filosofia
Vitruvius: Filosofia e desigualdade - A festa brasileira em Rouen em 1550
Luiz Philippe Torelly
“Nos tempos antigos, os homens não conheciam as doenças, o sofrimento ou a morte. Não havia brigas. Todos eram felizes. Naquele tempo, os Espíritos da floresta viviam junto com os homens.” Relato dos índios guianenses (1).
Algumas coincidências acabam por nos fazer crer em sincronicidade e em como situações históricas de um passado remoto podem ressurgir, naturalmente, sob outras circunstâncias e roupagem. Esse é o caso do presente texto.
Fico sempre à procura de “novidades”, especialmente de relatos de viagens ou acontecimentos inusitados que fujam à regra da história dos vencedores e das grandes datas, que possam como uma lupa desvendar o particular (2). Foi assim que me deparei com um opúsculo de título curioso, Uma festa brasileira celebrada em Ruão em 1550. Foi amor à primeira vista. De autoria de Ferdinand Denis e publicado em 1850, relata um acontecimento na história da França e do Brasil, com profundas raízes na filosofia e no imaginário da desigualdade que sempre determinou as relações entre a maioria dos homens.
Tal fato foi inicialmente relatado na denominada Narrativa da suntuosa entrada, atribuída a Maurice Sève, publicada em Rouen em 1551. O texto registra a “entrada” (3) realizada em homenagem ao rei de França Henrique II e à rainha Catarina de Médicis, em 1550. As “entradas” eram celebrações, muitas vezes de caráter teatral ou religioso, em homenagem a acontecimentos ou personalidades de que se utilizava a realeza para exibir seu poderio e riqueza: a antiga fórmula do pão e circo. Frequentes no ancien régime francês, essas efemérides ocorreram até o século XIX, como na repatriação dos restos mortais de Napoleão Bonaparte ou no enterro de Victor Hugo, que atraiu mais de um milhão de parisienses.
O episódio de Rouen se tornou célebre e chegou aos nossos dias graças ao texto de Montaigne Os canibais, parte de seu livro Os ensaios. A festa teve um aspecto inusitado e grandiloquente por suas proporções e riqueza de detalhes. Envolvia a representação em grande escala de um cenário brasileiro, com fauna e flora originais, inclusive, onde trezentos homens, dentre eles cinquenta indígenas, simulavam um confronto entre tupinambás e tabajaras, com a vitória dos primeiros. Sua significância advém do ensaio de Montaigne e de sua influência sobre as ideias de Jean Jacques Rousseau, da Revolução Francesa de 1789 e das origens do socialismo, especialmente da luta de classes e da crítica ao fundamento da propriedade privada. Importante mencionar A utopia, de Thomas Morus, obra que antecede em algumas décadas a de Montaigne, como uma das fontes primeiras dessas formulações. Parte desse acontecimento perenizou-se em gravuras e na pedra, nos baixos relevos na Igreja de Saint-Jacques em Dieppe.
Em 1580, Montaigne publica a 1ª edição de Os ensaios, na qual está incluído aquele intitulado Os canibais. Nele retrata uma sociedade edênica e, num imaginário diálogo com Platão, afirma:
“É uma nação em que não há nenhuma espécie de comércio, nenhum conhecimento das letras, nenhuma ciência dos números, nenhum termo para magistrado nem para superior político, nenhuma prática de subordinação, de riqueza ou de pobreza, nem contratos nem sucessões, nem partilhas, nem ocupações além do ócio, nenhum respeito ao parentesco exceto o respeito mútuo, nem vestimentas, nem agricultura, nem metal, nem uso de vinho ou de trigo. As próprias palavras que significam mentira, traição, dissimulação, avareza, inveja, difamação, perdão são desconhecidas” (4).
Nosso autor relata em sua obra que tais informações sobre os indígenas brasileiros, no caso os tupinambás, teriam lhe sido narradas por um homem que havia morado no Novo Mundo por dez ou doze anos. Tudo indica que ele teve acesso, entre outras, às obras Singularidades da França Antártica, do abade e cosmógrafo André Thevet (5), e Viagem à terra do Brasil, do pastor Jean de Léry.
