folha de s paulo
Cristina Serra: Sobre médicos e monstros na Prevent Senior
É preciso fortalecer o SUS e aumentar os investimentos no sistema
Cristina Serra / Folha de S. Paulo
São estarrecedoras, mas não exatamente surpreendentes, as denúncias envolvendo a operadora de planos de saúde Prevent Senior. A suspeita de que há algo de podre na rede de hospitais da empresa abriu nova e necessária frente de investigação na CPI da Covid.
Entre as irregularidades, estariam a prescrição abusiva de medicamentos e tratamentos ineficazes, sem que os pacientes e seus parentes tivessem sido consultados. As ilicitudes apontadas incluem ainda ameaçar os médicos de demissão para que receitassem esses remédios e também fraude de suposta pesquisa científica, prontuários e atestados de óbito, o que resultaria em subnotificação de casos de Covid.
Tudo isso é grave, criminoso e cruel, mas se encaixa na lógica do modelo de negócio dos planos de saúde. Para capturar incautos, prometem mundos e fundos. Na prática, dificultam o acesso aos serviços, sobretudo se o paciente precisar de uma internação, um dos itens mais caros do setor.
Mal ou bem, é assim que funciona. Mais mal do que bem, tanto que os consumidores frequentemente têm que recorrer à Justiça para que muitas dessas arapucas cumpram o que já está nos contratos. Aí vem uma pandemia e o tal modelo de negócio implode porque, de uma hora para outra, milhares de clientes precisam dos leitos mais caros, em UTIs, e por muito tempo.
No caso da Prevent Senior, voltada ao público idoso, o mais afetado nos primeiros meses da pandemia, não é difícil imaginar o estrago na margem de lucro. Daí para empurrar cloroquina goela abaixo dos pacientes e vender a ilusão de que eles poderiam se tratar em casa é um pulo.
Esse caso nos faz refletir sobre médicos e monstros e nos mostra que saúde não pode ser tratada como negócio. A alternativa nós já temos. É preciso fortalecer e aumentar o investimento no Sistema Único de Saúde, o nosso SUS, porque saúde é direito humano e coletivo.
Dou umas férias aos prezados leitores. Volto em 23 de outubro.
Fonte: Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/cristina-serra/2021/09/sobre-medicos-e-monstros-na-prevent-senior.shtml
Oscar Vilhena Vieira: Legalizando a devastação ambiental
Presidente e seus auxiliares não poupam esforços para bloquear administrativamente a ação dos órgãos de monitoramento e proteção ambiental
Oscar Vilhena Vieira / Folha de S. Paulo
Como era esperado, o pronunciamento de Jair Bolsonaro na abertura da 76ª Assembleia Geral da ONU, na última terça-feira (21), foi constrangedor. Maquiou dados sobre desmatamento e queimadas, mentiu sobre a corrupção, gabou-se de um inexistente sucesso econômico, além de se auto incriminar pelo apoio ao “tratamento precoce”.
Causaram surpresa, entretanto, os elogios à legislação ambiental brasileira, que “deveria servir de exemplo para outros países”, posto que o presidente e seus auxiliares não têm poupado esforços para bloquear administrativamente a ação dos órgãos de monitoramento e proteção ambiental. Com a chegada de Arthur Lira à presidência da Câmara dos Deputados, o presidente finalmente parece ter encontrado um braço forte disposto a legalizar o que a “exemplar” legislação brasileira hoje considera ilegal.
Entre os projetos de lei com maior potencial de erosão dos direitos socioambientais destacam-se o PL 2633, que trata da regularização fundiária, e o PL 490, voltado a alterar o processo de demarcação de terras indígenas e a imposição de um marco temporal. Ambos atendem predominantemente a interesses da grilagem, do desmatamento e da mineração ilegais.
O PL 3729, por sua vez, flexibiliza o licenciamento ambiental, que é uma ferramenta indispensável a um processo sustentável de desenvolvimento, prevenindo desastres ambientais e a transferência às gerações futuras de atividades econômicas presentes. O objetivo original da proposta apresentada em 2004 era unificar a legislação, garantindo maior segurança jurídica, eficiência e agilidade ao licenciamento ambiental.
O texto aprovado pela Câmara e preste a ser analisado pelo Senado Federal vai, no entanto, na direção oposta daquilo que o Brasil precisa. Dispensou o licenciamento ambiental para diversas atividades potencialmente causadoras de degradação ambiental. Para a maioria das atividades licenciáveis, o projeto criou a Licença por Adesão e Compromisso, mecanismo meramente declaratório que, na prática, esvazia a noção de avaliação ambiental, transformando o auto licenciamento em regra e não mais exceção.
Órgãos públicos ligados à preservação ambiental e patrimonial, como o ICMBio, Funai e Iphan perdem espaço no licenciamento ambiental. Na pior tradição brasileira o projeto premia quem descumpriu a lei, isentando de responsabilidade empreendimentos que já operam sem licença ambiental válida, que deverão apenas solicitar um Licenciamento Ambiental Corretivo. Também isenta de responsabilidade instituições de financiamento, como bancos, pelos eventuais danos socioambientais causados pelos empreendimentos que apoiaram.
