filme
O Invasor Americano pauta debate online do Cineclube Vladimir Carvalho
Comunicação FAP
A sessão virtual do Cineclube Vladimir Carvalho debate, nesta segunda-feira (25/9), a partir das 19h30, o filme Invasor Americano (2015), dirigido, escrito e produzido por Michael Moore, cineasta conhecido por seu estilo irreverente e corajoso. O projeto é apoiado pela Biblioteca Salomão Malina, mantida em Brasília pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP).
Os debates virtuais do cineclube são realizados toda última segunda-feira do mês, no mesmo horário, por meio da sala virtual do Zoom. O público em geral pode participar das discussões online, mas, para isso, a coordenação do projeto recomenda que as pessoas assistam aos filmes antes. Eles são escolhidos, previamente, em um coletivo. As pessoas interessadas em participar do projeto devem enviar mensagem para o número da Biblioteca Salomão Malina no WhatsApp oficial (61 984015561) e solicitar acesso ao grupo de discussão.
A seguir, assista ao trailer do filme
A crítica de cinema Lilia Lustosa lembra que o Invasor Americano é uma documentário satírico, quase um ensaio, que trata de questões seríssimas de forma bem humorada, com o objetivo de denunciar a hipocrisia e as incongruências da sociedade norte-americana.
“O filme é uma espécie de travelogue (filme-diário-de-viagem), em que o viajante – aqui retratado como ‘invasor’ – é o próprio Michael Moore, que, depois de receber o aval do Pentágono, assume o lugar dos soldados americanos e, sozinho, parte para invadir países em busca de riquezas”, conta ela.
O objetivo é, segundo a crítica de cinema, levar essas pérolas para os Estados Unidos, apropriando-se de cada uma delas para poder, no futuro, assumir suas autorias sem nenhum pudor. “Tesouros, como direitos trabalhistas, sistema carcerários mais humanizados, escolas mais livres e criativas, educação alimentar e igualdade de gênero, são apenas alguns dos itens “roubados", relata.
Para compor esse travelogue, Moore lança mão de entrevistas, imagens de arquivos (fotos e vídeos), filmes, animações, documentos e muita, muita ironia. “Imagens do passado e do presente, coloridas ou em preto e branco, que se misturam e que vão construindo, pouco a pouco, uma espécie de filme-colagem. O diretor americano brinca com a informação coletada, muitas vezes usando a dissonância como ferramenta. Uma arma poderosa para denunciar a hipocrisia de seu próprio país”, conta.
O Invasor Americano não tem um estilo definido. Cada país-alvo tem, segundo a crítica de cinema, um foco e uma estética, incluindo a trilha sonora que o acompanha. Itália, França, Finlândia, Eslovênia, Alemanha, Portugal, Noruega, Tunísia, Islândia, países tão diferentes em quase tudo, mas que se assemelham na hora de substituir o “eu" pelo “nós" para resolver alguns de seus problemas.
“No final, o que temos é uma colcha de retalhos que nos faz rir, indignar-nos, talvez até deixar cair algumas lágrimas, mas que também nos ensina sobre outras culturas, outras maneiras de viver e, sobretudo, que nos faz refletir sobre nosso próprio país, nossas idiossincrasias e sobre o que funciona ou não em nossas sociedades”, analisa Lilia.
Filme O Destino de Haffmann é tema de debate do Cineclube Vladimir Carvalho
Comunicação FAP
Filme francês dirigido por Fred Cavayé e que é adaptação da peça de teatro homônima assinada por Jean-Philippe Daguerre, O Destino de Haffmann (2021) será debatido, na segunda-feira (28/8), a partir das 19h30, na sessão virtual do Cineclube Vladimir Carvalho. O projeto é da Fundação Astrojildo Pereira (FAP) e da Biblioteca Salomão Malina, mantida pela entidade, no Conic, importante centro cultural e comercial na região central de Brasília.