Importante destacar que as obras citadas lhe eram contemporâneas e seus autores, um católico e outro calvinista, se encontravam em lados opostos na guerra religiosa que incendiava a França do século 16. Tal guerra culminaria com a tristemente famosa Noite de São Bartolomeu de 1572, que desencadeou escaramuças em todo o país, ceifando milhares de vidas. Os franceses, desde o início do século 16, estiveram em contato com os indígenas na costa brasileira, com o objetivo de extrair o pau-brasil, a primeira riqueza a atrair navegantes e corsários. A tentativa de fundar a França Antárticana Baía da Guanabara e adjacências a partir de 1555 foi uma iniciativa que tinha por objetivo o estabelecimento de uma colônia permanente. A empreitada foi frustrada, pois, além da dura oposição militar dos portugueses, foi envolvida em lutas religiosas entre calvinistas e católicos, o que comprometeu seriamente sua unidade militar, favorecendo a vitória lusa.
Desde as primeiras viagens às Américas, os índios foram levados para além-mar, na condição de escravos ou troféus exóticos da “terra dos papagaios”. Um dos casos mais célebres foi o de Catharina Paraguassu, que se casou na cidade francesa de Saint-Malo, em 1528, com Diogo Álvares, o famoso Caramuru, náufrago português que morava entre os índios onde hoje se localiza a cidade de Salvador, na Bahia. Há farta mitologia sobre o casal, tido como a primeira união entre brancos e índios no país. Outro caso emblemático foi o de Essomericq, levado para a França pelo capitão Binot Paulmier, em 1504, do qual adotou o nome de família. Essomericqradicou-se no país e casou-se com uma natural. Ambientou-se de tal forma que um seu bisneto, o abade Jean de Paulmier, tornou-se cônego da Catedral de Lisieux. Nesse contexto é que foram levados para Rouen os cinquenta indígenas participantes da citada festa brasileira. A festa em si não é tratada por Montaigne, apenas o diálogo entre os índios e o rei Henrique II, ápice e corolário de seu ensaio que entraria para a história da filosofia.
A “entrada” à qual me referi foi um acontecimento que procurava reproduzir para os franceses o modo de viver dos indígenas, classificados pelo senso comum de “bárbaros” ou “selvagens” por seus hábitos e costumes. Guardadas as devidas proporções, promoveu uma espécie de escola de samba a evoluir um enredo. Na época já existiam numerosas descrições de seres e plantas do Novo Mundo, alguns monstruosos, que mesclavam fantasia e realidade, com origem em mitos e lendas da Antiguidade e do Medievo.
Dois deles se tornaram particularmente famosos: a ipupiara, cabeça e focinho de cão, seios femininos, mãos e braços humanos e patas de ave de rapina e as famosas amazonas, mulheres guerreiras de seios desnudos, já mencionadas desde Alexandre, o Grande.
Deixo a cargo do leitor a consulta a duas obras que descrevem com pormenores o acontecimento, por não ser esse o objetivo primeiro dessas anotações. A primeira delas é a de Ferdinand Denis, já citada. A segunda é o excepcional livro de Afonso Arinos de Melo Franco, O índio brasileiro e a Revolução Francesa,publicado em 1937 (6). Arinos realizou ampla e profunda pesquisa sobre a influência do índio brasileiro nas ideias do Iluminismo e da teoria da bondade natural, especialmente sobre Diderot e Rousseau e seus desdobramentos no ideário da Revolução Francesa. Livro de juventude, escrito aos 32 anos, figura como uma das obras mais importantes produzidas no país na primeira metade do século 20, malgrado sua ótica conservadora ao desenvolvimento de teorias calcadas no conceito de bondade natural dos indígenas, como por exemplo o marxismo, especialmente em sua crítica à propriedade privada.
Vários pensadores e filósofos antecederam Rousseau na formulação dos princípios da bondade natural e do mito do bom selvagem. Dentre eles, Thomas Morus, Erasmo de Roterdã, Montaigne e Diderot, apenas para citar os mais notórios. No entanto, coube a ele, especialmente em seus dois discursos – Sobre as ciências e as artes e Sobre as origens da desigualdade –, a síntese das ideias políticas que duas décadas depois influenciariam a Revolução Francesa, tendo como dístico os famosos princípios Igualdade, Liberdade e Fraternidade. Mais tarde, duas outras obras se somam às primeiras para consolidar sua doutrina política e filosófica: Do contrato social, sobre os paradigmas políticos que podem reconduzir o homem ao seu estado natural e assegurar a soberania política da vontade coletiva, e Emílio, no qual formula uma proposta pedagógica coerente com suas concepções.