A OCDE, em relatório lançado em julho, apontou que a política ambiental brasileira já deixa a desejar: dos 48 requisitos legais analisados pela organização, o Brasil foi considerado como total ou parcialmente desalinhado em 29, ou seja, em 60% do total. Caso o PL 3729 seja aprovado, tal como está, o Brasil perderá ainda mais espaço na luta por investimentos e credibilidade internacional. Também testemunharemos mais desastres ambientais, desmatamento na Amazônia e violações aos direitos humanos.
Cabe ao Senado Federal evitar que mais esse ataque ao nosso sistema de proteção ambiental se consume, se não por respeito ao bem-estar das futuras gerações, ao menos pelo interesse estratégico do Brasil de se reinserir numa posição de liderança num contexto internacional cada vez mais exigente em termos ambientais e climáticos.
*Professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP.
Fonte: Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/oscarvilhenavieira/2021/09/legalizando-a-devastacao-ambiental-no-brasil.shtml
Reinaldo Azevedo: Guedes cobra que o STF o ajude a combater as oposições
Nos precatórios, ministro apela ao tribunal para que seja seu parceiro no calote a estados governados por oposicionistas
Reinaldo Azevedo / Folha de S. Paulo
Paulo Guedes pode ser tão virulento como Jair Bolsonaro. Eventualmente mais, já que os patógenos políticos e ideológicos que vão em sua mente têm um pouco mais de bibliografia. Menos, é certo, do que ele dá a entender. Não importam, como se sabe, os volumes que se leram, mas o que se reteve do que foi lido. A metáfora é óbvia: traças também devoram livros e não viram Schopenhauer.
Na fábula do infantilismo político que se tentou construir no Brasil, o ministro dito liberal conferiria uma face de eficácia e modernidade ao discurso atrasado do chefe, um reacionário delirante. O enlace desses seres ditos distintos e complementares era mera “fanfic” da direita xucra.
O ministro é o maior produtor de teses “ad hoc” do país. Em questão de horas, aquele que se diz pronto para uma interlocução madura entre os Poderes pode partir para a vulgaridade conspiratória e tratar negócios de Estado com a sofisticação de um bêbado inflamado de boteco.
Nem Bolsonaro nem ele próprio estão preparados para seus respectivos papéis. Um foi eleito nas circunstâncias conhecidas —e não vou sintetizá-las agora—, e o outro foi oferecido como âncora de confiabilidade. No desenho da prancheta, Guedes blindaria a economia das ignorâncias do supremo mandatário.
Durante algum tempo, a fantasia parecia eficiente a depender do índice para o qual se olhasse. Mas eis-nos aqui: com a inflação nas alturas e o crescimento do ano que vem caminhando para o buraco. Guedes, claro!, tem os culpados —entre estes, estariam os “negacionistas” do que ele considera sucessos inéditos de sua gestão. Parece-me desnecessário esfregar os números na cara do ministro.
Interessa-me a questão política. Nesta quarta-feira (15), num seminário em companhia de Luiz Fux, presidente do STF (Supremo Tribunal Federal), o titular da Economia fez um apelo para que o tribunal o ajude na questão dos precatórios.
Se o governo tiver de pagar os R$ 89,1 bilhões que meteu no Orçamento de mentirinha, não sobram recursos para turbinar o rebatizado Bolsa Família, entre outras dificuldades. Mais: estimaram-se para este ano um INPC de 6,2% e um IPCA de 5,9%. A inflação está na casa dos 9%. Um erro de análise de 50%!
No “Auxílio Brasil” está o fiapo da esperança (re)eleitoral de Bolsonaro. Da “retomada em V”, vai restar, no ano que vem, um traço, com possibilidade razoável de recessão. Culpa dos “negacionistas” do seu sucesso! Fizeram disparar os preços dos alimentos, dos combustíveis e da energia, sem contar a pressão cambial, que vira inflação. Aí o Banco Central, agora “independente”, eleva juros, o que deprime o crescimento. Negacionistas!
A PEC dos precatórios é, por óbvio, um calote. Existe o risco objetivo de que o Supremo a declare inconstitucional se aprovada pelo Congresso. Assim, em seminário para pessoas de fino trato, Guedes dirigiu a Fux um “pedido desesperado de socorro”. Simulava o padrão de um homem do diálogo. Ali, não era o caso de excitar e incitar a turba. O tom mudaria radicalmente, no entanto, numa entrevista poucas horas depois.
Aí, falando à militância, mandou bala: “Curiosamente, [os precatórios] caem sobre nosso governo e [vão] para dois ou três estados que são oposicionistas. É evidente que não vou achar que é a politização da Justiça. Não vou achar. Não posso acreditar nisso, mas eu tenho que pedir ajuda ao Supremo”.
Ele se referia a Ceará, Bahia e Pernambuco, que não são formados por “oposicionistas”, mas por cearenses, baianos e pernambucanos. Bolsonaro não anda muito popular por lá e em lugar nenhum. O truque retórico é primário, vulgar. Obviamente, está sugerindo, ainda que o negue de modo irônico, a existência de uma ação concertada da Justiça em benefício das oposições.
Logo, o apelo de Guedes a Fux se esclarece: está pedindo, de forma “desesperada”, que o Supremo seja parceiro no calote a estados governados por oposicionistas. A lógica embutida na formulação delinquente é dele, não minha.
O STF, assim, terá de decidir se colabora com o governo, mas não com uma decisão pautada pela razoabilidade e pela economicidade. Trata-se de uma empreitada contra as oposições —eleitoreira, portanto. As palavras fazem sentido.
