Flávio Bolsonaro
O Estado de S. Paulo: Líder do governo na Câmara, Ricardo Barros defende nepotismo no setor público
Ricardo Barros afirma ser favorável à contratação de parentes de políticos para cargos na administração pública; Centrão quer mudar lei que pune a prática
Breno Pires, O Estado de S.Paulo
BRASÍLIA – No momento em que o presidente Jair Bolsonaro faz mudanças no primeiro escalão, o líder do governo na Câmara, Ricardo Barros (Progressistas-PR), ressuscitou um tema polêmico e defendeu a contratação de parentes de políticos para cargos públicos. Proibido pelo Supremo Tribunal Federal (STF) por violar o princípio constitucional da impessoalidade na administração, o nepotismo vem sendo questionado em várias frentes. Mas, com a vitória de Arthur Lira (Progressistas-AL) para presidir a Câmara, o Centrão ganhou musculatura para pregar mudanças na lei que hoje pune a prática.
“O poder público poderia estar mais bem servido, eventualmente, com um parente qualificado do que com um não parente desqualificado”, afirmou Barros ao Estadão. “Só porque a pessoa é parente, então, é pior do que outro? O cara não pode ser onerado por ser parente. Se a pessoa está no cargo para o qual tem qualificação profissional, é formada e pode desempenhar bem, qual é o problema?”, completou o líder do governo, que também integra o Centrão, grupo de partidos aliados ao presidente Jair Bolsonaro.
Em 2008, o Supremo firmou posição contra o nepotismo e suas ramificações. Estendeu a proibição ao “nepotismo cruzado”, que é quando dois agentes públicos empregam parentes um do outro. A Súmula 13 da Corte diz que “a nomeação de cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral ou por afinidade, até o terceiro grau (...), para o exercício de cargo em comissão ou de confiança ou, ainda, de função gratificada (...), mediante designações recíprocas, viola a Constituição”.
Quando era deputado, Bolsonaro nomeou 13 parentes em gabinetes da família. Além disso, o clã Bolsonaro empregou 102 pessoas com laços familiares, segundo levantamento feito pelo jornal O Globo, ao longo dos 28 anos em que o atual presidente foi parlamentar.
No primeiro ano à frente do governo, em 2019, Bolsonaro chamou de “hipocrisia” as críticas de que seria “nepotismo” a indicação do deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), seu filho “03”, para o cargo de embaixador nos Estados Unidos. O presidente chegou a criticar a decisão do Supremo que proibiu contratações de parentes na administração pública.
“Acho que quem tem de decidir sobre essas coisas é o Legislativo. Teve um parlamentar contra o nepotismo que foi pego na Lava Jato. E tem ministro, com toda certeza, que tem parente empregado, com DAS (função comissionada). E daí?”, questionou ele, na ocasião. “Que mania (vocês têm de dizer) que tudo que é parente de político não presta.”
O Supremo não deixou claro, no entanto, se a restrição para contratar parentes deve valer também para cargos de natureza política, como os de ministros e secretários de Estado, ou apenas para funções administrativas. Nos julgamentos do plenário tem prevalecido o parecer de que essas nomeações são permitidas, exceto se houver algum tipo de fraude. Em 2017, porém, decisão liminar do ministro Marco Aurélio Mello barrou a indicação de um filho do então prefeito do Rio, Marcelo Crivella, como secretário municipal.
Um ano depois, em 2018, a então vice-governadora do Paraná, Cida Borghetti – mulher de Ricardo Barros –, chamou o cunhado para a equipe ao assumir o governo estadual, diante da renúncia do então governador Beto Richa. À época, Cida nomeou Silvio Barros, irmão de seu marido, como secretário de Desenvolvimento Urbano.
Improbidade
Como a prática da nomeação de parentes por políticos não configura crime no Brasil, o caminho para punir agentes públicos por nepotismo é enquadrá-los no artigo 11 da Lei de Improbidade Administrativa, de 1992. É com base neste artigo que o Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem chancelado condenações em casos de contratação de parentes. O dispositivo define como improbidade atos que violem os “deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade e lealdade às instituições”.
A Câmara, porém, discute o afrouxamento da Lei de Improbidade Administrativa, que pode excluir justamente esse artigo 11, também utilizado para punir outras práticas, como furar fila no serviço público. A proposta consta do texto substitutivo de autoria do relator, deputado Carlos Zarattini (PT-SP), e é apoiada por Barros.
“Se querem que nepotismo seja crime, que façam uma lei e aprovem. É inadequado um arcabouço jurídico onde o que você quiser encaixa lá. Ah, estão preocupados com nepotismo? Então, vamos encerrar o artigo 11 e fazer uma lei de nepotismo aqui. Isso pode, isso não pode. Não é para cada promotor interpretar (a lei) do jeito que quer”, disse o líder do governo.
Para o advogado Sebastião Tojal, especializado em ações de improbidade, o que Barros diz não se sustenta. “Existe um princípio constitucional, segundo o qual a impessoalidade deve orientar a administração pública, inclusive no processo de investidura em cargos. Não se pode chegar ao ponto de discutir se fulano, sicrano ou beltrano de fato é competente ou não”, destacou Tojal. “Nepotismo tem de ser compreendido como nomeação para cargos administrativos e políticos.”
Autor do projeto em discussão na Câmara sobre a Lei de Improbidade, o deputado Roberto de Lucena (Podemos-SP) é contra a mudança da regra que hoje permite a punição por nepotismo. “Eu me sinto contrariado com o fato de que a gente possa, retirando o artigo 11, promover um retrocesso naquilo que já está consolidado”, disse Lucena. “Essa questão já é superada. Não existe espaço para retrocessos.”
Na avaliação do ex-advogado-geral da União Fábio Medina Osório, a Constituição não permite que parentes sejam contratados para a administração pública nem mesmo se forem competentes. “Independentemente de qualificação ou não, a proibição direcionada à contratação de parentes, refletida na Súmula 13 do STF, acarreta improbidade administrativa.”
O procurador de Justiça Roberto Livianu, do Instituto Não Aceito Corrupção, disse que a experiência no Brasil mostra a necessidade de não ser permitida qualquer exceção. “Fazer louvor ao nepotismo é absurdo. Devido ao fortalecimento da cultura do compadrio, essa ideia (de exceção) não deve prevalecer. O Supremo editou a súmula porque o que se faz no serviço público é uma bandalheira.”
Cinco perguntas para entender o nepotismo no Brasil
A prática é proibida pela Constituição pois contraria os princípios da impessoalidade, moralidade e igualdade
O que é?
O nepotismo ocorre quando um agente público usa de sua posição de poder para nomear, contratar ou favorecer parentes. O termo nepotismo deriva do latim, mais especificamente das palavras nepos (sobrinho) ou nepotis (neto).
É proibido?