Em várias passagens do Discurso sobre as origens da desigualdade, Rousseau qualifica o conceito de bondade natural. Selecionamos uma delas5 para, inclusive, destacar as similitudes com a citação de Montaigne:
“Ora, nada é mais meigo do que o homem em seu estado primitivo, quando, colocado pela natureza a igual distância da estupidez dos brutos e das luzes da sociedade civil, e compelido tanto pelo instinto quanto pela razão a defender-se do mal que o ameaça, é impedido pela piedade natural de fazer mal a alguém sem ser a isso levado por alguma coisa ou mesmo depois de ser atingido por algum mal. Porque, segundo o axioma do sábio Locke, não haveria afronta se não houvesse a propriedade” (7).
Pode-se dizer que as duas passagens fazem parte do mesmo discurso. Daí a longevidade das obras desses dois autores cuja influência sobre a filosofia, a literatura, a antropologia e a etnografia atravessou os séculos e alcançou os nossos dias. Registre-se que ambos se valeram dos relatos de Thevet, Léry e Staden, que, embora naturalmente se surpreendessem com os casos de canibalismo e outras práticas dos indígenas, reconheceram suas inúmeras qualidades e virtudes, como na seguinte passagem de Jean de Léry: “O que disse é apenas para mostrar que não merecemos louvor por condená-los austeramente, só porque sem pudor andam desnudos, pois os excedemos no vício oposto, no da superficialidade de vestuário” (8). O indígena se transfigura em selvagem, bárbaro, preguiçoso à medida que avança a colonização, quando passa a conviver com os portugueses e com aqueles, muitas vezes seus descendentes (mamelucos), que querem destruir seu mundo, subjugá-lo, subverter seus usos e costumes e roubar suas terras, como ainda vemos no Brasil de hoje.
A crítica, especialmente às ideias de Rousseau, advém em parte de seu comportamento exótico e de sua vida pessoal, dissociada de suas concepções, e de suas denúncias aos valores e instituições da civilização ocidental. Marilena Chauí, na introdução à edição brasileira do livro Do contrato social, nos esclarece:
“Se os abusos do estado social civilizado não o colocassem abaixo da vida primitiva, o homem deveria bendizer sem cessar o instante feliz que o arrancou para sempre da animalidade e fez de um ser estúpido e limitado uma criatura inteligente. O propósito visado por Rousseau é combater os abusos e não repudiar os mais altos valores humanos” (9).
O achado do livro deFerdinand Denis me levou a outros, guiado por um magnetismo em que o acaso e a curiosidade têm certa participação. Montaigne nos deu a chave da relevância do episódio e de sua oportunidade na atualidade brasileira. Ao final da festa, o rei convidou três dos indígenas para uma conversa. Falou-lhes por muito tempo sobre as excelências da cidade de Rouen e da festa em si. Perguntou-lhes, então, do que mais tinham gostado. Eles responderam em primeiro lugar que achavam estranho que tantos homens fortes e armados obedecessem a uma criança e que não escolhessem entre eles um igual para comandante Em segundo lugar, mostraram seu espanto e indignação em ver que, enquanto alguns estavam abarrotados de todas as comodidades e tinham mesa farta, outros estivessem pelas ruas da cidade reduzidos à fome e à pobreza. Concluíram com essas palavras o seu diálogo com o rei: “e achavam estranho como essas metades daqui, necessitadas, podiam suportar tal injustiça, que não pegassem os outros pela goela ou ateassem fogo em suas casas” (10).