Fonte: Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/reinaldoazevedo/2021/09/guedes-cobra-que-o-stf-o-ajude-a-combater-as-oposicoes.shtml
FHC diz que Bolsonaro tem arroubos que não condizem com democracia
Ex-presidentes Fernando Henrique, Temer e Sarney pediram harmonia entre poderes e diálogo
Ivan Martínez-Vargas / O Globo
SÃO PAULO - O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso afirmou nesta quinta-feira que o presidente Jair Bolsonaro tem comportamentos "que não são condizentes com o futuro democrático". Em evento virtual com a participação dos também ex-presidentes José Sarney e Michel Temer, FH defendeu o diálogo entre os partidos e a defesa da democracia.
Os ex-mandatários evitaram, contudo, fazer críticas nominais a Bolsonaro e não falaram sobre um eventual impeachment do presidente.
— É chegada a hora de um toque de alerta. O significado do nosso encontro aqui transcende o fato da reafirmação da democracia neste momento, em que estamos vendo, não dá pra negar o fato, de que o presidente tem arroubos que não são condizentes com o futuro democrático. Ele não vai conseguir, nem creio que ele tenha o objetivo de consegui-lo, mas cabe a nós (...) reavivar na memória dos brasileiros a necessidade de estarmos juntos em defesa da liberdade e da democracia — disse Fernando Henrique Cardoso, sem citar nominalmente Bolsonaro.
Para o ex-presidente tucano, o clima é de "relativa tranquilidade, apesar de tudo". Cardoso reafirmou declarações anteriores de que não acredita que o regime democrático esteja em perigo, apesar da retórica de Bolsonaro contra as instituições.
— Devemos reafirmar nossa crença democrática, mas creio que isso (a democracia) não está em perigo neste momento. (..) O povo gosta de votar. Dia de eleição no Brasil é dia de festa. (...) Mesmo que um presidente não queira, ele vai passar, todos nós passamos — ressaltou FH.
Em suas falas, o ex-presidente Michel Temer não mencionou a recente carta que escreveu e Bolsonaro assinou, escrita para distensionar a relação do presidente com o Supremo Tribunal Federal. O documento foi divulgado dois dias após declarações golpistas de Bolsionaro feitas no 7 de setembro.
— Temos de estabelecer uma harmonia, um diálogo entre os poderes. (...) Se todos somos frutos da soberania popular, prevista na Constituição, quando há desarmonia (entre os poderes), há inconstitucionalidade — disse.
Temer criticou ainda a ideia de que ministros do STF, por exemplo, não possam conversar com o presidente da República.
— Eu me recordo (...) que muitas vezes ministros do STF iam falar comigo no sábado ou domingo e a imprensa noticiava (como se fosse) um gesto criminoso (...). É uma cultura que enseja essa divergência entre os próprios poderes.
Já José Sarney, que governou o país entre 1985 e 1990, fez críticas ao que chamou de judicialização da política, em referência à profusão de ações de inconstitucionalidade propostas por parlamentares derrotados em votações no Congresso.
— Passou a ser a Justiça uma terceira via, isso decorre de que no Brasil não temos tradição de partidos políticos — disse.
Sarney defendeu a adoção do parlamentarismo e o fim do voto proporcional uninominal (em que o eleitor vota diretamente no candidato a parlamentar que deseja eleger), que segundo ele provocam instabilidade política.
O evento foi organizado por fundações e institutos ligados aos partidos MDB, PSDB, DEM e Cidadania, e teve a participação também dos presidentes das siglas e do ex-ministro da Defesa Nelson Jobim.
Também discursaram o deputado federal Baleia Rossi, presidente do MDB; Bruno Araújo, presidente do PSDB; ACM Neto, presidente do DEM; e Roberto Freire, presidente do Cidadania. Desses, apenas Freire disse considerar o apoio ao pedido de impeachment do presidente.
Fonte: O Globo
https://oglobo.globo.com/politica/fh-diz-que-bolsonaro-tem-arroubos-que-nao-condizem-com-democracia-25199305
Bruno Boghossian: Ameaça de Bolsonaro ao STF já representa manobra autoritária
Ao indicar atropelo a decisões do tribunal, presidente prepara terreno para golpe final em 2022
Bruno Boghossian / Folha de S. Paulo
Jair Bolsonaro conseguiu o que queria. Com a articulação de empresários do agronegócio, líderes religiosos e políticos aliados, o presidente levou uma quantidade razoável de gente para as ruas de Brasília, São Paulo e outras cidades. Não houve tanque na praça dos Três Poderes para fechar o STF, mas o capitão já lançou uma manobra autoritária.
Bolsonaro nunca demonstrou interesse em permanecer no campo da democracia, e o movimento feito pelo presidente no 7 de setembro expôs de maneira aberta o projeto para expandir seus poderes. Nos discursos para os manifestantes, ele disse que ministros do Supremo deveriam mudar de comportamento, "ou esse Poder pode sofrer aquilo que nós não queremos".
A ameaça explícita tem dois objetivos imediatos: intimidar o tribunal e abrir caminho para que Bolsonaro descumpra determinações judiciais. "Ou entram nos eixos, ou serão simplesmente ignoradas da vida pública", disse o presidente, em vídeo divulgado ainda pela manhã.