O nepotismo é vedado, primeiramente, pela própria Constituição, pois contraria os princípios da impessoalidade, moralidade e igualdade. A prática do nepotismo se enquadra como ato de improbidade administrativa. Algumas legislações, de forma esparsa, como a Lei nº 8.112, de 1990 também tratam do assunto, assim como a Súmula Vinculante nº 13, do Supremo Tribunal Federal (STF), e o Decreto nº 7.203, de 4 de junho de 2010.
O que dizem essas regras?
Lei nº 8.112/1990 – Dispõe sobre o regime jurídico dos servidores públicos civis da União, das autarquias e das fundações públicas federais.
Súmula Vinculante nº 13/2008 – Inclui todos os órgãos e entidades que compõem a Administração Pública (direta e indireta), ou seja, se aplica às esferas federal, estadual e municipal, e a todos os Poderes da União, incluindo todos os órgãos e entidades que compõem o serviço público nacional.
Decreto nº 7.203/2010 – Trata da vedação do nepotismo direto e cruzado no âmbito da administração pública federal, ou seja, somente dos órgãos e entidades do Poder Executivo Federal e de forma mais detalhada que a referida Súmula Vinculante. Nepotismo direto é aquele em que a autoridade nomeia seu próprio parente. Nepotismo cruzado é aquele em que o agente público nomeia pessoa ligada a outro agente público, enquanto a segunda autoridade nomeia uma pessoa ligada por vínculos de parentescos ao primeiro agente, como troca de favores, também entendido como designações recíprocas.
Qual grau de parentesco é considerado pelas regras?
As três regras vedam a nomeação de cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral ou por afinidade, até o terceiro grau. Ou seja, quando falamos de consanguinidade, fica proibida a nomeação pai/mãe, avô/avó, bisavô/bisavó, trisavô/trisavó, filhos, netos, bisnetos, irmãos, tios ou sobrinhos do servidor público. Por afinidade, ficam proibidas as nomeações de sogro (a), genro/nora; madrasta/padrasto, enteado (a) do agente público, bem como avô/avó, neto/neta, bisavô/bisavó, bisneto/bisneta do cônjuge ou companheiro do agente público.
Casos de nepotismo no Brasil
Em 2016, o ex-governador do Distrito Federal Agnelo Queiroz (PT) teve os direitos políticos suspensos por três anos, além de ficar obrigado a pagar multa, após condenação por improbidade administrativa. De acordo com ação do Ministério Público do DF e Territórios (MPDFT), ele violou os princípios da administração pública ao nomear e autorizar a permanência de Lânia Maria Alves e Stefânia Alves Pinheiro, respectivamente, mãe e filha, em cargos comissionados no Poder Executivo local. Recentemente, no início do mês, o Ministério Público do Rio de Janeiro recomendou ao prefeito de Magé (RJ), Renato Cozzolino (PP), a exoneração de quatro parentes (irmã, noiva, cunhado e tio) nomeados por ele em seu secretariado. Há ainda outros três primos de Cozzolino indicados para a chefia de órgãos municipais.
O Estado de S. Paulo: Ministro do STJ prepara saída jurídica que pode beneficiar Flávio Bolsonaro
Turma do tribunal retoma análise de pedidos da defesa do senador no caso das rachadinhas; João Otávio de Noronha deve atender a recurso de Flávio e votar por nulidade de relatórios do Coaf
Rafael Moraes Moura, O Estado de S.Paulo
BRASÍLIA – Alinhado ao Palácio do Planalto, o ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) João Otávio de Noronha preparou uma saída jurídica que pode beneficiar o senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ) no caso das “rachadinhas” – desvio ilegal de salários de assessores. Na tarde desta terça-feira, 23, a Quinta Turma do STJ retoma o julgamento de três recursos apresentados pela defesa do filho do presidente da República que podem afetar os rumos do inquérito que apura um esquema de peculato e lavagem de dinheiro em seu antigo gabinete na Assembleia Legislativa do Rio (Alerj).
Segundo o Estadão apurou, Noronha vai votar para decretar a nulidade tanto das decisões de compartilhamento de relatórios do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) com o Ministério Público do Rio quanto das quebras de sigilo fiscal e bancário envolvendo o senador, apontando um suposto “direcionamento” da investigação para atingir o parlamentar. Integrantes do STJ ouvidos pela reportagem sob a condição de anonimato interpretaram o voto como uma implosão do caso das rachadinhas, o que obrigaria o retorno da apuração à estaca zero.
Isso porque os relatórios e as informações obtidas pela quebra do sigilo fundamentam a denúncia do Ministério Público contra o senador. O filho mais velho do presidente Jair Bolsonaro foi denunciado no Judiciário fluminense por peculato, lavagem de dinheiro e organização criminosa.
Noronha e o relator do caso, ministro Felix Fischer, já indicaram em linhas gerais como devem se posicionar, mas ainda não detalharam os votos. Relator da Lava Jato no STJ, Fischer é considerado “linha dura” e admirado pelos colegas pelas decisões bem fundamentadas – o ministro indicou que vai votar contra os recursos da defesa de Flávio Bolsonaro. Noronha, por outro lado, tem perfil garantista, mais inclinado a ficar ao lado dos direitos de réus, e já se envolveu em uma troca de farpas com o colega em novembro do ano passado, no início do julgamento sobre Flávio.
Reservadamente, integrantes da Corte avaliam que Noronha busca se cacifar para uma vaga no Supremo Tribunal Federal (STF) ou no Ministério da Justiça, se o ministro André Mendonça for indicado para o STF. Durante o período em que presidiu o STJ, Noronha atendeu aos interesses do governo do presidente Jair Bolsonaro em 87,5% das decisões individuais tomadas, conforme levantamento do Estadão.
Em abril do ano passado, Bolsonaro chegou a dizer que “ama” Noronha. Além de Fischer e Noronha, outros três ministros integram a Quinta Turma do STJ: Reynaldo Soares da Fonseca, Ribeiro Dantas e José Ilan Paciornik. Em junho do ano passado, Paciornik esteve no Palácio do Planalto, mas não informou na sua agenda. Integrantes do STJ apontam que a transmissão ao vivo do julgamento, pelo canal do tribunal no YouTube, pode servir como instrumento de pressão sobre os magistrados e influenciar o placar final.
A defesa de Flávio Bolsonaro joga com o tempo e tem feito uma intensa ofensiva jurídica, inclusive no Supremo, para contestar decisões tomadas pelo juiz Flávio Itabaiana Nicolau – e para garantir a prerrogativa do foro privilegiado ao senador no caso. O STF já decidiu que o foro se aplica apenas para os casos cometidos no exercício do mandato e em função do cargo, mas como o Estadão mostrou em setembro do ano passado, um precedente a favor da deputada Gleisi Hoffmann (PT-PR) pode ajudar o parlamentar agora.