Decorridos 466 anos da Festa Brasileirae 227 da Revolução Francesa, infelizmente ainda remanescem a desigualdade, a pobreza, a violência, o etnocentrismo, apesar da criação de instituições aparentemente democráticas, esforço permanente desde a Renascença e o Iluminismo. Estudos recentes realizados na Itália, abarcando o período de 1427 a 2011, e na Inglaterra, de 1170 a 2012, a partir de censos e declarações de renda entre outras fontes, concluíram que os sobrenomes dos mais ricos e dos mais pobres não haviam se alterado. Guardadas possíveis imprecisões e distorções, esses estudos constituem indicativo de que o dinheiro não mudou de mãos, a par de avanços na educação e na saúde e na proteção ao trabalho. Gregory Clark e Neil Cummins, da London School of Economics, revelam que as universidades mais famosas do país, como Oxford e Cambridge, são quase que exclusivas dos mais ricos, mantendo uma elevada seletividade mesmo com ampliação das possibilidades de acesso. Segundo Neil Cummin:
“Essa correlação é inalterada ao longo dos séculos. Ainda mais notável é a falta de um sinal de qualquer declínio na persistência de status social durante períodos de mudanças institucionais, como a Revolução Industrial do século XVIII, a disseminação da escolarização universal no final do século XIX (no Brasil só a atingimos na 2ª década do século XXI), ou a ascensão do estado socialdemocrata no século XX” (11).
Thomas Piketty, em seu livro O capital no século XXI, lançado em 2014, causou furor, e às vezes críticas azedas, ao constatar a progressão da desigualdade. Ele analisa em profundidade a dinâmica de acumulação do capital e sua evolução em longo prazo, bem como a distribuição da renda entre o capital e o trabalho, em um período de três séculos, em vinte países. Na introdução de seu livro, afirma:
“O crescimento econômico moderno e a difusão do conhecimento tornaram possível evitar o apocalipse marxista, mas não modificaram as estruturas profundas do capital e da desigualdade – ou pelo menos não tanto quanto se imaginava nas décadas otimistas pós-Segunda Guerra Mundial. Quando a taxa de remuneração do capital ultrapassa a taxa de crescimento da produção e da renda, como ocorreu no século XIX e parece provável que volte a ocorrer no século XXI (caso brasileiro), o capitalismo produz automaticamente desigualdades insustentáveis, arbitrárias, que ameaçam de maneira radical os valores da meritocracia sobre os quais se fundam nossas sociedades democráticas” (12).
É exatamente isso o que está acontecendo no Brasil. Há sério risco de desmonte da política de recuperação dos salários, de ampliação dos direitos trabalhistas e dos benefícios sociais que, entre 2001 e 2013, reduziu o percentual de brasileiros que vivem em extrema pobreza de 10% para 4%. Mais: 25 milhões de pessoas saíram da pobreza extrema ou moderada no mesmo período. Saímos do malfadado mapa mundial da fome. É o que diz o relatório de abril de 2015 do insuspeito Banco Mundial, Prosperidade compartilhada e erradicação da pobreza na América Latina e Caribe (13). Refletindo sobre a crise política, institucional e moral na qual o país está imerso – na ineficácia e porque não falar na anomia de suas instituições, na instabilidade da economia, nos milhões de empregos perdidos, no retrocesso das conquistas sociais e políticas das últimas décadas, na corrupção e impunidade, exclamo: ainda temos muito a aprender com a bondade natural e o “bom selvagem”!
Notas
(1) Registro de Lévi-Strauss sobre relato de índios guianenses. In LÉVI-STRAUSS, Claude. O cru e o cozido. São Paulo, Cosac Naify, 2010, p. 320.
(2) DENIS, Ferdinand. Uma festa brasileira celebrada em Ruão em 1550. Brasília: Senado Federal, 2011, p. 38. Ver também JONES, Colin. Paris, biografia de uma cidade. 5 ed. Porto Alegre: L&PM, 2013, p.129-130.
(3) MONTAIGNE, Michel. Os ensaios: uma seleção. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, 146.
(4) FRANCO, Afonso Arinos de Melo. O índio brasileiro e a Revolução Francesa: as origens brasileiras da teoria da bondade natural. 2 ed. Rio de Janeiro: J. Olympio; Brasília: INL, 1976, 48.
(5) ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. São Paulo: Nova Cultural, 2000, p. 93, volume II.
(6) LÉRY, Jean de. Viagem à terra do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia, 2007, p. 121.
(7) CHAUÍ, Marilena. Introdução a Rousseau. In: Coleção Os Pensadores – Rousseau, volume I. São Paulo: Nova Cultural, 2000, p. 13.
(8) MONTAIGNE, Michel. Os ensaios: uma seleção. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p.157.