O movimento é golpista porque um presidente não tem o poder de definir os limites que ele deve ou não respeitar. É autoritário porque vem acompanhado de sinais nada velados de uso da violência, com acenos às Forças Armadas, incentivo ao envolvimento da polícia e incitação de militantes que falam claramente em invadir o Congresso e o STF.
Os primeiros alvos de Bolsonaro são as decisões do Supremo que incomodam sua família e seu grupo político, como a prisão de aliados e as investigações sobre ameaças ao processo eleitoral. Em 2022, essa mesma plataforma tende a ser explorada para ignorar decisões de tribunais superiores durante a campanha e desrespeitar o resultado da urna.
Essas investidas também ajudam Bolsonaro a reaglutinar parcelas de uma base de apoio que esmoreceu ao longo do governo. Até aqui, parece improvável que a expansão desse núcleo seja suficiente para garantir uma vitória no voto, mas pode ser forte o bastante para dar sobrevida a seu plano de melar as eleições.
Fonte: Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/bruno-boghossian/2021/09/ameaca-de-bolsonaro-ao-stf-ja-representa-manobra-autoritaria.shtml
Hélio Schwartsman: É preciso agir contra os ataques de Bolsonaro
Num país mais decente, Bolsonaro já teria sofrido impeachment há tempos
Hélio Schwartsman / Folha de S. Paulo
O tão temido 7 de Setembro de Bolsonaro não produziu mais do que discursos delirantes e incidentes isolados, como era mais ou menos esperado. O problema é que a coisa não acabou. O capitão reformado segue à frente do Executivo e continuará a investir contra os outros Poderes. Nesse contexto, o Dia da Pátria foi uma escalada, precipitada pelo desespero de quem vê suas chances de reeleição minguarem, mas ainda assim uma escalada. Devemos esperar mais ataques à democracia.
Num país mais decente, Bolsonaro já teria sofrido impeachment há tempos. Ao nem sequer abrir um processo para avaliar se o presidente comete crimes de responsabilidade, a Câmara dos Deputados normaliza suas atitudes antidemocráticas. Felizmente, a resistência ao golpismo presidencial não está limitada ao Parlamento. A cúpula do Judiciário, alvo dos principais ataques de Bolsonaro, sentiu na pele a pressão e resolveu reagir.
A capacidade de resposta do STF e das cortes superiores, porém, é limitada, porque a Constituição blinda o presidente contra ações penais. Elas só podem ser iniciadas com o aval do procurador-geral da República e de 2/3 dos deputados. Mas é possível tentar frear o presidente por outras vias. O TSE já tem os elementos para considerá-lo inelegível em 2022. Também é possível encarcerar os aliados mais exaltados do capitão reformado e até algum dos filhos. No limite, o STF poderia determinar medidas cautelares contra um presidente que comete crimes inafiançáveis e imprescritíveis descritos na Constituição.
Esses são remédios de emergência que talvez se façam necessários. A resposta correta, contudo, como venho insistindo aqui há mais de um ano, teria sido o impeachment. Um observador benigno pode até achar que a população foi enganada pela campanha mentirosa de Bolsonaro quando o elegeu. Mas não há desculpa para a sociedade que tolera ver ataques constantes à democracia sem tomar uma atitude.
Fonte: Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/helioschwartsman/2021/09/e-preciso-agir-contra-os-ataques-de-bolsonaro.shtml
Ruas foram espuma, projeto de golpe continua, elite ainda é conivente com Bolsonaro
Não houve putsch das falanges bolsonaristas, mas mais um dia de progresso do golpe
Vinicius Torres Freire / Folha de S. Paulo
No 7 de Setembro, Jair Bolsonaro cometeu mais alguns crimes de responsabilidade, motivo de processo de impeachment, entre outros que podem se tornar objeto de inquérito e condenação no STF. Na noite desta terça-feira (7) lúgubre, uns senadores haviam decido ir ao Supremo pedir a investigação por meio de uma “notícia-crime”. Os ministros, por sua vez, por ora ainda discutiam a elaboração de uma “mensagem dura” (hum...), apesar de Bolsonaro ter chamado alguns deles de “canalhas” e de dizer, aliás outra vez, que pode ou não obedecer a decisões do tribunal maior.
Vai ter consequência? Uns governadores, uns gatos pingados do PSDB e um ou outro partido centróide passaram a sussurrar a palavra “impeachment”. Um tucano manco, aliás meio bolsonarista, umas andorinhas depenadas e um monte de galinhas gordas de emendas não fazem um verão neste tenebroso inverno de Bolsonaro. As elites precisam tomar vergonha na cara (...), pois o tirano não vai parar a não ser que seja confrontado objetivamente. Se não o fazem, estão a dizer, na prática, que essa alternativa ou qualquer outra são piores do que Bolsonaro. Em geral, o mundo político se ocupa apenas e mal e mal de eleição, sem que ao menos exista oposição organizada, menos ainda da “terceira via”.
Que mais aconteceu em mais um dia de golpeamento da República e do projeto dos Bolsonaro de fugir da polícia? A espuma das ruas.
Sim, Bolsonaro até que juntou muita gente em São Paulo, cerca de 125 mil pessoas na Paulista, na conta razoável da Polícia Militar (este jornalista esteve lá), o equivalente a 1% da população da cidade. Sim, poderia ter acontecido algo de muito mais grave, mortes, depredação das sedes dos Poderes etc. No essencial, foi o de sempre.