Itabaiana atua na primeira instância fluminense. Foi dele que partiram as decisões mais importantes do caso, desde a primeira quebra de sigilo até a prisão preventiva do ex-assessor Fabrício Queiroz e sua mulher, Márcia Aguiar. Para a defesa de Flávio, a decisão do juiz, que autorizou a quebra de sigilo de Flávio e outras 94 pessoas e empresas em 2019, teria sido mal fundamentada.
O advogado Rodrigo Roca, um dos defensores de Flávio Bolsonaro no caso, disse que confia no embasamento técnico das teses levantadas nos recursos apresentados a favor do senador. “Estamos convencidos de que todas as decisões proferidas pela 27.ª Vara Criminal (onde atua o juiz Flávio Itabaiana) são nulas e portanto, configuram prova ilícita.”
Procurado pela reportagem, Noronha não se manifestou.
Depoimento
O Supremo tem marcado para amanhã o julgamento sobre a controvérsia envolvendo o depoimento de Jair Bolsonaro no inquérito a respeito da interferência política do chefe do Executivo na Polícia Federal. Integrantes do STF, no entanto, avaliam que, diante do ambiente político, com a prisão do deputado Daniel Silveira (PSL-RJ), o mais prudente seria deixar a análise do caso para depois.
Ascânio Seleme: Nova sugestão contra o vírus
O melhor caminho é a imprensa parar de cobrir a atividade dos três zeros de Bolsonaro
No dia 7 de maio do ano passado, uma quinta-feira como hoje, publiquei nesta página um artigo dando três sugestões para combater o bolsovírus, praga mais infectante e perigosa que o corona. Uma delas era parar de cobrir os faniquitos do presidente na porta do Palácio da Alvorada. Ali, diante daquele grupelho de apoiadores cegos que se reúnem para babar seus ovos, Bolsonaro dá vazão aos seus instintos, com mentiras aos quilos, grosserias aos montes e, sobretudo, ataques à imprensa. Claro que não foi para atender à minha recomendação, mas muitos veículos deixaram de cobrir aquela triste rotina, e apenas os mais mansos e amigos seguem dando microfone para as asneiras matinais ou vespertinas de Bolsonaro.
Esta semana, a ONG Repórteres Sem Fronteiras divulgou o número de ataques que jornalistas brasileiros sofreram em 2020, e não deu outra. Os Bolsonaros lideram com folga o ranking nacional. Os dados são estarrecedores para um país que se quer democrático. Das 580 ofensas contra jornalistas contabilizadas pela ONG, 85% (469) foram proferidas pelo presidente da República e seus três zeros. O mais ignóbil é o golpista (um cabo e um soldado bastam para fechar o Congresso) Eduardo, com 208 impropérios. O mais leve é o Flávio das rachadinhas, autor de 69 agressões. De Carlos, chefe do gabinete do ódio, partiram 89 ataques.
Da boca de Jair, saíram 103 ofensas a jornalistas. Um absurdo se analisado de qualquer ponto de vista. Os ataques dessa gangue se devem ao fato de seus membros não suportarem críticas. Julgam que podem fazer ou dizer o que bem entenderem e que ninguém tem o direito de lhes contestar. Eles carregam em seu organismo o germe do autoritarismo e da intolerância, por isso a avalanche de barbaridades que pronunciam sistematicamente contra jornais e jornalistas, na média de 1,28 a cada dia.
Todo mundo sabe que atacar jornalistas é igual a combater o mensageiro. O problema não é quem traz a notícia, mas quem a produz. No Brasil, quem fabrica as notícias negativas que incomodam a família presidencial é o próprio chefe do clã ou o seu governo. Não foram jornalistas que encaminharam à Câmara 62 pedidos de impeachment do presidente. Em média, o imóvel Rodrigo Maia recebeu um pedido de afastamento de Bolsonaro a cada 12 dias. Trata-se de um recorde que merecia entrar para o Guinness. Esta semana, 380 líderes religiosos cumpriram o ritual. Eles querem o afastamento do presidente por suas ações e omissões durante a pandemia.
Enquanto isso, o capitão e seus filhos agridem jornalistas com suas costumeiras baixarias. O que se deve fazer diante desse descalabro? O melhor caminho é a imprensa parar de cobrir a atividade dos três zeros. Eles importam pouco. Claro que são mais do que filhos do homem, são parlamentares. Mas conte nos dedos quantos deputados e senadores merecem a atenção dos jornalistas. Alguém já ouviu falar do deputado Júnior Marreca Filho (Patriotas-MA) ou do senador Mecias de Jesus (Republicanos-RR)? Pois é. Sugiro dar aos zerinhos a mesma atenção dedicada a Mecias (com c mesmo) e a Marreca.
A história sempre foi boa conselheira. Vejam o espaço que a imprensa deu aos filhos de presidentes no passado, fora os escândalos que são de cobertura obrigatória. Os filhos de Sarney, Roseana e Zequinha, eram parlamentares e só foram notícia por esporádicas ações políticas, todas legais, ou por denúncias. Não se metiam no governo do pai, embora se projetassem com seu sobrenome. Os filhos de Fernando Henrique também não eram protagonistas e não tinham mandatos eletivos. Os de Lula, da mesma forma, não davam pitaco e só apareceram em escândalos. A única filha de Dilma sempre se manteve discretamente afastada. A filha de Temer só virou notícia por causa de uma denúncia, e Michelzinho era um menino quando o pai governou.
Impossível impedir que os bozinhos continuem atacando jornalistas nas suas redes. Mas seria inteligente se os jornalistas de verdade não lhes dessem eco.
Conrado Hübner Mendes: 'Operação Kopenhagen' quer salvar Flávio Bolsonaro
Instituições estão funcionando, mas não se esqueça de perguntar para quem
Desenhar o xadrez da imunização criminal de Flávio Bolsonaro é para profissionais. A teia de corrupção institucional costurada por Jair Bolsonaro deveria ser reconstruída por instituições de controle, a começar pelo Ministério Público. Mas estão em processo de fechamento. Apesar das ameaças, ainda resta jornalismo com coragem moral e recursos. E alguns promotores. Só não se sabe até quando.
Eu pediria a ajuda de Constança Rezende e Patrícia Campos Mello, ou de Malu Gaspar e Juliana Dal Piva. Também de Chico Otavio, Rubens Valente e Guilherme Amado. E de tantos repórteres que estão no varejo da microcoleta de informações sobre essa "nova era" que extirpou corrupção do país. O prêmio internacional Corrupto do Ano já foi dado a N. Maduro, R. Duterte e V. Putin. Jair recebê-lo em 2020 foi conspiração globalista.
Reportagens históricas vão se diluindo na torrente de notícias e na incredulidade gerada por governo incapaz de comprar seringas enquanto zomba da pandemia. Esses cacos factuais comporão no futuro um dos aposentos desse castelo de terror político, um dos capítulos do livro "Brasil Nunca Mais" do inverno bolsonarista.