A coordenação do projeto é da crítica de cinema Lilia Lustosa, doutora em História e Estética do Cinema pela Universidad de Lausanne (UNIL), Suíça. As pessoas interessadas em participar do projeto devem entrar em contato com a Biblioteca Salomão Malina, por meio do WhatsApp oficial (61 984015561) e solicitar acesso ao grupo de discussão. A recomendação é que todos os participantes assistam ao filme antes do debate on-line.
Veja, abaixo, o trailer legendado:
Lilia explica que a história do gilme começa em 1941, em uma Paris ocupada pela Alemanha nazista. “Ali, Joseph Haffmann (Daniel Auteuil), um joalheiro judeu pai de três crianças, decide fugir enquanto pode, armando para tanto um plano mirabolante. Ele decide confiar sua loja ao funcionário François Mercier (Gilles Lellouche) para tentar chegar à zona neutra. A família do joalheiro vai primeiro e ele fica para ir em seguida. Acontece que a situação piora e Haffmann acaba ficando preso no sótão de sua própria loja. Refém de seu antigo funcionário”, conta.
De acordo com a crítica de cinema, em um belíssimo jogo de contrastes, em que alto-baixo, inferior superior, claro-escuro são elementos recorrentes, a história vai sendo apresentada de forma lenta, relativamente estática, tornando-se, assim, cada vez mais angustiante ao colocar frente a frente liberdade e opressão. “Fora isso, os tantos close-ups de mãos, olhos, pés, joias, que o diretor insiste em usar, fazem-nos apreciar as mãos que trabalham, que se unem, se entrelaçam, se cumprimentam, se agridem, se consolam”, diz.
Para completar esse cenário de contrastes, O Destino de Haffmann também explora bastante o uso do direcionamento do olhar dos personagens, criando várias linhas diagonais para compor os planos. “Plongés e contraplongés não faltam. E o recurso quase onipresente no filme é o ângulo “sobre os ombros”. Impressionante a quantidade de vezes que ele é usado. O que será que Cavayé quer dizer com isso?”, questiona Lilia.
“O Destino de Haffmann é assim, um longa-metragem-gangorra, em que poderes se revezam, se alternam e, muitas vezes, acabam se destruindo. Um filme extremamente inteligente em sua composição, capaz de nos tocar pelo cuidado com os detalhes, pelo roteiro, pelo superelenco e, claro, pela capacidade de mostrar a importância de saber se colocar no lugar do outro”, afirma a crítica de cinema.
Biblioteca Salomão Malina
Inaugurada em 28 de fevereiro de 2008, a Biblioteca Salomão Malina se tornou um importante espaço de incentivo à produção do conhecimento em Brasília. Localizada no Conic, tradicional ponto de cultura urbana próximo à Rodoviária do Plano Piloto, a biblioteca foi reinaugurada em 8 de dezembro de 2017, após ser revitalizada. Isso garantiu ainda mais conforto aos frequentadores do local e reforçou o compromisso da biblioteca em servir como instrumento para análise e discussão das complexas questões da atualidade, aberta a todo cidadão.
Meu amigo cinepoeta Sérgio Muniz
Lilia Lustosa*, crítica de cinema e doutora em História e Estética do Cinema pela Universidad de Lausanne (UNIL), Suíça.
Neste agosto, o cineasta Sérgio Muniz foi cinepoetar em outras bandas. Partiu de forma serena, como sempre havia desejado. Foi encontrar os companheiros Maurice Capovilla, Geraldo Sarno, Thomaz Farkas, Glauber Rocha e tantos outros nomes do nosso cinema estrelado.
Sérgio, que foi tantos – cineasta, poeta, acadêmico, gestor público, militante – é agora mais uma estrela no firmamento. E que estrela! Um homem-astro, que ainda nos anos 60, participou ativamente do que mais adiante seria chamado de Caravana Farkas[1]. Um grupo de jovens cineastas reunidos em torno do fotógrafo e produtor Thomaz Farkas, um visionário que resolveu desbravar o interior do Brasil, registrando a cultura popular por meio de câmeras leves e gravadores portáteis recém-chegados do estrangeiro. Eram os primórdios do cinema-direto no Brasil, que conseguia trazer para as capitais as realidades "desconhecidas" deste nosso imenso país-colcha-de-retalhos.