Grosso modo, nas ruas houve a espuma de aglomerações covidárias em São Paulo e uns arreganhos de falangistas mais organizados em Brasília, financiados pelo agro ogro e por outros empresários bolsonaristas. No entanto, o Domingo no Parque autoritário paulista foi uma reunião meio cansada e não muito sensacional de gente convertida, não de batalhões fascistas prontos para a marcha (ainda reclusos em certos quartéis, clubes de tiro e milícias).
Bolsonaro falou para o “público interno” e não tratou de assunto real do país, nem para fazer demagogia: fome, inflação, falta d’água e luz, de emprego. Em Brasília, disse ao público que chamaria o “Conselho da República”, a quem mostraria fotos da sua força nas ruas. Era uma bravata para a galera e uma ameaça avacalhada e inviável de decretar um estado de sítio ou algo assim.
A espuma fez borbulha em mais um dia de trabalho do bolsonarismo: a normalização do golpe e a tentativa de espalhar medo, de intimidação física, um tanto frustrada. O problema está aí: Bolsonaro continua a tocar o seu projeto sem que seja impedido de maneira decisiva, um sucesso relativo. Normalizou a discussão de golpe. Sujeitou o país à tutela militar: gente da política e dos Poderes vai até os quarteis perguntar se vai haver golpe.
Na prática, conseguiu fazer com que a maior parte da elite política e econômica aceitasse seu programa de destruição do “sistema”, elite que apenas se moveu diante da ameaça explícita e reiterada do golpe de Estado. Até agora, a degradação selvagem do país havia sido tolerada: saúde, educação, desumanidade, preconceito, cafajestagem, “rachadinha”, administração comezinha do governo, desprezo internacional, em parte e por alguns justificada pelos 30 dinheiros de meia dúzia de “reformas”, muitas delas porcas.
Fonte: Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/viniciustorres/2021/09/ruas-foram-espuma-projeto-de-golpe-continua-elite-ainda-e-conivente-com-bolsonaro.shtml
As ameaças de violência no 7 de Setembro e depois são o bolsonarismo em ação
Bolsonaro tem trincheiras bem cavadas, ocupadas por setores sociais animados por um projeto reacionário de longo alcance
Vinicius Torres Freire / Folha de S. Paulo
Suponha-se que no 7 de Setembro bolsonarista não aconteçam quebra-quebras, mortes, quarteladas ou motins. Admita-se que uma nova promessa golpista de Jair Bolsonaro seja tratada mais uma vez com covardia conivente. Para por aí?
Provavelmente, virá mais do mesmo, a mistura de golpismo tateante com o programa reacionário da Grande Involução. Bolsonaro não é um raio em dia de céu azul.
Parece que a extrema direita vai juntar gente bastante para incutir em parte do país o receio de que pode promover baderna subversiva nas ruas. Bolsonaro terá sido então capaz também de fazer propaganda para reanimar o rebanho.
Parece não ser o suficiente para um ataque frontal, decisivo, contra a democracia, mesmo degradada. Mas ao menos Bolsonaro mostrará capacidade de ao menos manter sua guerra de posição, uma tentativa improvável, tosca e avacalhada, mas perigosa, de conseguir hegemonia, como se fora um Gramsci influencer em molho de TV mundo cão, para citar o comunista que é anátema para o semiletrado bozismo.
Bolsonaro tem trincheiras bem cavadas, ocupadas por setores sociais animados por um projeto reacionário de longo alcance. Quanto às escaramuças, à luta mais cotidiana na Justiça, na economia ou no Congresso, Bolsonaro ainda tem meios de evitar derrotas maiores ou de empatar os jogos.
A esquerda ingênua, abilolada ou apenas ignorante diz que houve “apagão” na economia, quando há uma recuperação, de fato socialmente perversa e menos do que medíocre em 22, mas que pode dar pontos a Bolsonaro, assim como favores do Congresso podem ajudá-lo a comprar votos com planos sociais demagógicos. A Justiça apenas ameaça o presidente com processos letais, jamais concluídos, contra ele ou a família, acusada de ser uma quadrilha sórdida.
Bolsonaro ainda tem grande apoio empresarial, em especial de “homens novos” (ou novos-ricos). Empresários “críticos” não querem bater de frente com o governo e estão divididos; muitos toleraram o programa bolsonarista quase inteiro, reagindo enfim apenas à ameaça explícita de ditadura.
Os donos das grandes igrejas evangélicas estão quase todos com ele, assim como o agro ogro, os militares dinheiristas e adeptos do porão, as polícias quase milicianas, os revoltados com a diversidade humana etc. Mudanças socioeconômicas e demográficas, entre outras, engordaram muitos desses grupos, que agora querem poder político real e prestígio.
Esses grupos apoiam o projeto reacionário que Bolsonaro aproveitou para encarnar em 2018, a Grande Involução. No “tipo ideal”, são adeptos de uma espécie de guerra de todos contra todos (que chamam de “liberdade”), supervisionada por um déspota. São a favor de armas; Bolsonaro afirma que é adepto da guerra civil, da tortura e do estupro como instrumento político.