(9) CLARK, Gregory e CUMMINS, Neil. Desigualdade: estudos sobre as famílias ricas mostram que os pobres são os mesmo de sempre. Disponível em: www.diariodocentrodomundo.com.br. Acesso em 14 jul. 2016.
(10) PIKETTY, Thomas. O capital no século XXI. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014.
(11) CLARK, Gregory; CUMMINS, Neil. Apud DONATO, Mauro. Desigualdade: estudos sobre as famílias ricas mostram que os pobres são os mesmo de sempre. São Paulo, Diário do Centro do Mundo, 13 jul. 2016 <www.diariodocentrodomundo.com.br/desigualdade-estudos-sobre-as-familias-ricas-mostram-que-os-pobres-sao-os-mesmos-de-sempre-por-donato>. Acesso em 14 jul. 2016.
(12) PIKETTY, Thomas. O capital no século XXI. Rio de Janeiro, Intrínseca, 2014.
(13) CORD, Louise; GENONI, Maria Eugenia; RODRÍGUEZ-CASTELÁN, Carlos (org.). Shared Prosperity and Poverty Eradication in Latin America and the Caribbean. Washington, World Bank Group, 2015 <www.resbr.net.br/wp-content/uploads/2015/05/Shared.pdf>.
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sobre o autor
Luiz Philippe Peres Torelly é arquiteto e urbanista pela Universidade de Brasília em 1979. É especialista em gestão de políticas públicaspelo IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, e em Planejamento Urbano pela CAPES/CNDU. Cumpriu créditos do curso de mestrado em Planejamento Urbano pela Universidade de Brasília. Trabalhou em diversas instituições públicas voltadas para as questões habitacionais, urbanísticas, de planejamento urbano e regional e preservação do Patrimônio Cultural: Banco Nacional da Habitação, Conselho Nacional de Desenvolvimento Urbano, Caixa Econômica Federal, Instituto de Planejamento Territorial e Urbano do DF (diretor presidente), Secretaria de Habitação e Desenvolvimento Urbano do DF (secretário), Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (diretor de Promoção do Patrimônio Cultural 2007/2009 e diretor de articulação e fomento (2013/2016). Foi eleito o Arquiteto do Ano de 2015, na categoria setor público pela Federação Nacional dos Arquitetos.
Wilson Gomes: Precisamos falar sobre o “lugar de fala”
Ferramentas conceituais na luta política
Em política, cada lado se dota das ferramentas conceituais que consegue imaginar, desde que funcionem com eficiência. “Funcionar”, no caso, significa servir a propósitos que favoreçam quem o emprega: aglutinar os seus, reforçar laços identitários, constranger oponentes, oferecer justificativa moral para as pretensões do grupo, atrair simpatia ou compreensão geral, mobilizar para a ação política, dentre outros.
Em política, cada lado tentará convencer todos de que as suas ferramentas conceituais preferidas são teses objetivas sobre o funcionamento do mundo, são evidências incontornáveis sobre fatos e não instrumentos para os propósitos da tribo. É o que a direita fez com “politicamente correto”, ferramenta usada para desqualificar comportamentos que os liberais simplesmente chamaríamos de “respeito e consideração pelos outros”, principalmente por minorias socialmente estigmatizadas. E é o que a extrema-direita agora faz com ferramentas-conceitos como “ideologia de gênero”, “comunismo”, “doutrinação ideológica” e “gayzismo”. Para os partidários, não são o resultado de interpretações discutíveis de fatos, não são hipóteses arriscadas e não testadas, orientadas por preferências e conveniências. Não, são fatos objetivos e incontestáveis, a dura realidade que o outro lado não aceita e não pode aceitar apenas porque iria desmascarar o que ele realmente é.
A esquerda também tem as suas ferramentas conceituais de cunho ideológico, forjadas para os propósitos da luta política. Dentre estas, destaca-se por sua rápida assimilação e extrema adesão, principalmente por parte da assim chamada esquerda identitária, a ideia de “lugar de fala”. A este ponto, importam pouco as intenções originárias do conceito, como crítica às pretensões universalistas dos discursos sociais, como revelação de que todo discurso é situado e traz consigo as marcações, de toda natureza, que configuram a posição social de quem fala. Há pilhas de intuições conceituais dessa natureza abandonadas ou pouco frequentadas por quem estuda ou pensa a sociedade. O conceito foi retirado do uso contido e quase obscuro das pessoas que só frequentam livros e ideias, e se tornou um sucesso de público apenas quando foi transformado em ferramenta da luta política. O que realmente importa, portanto, é o seu emprego como parte dos recursos ideológicos de um dos lados da disputa política.
