano físico e espiritual. Xavantes não têm pajés, têm sonhadores;
  • Xavantes são estrategistas. Nos recebem em suas terras, contam suas histórias, passam suas mensagens, mas não revelam seus segredos, dificilmente nos convidam para suas casas e são desconfiados, com toda a razão;
  • Xavantes são coletivos. Não existe espaço para individualismo por lá. As lideranças estão sempre pensando em como dividir para agregar. Em uma verdadeira aula de como se constrói uma sociedade justa, ouvi do ancião Paulo, uma das lideranças, uma frase que me marcou e que resume bem esse espírito: “Os europeus se orientam para multiplicar, vocês brasileiros só pensam em somar, em acumular e nós, xavantes, somos orientados para dividir”.

A Escola e a diversidade

Conhecemos outras lideranças, como Eurico e Caime, professores da escola local, que vai até o 9º ano do ensino fundamental, e Paulo, tio de Jurandir, um dos meninos que também viveu fora, que fala um ótimo português e é um ótimo contador de histórias.

Podíamos passar horas e horas ouvindo todos eles contando sobre suas vidas, passado e presente de lutas por direito à terra, à educação, à sobrevivência. Histórias que inspiram e nos fazem repensar o quanto e pelo que já tivemos que lutar até hoje.

Para os professores, a luta atual é pela manutenção e adaptação do ensino na língua e cultura xavante na escola formal, que insiste em materiais didáticos tradicionais e padronizados Brasil afora. Como ensinar a uma criança xavante que o Brasil foi descoberto em 1500 por um português, sabendo que seu povo já estava ali há gerações anteriores? Como explicar as estações do ano de forma definida e com neve para aqueles que vivem e se criaram no coração do cerrado brasileiro?

Os xavantes seguem na sua luta, se juntando a outras lideranças de povos indígenas para mostrar que, assim como existem 254 povos indígenas somente no Brasil, com mais de 150 línguas diferentes sendo faladas, existem no mínimo 255 versões desta história e de todas as demais disciplinas “ensinadas” na escola.

O ritual Noni

Tivemos o privilégio de acompanhar parte do ritual de iniciação dos meninos. Xavantes acreditam no ciclo da vida e respeitam as suas fases. Os meninos, durante a adolescência, passam cinco anos vivendo no que eles chamam a Casa dos Solteiros. Depois deste tempo, vão passar por meses em um ritual de iniciação que envolve diversas provas de força e resistência.

Chegamos exatamente no mês das corridas. Todos os dias eles correm, apostando entre eles. Alguns dias as meninas correm também. Todo o ritual é acompanhado por madrinhas e padrinhos mais velhos e já casados, que também possuem seus momentos durante os meses de ritual.

Nos dias que estávamos lá pudemos acompanhar a rotina diária de uma linda dança circular, acompanhada de cantos xavantes, que aconteciam diariamente por volta das 4h da manhã e 3h da tarde (novamente, horários aproximados para quem não olhou o relógio em nenhum momento).

No primeiro dia fomos convidados a observar e aprender e só a partir do segundo dia convidados a integrar as atividades. Tudo acontecia normalmente, sem nenhuma alteração ou interferência pela nossa presença. Nada para inglês ver, o que dava muita naturalidade à nossa experiência.

As Mulheres Xavantes

Nosso dia a dia na aldeia e até então dos demais grupos envolvia pouquíssimo contato com as mulheres. Além da questão cultural (não sei se tímidas seria a palavra, mas elas não costumavam nos olhar nos olhos), a barreira da língua é com certeza um fator limitante. Apesar de aprenderem o português na escola, a maioria delas não entende ou fala a língua.

Fomos novamente privilegiados, e neste caso privilegiadas, pois conversando com o professor Eurico sobre o dia a dia das mulheres e meninas, contando das nossas curiosidades como por que quase ninguém tinha sobrancelhas e por que usavam as roupas que usavam.

Ele nos confessou que elas também eram muito curiosas com relação a nós: por que usávamos brinco (na cultura xavante, apenas os homens furam a orelha) ou por que pintávamos o cabelo. O professor teve a ideia de propor uma roda de conversa entre as mulheres do grupo e as meninas xavantes. E foi embaixo de um pé de pequi que fizemos uma roda de cadeiras e batemos muitos papos.

Infelizmente, com a tradução de um homem, o professor Eurico, mas que teve seu mérito e boas intenções ao propor esta aproximação. Uma experiência única poder olhar nos olhos delas, darmos boas risadas juntas sobre hábitos como maquiagem, depilação, óculos escuros e calças. Sim, mulheres xavantes não usam calças compridas.

E algo que me marcou: elas não têm o hábito de se olhar no espelho. A maioria pareceu nem ter espelho e ficou claro que se contentam com o reflexo da própria imagem nas águas do rio. Achei bonito, poético. E naquele dia percebi que eu também não havia me olhado no espelho desde que chegara ali. Refleti sobre como me olhar no espelho naquele contexto no qual a aparência era tão secundária não me fez falta.

Então conclui enquanto sociedade o quanto estamos doentes e os sacrifícios que fazemos, o dinheiro que investimos, o valor que damos só às aparências. Cuidamos tanto do nosso exterior que deixamos o interior adoecer.

E foi aí, neste espelho metafórico, que eu percebi um dos segredos da vitalidade, da força, da resistência xavante: o interior deles é forte, saudável porque é para dentro que eles olham quando sonham, quando tomam suas decisões, quando seguem o ciclo da vida.

A Visitação

Para participar de uma experiência desta é preciso com certeza abrir mão de conforto em troca de profundidade na experiência. No meu caso, o cansaço da viagem longa logo se dissipou e deu lugar à excitação e curiosidade pelo novo, pelo desconhecido.