Sérgio-cineasta-militante participava de passeatas, movimentos contra a ditadura, tendo tido até a ousadia de realizar clandestinamente um documentário que abalou as estruturas: Você Também Pode Dar um Presunto Legal (1971/2006). Um filme sobre a ação do Esquadrão da Morte e do Delegado Fleury, chefe do DOPS, naqueles duros anos de ditadura militar. Os negativos tiveram que ser levados para Cuba e o filme foi editado e finalizado entre a Ilha, a França e a Itália, ficando pronto apenas em 1974[2]. Na ocasião, a conselho de amigos, Sérgio achou por bem não exibi-lo no Brasil, para não colocar em risco sua vida, tampouco a das outras figuras envolvidas em sua produção. Ainda assim, era preciso mostrar, denunciar! O cineasta-militante resolveu, então, distribuir o filme de forma gratuita e clandestina. E, por via das dúvidas, guardou uma cópia VHS bem escondida em um baú.
Nos anos 80, Sérgio-cineasta-acadêmico atravessou fronteiras e se tornou o primeiro Diretor Acadêmico da utópica Escuela Internacional de Cine y TV de San Antonio de los Baños, em Cuba. Uma instituição criada pelo argentino Fernando Birri – “pai do Novo Cinema Latino-americano”–, pelo grande escritor colombiano Gabriel García Marquez e por outros cineastas latino-americanos de peso. Tudo com o aval de Fidel Castro, claro.
Após a experiência cubana, Sérgio-cineasta-gestor-público foi trabalhar com Marilena Chauí, quando a filósofa ocupava a Secretaria Municipal de São Paulo, na gestão da prefeita Luiza Erundina (1989 – 1992). Trabalhou também na Secretaria do Estado, onde desenvolveu projetos de ensino de audiovisuais para o Museu da Imagem e Som (MIS), tendo sido ainda consultor para a área de cinema do Memorial da América Latina.
De lá pra cá, muitas foram as realizações deste homem múltiplo, tanto dentro como fora do campo cinematográfico. No ano passado, por exemplo, do alto de seus 87 anos, colocou uma máscara para se proteger do coronavírus e foi para as ruas protestar em favor da democracia. O homem era danado de forte e nada o impedia de seguir o rumo de sua militância pela justiça social!
Sérgio era forte sim, mas também extremamente sensível. Era poeta e escrevia livros… Entre eles, "En San Antonio y São Paulo ou…" (1997), que tive o privilégio de receber autografado em Santa Fe, Argentina, em um belo encontro sobre os protagonistas do Brasil Verdade (1968) - conjunto de documentários produzidos entre 1964 e1965 por uma equipe de argentinos e brasileiros[3]. Foi a partir daquele encontro santafesino que nasceu nossa amizade. Assim como nasceu também nosso desafio poético. A ideia, saída de sua cabeça jovem e sonhadora, era a de fazer releituras de trechos de poemas já conhecidos. Para mim, um presente dos Sérgios!
Sérgio-cineasta-poeta-acadêmico-gestor-público-militante foi, finalmente, um dia de sol na vida de muita gente. Além do fantástico exemplo de como se realizar filmes em um país mergulhado nas águas turvas da ditadura, foi ainda uma lição de ética, coerência, criatividade, talento e, mais que tudo, de ombro amigo.
Vá em paz, Sérgio-amigo! Que o “más-allá" te receba de braços abertos!
¡Hasta siempre, amigo!
[1] Nome cunhado por Eduardo Escorel nos anos 90.
[2] Em 2006, Sérgio Muniz digitalizou o filme, substituindo a narração antiga por uma mais atual, e acrescentando alguns novos materiais, como recortes de jornais e revistas, imagens de televisão, e ainda transcrição de depoimentos de pessoas torturadas e fragmentos das obras de teatro "A Resistível Ascensão de Arturo Ui" (Bertold Brecht) e "O Interrogatório" (Peter Weiss).