É fundamental não perder a visão do conjunto. Há 17 atores envolvidos na blindagem criminal de Flávio Bolsonaro, sob regência da Presidência da República: STF, Senado, Abin, GSI, PF, Receita Federal, PGR, MJ e AGU; TJ-RJ, MP-RJ, Polícia Civil, Alerj, governador interino, governador afastado, ex-prefeito do Rio. O 17 é ideia fixa do time.
Flávio é acusado do crime de peculato (modo "rachadinha") por anos a fio. Provas são caudalosas. Os gabinetes do pai e dos três filhos teriam movimentado R$ 29 milhões confiscando salários. O quarto filho não entrou para a política, mas já é investigado por iniciativas empresariais sob o carinho presidencial.
A "Operação Kopenhagen" de proteção a Flávio se faz assim:
TJ-RJ confere foro privilegiado a Flávio e contraria posição do STF; procuradora bolsonarista faz MP-RJ perder prazo de recurso; STF ainda recebe reclamação do MP-RJ, mas, distribuída a Gilmar Mendes, ação fica na gaveta; TJ-RJ adia julgamento ao infinito.
Enquanto isso: ex-assessora de Flávio é empregada por Crivella; irmãos Flávio e Carlos ajudam a derrotar pedido de impeachment contra o prefeito; na Alerj, servidores fraudam ponto e regularizam retroativamente presença de funcionárias-fantasma de Flávio; Cláudio Castro está prestes a ignorar lista tríplice e escolher comissário de Flávio para chefiar MP-RJ.
Segue: concerto entre PF, GSI, Abin e Receita Federal presta serviços a Flávio na busca de invalidar relatórios de auditores; PGR e AGU se manifestam em favor do foro privilegiado de Flávio e se reúnem com Gilmar; André Mendonça pede investigação "independente" do ilícito da Abin; eleição do Senado se negocia à luz do caso de Flávio na Comissão de Ética.
Jair faz ameaça de máfia siciliana contra MP-RJ, insinuando "caso hipotético" de filho de promotor (com base em informações "hipotéticas" da polícia civil). Wilson Witzel, afastado, concluiu: "A República gira hoje em torno da proteção a Flávio Bolsonaro".
"As instituições estão funcionando" é a frase mais estéril da análise política brasileira. Esse espasmo descritivo não indica como ou para quem "estão funcionando" nem pondera erros e acertos, omissões, obstruções e usurpações. Não leva a sério a legalidade. Se há juristas dos "dois lados", basta para a "controvérsia". Não importam conflitos de interesse e a qualidade do que falam. Pouco importa o padrão de legalidade autoritária que emerge no agregado.
A frase não é vazia só pela indolência intelectual que a automatiza, mas pela falsa divisão que induz. Reduz o debate ao sim ou não. Virou jargão jornalístico binário e entrou no último estágio de seu ciclo de vida analítico. Morre quando deixa de dizer qualquer coisa sobre o mundo real, mesmo que siga dizendo muito sobre quem a boceja.
Antes de incorrer nesse hábito, estude a "Operação Kopenhagen". E faça perguntas mais elaboradas do que "instituições estão funcionando?". Por um segundo, imagine se o esforço fosse replicado, de forma não corrupta, na coordenação federativa da vacinação de brasileiros.
Inspire. Expire. Inspire de novo e sinta o cheiro do beco em que nos metemos.
*Conrado Hübner Mendes é professor de direito constitucional da USP, é doutor em direito e ciência política e embaixador científico da Fundação Alexander von Humboldt.
Guilherme Amado: A Abin e a operação para ‘defender FB’ e enterrar o caso Queiroz
Abin produziu pelo menos dois relatórios de orientação para Flávio Bolsonaro e seus advogados sobre o que deveria ser feito para obter os documentos que permitissem embasar um pedido de anulação do caso Queiroz
A Agência Brasileira de Inteligência (Abin) produziu pelo menos dois relatórios de orientação para Flávio Bolsonaro e seus advogados sobre o que deveria ser feito para obter os documentos que permitissem embasar um pedido de anulação do caso Queiroz. Nos dois documentos, obtidos pela coluna e cuja autenticidade e procedência foram confirmadas pela defesa do senador, a Abin detalha o funcionamento da suposta organização criminosa em atuação na Receita Federal (RFB), que, segundo suspeita dos advogados de Flávio, teria feito um escrutínio ilegal em seus dados fiscais para fornecer o relatório que gerou o inquérito das rachadinhas. Enviados em setembro para Flávio e repassados por ele para seus advogados, os documentos contrastam com uma versão do general Augusto Heleno, ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, que afirmou publicamente que não teria ocorrido atuação da Inteligência do governo após a defesa do senador levar a denúncia a Bolsonaro, a ele e a Alexandre Ramagem, diretor da Abin, em 25 de agosto.
Um dos documentos é autoexplicativo ao definir a razão daquele trabalho. Em um campo intitulado “Finalidade”, cita: “Defender FB no caso Alerj demonstrando a nulidade processual resultante de acessos imotivados aos dados fiscais de FB”. Os dois documentos foram enviados por WhatsApp para Flávio e por ele repassados para sua advogada Luciana Pires.
O primeiro contato de Alexandre Ramagem com o caso foi numa reunião no gabinete de Bolsonaro, em 25 de agosto, quando recebeu das mãos das advogadas de Flávio uma petição, solicitando uma apuração especial para obter os documentos que embasassem a suspeita de que ele havia sido alvo da Receita. Ramagem ficou com o material, fez cópia e devolveu no dia seguinte a Luciana Pires, que voltou ao Palácio do Planalto para pegar o documento, recebendo a orientação de que o protocolasse na Receita Federal. A participação da Abin, a partir daí, seguiria por meio desses relatórios, enviados a Flávio Bolsonaro, com orientações sobre o que a defesa deveria fazer.
No primeiro relatório, o que especifica a finalidade de “defender FB no caso Alerj”, a Abin classifica como uma “linha de ação” para cumprir a missão: “Obtenção, via Serpro, de ‘apuração especial’, demonstrando acessos imotivados anteriores (arapongagem)”. O texto discorre então sobre a dificuldade para a obtenção dos dados pedidos à Receita e, num padrão que permanece ao longo do texto, faz imputações a servidores da Receita e a ex-secretários, a exemplo de Everardo Maciel.
“A dificuldade de obtenção da apuração especial (Tostes) e diretamente no Serpro é descabida porque a norma citada é interna da RFB da época do responsável pela instalação da atual estrutura criminosa — Everardo Maciel. Existe possibilidade de que os registros sejam ou já estejam sendo adulterados, agora que os envolvidos da RFB já sabem da linha que está sendo seguida”, diz o relatório, referindo-se a José Tostes Neto, chefe da Receita.
O relatório sugere a substituição dos “postos”, em provável referência a servidores da Receita, e, sem dar mais detalhes, afirma que essa recomendação já havia sido feita em 2019.