A minha fala sempre presente e até exagerada às vezes deu lugar a muito silêncio. Reconhecer que aquele não era meu momento foi meu maior exercício de lugar de fala. Eu não estava ali para falar, mas sim para ouvir. Ouvir com os ouvidos e também com o coração. Ouvir as palavras ditas, mas principalmente àquelas não ditas.

Incrível como o excesso de tecnologia, de luzes e ruídos da cidade grande dita desenvolvida rapidamente consome nossa energia e dissipa nossa atenção e a verdadeira presença. Foi assim que eu senti ali a presença. O sentido e o significado de estar presente, algo que só a experiência revela, pois não pode ser traduzido em palavras.

Pude sentir como há muito tempo eu não sentia outras pessoas presentes e eu mesma presente, com eles e comigo. Nossa, quantas saudades eu estava de estar com pessoas de verdade e também comigo mesma.

Dormíamos alguns em redes, outros em barracas. Por ser minha segunda vez numa experiência em terra indígena, logo escolhi minha rede, uma das melhores descobertas que fiz nas minhas viagens. O povo do Norte e do Nordeste é que sabe das coisas: dormir em rede é bom demais. As costas se encaixam, a rede te abraça e por fim aquele balanço te embala num sono que há muito eu não tinha lembrança.

A noite fria, o céu sujo apenas com a poeira das estrelas e o ar puro que nos últimos dias se tingiu com o fino pó do barro vermelho espalhado com o soprar forte do vento. Nos hospedamos na escola. Nada de visitar ou entrar na casa de ninguém sem ser convidado. Os cachorros tratariam de lembrar qualquer um que por acaso esquecesse.

Os banhos eram no rio. Mulheres de um lado, homens do outro, assim como sempre foi e sempre será por lá. O frio já ia chegando com a ida do sol, e era bom sermos breves.

No primeiro dia, aquela saudade do chuveiro quente logo passou. Incrível como a gente se acostuma rápido com o que é bom e percebe que estes nossos pequenos luxos do dia a dia vêm mesmo é para nos compensar e fazer esquecer do que deixamos para trás ao abraçar a vida urbana, caótica, barulhenta, poluída, fria, distante.

Minha primeira e maior lição desta viagem é: visitar um povo indígena requer humildade.

Reconhecer a nossa insignificância no universo, nossos privilégios enquanto homem e mulher brancos, que pouco esforço precisa fazer para sobreviver, é, no mínimo, um exercício.

Eles são ricos sem disporem de dinheiro. São alegres sem usarem drogas. São sábios sem dependerem de mídias nem internet. São solidários sem pieguice. São espiritualizados sem instituições religiosas. São fiéis aos amigos.

Estar diante da sabedoria ancestral, de um povo que vive e sobrevive, apesar das adversidades, por gerações e gerações, e que passa de pai para filho os conhecimentos valiosos adquiridos sobre a natureza, sobre a Terra e além dela, sobre ciclo da vida, da morte, sobre sobrevivência e que só recentemente teve acesso ao que chamamos de tecnologia como livros, audiovisual, computador, é uma experiência singular. Sim, impressiona.

Tive outras lições, algumas delas muito pessoais. Mas gostaria de deixar aqui um convite. Saia da sua zona de conforto na sua próxima viagem. Permita-se um exercício de entrega, de encontro consigo mesmo através de uma experiência desta. Se vai ser a primeira ou uma das primeiras vezes, não precisa começar logo de cara visitando um povo indígena. Comece por uma comunidade tradicional próxima a você.

Entre os povos e as comunidades tradicionais do Brasil estão quilombolas, ciganos, matriz africana, seringueiros, castanheiros, quebradeiras de coco-de-babaçu, comunidades de fundo de pasto, faxinalenses, pescadores artesanais, marisqueiras, ribeirinhos, varjeiros, caiçaras, praieiros, sertanejos, jangadeiros, ciganos, açorianos, campeiros, varzanteiros, pantaneiros, caatingueiros, entre outros.

Mas só faça isso se estiver aberto e disposto a exercer humildade. Pois, posso lhe afirmar através da minha experiência privilegiada de estar em comunidades tradicionais várias vezes ao ano em função do meu trabalho, que o benefício e o impacto positivo vai ser ainda maior para você do que para aqueles que vão te receber de braços aberto e com o coração cheio de amor.

Obs.: Parabenizo meu amigo Israel Waligora pela persistência, sensibilidade e amor com que desenvolveu esta experiência, à convite dos xavantes da Aldeia Etenhiritipá. Você pode conhecer pelo site.

 * Marianne Costa é turismóloga, fundou a Vivejar e foi uma das fundadoras da Raízes Desenvolvimento Sustentável e finalista do Prêmio Empreendedor Social de Futuro 2012.


Elio Gaspari: Fux matou no peito e fez gol contra

O ministro Luiz Fux, presidente do Tribunal Superior Eleitoral, tinha diante de si um pedido para declarar a inelegibilidade de Lula. A petição era processualmente imprópria e ele rejeitou-a. Fez o mesmo que a ministra Rosa Weber há algumas semanas. A notícia foi divulgada pelo UOL. Fux deu-se conta de que rejeitando o pedido apenas por impróprio, poderia dar a impressão de que admitiria, em tese, a elegibilidade de Lula.