[3] Estes quatro documentários estão na origem da futura “Caravana Farkas”.
O que esperar do novo filme ¡Qué Viva México!
Com o mesmo título do famoso filme inacabado de Sergei Eisenstein, de 1932, o cineasta mexicano Luis Estrada lançou, no mês de março, seu próprio ¡Qué Viva México!, longa-metragem de mais de três horas de duração e que é uma sátira bem ácida da política mexicana atual.
Sátira, aliás, que não é novidade na filmografia do diretor, já que, a cada sexênio, ele lança um filme que detona o governo da atualidade, fazendo ainda uma análise (quase sempre cruel) da "mexicanidade”, ou seja, das idiossincrasias e incoerências do povo mexicano. Isso acontece desde A Lei de Herodes (1999), quando analisava e anarquizava os governos do Partido Revolucionário Institucional (PRI ). Em seguida, com seu Um Mundo Maravilhoso (2006), satirizando o governo de Vicente Fox. Em 2010, com O Inferno, cuja vítima principal era o presidente Felipe Calderón, e, mais recentemente, em 2014, com A Ditadura Perfeita, em que atirava pedras na administração do presidente Enrique Peña Neto. Enfim, há toda uma tradição guerrilheira que faz com que a espera pelo lançamento de seus filmes seja algo prazeroso para alguns e bem incômodo para outros.
¡Que Viva México! não foge à tradição e ataca de frente o governo do atual presidente Andrés Manuel López Obrador, vulgo AMLO, do partido MORENA (Movimento Regeneração Nacional). Um político que se diz de esquerda, à favor do povo e contra a corrupção de qualquer natureza, mas que se rende (como todos) às armadilhas do poder, tendo uma ótima relação com os presidentes dos Estados Unidos, incluindo com o ex Donald Trump. Não podemos esquecer que os vecinos norteamericanos são os maiores parceiros comerciais do México, com as remessas de dólares vindas de lá para cá (dos imigrantes) representando 4% do PIB nacional.
A trama do filme gira em torno de Pancho Reyes (Alfonso Herrera), um homem de classe média (em ascensão), que trabalha dia e noite para atender os caprichos da esposa e dos filhos. De origem humilde, ele prefere esquecer e deixar bem escondido esse passado, até o dia em que recebe, porém, o telefonema de seu pai Rosendo (Damián Alcázar, que atua na pentalogia completa de Estrada), informando que o avô falecera e que era aguardado em seu pueblo para o enterro e para a leitura do testamento.
O que vemos, então, é o retorno à pobreza natal de Pancho, uma viagem ao México profundo, cheio de poeira, pobreza, mas também de alegria, camaradagem, comilanças, bebedeiras, mariachis e, claro, corrupção e espertezas. Tudo é paroxismo, é crítica, é desacato. Um verdadeiro show do politicamente incorreto, que tem irritado muitos espectadores mexicanos, sobretudo, os "Whitexicans" (elite branca do país), que não gostam nada de se ver assim representados na telona.
Mas, verdade seja dita, Estrada não poupa ninguém e aponta sua metralhadora para todos os atores do México contemporâneo, desviando-se assim do modelo maniqueísta que representa pobres como bons e ricos como maus, ou ainda políticos como os únicos seres corruptos e corruptíveis. Em seu filme, ele desenha um microcosmos capaz de representar as várias camadas da sociedade desse país, com seus defeitos e qualidades, mas, principalmente, com suas incoerências. Não à toa, ¡Qué Viva México! vem desagradando priistas, morenistas, panistas, etc, gente de esquerda, de direita e até de centro. Quase uma unanimidade!