“Permanece o entendimento de que a melhor linha de ação para tratar o assunto FB e principalmente o interesse público é substituir os postos conforme relatório anterior. Se a sugestão de 2019 tivesse sido adotada, nada disso estaria acontecendo, todos os envolvidos teriam sido trocados com pouca repercussão em processo interno na RFB!”, explica o texto.
A agência traça em seguida outra “alternativa de prosseguimento”, que envolveria a Controladoria-Geral da União (CGU), o Serviço Federal de Processamento de Dados (Serpro) e a Advocacia-Geral da União (AGU).
“Com base na representação de FB protocolada na RFB (Tostes), CGU instaura sindicância para apurar os fatos no âmbito da Corregedoria e Inteligência da Receita Federal; Comissão de Sindicância requisita a Apuração Especial ao Serpro para instrução dos trabalhos. Em caso de recusa do Serpro (invocando sigilo profissional), CGU requisita judicialização da matéria pela AGU. (...) FB peticiona acesso à CGU aos autos da apuração especial, visando instruir Representação ao PGR Aras, ajuizamento de ação penal e defesa no processo que se defende no RJ”, recomenda o texto, resumindo qual é a estratégia: “Em resumo, ao invés da advogada ajuizar ação privada, será a União que assim o fará, através da AGU e CGU — ambos órgãos sob comando do Executivo”.
Ainda nesse primeiro documento, outros dois servidores federais são acusados pela Abin, o corregedor-geral da União, Gilberto Waller Júnior, e o corregedor da Receita, José Barros Neto.
“Existem fortes razões para crer que o atual CGU (Gilberto Waller Júnior) não executar(ia) seu dever de ofício, pois é PARTE do problema e tem laços com o Grupo, em especial os desmandos que deveria escrutinar no âmbito da Corregedoria (amizade e parceria com BARROS NETO)”, disse o texto.
Um parêntese curioso. Neste trecho, já no fim do documento, a Abin, comandada pelo delegado da PF Alexandre Ramagem, sugere que Bolsonaro demita Waller Júnior da Corregedoria-Geral e coloque no lugar dele um policial federal: “Neste caso, basta ao 01 (Bolsonaro) comandar a troca de WALLER por outro CGU isento. Por exemplo, um ex-PF, de preferência um ex-corregedor da PF de sua confiança”.
O outro documento enviado pela Abin a Flávio e repassado por ele a sua advogada traça uma “manobra tripla” para tentar conseguir os documentos que a defesa espera.
As orientações da agência aqui se tornam bem específicas.
“A dra. Juliet (provável referência à advogada Juliana Bierrenbach, também da defesa de Flávio) deve visitar o Tostes, tomar um cafezinho e informar que ajuizará a ação demandando o acesso agora exigido”, diz a primeira das três ações, chamadas pela Abin de “diversionária”.
Em seguida, o texto sugere que a defesa peticione ao chefe do Serpro o fornecimento de uma apuração especial sobre os dados da Receita, baseando-se na Lei de Acesso à Informação — o que de fato a defesa de Flávio Bolsonaro faria. A Abin ressalta que o pedido deve ser por escrito. “O e-sic (sistema eletrônico da Lei de Acesso) deve ser evitado pois circula no sistema da CGU e GILBERTO WALLER integra a rede da RFB”, explicou a Abin.
E, por fim, o relatório sugere “neutralização da estrutura de apoio”, a demissão de “três elementos-chave dentro do grupo criminoso da RF”, que “devem ser afastados in continenti”. “Este afastamento se resume a uma canetada do Executivo, pois ocupam cargos DAS. Sobre estes elementos pesam condutas incompatíveis com os cargos que ocupam, sendo protagonistas de diversas fraudes fartamente documentadas”, afirma o texto, sem especificar que condutas seriam essas. E cita os nomes de três servidores: novamente o corregedor José Barros Neto; o chefe do Escritório de Inteligência da Receita no Rio de Janeiro, Cléber Homem; e o chefe do Escritório da Corregedoria da Receita no Rio, Christiano Paes. Num indicativo de que Bolsonaro talvez esteja seguindo a recomendação da Abin contra os servidores, Paes pediu exoneração do cargo na semana passada.
Procurado, o GSI negou a existência dos documentos, mesmo informado que a autenticidade de ambos havia sido confirmada pela defesa de Flávio Bolsonaro, e manteve a versão de que não se envolveu no tema. Procurada, a advogada Luciana Pires confirmou a autenticidade dos documentos e sua procedência da Abin, mas recusou-se a comentar seu conteúdo.
A Abin não respondeu aos questionamentos sobre a origem das acusações feitas nos relatórios nem se produziu mais documentos além dos dois obtidos pela coluna. Alexandre Ramagem, diretor da agência, atualmente voltou a ser cotado para comandar a Polícia Federal, caso Bolsonaro seja inocentado no inquérito que investiga se ele queria controlar a corporação ao nomear Ramagem, amigo de seus filhos, para a direção da PF.
Merval Pereira: A banalização do ilegal
O Brasil está perigosamente normalizando atividades ilegais, e o caso do encontro que o presidente Bolsonaro teve com advogadas de seu filho Flávio para receber uma denúncia contra a Receita Federal é apenas a mais recente revelação, e não a menos grave.
O presidente participou de uma reunião, em 25 de agosto, no seu gabinete do Palácio do Planalto, com as advogadas Luciana Pires e Juliana Bierrenbach, que apresentaram um dossiê sobre “irregularidades das informações constantes de Relatórios de Investigação Fiscal” sobre o senador.
Para agravar a situação, participaram da reunião o ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), Augusto Heleno, e o diretor da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), Alexandre Ramagem, o mesmo que Bolsonaro e seus filhos queriam ver à frente da Polícia Federal.
A nova tentativa de anular as investigações sobre o esquema de desvio de dinheiro público, conhecido como “rachadinha”, em seu gabinete quando era deputado estadual foi feita fora da agenda, e só foi revelada porque a revista “Época” a descobriu.
Por essa nova versão, um grupo de fiscais da Receita Federal usou de meios ilegais para fornecer informações sobre as contas do hoje senador Flávio Bolsonaro aos órgãos de fiscalização como o Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras) — o que, se confirmado, feriria de morte as acusações contra ele.
A explicação para tamanha irregularidade é que o assunto envolve integrante da família presidencial, o que merece análise dos órgãos de segurança, especialmente o GSI, que cuida da segurança pessoal do presidente e sua família. Tal justificativa é de uma banalidade tão grande que, revelado o encontro, o GSI divulgou uma nota afirmando que “à luz do que nos foi apresentado, o que poderia parecer um assunto de segurança institucional configurou-se como um tema, tratado no âmbito da Corregedoria da Receita Federal, de cunho interno daquele órgão e já judicializado”. A nota do GSI concluiu: “Diante disso, o GSI não realizou qualquer ação decorrente. Entendeu que, dentro das suas atribuições legais, não lhe competia qualquer providência a respeito do tema”. Como se bastasse uma explicação burocrática para tamanha irregularidade.