Deve-se ao repórter Reynaldo Turollo Jr. a narrativa do que aconteceu em seguida, nas palavras de Fux:

“Depois que saiu essa notícia, eu fui verificar se a decisão tinha sido publicada [no Diário da Justiça]. Então, peguei a decisão, para não deixar dúvida, e fiz questão de colocar nela (...) aquilo que tenho defendido publicamente, que é a inelegibilidade de candidatos que já incidiram em uma condenação em segunda instância”.

Fux deixará o TSE no próximo dia 14 e decidiu acrescentar um parágrafo ao despacho informando que vislumbrava a “inelegibilidade chapada” de Lula. Se o pedido tinha um vício processual, a questão estava resolvida, não havia porque acrescentar “aquilo que tenho defendido publicamente”, muito menos usando o termo “chapada”.

Lula sabe que será declarado inelegível, mas isso só poderá acontecer quando ele estiver na condição legal de candidato. Ademais, “chapado” não quer dizer nada.

Lula é candidato a vítima para eleger o “Poste”. Quanto mais o vitimizarem, maior será a sua capacidade de transferir simpatias e preferências. A barafunda provocada pelo drible do desembargador Rogério Favreto, abrindo uma temporada de bate-cabeças no Judiciário, premiou-o com as trapalhadas dos que não querem vê-lo como candidato ou mesmo em liberdade.

O complemento de Fux ao despacho foi um mimo para Lula. Primeiro, porque não é adequado que o presidente de um tribunal tenha “defendido publicamente” uma posição relacionada a um julgamento que ainda não aconteceu. Mesmo que o seja, foi despicienda a iniciativa de repeti-la num despacho que tratava de um pedido processualmente viciado.

Até a balbúrdia “prende-solta” dos desembargadores e do juiz Moro, podia-se achar que Lula era um apenado fingindo que era candidato. Depois dela, tornou-se uma vítima. Fux, como Moro, matou no peito e chutou contra o próprio gol.


Clóvis Rossi: PT entroniza dom Sebastião Lula da Silva

Ex-presidente teve morte jurídica decretada pela Lava Jato, mas seus seguidores não acreditam na morte, rezam e jejuam pelo seu reaparecimento

A convenção do PT entronizou neste sábado (4) a candidatura de dom Sebastião Lula da Silva. Dom Sebastião é aquele rei de Portugal que supostamente morreu na batalha de Alcácer-Quibir (1578). Como o corpo nunca foi encontrado, nasceu um movimento místico —o sebastianismo— que acreditava que o rei voltaria para salvar Portugal de todos os problemas surgidos após seu desaparecimento.

Luiz Inácio Lula da Silva teve sua morte jurídica (como candidato) decretada na esteira da Operação Lava Jato. Mas seus seguidores não acreditam na morte, rezam e jejuam pelo seu reaparecimento para superar o único problema que aflige o PT neste momento: ter um candidato presidencial viável.

O “sebastianismo” —“lulismo", em sua versão brasileira— era onipresente na Casa de Portugal, que abrigou o encontro petista que, por aclamação, indicou Lula como seu candidato presidencial.

Presente até no nome oficial da convenção: “Encontro Nacional do PT 2018 - Lula livre". Presente na frase, bem “sebastianista", de uma militante no vídeo sobre os cem dias da prisão de Lula: “Você é e sempre será nosso eterno presidente".

Presente, sempre como essa característica de solução para todos os problemas, no grande banner que ocupava o fundo do palco e gritava em letras brancas sobre fundo negro: “O Brasil feliz de novo”.

Presente nas camisetas polo vendidas a R$ 30 ou nas t-shirts, pela metade do preço.

Justifica-se, pois, o rótulo de religião que Ciro Gomes, candidato do PDT, cravou no petismo em entrevista à GloboNews. Esse “lulismo” místico é definido como “perversão do petismo” por Francisco de Oliveira, fundador do PT mas depois rompido com o partido. Lulismo seria “o carisma de Lula combinado com assistencialismo”, segundo esse sociólogo, um dos raros intelectuais de esquerda que se manteve de esquerda.

Que o PT vive da expectativa de renascimento de Lula fica evidente no fato de que a convenção deste sábado não indicou candidato a vice-presidente. Fazê-lo seria lido como um sinal de que há, sim, um plano B, ao contrário do que dizem oficialmente todos os petistas, graúdos ou miúdos.

Pior para o partido: o reinado de Lula impediu o surgimento de qualquer nome que pudesse rivalizar com ele, mesmo que fosse um pouquinho. É uma característica do caudilhismo. Caudilhos em geral impedem que nasça até grama em suas imediações, quanto mais uma palmeira que lhes faça sombra.

Se os aplausos dos convencionais deste sábado significam alguma coisa, o único eventual plano B seria a inelegível Dilma Rousseff, ovacionada quando o nome foi anunciado. Abaixo dela, Fernando Haddad. Para os demais, as palmas foram tímidas, pouco mais que protocolares.

O Eurasia Group, consultoria de risco político, bate mais palmas do que os convencionais para o candidato que o PT vier a lançar se Lula for mesmo vetado. Terá “grandes chances relativas de ir ao segundo turno", diz em nota desta semana.

Mas falar de plano B é proibido no PT, como diz o vereador e candidato a senador Eduardo Suplicy. O partido, aliás, não é mais o mesmo: seu manifesto de fundação dizia que “o PT pretende ser uma real expressão política de todos os explorados pelo sistema capitalista".

Trinta e oito anos depois, o PT é Lula, o presidente que cansou de dizer que nunca antes na história do Brasil os capitalistas ganharam tanto dinheiro quanto no governo dele.

O programa em elaboração para a campanha presidencial, pouco explorado na convenção, talvez por ainda incipiente, passa muito longe da condenação ao sistema capitalista. É até bem burguês: diz que ”é preciso investir para acelerar a economia, com inflação controlada, crédito disponível, juros baixos e geração de emprego.”