Pelos olhos de uma estrangeira, residente no México há pouco menos de três anos, o que vejo é um retrato ácido da sociedade local, obviamente, levado ao extremo. Importante ter em mente que estamos aqui, porém, diante de uma sátira e que, por isso mesmo, os personagens, bem como as situações, são sim exagerados, artificiais e caricatos. Não se pode levar tudo a sério, nem querer interpretar cada diálogo ao pé da letra. O próprio cenário, a trilha e os filtros amarelados usados para representar o México quente e perigoso – como os gringos costumam fazer –, corroboram os excessos da história ali contada. Ao mesmo tempo que vão de encontro à campanha #UnfilterMexico, que a marca de cerveja Corona lançou há pouco, junto com o diretor de fotografia mexicano Emmanuel “Chivo" Lubezki, com o objetivo de acabar justamente com esse estereotipo no cinema.
Por outro lado, entendo a indignação de alguns mexicanos, pois olhar-se no espelho nem sempre é fácil, mesmo que, tantas vezes, necessário. Nosso Brasil bem que precisava de um louco Estrada para espelhar na telona, a cada quadriênio, uma sátira de nossos presidentes e da evolução (ou involução) de nossa sociedade.
Saiba mais sobre a autora
*Lilia Lustosa é crítica de cinema e doutora em História e Estética do Cinema pela Universidad de Lausanne (UNIL), Suíca.
Revista online | Clássicos da ficção científica, meio século depois, remetem a dilemas do nosso tempo
Henrique Brandão*, jornalista, especial para a revista Política Democrática online (53ª edição)
Dois filmes emblemáticos de ficção científica completam este ano 55 anos de suas estreias no cinema e são referências até hoje, não apenas para os admiradores de sci-fi – uma enorme legião de aficionados! – mas para os amantes de cinema, em geral. Estou me referindo a 2001 – Uma Odisseia no Espaço, de Stanley Kubrick (1928-1999), e Planeta dos Macacos, de Franklin J. Schaffner (1920-1989), ambos lançados em 1968.
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Depois deles, o gênero foi elevado a outros parâmetros. Cada qual à sua maneira, tornaram-se modelos, que hoje em dia rendem fortunas em bilheterias.
Para além das questões técnicas e inovações que trouxeram, uma característica que faz esses filmes serem lembrados é, acima de tudo, as histórias que contam e as questões, atualíssimas, que levantam quanto ao futuro da humanidade.
À primeira vista, pelo enredo que apresenta, O Planeta dos Macacos aparenta ser uma bobagem: um grupo de astronautas aterrissa em um planeta que é dominado por símios e no qual os humanos são tratados e caçados como animais.
Mas o filme, adaptação do livro do escritor francês Pierre Boulle (1912-1994), marcou época, graças ao roteiro inventivo, à competente direção de Schaffner, à ótima atuação dos atores e à uma maquiagem excepcional, que levou um prêmio especial na premiação do Oscar – a categoria não existia até então. A produção custou U$$ 5,8 milhões, e a bilheteria americana rendeu US$ 32,5 milhões. O sucesso foi tamanho que gerou continuações, séries e rebbot que se desdobram até os dias atuais.
2001 – Uma Odisseia no Espaço teve sua estreia em dois de abril de 1968. O roteiro, livremente inspirado no conto A Sentinela (The Sentinel), de Artur C. Clarke (1917-2008), foi escrito a quatro mãos por Kubrick, já considerado um dos melhores cineastas de sua geração, e Clarke, considerado um dos maiores escritores de ficção científica de todos os tempos.
A reunião dessas duas figuras gerou uma das obras mais idolatradas da história do cinema. Reza a lenda que Clarke não gostou do que viu na première. Alegou que o filme tinha poucos diálogos. A versão que chegou às salas de cinema (149 minutos) tem menos 19 minutos do que a vista por Clarke, em razão de cortes feitos pelo próprio Kubrick.
De fato, 2001 é carregado de “calmarias”. Os primeiros 25 minutos e os últimos 23 não têm diálogos, só trilha sonora. Contando esses momentos de mudez e outros que acontecem ao longo do filme, o total é de 88 minutos sem conversas. Sobram 61 para os diálogos, grande parte deles travada no embate entre o Hall 9000, uma máquina de Inteligência Artificial (IA) de última geração, com sua fala monocórdia, e o comandante da espaçonave Discovery One. Passado mais de meio século da estreia da fita, o uso cada vez maior da IA no cotidiano humano gera indagações importantes, como a feita pelo historiador Yuval Noah Harari em artigo publicado em O Globo (28/03): Precisamos aprender a dominar a inteligência artificial antes que ela nos domine.