São avessos a regulações estatais civilizatórias, das trabalhistas às ambientais, passando pelas regras de trânsito. Acham, muitos com bons motivos, que o Estado é apenas estorvo e espoliação, sentimento que, no entanto, se traduz apenas em empreendedorismo selvagem, desejo de Justiça com as próprias mãos e o desprezo pelo debate racional na esfera pública (e pela ciência, pela universidade etc.). Alguns tantos são machistas e racistas.
Outros são pobres ressentidos pela frustração das promessas de uma breve e precária democracia social. O colapso econômico e estatal multiplicou um lumpesinato sem remédio, um precariado autoritário e uma população periférica que vive entre a cruz evangélica e a espada policial-miliciana.
O bolsonarismo é uma ilusão ainda com grande futuro.
Fonte: Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/viniciustorres/2021/09/as-ameacas-de-violencia-no-7-de-setembro-e-depois-sao-o-bolsonarismo-em-acao.shtml
Mathias Alencastro: 7 de Setembro será decisivo para o futuro da extrema direita
Manifestação de bolsonaristas na próxima terça está intimamente ligada à invasão do Capitólio dos EUA em 6 de janeiro
Mathias Alencastro/ Folha de S. Paulo
Todos concordam que a história da manifestação de setores extremistas no 7 de Setembro está intimamente ligada à invasão do Capitólio dos Estados Unidos no dia 6 de janeiro, no apagar das luzes da Presidência de Donald Trump. Bolsonaristas conseguiram replicar na perfeição os dois primeiros atos da trama trumpista: a polêmica do voto impresso jogou dúvida sobre a fiabilidade do sistema eleitoral, e os inúmeros ataques às instituições radicalizaram as manifestações.
O terceiro ato é o mais imprevisível. Bolsonaristas descrevem o assalto ao Capitólio como uma insurreição popular que almejava a tomada de poder em Washington —prova disso, o governo brasileiro foi um dos últimos a reconhecer a vitória de Biden. Uma leitura dos acontecimentos desmentida pelas autoridades americanas. Segundo o último relatório do FBI, publicado uma semana atrás e submetido à comissão de inquérito parlamentar do Congresso, apenas 40 dos 600 delinquentes indiciados pelos mais de 1.000 atos criminosos se envolveram em algum nível de planejamento antes do evento. Os envolvidos não pretendiam dar um golpe. Mas a violência fundadora dos seus atos assegurou a Donald Trump o momento catártico indispensável para perpetuar seu movimento além do mandato de quatro anos marcado por dois impeachments e centenas de milhares de mortes evitáveis na pandemia, sem contar as cinco vítimas no ataque ao Capitólio.
E deu certo. Mais de um ano depois, todo potencial candidato às prévias republicanas de 2024 precisa se ajoelhar publicamente diante do ex-presidente. Para o desespero dos moderados, o episódio do Capitólio tornou a radicalização do partido irreversível. Mas a aura de Trump não é sinônimo de poder eterno para ele e a sua família. Na ausência de uma alternativa política, o trumpismo é perpetuado por fanáticos e pragmáticos, aliados e traidores. O seu legado, no entanto, é disputado por lideranças como o governador da Flórida e disseminador profissional da variante delta, Ronald DeSantis, e a ex-embaixadora dos Estados Unidos na ONU Nikki Haley. Para essa nova geração, Trump está longe de ser uma eminência parda. Ele é uma referência simbólica e, no melhor dos casos, uma plataforma de campanha. A partir do Capitólio, o trumpismo deixou de ser um projeto individual e passou a funcionar como um movimento competitivo e heterogêneo.
Essa constatação nos obriga a olhar para outra dimensão do 7 de Setembro além da dicotomia entre golpe e eleição: a disputa pelo poder entre os extremistas. Sem um partido ou outro tipo de estrutura política organizada além da folclórica Cpac da América Latina, reunida neste fim de semana, o capital eleitoral de Bolsonaro pode ser rapidamente pulverizado entre diferentes herdeiros autoproclamados a nível estadual e nacional. Isso ajuda a entender por que a manifestação de 7 de Setembro tem suscitado grande interesse entre os pretendentes a guardiões do bolsonarismo pós-2022. Os acontecimentos desta semana serão sem dúvida importantes para o futuro da democracia. Mas eles prometem ser ainda mais decisivos para o futuro da nova extrema direita brasileira.
*Pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento e doutor em ciência política pela Universidade de Oxford (Inglaterra).
Fonte: Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/mathias-alencastro/2021/09/7-de-setembro-sera-decisivo-para-o-futuro-da-extrema-direita.shtml
Ana Cristina Rosa: Os gritos do Sete de Setembro
Este já é um dos 7 de Setembro mais conturbados da história
Ana Cristina Rosa / Folha de S. Paulo
Independentemente do que aconteça, este já é um dos 7 de Setembro mais conturbados da história. Houve momentos de tensão relacionados à data anteriormente, mas, segundo historiadores, geralmente tratava-se de episódios isolados, como na província da Bahia em 1839.
Na ocasião, um artigo publicado no jornal Gazeta da Bahia contendo críticas à Independência e afirmando que o país deveria ter continuado unido a Portugal foi censurado com base na legislação vigente. O ato causou tumulto e constrangimento num momento em que a Bahia recém havia saído da Sabinada, revolta contra o Império ocorrida entre 1837 e 1838.
