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Ricardo Noblat: O preço de uma vida

Flamengo barganha para pagar menos pela morte dos seus 10 garotos

Para a direção do Flamengo, a vida de cada um dos 10 garotos torrados vivos no alojamento clandestino do seu Centro de Treinamento vale alguma coisa entre R$ 300 mil e R$ 400 mil. É quanto o clube está disposto a pagar às famílias deles.

Mais do que isso, seria um absurdo, segundo Rodolfo Landim, presidente do Flamengo. O Ministério Público do Rio de Janeiro propôs o pagamento de R$ 2 milhões a título de indenização. Landim respondeu: nem pensar.

O que seriam R$ 20 milhões para um clube cuja receita prevista para este ano é de R$ 750 milhões? Só para reforçar o time, o Flamengo está disposto a gastar até 100 milhões. Gastou R$ 55 milhões para ter Arrascaeta, e R$ 21 milhões por Rodrigo Caio.

Dito de outra maneira: o que o Flamengo desembolsou para contratar Rodrigo Caio seria o suficiente para indenizar as famílias dos 10 garotos incendiados. O Flamengo, afinal, era responsável por eles. Foi aos seus cuidados que eles morreram tragicamente.

Landim considera uma fatalidade o que ocorreu. Fatalidade coisa nenhuma. Fatalidade significa um destino que não pode ser evitado. O destino dos 10 garotos foi selado pela irresponsabilidade das direções anteriores do clube.
O Centro de Treinamento do Flamengo está interditado pela prefeitura do Rio desde outubro de 2017. Não poderia servir sequer para treinamento dos atletas do time principal. Mas continua servindo. E o clube, mês a mês, é multado por isso.

Já pagou 10 multas. As demais ainda deve. O alojamento dos garotos não existia na planta do Centro de Treinamento entregue à prefeitura e ao Corpo de Bombeiros. O espaço, ali previsto, era para estacionamento de veículos.

Não havia extintores de incêndio no alojamento, nem os garotos haviam sido instruídos sobre como lidar com fogo. Havia um extintor do lado de fora. Os aparelhos de ar condicionado careciam de dispositivo que impedisse a passagem do fogo entre eles.

Landim e seus colegas de diretoria deram um show de insensibilidade e de arrogância ao se recusaram por 15 dias a responder a qualquer pergunta sobre o que acontecera. Somente ontem Landim o fez, e para reclamar do valor da indenização.

O estrago na imagem do Flamengo é incalculável – assim como o preço da dor sofrida por cada garoto antes de morrer, e de suas famílias desde então. Mas o preço da dor foi fixado pelo Ministério Público e aceito pelas famílias. O Flamengo recusa-se a pagar.

João de Deus põe justiça em xeque

Quem se habilita?
A mais alta corte de justiça do país tem um problema: quem, ali, se dispõe a ser o relator do pedido de habeas corpus que poderia libertar o líder religioso João Teixeira de Faria, vulgo João de Deus, acusado de abusar sexualmente de dezenas de mulheres no seu templo em Abadiânia, Goiás?

O ministro Gilmar Mendes, sorteado para ser o relator, abdicou da tarefa. Declarou-se suspeito por “problema de foro íntimo”. Gilmar consultou-se várias vezes com João de Deus, tornou-se seu amigo, aproximou-o de figuras importantes da República e do mundo empresarial. Considerava-o capaz de operar milagres.

Fora Gilmar, há mais 10 ministros no Supremo Tribunal Federal, em tese todos aptos a relatarem o pedido de habeas corpus. Mas pelo menos 8 deles também frequentaram o consultório de João de Deus. O ministro Luiz Roberto Barroso foi lá se tratar de um câncer. Por curiosidade, foram lá os ministros Dias Toffoli e Luiz Fux.

Se o exemplo de Gilmar for seguido pelos ministros atendidos por João de Deus, só restarão dois para se encarregar do caso. Por ora, desconhece-se a identidade deles.


Ricardo Noblat: O silêncio vergonhoso dos culpados

Esperanças destruídas

Digamos que um pico de energia, na noite do temporal que afogou parte do Rio na semana passada, provocou o incêndio que torrou vivos os 10 garotos alojados nos contêineres do Campo de Treinamento do Flamengo. E daí? O clube seria menos culpado pelo que aconteceu?

Quantos picos de energia foram registrados naquela noite? Em que pontos da cidade? Quantas vezes os bombeiros foram acionados para apagar incêndios? Há dispositivos que impeçam a passagem de fogo de um aparelho de ar condicionado para outros? Havia algum no Campo de Treinamento do Flamengo?

Na ausência dos pais, o Flamengo era o responsável pela integridade daqueles garotos. Dava-lhes de comer. Dava-lhes abrigo. Zelava por sua higiene. Afinal, a quem por contrato eles serviriam no futuro caso fossem escolhidos para isso? Quem mais lucraria com o eventual sucesso deles?

O Flamengo não pediu autorização para instalar contêineres no Centro de Treinamento do clube. Quer dizer: descumpriu a legislação ao instalar os contêineres no Ninho do Urubu sem a prévia autorização legal. Oficialmente, aquele local não existia. Era uma área destinada a estacionamento.

O Centro de Treinamento foi fechado pela prefeitura em outubro de 2017. Fechado deveria estar, pois. O Flamengo ignorou a ordem e reabriu-o. Não satisfeito de desrespeitar ordem de autoridade pública, construiu um alojamento para os garotos sem nunca ter pedido licença para sua instalação.

“Isso não tem nada a ver com o acidente”, desculpou-se Reinaldo Belotti, o CEO do Flamengo, em pronunciamento que fez ontem sob a condição de não responder a perguntas de repórteres. “Temos providências a tomar para que o Centro de Treinamento seja legalizado. Estamos trabalhando para isso”.