Convenções nunca são bom termômetro para avaliar a saúde de um partido, por ser reservada aos militantes, já convertidos.

Mas, à margem dela, parece claro que o partido não perdeu capacidade de atração: no número mais recente de Nueva Sociedad, a revista da social democracia alemã, Esther Solano Gallego (Universidade Federal de São Paulo) relembra dados de pesquisas feitas em duas mobilizações em São Paulo em 2016, predominantemente de jovens: “Quase 90% dos participantes concordam total ou parcialmente com a ideia de que o PT é corrupto; por outro lado, mais de 90% afirmam que as políticas do PT melhoraram a vida dos brasileiros".

Na convenção, a primeira constatação não passou nem perto. E a segunda foi atribuída inteiramente a Luiz Inácio Lula da Silva, razão poderosa para rezar por sua volta (como “eterno” candidato) até o último minuto possível.


Demétrio Magnoli: Cancellier, eu e você

Cancellier não fará o que fez Caldas, temos que fazer por ele, para nós

“Convivo com a pior de todas as sentenças: a mácula da minha honra por crimes que não cometi ou que sequer existiram”. Eduardo Jorge Caldas, secretário-geral da Presidência no governo FHC (1995-98), enfrentou uma incessante campanha de acusações, sem prova ou nem sequer denúncia formal, conduzida por Luiz Francisco de Souza, um procurador-militante. Reagiu, lutando nos tribunais por uma década, até provar sua inocência.

Já o reitor Luiz Carlos Cancellier, preso sem um fio de prova e proibido de colocar os pés na universidade, não resistiu à “pior de todas as sentenças”, suicidando-se diante do público num shopping de Florianópolis. Cancellier não fará o que fez Caldas. Temos que fazer por ele, para nós.

O Conselho Nacional do Ministério Público reconheceu finalmente, em 2009, que Luiz Francisco perseguia Caldas por razões político-partidárias. Prudentemente, desde o fim do governo FHC, o procurador sumiu do palco iluminado, desistindo da missão sagrada da denúncia da corrupção para refugiar-se num sinistro blog “socialista cristão”, de onde dispara petardos difamatórios.

Já a delegada Erika Marena, que mandou prender o reitor, foge à obrigação mínima de reconhecer o erro monstruoso, preferindo inventar um processo vazio contra um colega da vítima. Quanto pesa a injustiça? Será necessária uma nova década até que se repare o irreparável?

De Caldas a Cancellier, mudaram os tempos. Sob o signo da Lava Jato, há cheiro de sangue no ar. Da barriga da operação anticorrupção que desvendou tantos crimes escorrem líquidos contrastantes. Num lado, vastas, justificadas esperanças cívicas; no outro, a substância tóxica da arrogância missionária.

Nas suas imensas diferenças, o acordo de imunidade judicial para Joesley e a prisão de Cancellier ilustram o desvio escuro da Lava Jato. Pois, embora a Operação Ouvidos Moucos, que vitimou o reitor, não tenha ligação formal com a Lava Jato, nela pulsa o espírito do arbítrio angelical.

“Cortem-lhe a cabeça!” –a Rainha de Copas que premia Joesley é a mesma que condena um reitor sem amigos na corte. A delegada Marena notabilizou-se na força-tarefa da Lava Jato, em Curitiba. Deslocada para a Ouvidos Moucos, levou para Florianópolis uma inclinação ao espetáculo que resultou na tragédia.

A acusação a Cancellier, de obstrução da Justiça, tinha as marcas kafkianas clássicas: a “prova” brandida pela Polícia Federal era um ato oficial do reitor, avocando para si a condução da investigação interna. Quem, no mundo, obstrui a Justiça por meio de decisões administrativas documentadas? Mas, sob o amparo da juíza Janaina Machado, o arbítrio fez seu curso, impondo a um inocente a “pior de todas as sentenças”.

Mais Kafka. Em janeiro, diante de um modesto ato acadêmico em memória de Cancellier, a delegada Marena moveu inquérito contra o professor Áureo Moraes, chefe de gabinete da reitoria, acusando-o do “crime” de aparecer, num vídeo estudantil, à frente de cartazes de denúncia do abuso de autoridade.

A Justiça converte-se em ferramenta de intimidação. “Eles não têm nenhum cuidado com a honra alheia e são tão cuidadosos quando criticam os seus”, registrou Gilmar Mendes, conclamando o ministro Jungmann a “instalar o Estado de Direito na PF”.

“Cortem-lhes a cabeça!”. Dos 686 mil presos no Brasil, 236 mil são provisórios. A presunção de inocência está morta para essa multidão de gente sem rosto que, atrás das grades, aguarda julgamento pelo tempo médio de um ano.

Na sua saga judicial contra o abuso de autoridade, Caldas lutou para limpar seu próprio nome, mas também por um princípio geral inegociável. O ato extremo de Cancellier, tão diferente na forma, aponta o mesmo norte. Quando holofotes iluminam as portas das delegacias e dos tribunais, quem não deve teme sim. Dessa vez, não é comigo ou com você. Por mero acaso.

*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.


Folha de S. Paulo: Acordo entre PT e PSB nos estados isola Ciro e causa protestos nos diretórios

Costura prevê neutralidade de sigla socialista, evitando apoio ao rival de Lula na esquerda

Catia Seabra , Gustavo Uribe , Marina Dias , João Valadares e Carolina Linhares | Folha de S. Paulo

SÃO PAULO, BRASÍLIA, RECIFE E BELO HORIZONTE - Sob protestos em suas bases regionais, as cúpulas do PT e PSB decidiram, nesta quarta-feira (1ª), sacrificar candidaturas estaduais em nome de um pacto nacional que levará ao isolamento do candidato do PDT à Presidência, Ciro Gomes.