Agora, pela primeira vez em quase 200 anos, a tensão política é generalizada. Há uma espécie de preocupação nacional pelo constante clima de ameaça à estabilidade institucional. Milhares de integrantes dos povos originários passaram as últimas semanas acampados em Brasília para defender seus territórios da tese do marco temporal.
O sistema eleitoral brasileiro vem sendo colocado sob suspeição sem que haja fundamentos. E o sistema de freios e contrapesos é colocado à prova quase o tempo todo. Para piorar, a população nunca esteve tão armada --literal e figurativamente.
Além dos percalços ainda causados pela pandemia, que há mais de um ano vem alterando e ceifando vidas, um clima de incerteza, tensão e medo paira no céu da República Federativa do Brasil neste Dia da Independência.
No lugar das habituais paradas militares e dos desfiles escolares ao som da cadência de bandas marciais, a previsão é que avenidas sejam tomadas por manifestantes dispostos a dar o que estão chamando de "último grito", em apoio ao governo federal e em oposição ao Grito dos Excluídos, tradicional manifestação popular, que neste ano reforça a ausência de direitos básicos numa pátria onde muitos estão passando fome.
Em 2021, mais do que nunca, o Dia da Independência do Brasil está cercado de incertezas quanto ao futuro.
Fonte: Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/ana-cristina-rosa/2021/09/os-gritos-do-sete-de-setembro.shtml
Igor Gielow: Exército pune sargento por live com deputado bolsonarista
Militar reclamou de salário em conversa com deputado; oficiais temem efeitos do episódio
Igor Gielow /Folha de S. Paulo
O Exército Brasileiro decidiu punir o sargento que havia se queixado dos salários na Força em uma live promovida pelo ex-líder do governo Jair Bolsonaro na Câmara, Major Vítor Hugo (PSL-GO).
É o primeiro episódio do gênero desde que o Exército não puniu o general Eduardo Pazuello, ex-ministro da Saúde hoje acomodado num cargo no Palácio do Planalto, por ter participado de um ato político de apoio a Bolsonaro em 23 de maio.
A repercussão da medida, que o Exército apenas confirmou ter ocorrido sem especificar data ou natureza da punição, é vista por oficiais como um abacaxi a ser descascado.
A Força estava num impasse: se não punisse o sargento por ter transgredido o Regimento Disciplinar do Exército, abriria de vez o precedente inaugurado pela isenção de Pazuello.
Por outro lado, ao agir contra um militar de patente inferior, corria o risco de ver uma insatisfação ainda maior entre os praças da corporação, especialmente pela natureza da queixa do sargento.
Ao fim, valeu a tentativa de retomar o controle disciplinar após Bolsonaro ter obrigado o comandante Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira, que assumiu o cargo em abril, a perdoar Pazuello. Generais costumam dizer que a situação era inusual, já que o ex-ministro é da ativa e teria obedecido a uma convocação do presidente.
As imagens festivas dos dois num palanque no Rio, contudo, depõem contra essa visão edulcorada do ocorrido. Pazuello foi um soldado fiel do bolsonarismo na sua gestão, dificultando a aquisição de vacinas, sendo forçado a rejeitar a um certo ponto a Coronavac patrocinada pelo rival de Bolsonaro João Doria (PSDB-SP).
Sua gestão é avaliada de forma universal, ou quase dado que há bolsonaristas por aí, como desastrosa. Para piorar, suspeitas de corrupção envolvendo militares da pasta e de fora dela no seu tempo de ministro estão sob apuração da CPI da Covid.
No dia 15 de maio, Luan Ferreira de Freitas Rocha entrou na live do Instagram do deputado Vítor Hugo. Com fala pausada e ponderada, questionou o aumento do tempo de permanência de terceiros-sargentos como ele no cargo, previsto na reforma da previdência militar aprovada em 2019.
Pelo texto, ele teria de ficar mais cinco anos na posição. "Dez anos [na mesma função] é pesado", disse, no que Vítor Hugo concordou.
Sua sugestão seria a criação de mais uma patente intermediária, visando reduzir os tempos de serviço em cada nível hierárquico.
Rocha serve na 15ª Brigada de Infantaria Mecanizada, em Cascavel (PR). A Folha não o localizou para entender que punição ele levou, já que o Exército não a detalhou: de uma advertência verbal a 30 dias de cadeia, tudo seria aplicável a seu caso.
O caso elevou os temores, expressos por políticos e ex-ministros da Defesa, de contaminação da tropa com o bolsonarismo. O atual presidente chegou a capitão do Exército e foi punido, com cadeia, por reclamar de salários no fim dos anos 1980.
Considerado indisciplinado pelos mesmos generais que depois entraram em seu governo, ele também sofreu um processo por um suposto complô para chamar a atenção à sua causa com atentados a bomba —foi absolvido, mas saiu logo depois do Exército e iniciou sua carreira política.
Como vereador e, depois, deputado, buscou defender pautas salariais de PMs e de militares em geral, com um viés sindicalista que era reprovado nos comandos.
Com a proximidade do 7 de Setembro e as conclamações golpistas de Bolsonaro, que quer ver fora do cargo dois ministros do Supremo Tribunal Federal, a punição ao sargento vem como uma advertência acerca da disposição do Exército.