Um presidente da República utilizar os órgãos de segurança a favor de um filho seu que é investigado por corrupção é ato gravíssimo, que precisa ser apurado e pode resultar em impeachment. No caso, apenas em tese, porque o centrão no momento está bem aquinhoado e não dará a maioria necessária.
O caso é agravado por haver uma investigação no Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a denúncia do ex-ministro da Justiça Sergio Moro a respeito da interferência do presidente Bolsonaro na Polícia Federal justamente para proteger seu filho das investigações. O ministro Alexandre de Moraes herdou o processo do ministro aposentado Celso de Mello e agora tem sob seus cuidados três processos que convergem.
Os das fake news e das manifestações antidemocráticas, organizadas pelo chamado “gabinete do ódio” instalado no Palácio do Planalto, são próximos entre si, e agora o da interferência na Polícia Federal, com as novas informações que devem ser anexadas, pode demonstrar que o governo se aproveita de sua estrutura e poder para defender interesses próprios, sejam pessoais ou eleitorais.
Já há diversos pedidos de políticos, como o deputado federal Alessandro Molon, do PSB, e o senador da Rede Randolfe Rodrigues, pela atuação da Procuradoria-Geral da República e do próprio STF nesse caso revelado pela “Época”, num momento em que Bolsonaro volta a assumir posições agressivas contra a Justiça. Ao afirmar que não é possível um juiz determinar que a vacinação contra a Covid-19 seja obrigatória, Bolsonaro está claramente pressionando o Supremo, que deve tratar do tema em breve.
Há indicações de que a maioria do STF é a favor da obrigatoriedade da vacinação, por uma questão de segurança sanitária. O presidente volta a usar sua força nas mídias sociais para jogar seus seguidores contra o Supremo, o que não deu resultado das outras vezes.
Bernardo Mello Franco: O deboche de Flávio Bolsonaro
Em outubro de 2015, a juíza Daniela Barbosa Assumpção foi agredida ao vistoriar o Batalhão Especial Prisional, no Rio. A magistrada teve a blusa rasgada e os óculos e sapatos arrancados. Os agressores eram policiais que tentavam manter regalias na cadeia.
Horas depois do incidente, o então deputado Flávio Bolsonaro foi até o local. Em vez de prestar solidariedade à juíza, ele deu apoio aos PMs, que usavam celulares e promoviam churrascos no cárcere. Alegou que os presos estavam sendo “tratados como bandidos” e tinham direito à presunção de inocência.
A exemplo do pai, Flávio tem uma visão particular da Justiça. Quando os criminosos vestem farda, ele se comporta como um defensor das garantias constitucionais. Em outros casos, repete o discurso de que “bandido bom é bandido morto”.
Ontem o senador divulgou foto com uma réplica de CPF atravessada por uma tarja vermelha, onde se lia a inscrição “cancelado”. Na imagem, Flávio sorri e ergue o polegar em sinal de positivo. No dialeto bolsonarista, “cancelar um CPF” equivale a matar um suspeito.
A cena foi um ato de apologia da violência policial. Num país em que a Constituição proíbe a pena de morte, o primeiro-filho celebrou a execução sem julgamento, a barbárie disfarçada de defesa da lei.
Flávio estava no estúdio do “Alerta Nacional”, programa sensacionalista gravado em Manaus e transmitido pela RedeTV!. A atração mistura noticiário policial com números circenses. Seu apresentador, Sikêra Jr., é um histriônico defensor do governo.
Na gravação, o senador dançou com o elenco do programa ao som de uma música que ironizava “maconheiros”. Enquanto ele fazia graça, procuradores o esperavam no Rio para uma acareação com o empresário Paulo Marinho. O Zero Um não apareceu,e seus advogados disseram que ele estava em agenda oficial.
O vídeo da dancinha fala por si: Flávio debochou do Ministério Público Federal, que agora estuda enquadrá-lo por crime de desobediência. Para sorte do Zero Um, procuradores não defendem a morte de bandidos. Só querem investigá-los e denunciá-los à Justiça.
Merval Pereira: Com qual roupa?
Discute-se no entorno do presidente se ele deve largar de lado a fantasia que usou nos meses recentes e reassumir seu verdadeiro eu, agressivo e desbocado, ou se deve continuar calado, sem se manifestar, como se fosse uma pessoa sensata que pensa antes de falar.
A cautela que manteve desde a prisão de Fabrício Queiroz, recomendada pela imprevisibilidade das consequências, trouxe dividendos para sua melhora de popularidade, ou ela deveu-se apenas ao auxílio emergencial para a Covid-19?
As bravatas pessoais são características dos populistas. Collor já disse que tinha “aquilo roxo”, Trump se vangloria de suas proezas sexuais, Bolsonaro diz que não toma “aditivo” para fazer sexo, Putin aparece a cavalo, com o torso nu, para mostrar o físico de atleta, do qual se orgulha também Bolsonaro - Maçaranduba, que promete “porrada” e chama os críticos de “bundões”.
Cada um lida ou lidou com suas circunstâncias, mas nenhum tentou ser outra pessoa. A personagem “Lulinha, Paz e Amor” foi criada pelo marqueteiro Duda Mendonça para permitir a entrada do candidato do PT nas classes média e alta, que ele não atingia.
Acabou virando verdade, na aparência. Lula confessou certa vez que nascera para vestir bons ternos, se sentia mais à vontade neles do que com o macacão de metalúrgico. Mas Lula estava em campanha desde 1989, e a imagem que vendeu nas disputas que perdeu era seu perfil real, o “sapo barbudo”.
Quando se reinventou, em 2002, ganhou a eleição, para só retornar ao “sapo barbudo” no segundo mandato. Bolsonaro ainda está no primeiro estágio, comendo pão com leite condensado, vestindo camisa de time de futebol, usando sandália Rider, falando uma língua parecida com o português, naquele tom militar que o define.
Não precisou se reinventar para vencer a eleição, mas encontrou ambiente propício para suas bravatas, que já não existe mais. Mesmo levando-se em conta que Bolsonaro melhorou sua popularidade, ele só vence Collor nas pesquisas realizadas no mesmo período do mandato. Lula já teve 85% de popularidade, e os petistas costumavam gozar os 15% contrários: “Vivem em que mundo?”.
Hoje são mais de 60% com visão crítica de Bolsonaro. Como ele vem acelerando o processo, menos cauteloso do que a política recomenda, pode ser que apresse também seu fim. Nada indica que o caso do Queiroz vá terminar em pizza, tamanhas são as evidências.
Se comprovadas, as ilegalidades cometidas antes de assumir a presidência não poderão ser julgadas durante seu mandato. Mas ele pode ser investigado, e terá que explicar, por exemplo, por que a primeira-dama recebeu R$ 89 mil de Queiroz em sua conta bancária. Politicamente estará fragilizado, ainda mais que os filhos também estão envolvidos nessa investigação da “rachadinha”.