Consumado o acordo, o PSB vai anunciar neutralidade na corrida presidencial, abandonando a costura de aliança com o PDT.

Em troca, o PT vai retirar a candidatura da vereadora Marília Arraes ao governo de Pernambuco em apoio à reeleição do governador Paulo Câmara (PSB). Por 17 votos contra 8, a Executiva Nacional do PT decidiu apoiar o PSB no estado.

O comando petista aprovou a aliança com o PSB de Pernambuco às 16h. No mesmo momento, em um hotel de Belo Horizonte, o presidente nacional do PSB, Carlos Siqueira, informava ao ex-prefeito e pré-candidato Márcio Lacerda a decisão de desistir da disputa ao Palácio da Liberdade em apoio à reeleição do petista Fernando Pimentel.

"Recebi esta comunicação com indignação, perplexidade, revolta e desprezo", escreveu Lacerda, informando em nota que recusará o convite para que concorra ao Senado na chapa encabeçada por Pimentel. Em declaração posterior à Folha, ele disse que teve apenas uma conversa e que espera receber uma comunicação formal.

Pré-candidata em Pernambuco, Marília afirmou que não vai desistir de sua candidatura. A vereadora disse acreditar que o recurso remetido ao Diretório Nacional para reverter a decisão será acolhido.

"Não tenho o direito de recuar e colocar a esperança do povo de Pernambuco como moeda de troca a preço de banana. A neutralidade é a única coisa que Paulo Câmara e seu grupo político pode oferecer porque não tem força de levar o partido dele para um lado ou para o outro”, disse a jornalistas no Recife.

Dez dirigentes do PT também entraram com recurso pela permanência de Marília. A instância máxima do PT, no entanto, deverá reproduzir a decisão de sua Executiva, que prevê também apoio petista aos candidatos do PSB no Amazonas, Amapá e Paraíba.

O acordo tem o aval da maior corrente petista, a CNB (Construindo um Novo Brasil), cujo líder é o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Preso há 116 dias na Superintendência da Polícia Federal em Curitiba, Lula coordenou os principais movimentos da pré-campanha até agora. Pelos seus cálculos, a eleição será novamente polarizada entre direita e esquerda e só há espaço para um nome de cada campo. Ciro seria o adversário direto do PT na competição por votos, principalmente entre os eleitores do Nordeste.

O petista mandou recados por meio de pessoas que o visitam na prisão.

Deu aval para decisões terminativas da presidente de seu partido, Gleisi Hoffmann (PR), para pelo menos cinco atos que reverberaram contra Ciro: sinalizou com a vice do PT para Manuela D’Ávila (PCdoB) no momento em que o partido era assediado pelo PDT; repreendeu governadores petistas que defendiam aliança com Ciro; assistiu ao PR, de Valdemar Costa Neto, levar o centrão para a órbita de Geraldo Alckmin (PSDB) em vez de de fechar acordo com o PDT e, em seguida, fez pesar sua relação familiar de anos na negativa do empresário Josué Alencar (PR) em ser vice do tucano.

No PSB, a costura foi endossada pela ala de Pernambuco, a mais poderosa do partido, e pela da Paraíba. Caso se declare neutra, a legenda orientará os diretórios estaduais, por meio de uma espécie de cartilha, a apoiarem candidaturas de esquerda que sejam contrárias à reforma trabalhista.

Assim como no PT, a decisão do comando nacional do PSB causou insatisfação em diretórios estaduais da sigla. Um grupo ameaça propor, durante a convenção no domingo (5), que a posição da legenda seja definida em votação.

"É lamentável e é um erro do partido. Nós tínhamos iniciado um processo para romper com a polarização, como fizemos com Eduardo Campos em 2014”, reclamou à Folha o governador do Distrito Federal, Rodrigo Rollemberg.

Ele disse que, mesmo com a neutralidade, fará campanha por Ciro Gomes, do PDT, o qual considera um nome preparado para o Planalto.

O diretório do PSB de Belo Horizonte defendeu resistência à decisão nacional do partido. "O PSB e o povo mineiro, como também a candidatura de Márcio Lacerda, não podem ser objeto de espúria moeda de troca, em favor da manutenção de gestões incompetentes e rejeitadas. Impõe-se, portanto, a não-aceitação bem como a resistência que possa restaurar o debate democrático a ética das relações políticas", afirma em nota.

O diretório afirmou que a composição com o PT foge aos interesses do estado e que a candidatura de Lacerda "crescia surpreendentemente e se consolidava como uma terceira via".

O PSB de BH diz ainda esperar que a direção nacional respeite a decisão que virá da convenção estadual, no próximo sábado (4). "Como nos rege a democracia interna, sem ingerências e intervenções estranhos e injustificáveis, em claro desrespeito as tradições históricas e políticas de Minas Gerai", conclui.

OS TERMOS DO ACORDO
PSB adota neutralidade na eleição presidencial, rompendo tratativas com Ciro Gomes (PDT), adversário do PT no eleitorado de esquerda.

PT retira candidatura de Marília Arraes em PE, o que facilita campanha de Paulo Câmara; ela resiste em aceitar a proposta

PSB retira candidatura de Márcio Lacerda em MG. Isso ajuda, por sua vez, a campanha do petista Fernando Pimentel (PT); Lacerda também diz que não vai desistir


Bruno Boghossian: Preso, Lula exercerá influência sobre capítulos finais da eleição

Petista reconfigura disputa na esquerda e explora indefinição sobre candidatura

Fora da eleição, Lula exerce a distância sua força gravitacional. Nas últimas semanas, o ex-presidente agiu como negociador político e reconfigurou os termos da competição na esquerda. Nos próximos 65 dias, o petista vai explorar as incertezas de sua candidatura para se manter no centro do debate.