Nesse sentido, falar de deturpação ou distorção do conceito por aqueles que o empregam faz pouco sentido, vez que dificilmente se pode separar significado de uso. Filosoficamente, não faz sentido opor conceito e uso. No máximo, podemos dizer que o conceito original de “lugar de falar” foi em sua maior parte reconfigurado como um novo conceito, este, sim, de amplo uso e enorme gama de aplicação na luta política.
E “lugar de fala” tem sido uma ferramenta largamente usada nos últimos tempos, tanto para reforçar os vínculos identitários de certos estratos da esquerda quanto para mobilizar e engajar para a luta política, tanto para orientar a ação política dos mobilizados e engajados como para oferecer justificativas de superioridade moral para ação praticada. Nestes ambientes, “lugar de fala” é tanto um discurso sobre direitos de autorrepresentação por parte de minorias (“nós podemos falar em nosso nome e de nossas coisas”), quanto uma reivindicação de reconhecimento da autoridade de uma determinada minoria para falar sobre determinados temas e “protagonizar” determinadas ações. Mas, da reivindicação de falar por si mesmos, de não ser reduzidos perenemente à condição de objeto ou assunto, chegou-se rapidamente à reivindicação de superioridade absoluta da autorrepresentação, à interdição da fala que não se situa na minoria e à inspeção constante para verificar se essas duas premissas são integralmente cumpridas em todas as formas de expressão artísticas, científicas e políticas. Como tão bem formulou o professor Luis Felipe Miguel esta semana em seu perfil no Facebook, “nos combates políticos, ‘lugar de fala’ surge casado com a percepção extrema de um privilégio epistêmico dos dominados. (…) O acesso à verdade depende da posição social e de nada mais”.
Como ferramenta ideológica, motiva e justifica, por exemplo, inspeções nas listas de bibliografias para verificar a proporção de autores por seu “lugar de fala”, independentemente de quaisquer outros critérios. Assim como se conhecem fiscalizações desta natureza – com o consequente lavramento de autos de infração e punições instantaneamente aplicadas por meio agressões, bloqueios e impedimentos – em peças de teatro e em debates políticos públicos. A militância do “lugar de fala” tornou-se, crescentemente, bruta, intolerante e agressiva.
Contra o lugar de fala
Nesse contexto, considero que faça sentido os oito argumentos abaixo, contra a ferramenta ideológica do “lugar de fala”:
1-“Lugar de fala” é o novo fundamentalismo político. Refúgio de dogmáticos e intolerantes, que, da forma mais autoindulgente possível, concedem-se prerrogativas de superioridade moral.
2-“Lugar de fala” é um espaço privilegiado de exigência de que os outros calem a boca. É o lugar do “cale-se” aplicado a todos que não são como eu. Lugar de falar é ao mesmo tempo um lugar de calar – eu falo, você cala.
3-“Lugar de fala” é o álibi perfeito para reivindicações de monopólio de fala. Só eu e os meus temos a fala autorizada e os direitos de explorá-la.
4-Como em todo sistema monopolista, o “lugar de fala” provê ao falante certificado um modelo de negócios. Como somos poucos os que têm direito de exploração desse produto, a raridade agrega enorme valor aos biscoitos finos que eu forneço e a, mim, naturalmente, seu fabricante autorizado. Encontrado um bom nicho, pode-se ganhar dinheiro, prestígio ou celebridade com o monopólio da fala autorizada. E há muitos faturando com isso.
5-A artimanha principal das reivindicações do “lugar de fala” consiste em punir ou recompensar indivíduos singulares em virtude da classe de indivíduos em que eles se situam. O seu direito de falar é transferido para mim, porque o coletivo onde você se situa deve historicamente ao coletivo onde me situo. A sua classe oprime a minha, mas quem deve pagar é você, independentemente do que você fale ou seja. A reivindicação de que você deve calar a boca, porque as pessoas da sua espécie já falaram demais, e me deixar falar sozinho, porque as pessoas da minha espécie não tiveram chances históricas de falar, é um truque para disfarçar o meu autoritarismo e a minha intolerância.