O senador Flavio Bolsonaro luta para garantir seu foro privilegiado, mas a jurisprudência atual do STF vai de encontro ao seu pleito, pois o caso teria ocorrido quando era deputado estadual, e o Supremo hoje entende que o foro é do cargo, não da pessoa que o ocupa.
Outro acólito metido em trapalhadas é o advogado Frederick Wassef, que pode envolver o presidente em casos atuais, ocorridos no decorrer desses primeiros meses de mandato. O Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) já identificou pagamentos de serviços médicos para Queiroz feitos por Wassef, que o abrigava em uma casa em Atibaia, e depósitos de milhões de reais em sua conta de uma empresa de sua ex-mulher que tem contratos com o governo federal.
Bolsonaro pessoalmente usou seu prestígio, também chamado crime de “advocacia administrativa”, para que Wassef fosse recebido na Procuradoria-Geral da República para defender os interesses da empresa JBS, dos irmãos Batista. Wassef recebeu deles R$ 9 milhões por serviços prestados, mas não há esclarecimentos de que serviços seriam esses.
São casos graves no caminho de Bolsonaro para a sonhada reeleição em 2022. Ele vai ter que avaliar qual a melhor fantasia para tentar superar os obstáculos.
Merval Pereira: Reforma necessária
Agora que a reportagem da Rede Globo sobre funcionários fantasmas na Assembléia Legislativa do Rio foi indicada para o Emmy, o maior prêmio internacional da televisão, ao mesmo tempo que a investigação sobre o sistema de “rachadinha” salarial dos funcionários de diversos gabinetes de deputados estaduais, entre eles o hoje senador Flavio Bolsonaro, vai chegando a resultados concretos, é mais que hora de repisar a necessidade de uma revisão da organização dos gabinetes parlamentares em todos os níveis, do federal ao municipal.
Por sua própria natureza, a “rachadinha” demonstra que os parlamentares têm assessores em excesso, cujos salários são também supervalorizados diante do praticado pelo mercado profissional. O assessor Fabricio Queiroz era, segundo está sendo demonstrado nas investigações, o responsável por receber e redistribuir parte dos salários dos funcionários do gabinete de Flavio Bolsonaro.
O valor total da soma dos vencimentos mensais de cada gabinete da Assembléia Legislativa do Rio é de R$ 160 mil, para ser distribuído entre possíveis 40 assessores. Até mesmo auxílio-alimentação é fraudado, segundo denunciou o deputado Luiz Paulo. Segundo ele, seria melhor adotar o ticket-refeição, para evitar o que muitos servidores fazem: devolvem o dinheiro referente ao auxílio-alimentação aos deputados que os empregam, ou para a “caixa” do partido.
A reportagem da Globo mostrou que vários assessores não aparecem para trabalhar, alguns foram flagrados pela reportagem em casa em dia de semana, e uma funcionária mora em Orlando, na Flórida. Depois de a reportagem ser exibida, foram abertas duas investigações, uma da própria Assembléia e outra do Ministério Público estadual, e até agora, oito meses passados, nada foi resolvido. Marli Regina de Souza Costa continua vivendo na Flórida e, mesmo à distância, trocou de deputado, mantendo a mordomia de R$ 23 mil mensais.
Dois dos servidores denunciados aposentaram-se, ganhando mais do que na ativa e com uma vantagem, não precisam mais dar parte de seu salário para ninguém. Na Câmara dos Deputados em Brasília o valor mensal da verba de gabinete é R$ 111.675,59, e cada deputado pode contratar de 5 a 25 secretários parlamentares para “prestar serviços de secretaria, assistência e assessoramento direto e exclusivo nos gabinetes dos deputados, em Brasília ou nos estados”.
Foi num desses cargos que Nathalia Melo, filha de Queiroz foi registrada no gabinete do então deputado federal Jair Bolsonaro, embora trabalhasse no Rio como personal trainer. No Senado, a questão é mais complicada, um “emaranhado de leis” segundo o secretário-geral da Associação Contas Abertas, Gil Castello Branco, que impede que se tenha noção clara dos critérios e salários.
A Transparência Brasil dividiu estados e capitais em grupos de maiores e menores PIBs per capita, e confrontou os tamanhos das economias com os gastos parlamentares – que incluem salários, verbas e auxílios diversos a deputados estaduais e vereadores. “O que se revelou foi uma inversão lógica: segundo dados coletados junto a Assembléias e Câmaras, estados mais pobres gastam em média 20% mais do que os ricos; capitais mais pobres, 16% a mais”.
O Pará, por exemplo, que tem um terço do PIB per capita de São Paulo, gasta 30% a mais por deputado estadual. “A irracionalidade é a mesma quando se comparam as capitais: Natal tem a metade do PIB per capita de Curitiba, mas empenha com seus vereadores o dobro da capital paranaense. No entanto, as Câmaras Municipais destas gastam por vereador 16% a mais com salários, auxílios e verbas indenizatórias do que as capitais com os maiores índices de PIB per capita”.
O mesmo ocorre, segundo o relatório da Transparência Brasil, nas Assembleias Legislativas. Enquanto os 12 estados da base seus gastos com salários e verbas são 20% mais altos do que os dos 12 estados do topo.
Na reforma administrativa que se pretende fazer, este seria um tema prioritário, não apenas para impedir que esse sistema de “rachadinha” se perpetue com o desvio do dinheiro público para os partidos políticos ou o bolso do parlamentar. Também como exemplo de que prevalecerá entre os representantes do povo a postura ética que lhes é exigida pelos cargos para os quais foram eleitos.
Bruno Boghossian: Promotores veem rastro da rachadinha em dados das contas de Flávio Bolsonaro
Saques e depósitos sincronizados reforçam suspeitas sobre senador no caso Queiroz
Os promotores que investigam as rachadinhas na Assembleia Legislativa do Rio perguntaram a Flávio Bolsonaro se ele usou dinheiro vivo para comprar dois apartamentos, em 2012. A suspeita surgiu porque, no mesmo dia, o vendedor dos imóveis depositou R$ 638 mil em espécie num banco próximo ao cartório onde foi registrada a transação.
No papel, a compra foi lançada por R$ 310 mil. Em notas de R$ 100, esse valor caberia numa sacola pequena, mas está longe de ser irrisório. Flávio, entretanto, foi incapaz de negar categoricamente o episódio. “Que eu me recorde, não. Se eu não me engano, foi por transferência”, respondeu, segundo o jornal O Globo.
O avanço do caso pode refrescar a memória do senador. A apuração sobre os rolos de Fabrício Queiroz e sobre as movimentações nas contas de Flávio revelaram uma enxurrada de operações em espécie e uma cadeia de acontecimentos que reforça os vínculos entre os dois personagens. Os promotores enxergam indícios claros de lavagem de dinheiro.