Parte da campanha deste ano ainda gira em torno de uma indefinição que desorienta cerca de 30% dos brasileiros e provoca a repulsa de outros 36%. As interrogações propositadamente mantidas ao redor de Lula provocam tempestades nos campos de seus adversários e numa fatia significativa do eleitorado.

Na semana que vem, o Supremo deve julgar um pedido de liberdade do ex-presidente. A inclusão do caso na pauta é suficiente para mobilizar eleitores e candidatos. Ainda que o petista sofra um revés, o PT buscará reforçar a narrativa de perseguição judicial a seu candidato.

A esse episódio, sucederá a batalha sabidamente perdida sobre o registro da candidatura de Lula, no dia 15. A Justiça Eleitoral articula o veto à inscrição do ex-presidente no fim do mês, o que deve prolongar por ao menos duas semanas essa falsa dúvida na disputa.

Na prática, Lula obriga a corrida presidencial a aguardar suas orientações. O posicionamento do tabuleiro só estará completo quando o petista ungir o sucessor para o qual espera transferir sua popularidade —o que pode ocorrer oficialmente apenas a 20 dias da eleição.

A participação virtual de Lula afeta a disputa à esquerda e à direita. Da cadeia, o ex-presidente trabalhou para bloquear alianças e isolar Ciro Gomes (PDT), que pretendia ser uma alternativa nesse campo. No polo oposto, cada passo do petista provoca uma onda antipetista na guerra particular de Jair Bolsonaro (PSL) e Geraldo Alckmin (PSDB).

O papel de Lula na eleição será consideravelmente menor do que seu peso como candidato de fato, mas não se pode ignorar que os próximos capítulos dependem, em boa medida, de sua candidatura fantasma.


Lilia Schwarcz: Bolsonaro contou a história que quis, não aquela dos documentos

Foram transportados para as Américas 12 milhões de africanos e africanas durante todo o período do tráfico negreiro

Vira e mexe alguém volta com a teoria de que a escravidão não foi uma ideia dos ocidentais, mas sim dos próprios africanos. Nada mais covarde e perverso do que transformar a vítima em algoz. Vítimas, aliás, que sempre reagiram, e de inúmeras formas, ao cativeiro.

Na segunda-feira, dia 30, em entrevista ao programa Roda Viva, foi a vez do presidenciável Jair Bolsonaro se sair com a seguinte frase: “se for ver a história realmente, os portugueses nem pisavam na África. Foram os próprios negros que entregavam os escravos (...) Faziam o tráfico, mas não caçavam os negros. Eram entregues pelos próprios negros”.

Craque na política do fake news, Bolsonaro contou a história que quis, não aquela encontrada nos documentos. Esqueceu de explicar, por exemplo, que a escravidão já estava presente na Europa. Desde a Antiguidade, o continente conheceu diversas formas de escravidão, mas menos intensas ou disseminadas do que aquela que surgiria a partir do século 16. A escravidão mercantil.

Por sinal, poucos povos deixaram de conviver com alguma forma de escravidão; a África também. No entanto, por lá, a instituição se desenvolveu paralelamente a sistemas de linhagem e de parentesco. Os escravizados não eram entendidos, pois, como “coisas” ou “propriedades”, nem tampouco considerados centrais para o funcionamento regular dessas sociedades.

Já o contato luso com a África Negra teve longa história, antecedendo em até meio século a descoberta do Brasil. Em 1455, Zurara, em sua “Crônica de Guiné”, descrevia atividades portuguesas na foz do rio Senegal.

Nessa época, o interesse luso estava voltado mais para o ouro, sendo que escravos, marfim e pimenta eram motivações secundárias. Foi com a introdução da cultura do açúcar que a história girou: os escravizados tornaram-se fundamentais na produção agrícola, o negócio tornou-se muito lucrativo e o interesse se voltou da pimenta para o tráfico de viventes com os portugueses entrando continente africano adentro.

Enquanto isso, já em meados do 16, Lisboa era a cidade europeia que mais possuía escravos africanos: contava com cerca de 100 mil habitantes, dos quais 10 mil eram cativos.

Em Cabo Verde, São Tomé e Madeira desenvolveram-se ao longo do 16 e do 17 verdadeiras sociedades luso-africanas, condicionadas pelo comércio transatlântico. Em 1582, cerca de 16 mil pessoas viviam nessas ilhas, sendo 87% formada por escravizados.

Por volta de 1520, portugueses mantinham número razoável de feitorias na África, controlando caravanas de cativos que vinham do baixo rio Zaire e do Benin. Dirigiam-se para São Tomé, e, a partir de 1570, voltaram-se para o rico mercado do Brasil.

A chegada dos portugueses à costa atlântica subsaariana no começo do 16 alteraria de forma radical as modalidades de comércio, tanto no que se refere à escala, como ao recurso crescente à violência. A nova conquista modificaria também modalidades internas de guerra e de redes de relacionamento no interior de estados africanos. Tudo com a interferência direta dos lusos, que “pisaram” firme no continente.

Com a cultura do açúcar, dentre os principais produtos do Império português, a situação se modificaria ainda mais, sobretudo a partir das relações estáveis com os congoleses. Naquele local, os portugueses destacaram-se por sua forte e estável presença, atuando no local como clérigos, traficantes e soldados.