O comandante Paulo Sérgio é, entre os três que lideram as Forças, o mais distante do bolsonarismo. Com o poder de fogo, literal e virtual, do Exército, quaisquer ideias golpistas envolvendo fardados no Brasil precisam passar pela corporação.
Há duas semanas, o general já havia feito um discurso rechaçando ideias fora da Constituição, no Dia do Soldado. Isso não significa que não haja oficiais-generais bolsonaristas, ou ao menos alinhados ao presidente em suas críticas ao Judiciário.
Por outro lado, há o temor da infiltração bolsonarista nos estratos inferiores das polícias militares, diretamente envolvidas na segurança dos eventos da próxima terça.
Fonte: Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/poder/2021/09/exercito-pune-sargento-que-protestou-em-live-de-deputado-bolsonarista.shtml
Conrado Hübner Mendes: O que a Constituição queria do STF era coragem
Tribunal deveria cumprir seu próprio 'marco temporal' para julgar
Conrado Hübner Mendes / Folha de S. Paulo
A democracia brasileira precisa de um marco temporal. Não a tese jurídica que estabeleceu dia certo para atribuir direito territorial de povos originários, tese estranha à Constituição de 1988 e aos debates constituintes.
Falta à democracia brasileira um marco temporal para o STF tomar decisões. Não só um prazo razoável, mas a certeza de que, anunciada a pauta, não promoverá adiamentos contados em números de meses ou anos, como de costume. O STF não pode dizer que aprecia segurança jurídica se não oferece nem isso e se acomoda ao "devo, não nego, julgo quando quiser".
Nesta quarta-feira (1º) a corte começou a julgar mais um de seus casos históricos. Terá a chance de orientar a promessa constitucional de demarcação de terras indígenas, que acumula 28 anos de atraso (Constituição pedia que se encerrasse em cinco anos).
O caso chegou ao STF em 2016 e questiona aplicação, a outras demarcações territoriais, de critério construído no caso Raposa Serra do Sol, de 2009. Pautado para 2020, foi adiado sem maiores explicações.
Agora, corre risco de novo adiamento em função das ameaças de um presidente que comete crimes comuns e de responsabilidade. Basta um pedido de vista, e o tribunal jogará o tema para um futuro incerto enquanto a violência aumenta no campo.
A Constituição pede ao STF muitas virtudes institucionais. Duas para começar: primeiro, a coragem de decidir; segundo, a coragem de decidir certo.
Precisa saber que sua demora tem custos altos. Em torno de 1 milhão de pessoas estão hoje enredadas em conflitos por terra, invasões de territórios e assassinatos (relatório “Conflitos no Campo Brasil – 2020”, da Comissão Pastoral da Terra). A incerteza jurídica e um Congresso que busca legislar a toque de caixa contra direitos indígenas e socioambientais gera expectativa de leniência à delinquência e incentivos para desmatamentos e invasões.
Adiar e "deixar para o Congresso", como se ouviu, trairia a missão de uma corte constitucional, cuja razão de existir é impedir que o legislador viole a Constituição. Essa divisão de funções está presente em quase todas as democracias do mundo. Não significa usurpar, esvaziar ou se sobrepor ao Congresso, apenas lhe fazer contrapeso e proteger a ordem constitucional.
Em outros tempos, quando não havia presidente apontando canhão para o tribunal e ameaçando fechá-lo, o STF repetia essa ideia com muito orgulho e altivez retórica. Tempos sem riscos. A coragem de um tribunal constitucional se mede em tempos como hoje.
O STF também precisa saber que a decisão errada, sucumbindo às pressões do agronegócio (que investiu alto na desinformação e na compra de pareceres jurídicos), perpetuará efeitos dramáticos, tanto nos outros processos sobre o tema que hoje tramitam na corte, quanto nos processos administrativos hoje parados no Executivo.
E a generalização da tese do marco temporal é errada por muitas razões.
Ignora a literalidade do artigo 231 da Constituição (e o critério de "terras tradicionalmente ocupadas"). Ignora também a própria jurisprudência do STF sobre direitos dos povos indígenas. Em sucessivos casos, o tribunal estabeleceu que a "tradicionalidade" está relacionada ao modo de ocupação da terra, não ao tempo. A data marcada para reconhecimento de terra indígena é exigência desprovida, ironicamente, de "tradicionalidade jurisprudencial". Arbitrária, portanto.
Afirmar que a decisão do caso Raposa Serra do Sol firmou um precedente que deveria ser seguido esconde muita coisa: primeiro, a jurisprudência anterior; segundo, que esse caso isolado deixava explícito que sua tese não se aplicava a quaisquer outros; terceiro, que mesmo precedentes sólidos, mesmo em tradições jurídicas que se apegam a precedentes, devem ser revogados quando o erro para a situação presente se tornar evidente.
Pedimos ao STF, além de coragem, a dignidade do bom argumento e inteligência jurídica. Que seja um agente do rigor analítico, não da desinformação e do teatro retórico. Que não invoque números ou previsões sem citar fonte respeitável. Que não use analogias baratas ("Copacabana terá que voltar aos índios") ou dados espúrios, porque o assunto é sério demais.
*Professor de direito constitucional da USP, é doutor em direito e ciência política e embaixador científico da Fundação Alexander von Humboldt.
Fonte: Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/conrado-hubner-mendes/2021/09/o-que-a-constituicao-queria-do-stf-era-coragem.shtml