6-O argumento em defesa do pluralismo e da consideração pelas diferenças de identidades e pontos de vista não precisa do conceito de “lugar de fala” para ser defendido. Ao contrário, a reivindicação de “lugar de fala” serve hoje principalmente para que os patrulheiros da identidade verifiquem se o seu monopólio está sendo respeitado. Os “fiscais de atendimento às normas sobre monopólio do lugar de fala” são a nova moda na universidade, nos debates públicos e nas artes. A ideologia do “lugar de fala” virou adversária do pluralismo, das diferenças e da tolerância.
7-Alimenta os direitos de reivindicação de “lugar de fala” a ideia de que expressar ideias, fazer pesquisa ou discutir problemas sociais são atividades direta e inextrincavelmente ligadas à “representação” de uma espécie ou de um coletivo. Propriedades individuais relacionadas a conhecimento, competência, domínio do assunto, inteligência ou boa-fé são secundárias em face do que realmente importa, que é a que gênero ou espécie identitária você pertence e cujo direito de representar você pode reivindicar. Então, não se trata apenas de representação, mas de autorrepresentação. Só está habilitado a falar quem está autorizado a representar, ficando cancelado todas as outras formas tradicionais de competência.
8-A esquerda criou e alimentou as teses fundamentais do “lugar de fala” e ainda cerca os reivindicadores do monopólio do falar e do mandar calar com extrema complacência. Paradoxalmente, o “lugar de fala” é usado de forma eficiente apenas contra a esquerda. A extrema-direita, que agora a sitia política e socialmente, é imune aos constrangimentos das reivindicações do lugar de falar e, antes, usam tais reivindicações para as ridicularizar e para reforçar o próprio ponto de vista. O “lugar de fala” se transformou em mais uma das formas com que a esquerda se autodevora.
WILSON GOMES é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA e autor de A democracia no mundo digital: história, problemas e temas (Edições Sesc SP)
Paulo Ghiraldelli Jr.: Em defesa da filosofia e da sociologia na universidade
Disciplinas são, sim, altamente profissionalizantes
A filosofia é importante porque é "a mãe das ciências". A sociologia é essencial porque nos dá modelos de "como funciona nossa sociedade". Esses jargões fáceis contêm verdades simples que todo ministro da Educação deveria saber, até mesmo aqueles nomeados por presidentes com pouca aptidão cognitiva.
No Brasil atual, no entanto, parece que não temos mais como dizer essas coisas evidentes para os que estão no poder. Não escutam. Não sabem o básico e não querem aprender. Então, podemos tentar contar o correto para os outros, os que não são autoridades, mas que não lidam com filosofia e sociologia, e que caíram no velho engodo de que tais disciplinas são improdutivas.
A filosofia e a sociologia são disciplinas altamente profissionalizantes no mundo atual. Na universidade, elas são mais profissionalizantes que computação ou outros ensinamentos tecnológicos. São disciplinas que permitem ao universitário se tornar um profissional diferenciado, que por lidar com os fundamentos de outras ciências, ganha condições de aprender mais rapidamente as técnicas de diversos afazeres. Os que sabem só as técnicas ditas profissionais --facilmente obtidas, não raro, no próprio trabalho-- têm uma dificuldade imensa de trocar de emprego. Nessa situação atual, em que todos são postos para se reinventar a cada dez anos, os filósofos e sociólogos levam vantagem.
Cursos técnicos profissionalizantes são de rápida confecção. Todos que fizeram o Senac sabem disso. Mas se são filósofos e sociólogos, além de terem a abertura para a vida universitária, estão sempre aptos a se dar bem nos empregos em que seis meses ou mais de treinamento os põem em vários serviços. Falo por experiência própria e por observar outras pessoas.
A ideia do ministro da Educação, de que um filho de agricultor formado em humanidades volta para casa e não tem qualquer utilidade, é um erro. Vem de alguém que não tem noção de economia. Não sabe como o capitalismo funciona. Imagina que vivemos em uma economia rural de subsistência, sem a máquina, e que o filho do agricultor vai voltar para casa para ajudar o pai.