Também a quantidade de almas humanas traficadas pelos portugueses cresceu e muito: enquanto na primeira metade do século 16 o volume de africanos entrados no Brasil não passava de algumas centenas anuais, registram-se 3.000 importações por ano já na década de 1580.

Teve papel fundamental a conquista de uma nova feitoria em Luanda, a qual, a partir de 1576, se transformaria em posto ativo nesse tipo de comércio. Por dois séculos os portugueses manteriam seus “pés” bem firmes em Luanda, na região do rio Cuanza e Benguela.

O certo é que, a essa altura, os lusitanos estavam bem familiarizados com as populações africanas que escravizavam. Além do mais, com o incremento do comércio do ouro e do marfim no Oeste da África, e o crescimento da atuação econômica portuguesa na Ásia, as relações foram ficando ainda mais corriqueiras.

Enfim, a eficácia crescente dos traficantes portugueses do Atlântico na oferta de mão de obra, na regularidade no suprimento de cativos vindos daquele continente e o declínio dos preços fizeram com que, para a Europa do século 16, os africanos se transformassem em sinônimo de mão de obra escrava e os portugueses em grandes especialistas na arte de traficar dentro e fora da África.

Foram transportados para as Américas 12 milhões de africanos e africanas durante todo o período do tráfico negreiro, sendo que, desse total, 4,9 milhões tiveram como destino final o Brasil.

O tráfico era um negócio complexo e dominado pelos portugueses, que acabaram promovendo inúmeras guerras e alterando a estrutura interna dos estados africanos com graves consequências atuais. Os lusos “pisaram” muito no território africano, e não há como tirar a responsabilidade de quem sabe que a tem.
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Professora titular do Departamento de Antropologia da USP e global scholar na Universidade de Princeton (EUA), é curadora-adjunta para histórias e narrativas do Masp e organizadora, com Flavio Gomes, de “Dicionário da Escravidão e da Liberdade: 50 Textos Críticos (Companhia das Letras, 2018)


Marcos Troyjo: Candidatos ao Planalto precisam saber o que querem da China

A pouco mais de dois meses do primeiro turno, asiáticos são solenemente ignorados

No período 2015-2016, quando republicanos e democratas realizavam preparativos para definir quem seriam seus candidatos à Casa Branca, assisti nos EUA a alguns debates interessantes sobre política externa.

Assessores dos dois partidos eram as estrelas de discussões sobre qual seria a “China Policy” (política para a China), caso seu “candidato a candidato” fosse o escolhido à corrida presidencial.

Essa centralidade que a China ocupou na mais recente disputa presidencial americana está longe de ser um fenômeno observado apenas nos EUA. Claro que Washington tem importantes e multidimensionais interesses quando o assunto é Pequim, mas muitos outros países trataram a China como item primordial de atenção em eleições presidenciais.

Na caminhada que levou Mauricio Macri à Casa Rosada, a questão China foi item recorrente, sobretudo porque no final do governo Cristina Kirchner os argentinos assinaram um acordo que oferecia aos chineses prioridade no investimento em áreas estratégicas como petróleo e gás, logística e transportes.

Quando Emmanuel Macron, ainda candidato ao Eliseu, defendia a modernização das regras trabalhistas na França, o fazia como forma inescapável de combater a hipercompetitividade chinesa.

Nas recentes eleições mexicanas, o tema de um eventual desmantelamento do Nafta (Acordo de Livre Comércio da América do Norte) sempre foi acompanhado do fantasma da transferência de hubs industriais para a China, caso o México venha a perder seu diferencial de pertencer ao bloco juntamente com EUA e Canadá.

Foi nesse contexto que há alguns dias conversei com um grande grupo de pesquisadores chineses prestes a embarcar para o Brasil com o objetivo de estudar como seu país está sendo abordado no debate presidencial. Para a surpresa deles, a apenas pouco mais de dois meses da realização do primeiro turno, o assunto “China” é solenemente ignorado.

Num primeiro levantamento que realizaram, excetuando-se a referência ao apetite pela compra de nióbio ou ao interesse mais amplo pela aquisição de terras no Brasil, os pesquisadores chineses concluíram que nenhum dos principais candidatos ao Planalto até agora tem qualquer noção de como abordar a China.

Em uma frase: os presidenciáveis brasileiros não contam sequer com os rudimentos do que seria sua “China Policy”. Ora, por que o assunto China, ao contrário da experiência de pleitos recentes em outras democracias ocidentais, ainda é uma grande ausente nas eleições brasileiras?

Parte da explicação vem da própria configuração “ensimesmada”’ da economia brasileira. Como resultado do protecionismo comercial brasileiro e de seu tradicional foco de desenvolvimento no mercado interno, não ocorreu uma migração tão forte de empresas brasileiras para operar a partir do território chinês.

No caso de companhias americanas ou europeias, essa transferência de atividades manufatureiras para a China, deixando algumas cidades e regiões para rás na condição de “desertos industriais”, foi muito mais intensa. A desindustrialização —e seus impactos sociais— como efeito colateral da ascensão chinesa é tema obrigatório em qualquer eleição em países da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, que congrega nações de elevada renda per capita).

Para o Brasil, tal isolamento não foi necessariamente bom. Desperdiçamos oportunidades de internacionalização empresarial, ganhos de eficiência e custo, plataformas de exportação para terceiros mercados a partir de uma base na China e, por conseguinte, continuamos ainda bastante afastados das grandes cadeias globais de valor.

A indiferença dos postulantes à Presidência no Brasil quanto ao tema China simplesmente não pode continuar. Embora, a bem da verdade, nenhum presidenciável até agora tenha dito quais são suas ideias para relações com EUA ou União Europeia.