Belotti pode dizer o que quiser, como qualquer outro dirigente do clube. Mas o alojamento carecia das mínimas condições de segurança para prevenir um evento como o que ocorreu. Só havia uma porta de saída, exígua. Extintores de fogo? Só do lado de fora. Se isso não configura negligência, o que negligência é?

De um total de 31 multas aplicadas pela prefeitura ao Flamengo desde outubro de 2017 por ele manter em funcionamento o que fora lacrado, o clube pagou 10 e deixou de pagar 21. Ao pagar algumas sem contestar foi porque reconheceu que seu Centro de Treinamento estava fora da lei. Simples assim.

Segundo a Lei 9.615, chamada de Lei Pelé, cabe à Confederação Brasileira de Futebol (CBF) certificar clubes formadores de atletas. Ao certificar o Flamengo, ela garantiu o funcionamento do seu Centro de Treinamento, embora ele fosse ilegal, e embora o próprio Centro tivesse sido interditado.

Ao jornal Folha de S. Paulo, a CBF confirmou o certificado, mas disse que a fiscalização do local cabia à Federação de Futebol do Estado do Rio, não a ela. A Lei Pelé diz que a fiscalização é responsabilidade da “entidade nacional”. Ou seja: da CBF. A Federação informa que nada tem a ver com isso.

A Lei Pelé determina que clube formador de atletas está obrigado a manter alojamentos e instalações desportivas adequados, sobretudo em matéria de alimentação, higiene, salubridade e segurança. Como demonstrado, segurança contra incêndio não havia no alojamento clandestino dos garotos.

Certamente nenhum diretor do Flamengo irá para a cadeia porque o clube falhou em garantir a vida de quem estava aos seus cuidados. Mas não basta que o clube indenize as famílias dos incinerados, a única esperança que elas tinham de sair da pobreza. Terá de bater no peito e reconhecer sua máxima culpa.

Um crime não é menos crime porque se insiste em chamá-lo de acidente. Crime é crime, ponto. E o Ninho do Urubu foi cenário de um.


Ricardo Noblat: De uma vez, Flamengo, assuma sua culpa!

O crematório do Ninho do Urubú

Direto ao ponto: salvo se algum dos garotos, ou um terrorista infiltrado nas dependências do clube, tenha tocado fogo no alojamento onde dormia parte do futuro do Flamengo, o que aconteceu ontem no Ninho do Urubu tem um único culpado: a diretoria. Mais precisamente: as diretorias do Flamengo desde que aquelas instalações foram construídas.

Na verdade, se pode falar em instalações, mas em construção seria exagero. Juntaram vários contêineres, desses transportadas por navios e carregados de mercadorias. No espaço exíguo de cada um, claustrofóbico, montaram beliches, apinharam armários e dispuseram um aparelho de televisão. A saída era estreita, e única. Não havia extintores de incêndio, a não ser do lado de fora.

O orçamento total do Flamengo para este ano é de R$ 750 milhões. Pelo menos R$ 100 milhões foram reservados só para reforçar o elenco. Em um clube forrado com tanto dinheiro, capaz de fazer a torcida exultar com contratações milionárias, adolescentes promissores dormiam e sonhavam com glórias em um espaço que se transformou em um forno, torrando-os cruelmente vivos.

A prefeitura do Rio lacrara o Campo de Treinamento (CT) do Flamengo em outubro de 2017. Motivo: o clube havia sido multado 30 vezes por falta de alvará de funcionamento. Sequer pagou o que devia. Naquele mesmo ano, o Flamengo reabriu o que fora fechado. Na prática, mandou a prefeitura às favas. O clube nunca pediu licença para construir qualquer coisa na área atingida pelo fogo.

“A área de alojamento atingida pelo incêndio não consta do último projeto aprovado pela área de licenciamento, em 05/04/18, como edificada. No projeto protocolado, a área está descrita como um estacionamento”, segundo nota oficial distribuída pela prefeitura. “Não há registros de novo pedido de licenciamento da área para uso como dormitórios”.

De resto, desde 2015, o Ministério Público do Rio entrara na justiça com uma ação cívica pública exigindo que o clube melhorasse as condições de alojamento dos jovens jogadores que precisassem morar no Ninho do Urubú, “inferiores até mesmo àquelas ofertadas aos adolescentes em conflito com a lei que cumprem medidas socioeducativas” em unidades prisionais. Deu em nada.

“Quase 500 atletas nascidos no Brasil que já atuavam no exterior trocaram de país no ano passado, e R$ 3,2 bilhões foram movimentados”, apurou Martín Fernandes, repórter de O Globo. “Cerca de R$ 160 milhões voltaram para os clubes onde esses jogadores foram formados. Deveria ser dinheiro suficiente para garantir que ninguém morresse queimado num alojamento”.

Para não terem que responder a perguntas incômodas, os diretores do Flamengo passaram o dia de ontem em reuniões e convocaram outras para hoje. O presidente do clube limitou-se a fazer um pronunciamento, sem direito a ser interrompido. Repetiu os lugares comuns que autoridades acuadas costumam usar quando estão diante de algo dramático que possa vir a culpá-las.

O que mudou na política pública de proteção a museus depois do grande incêndio que destruiu no Rio o Museu Nacional? Entre Mariana, há 3 anos, e Brumadinho, há 15 dias, nada mudou na política de fiscalização de barragens.

Com uma folha corrida de centenas de anos de estúpida impunidade, quem pode garantir que este país jamais assistirá a algo semelhante ao que ocorreu ontem?