Os dados obtidos pelo Ministério Público mostram uma sincronia nas datas de saques efetuados por Queiroz e depósitos realizados em favor de Flávio, de acordo com a revista Crusoé. Em setembro de 2016, o ex-assessor fez cinco retiradas num valor total de R$ 26 mil. Dias depois, a mesma quantia entrou na conta do então deputado, em 14 parcelas.
Há outras operações desse tipo durante o período investigado. Os promotores acreditam que o dinheiro tinha origem ilícita e que o autor dos depósitos era mesmo Queiroz. A defesa de Flávio nega que ele tenha ficado com parte dos recursos operados pelo ex-assessor.
Tudo indica que o Ministério Público tem elementos suficientes para denunciar Flávio e Queiroz. Os promotores ainda aguardam decisões sobre os recursos em que o senador pede foro especial no caso.
Para os investigadores, o uso de dinheiro vivo tinha o objetivo de esconder rastros dessas movimentações e “não decorre de acidente, nem de mera coincidência”. É bom lembrar.
Ricardo Noblat: Desabafo da mulher de Queiroz indica que o casal viveu cativo
Hóspedes forçados do advogado dos Bolsonaro
Os áudios com o desabafo de Márcia de Aguiar, mulher de Fabrício Queiroz, divulgados pela VEJA, deixam claro que ela e o marido sentiam-se como prisioneiros de Frederick Wassef, advogado de Flávio Bolsonaro e do seu pai, o presidente Jair Bolsonaro. Uma história bem diferente da contada pelo advogado quando a polícia prendeu Queiroz em sua casa no município paulista de Atibaia.
Na versão de Wassef, ele se comoveu com a situação de Queiroz a quem nunca vira antes, procurou-o sem que ninguém o orientasse a fazê-lo e ofereceu abrigo para ele, sua mulher e parentes. Só por “razões humanitárias”, como disse. Queiroz tornara-se um dos homens mais procurados do país pela imprensa, e mais tarde, pelo Ministério Público Federal do Rio que queria interrogá-lo.
Por que Queiroz e a mulher aceitariam a oferta de abrigo feita por um desconhecido? Por que passariam a confiar em um homem que emergiu assim do nada, sem que ninguém o recomendasse? Não faria o menor sentido. Elementar: Wassef deve ter sido bancado por alguém com bastante influência sobre o casal Queiroz. E não é tão difícil imaginar quem foi direta ou indiretamente.
Os áudios de Márcia datam de novembro do ano passado quando ela e o marido eram hóspedes de Wassef, mantidos numa espécie de cativeiro e contrariados por serem impedidos de sair de lá. Em conversas com a advogada Ana Flávia Rigamonti, contratada por Wassef para vigiá-los junto com um empregado da casa, Márcia traiu toda a sua insatisfação com a vida que levava.
Contou que, ao longo de um ano, fora obrigada a abrir mão de sua vida particular, privar-se de ir ao médico até para fazer exames de rotina e, em alguns momentos, não podia sequer utilizar o celular. As medidas cautelares foram ditadas pelo “Anjo”, codinome de Wassef, segundo o Ministério Público Federal, empenhado em manter sob segredo o paradeiro de Queiroz.
“A gente não é foragido. Isso está acabando comigo, amiga, acabando. De boa mesmo. Está acabando”, diz Márcia a Ana Flávia. “Está me destruindo por dentro. Eu estou aqui me desabafando, porque não consigo passar isso para ele [Queiroz]. E a minha preocupação é esse stress, esse emocional dele abalado, piorar a situação dele com essa doença”.
Ana Flávia retruca: “Eu sei que ele não está bem. Ele está tentando se distrair. Mas a gente sabe que não está fácil. (…) Ele mesmo falou para o Anjo: ‘Olha, eu não estou aguentando mais. Quero ir para minha casa’”. E Márcia completa: “Eu estou vendo que todo mundo está vivendo a sua vida. Agora, a gente não. Então, somos foragidos para viver fugindo? Não é possível isso, entendeu?”
Márcia não estava com Queiroz quando ele foi preso em 19 de junho último. Havia uma ordem de prisão contra ela. Márcia fugiu e só reapareceu quando o marido deixou a cadeia no dia 10 de julho para cumprir prisão domiciliar com tornozeleira eletrônica. Desde então ela está ao lado dele, também com tornozeleira. O Ministério Público Federal aposta que um deles acabará delatando.
A prisão de Queiroz foi responsável pela radical mudança de comportamento do presidente Bolsonaro. Saiu de cena o incendiário, o promotor de crises, o falastrão, o agitador que marcava presença em manifestações de rua hostis à democracia. Entrou em cena o presidente moderado, que loteia cargos do governo com os partidos e chama os parlamentares de “sócios”.
Ricardo Noblat: Aperta o cerco ao senador Flávio Bolsonaro, o Zero Um
Depósitos suspeitos em dinheiro vivo
O primogênito do presidente Jair Bolsonaro tem mais o que fazer em setembro do que atender à convocação do Ministério Público Federal do Rio para ser acareado com o empresário Paulo Marinho. Foi o que disseram seus advogados, e, como senador, ele tem de fato o direito de escolher dia e hora para depor.
Marinho disse que às vésperas da eleição presidencial de 2018, Flávio foi avisado por um delegado da Polícia Federal que seu assessor Fabrício Queiroz seria em breve um dos alvos de uma operação de combate à corrupção, e que o fato poderia prejudicar a candidatura do seu pai, líder das pesquisas.
Foi o próprio Flávio quem teria revelado isso à Marinho, na casa do empresário. Queiroz foi demitido no dia seguinte, bem como uma de suas filhas, funcionária do gabinete de Bolsonaro, o pai, em Brasília. Flávio admite a reunião com Marinho, mas nega o teor da conversa. Um dos dois, portanto, mente. Daí a acareação.
Não seria difícil descobrir quem fala a verdade. Segundo Marinho, ao saber que o delegado tinha um comunicado importante a lhe fazer, Flávio mandou três emissários ao seu encontro. A quebra do sigilo telefônico dos três indicaria se eles trocaram informações a respeito, mas um juiz proibiu que isso fosse feito.
Mesmo assim avançam as investigações do Ministério Público Federal e aperta o cerco em torno do senador. Extratos bancários da loja de chocolates de Flávio no Rio mostram depósitos em dinheiro vivo sucessivos, com o mesmo valor, entre março de 2015 e dezembro de 2018. O Jornal Nacional cruzou os dados.
Chama atenção a quantidade de depósitos em dinheiro vivo na conta da franquia feitos de maneira fracionada e muitos com valores redondos. Foram 63 depósitos de R$ 1,5 mil em espécie, 63 de R$ 2 mil e 74 de R$ 3 mil. Dos depósitos no valor de R$ 3 mil, 12 foram na boca do caixa e 62 no terminal de autoatendimento.