Não se trata, portanto, de tão somente ignorar a China, mas perceber quão incipiente é o foco dado pela política brasileira aos grandes temas internacionais.

Elaborar um mínimo de estratégia para lidar com o gigante asiático é algo imprescindível. E as razões para tal atenção de forma estruturada são óbvias. A China é o principal destino de nossas exportações e, no conjunto, nosso principal parceiro comercial.

De janeiro a junho de 2018, as exportações brasileiras à China totalizaram quase US$ 30 bilhões, mais do que o dobro de nossas vendas para os EUA. Trata-se de uma remessa importante em termos de volume, mas baixa no que diz respeito à agregação de valor. Continuamos essencialmente a vender as commodities soja e minério de ferro.

De 2015 a 2017, bancos chineses de fomento (como o Banco de Desenvolvimento da China, o maior do mundo) realizaram US$ 42 bilhões em empréstimos para o Brasil —e a China move-se rapidamente para ocupar as primeiras posições como fonte de IEDs (investimentos estrangeiros diretos) ao Brasil.

E, claro, os chineses são a ponta compradora de vigorosos processos de fusões & aquisições —de que são exemplo as transações envolvendo entidades chinesas e conhecidos nomes financeiros no Brasil como a Guide Investimentos, Rio Bravo, Banco BBM, BicBanco etc.

Além disso, a grande extroversão chinesa como agente de investimentos em infraestrutura, sua liderança em constituir uma nova família de instituições financiadoras do desenvolvimento e os planos da China para a Quarta Revolução Industrial são todas de imensa relevância para o Brasil.

A presença da China como protagonista do mundo contemporâneo oferece ao Brasil um delicado balanço. Em especial porque os chineses, sempre meticulosos, sabem muito bem o que querem de nós.

Com os candidatos à Presidência da República desatentos e desprovidos de uma “China Policy”, fica mais difícil ao Brasil afastar-se dos riscos e abraçar as oportunidades.

*Marcos Troyjo é diplomata, economista e cientista social, é diretor do BRICLab da Universidade Columbia


Samuel Pessôa: Acabou o bônus demográfico do Brasil

Resta-nos melhorar a educação e estimular atividades que elevem a produtividade

O profissional de economia em geral é portador de más notícias. É o caso da coluna deste domingo (29).

O IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) divulgou na semana passada a atualização das estatísticas demográficas do Brasil. A anterior havia sido em 2013. Agradeço ao jornalista do jornal Valor Econômico Bruno Villas Bôas pela informação e pelos dados do IBGE.

A revisão alterou o momento em que o bônus demográfico acabará. De acordo com as estimativas de 2013, o bônus terminaria em 2023, e agora sabemos que ele acaba neste ano.
O bônus demográfico é o período do desenvolvimento demográfico de uma sociedade em que a taxa de crescimento da população em idade ativa (PIA), entre 20 e 64 anos, é superior à taxa de crescimento da população total (POP). Isto é, quando a taxa de crescimento da população de crianças, jovens e idosos é menor do que o crescimento da população em idade ativa.

Em 2019 será o primeiro ano, desde meados dos anos 1970, em que a taxa de crescimento da PIA será inferior à taxa de crescimento da POP.

Os demógrafos são um pouco menos pessimistas, pois consideram o bônus demográfico o período em que a razão de dependência —proporção de crianças, jovens e idosos na população— é inferior a 50%. Por esse critério, o bônus demográfico terminaria em 2041, pela série antiga, e agora terminará em 2035.

O problema é que o crescimento econômico depende da diferença das taxas de crescimento da PIA e da POP, e não da razão de dependência (ver “Demographic transition and economic miracles in emerging Asia”, de David Bloom e Jeffrey Williamson, publicado no World Bank Economic Review, 1998, volume 12, número 3). Ou seja, o crescimento depende da alteração da estrutura etária, isto é, do filme, e não da fotografia da demografia. Nossa janela demográfica fechou-se.

No período do bônus demográfico, é possível o produto per capita crescer mesmo que o produto por trabalhador, a produtividade do trabalho, não se expanda. Basta que a população que trabalha cresça mais rapidamente do que a população total.

De fato, entre 1982 e 2016 o produto per capita do Brasil cresceu 1% ao ano, enquanto a produtividade do trabalho teve uma expansão anual de apenas 0,5%.

A razão entre a PIA e a POP cresceu 0,5% ao ano no período (a PIA, portanto, cresceu mais que a POP).
A partir do próximo ano a demografia não ajudará. A única maneira de o produto per capita brasileiro aumentar será por meio da elevação da produtividade do trabalho.

Resta-nos melhorar a qualidade de nossa educação e estimular a absorção de novas tecnologias, além de buscarmos reformas institucionais que aumentem a eficiência da alocação dos fatores de produção.

Sobre a eficiência na alocação dos fatores, tudo o que não necessitamos é reeditar a política econômica intervencionista praticada entre 2006 e 2014.

Um bom guia para procuramos melhorar nossas instituições na direção correta encontra-se no estudo espetacular de Santiago Levy “Under-Rewarded Efforts: the elusive quest for prosperity in Mexico”, sobre a estagnação do México, apesar de anos com macroeconomia em ordem e da maior abertura da economia (mas sem corrigir e até agravando problemas institucionais e microeconômicos).

Agradeço a Fernando Veloso, meu colega do Ibre (Instituto Brasileiro de Economia, da FGV), por me chamar a atenção para esse estudo.

*Samuel Pessôa, pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (FGV) e sócio da consultoria Reliance. É doutor em economia pela USP.