É uma visão de uma economia rural do século 19 e vigente só em alguns rincões descobertos pelo "Globo Rural" quando o programa quer provocar nostalgia. Na modernidade atual, os filhos fazem cursos superiores exatamente para se diferenciarem dos pais, e isso mesmo quando, sendo mais ricos, possuem pais que já passaram pela universidade.
Assim, do ataque do ministro da Educação atual à sociologia e à filosofia, resta concluir que isso se faz por incultura e, em grande parte, por querer obedecer ao presidente, que não tem outro programa de governo senão atacar tudo que ele imagina que vem "das esquerdas".
O presidente do Brasil disse que o critério para ser ministro da Educação de seu governo era estar disposto a destruir Paulo Freire. Ora, este ministro aí veio sob encomenda; ele põe a mão no coldre diante de qualquer manifestação da cultura mais sofisticada.
*Paulo Ghiraldelli Jr., filósofo e autor, entre outros livros, de 'Para Ler Sloterdijk' (ed. Via Verita, 2017)
Curso de Formação em Filosofia Política PPS/FAP
Ontem, dia 11 de março, ocorreu mais uma edição do curso de Formação em Filosofia Politica organizado pela parceria PPS municipal de São Paulo e a FAP. A aula, mais uma vez, com um bom número de participantes abordou os filósofos: Santo Tomás de Aquino e Maquiavel.
Santo Tomás de Aquino (1225-1274) foi o maior representante da escolástica, tendência da filosofia medieval influenciada por Aristóteles. Considera que o homem só encontra sua realização na cidade, e o plano político é a instância possível em que o governo não tirânico pode aliar ordem e justiça na busca do bem comum. Outro ponto importante no pensamento deste filósofo é a tentativa de separação entre o poder e a igreja. O poder político, mesmo que seja de origem divina, circunscreve-se na ordem das necessidades naturais do homem enquanto ser social que necessita alcançar seus fins terrenos. Daí que o estudo da política requer o uso da razão natural, não se circunscrevendo apenas ao âmbito da teologia. A Igreja, por sua vez, cuidará da dimensão sobrenatural do destino humano.
Nicolau Maquiavel foi um importante historiador, diplomata, filósofo, estadista e político italiano da época do Renascimento. Nasceu na cidade italiana de Florença em 3 de maio de 1469 e morreu, na mesma cidade, em 21 de junho de 1527. Em 1513, escreveu sua obra mais importante e famosa “O Príncipe”. Nesta obra, Maquiavel aconselha os governantes como governar e manter o poder absoluto, mesmo que tenha que usar a força militar e fazer inimigos. Para este pensador, a ética politica deve ser pensada fora da ética privada. A politica, portanto, é um jogo no qual os fins justificam os meios, e o governante deve ter as habilidades necessárias para joga-lo.
Dentro dessas duas formas de pensamento foram feitas três perguntas para embasar o debate politico entre alunos:
1) A unidade entre a fé e a politica, nos dias atuais, interfere na elaboração do direito positivo (Leis)?
2) É justo utilizar da violência para governar?
3) A ética politica está dissociada da ética privada?
Estes questionamentos geraram uma boa discussão em sala. O primeiro, poderíamos relacionar com a bancada evangélica que cresce, cada vez mais, na Frente Parlamentar do Congresso Nacional e possui caráter conservador. A segunda questão foi vinculada ao uso da força pelo governo de São Paulo para tentar evitar o movimento de ocupação das escolas. E a terceira liga-se ao fato de que a maioria de nossos políticos separam a ética privada da política e, por isso se valem de meios corruptivos para atingirem seus objetivos. Para pensar!
Na próxima quinta-feira mais dois filósofos serão abordados e continuaremos a contextualiza-los com a realidade politica brasileira. Até lá.
Por: Germano Martiniano, Assessor de Comunicação FAP
Curso de Formação em Filosofia e Política
Período de realização do curso será de 03 de Março de 2016 até 30 de Junho de 2016.
Do pensamento grego até o século XXI, a necessidade de uma formação política teórica para a compreensão maior da política, oferecendo um aprofundamento conceitual das diversas correntes e interpretações políticas na história.
Homologação e Certificação pela Fundação Astrojildo Pereira!
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Diretório Municipal do PPS de São Paulo
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