2001 está carregado de cenas de grande beleza visual. A sequência inicial, em que o hominídeo descobre que o osso de um animal pode servir de arma para subjugar outros grupos rivais na pré-história e, para comemorar o fato, lança o osso para cima, virou um dos momentos mais sublimes do cinema. O osso sai girando no ar, em câmera lenta, ao som de Assim Falou Zaratrusta, de Richard Strauss (1864-1949). Em seguida, há um corte para o ano de 2001, com satélites a “navegar” o espaço sideral, ao som da valsa Danúbio Azul. Só música, a destacar a ligação do homem pré-histórico com o astronauta do futuro.
Kubrick não viu problema nesses “silêncios”. Suas produções anteriores tinham diálogos e narrações em off. Mas este foi intencionalmente quieto. Para ele, o importante era proporcionar uma experiência intensamente subjetiva. "Se o filme conseguir atingir pessoas que nunca pararam para pensar no destino do Homem, terá tido sucesso", afirmou à época.
O Planeta dos Macacos vai em outra linha. Ao despertar de uma hibernação induzida, o comandante Taylor – interpretado por Charles Heston – descobre que está no ano de 3971, dois milênios à frente de seu tempo.
A princípio, estaria em um planeta desconhecido. Aos poucos, constata-se que os animais deste planeta são humanos que não falam e são “domesticados” e caçados por macacos. Aparentemente, a evolução se inverteu: agora os macacos é que são a espécie dominante, inteligentes, enquanto os humanos são “animais” irracionais.
Ao descobrir que os visitantes vindos do espaço falam, os chimpanzés, cientistas, se interessam em pesquisar sua história, desconfiados de que os macacos evoluíram dos humanos. No entanto, são impedidos pelo chefe político e líder de uma seita religiosa, um orangotango que tem uma versão diferente para o surgimento dos símios. Os militares, gorilas, têm uma aliança com o religioso e mantêm a ordem e os humanos sobre o poder das armas. Alguma semelhança com o mundo atual?
A cena icônica de O Planeta dos Macacos é o seu fim. Após tanto tempo da estreia, não há problema de spoiler. Fugindo dos gorilas, o personagem de Heston se depara com a Estátua da Liberdade em uma praia deserta e árida, devorada pelo tempo, semicoberta. Mensagem clara: o homem destruiu a Terra. Provavelmente em uma guerra nuclear, já que a Guerra Fria era um dos maiores temores da época em que o filme foi realizado.
No entanto, o recado serve também de sinal para o perigo da devastação dos nossos recursos naturais, que pode condenar a humanidade a um futuro no qual o deserto e as chuvas torrenciais predominem. Estão aí as mudanças climáticas batendo às portas.
Dois grandes filmes, com mensagens que ainda nos fazem refletir sobre qual modelo de civilização queremos.
Sobre o autor
*Henrique Brandão é jornalista e escritor
** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de março de 2023 (53ª edição), editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores. Por isso, não refletem, necessariamente, as opiniões da revista nem da FAP.
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Revista online | Entre Mulheres - Perdoar, brigar ou fugir?
Lilia Lustosa*, crítica de cinema, especial para a revista Política Democrática online (53ª edição: março de 2023)
Um dos filmes que mais me chamou a atenção nesta temporada de premiações foi o Entre Mulheres (2022), da canadense Sarah Polley, que também assina o roteiro, premiado neste último Oscar na categoria Melhor Roteiro Adaptado.
O longa-metragem, quarto da carreira da diretora, foi produzido pela grande Frances McDormand, que também atua no filme (com uma parte pequena), e toca em temas universais e superatuais, embora vividos em um mundo que parece tão distante no espaço e no tempo. Violência contra a mulher, patriarcado, religião, cegueira, culpa, perdão… está tudo ali na tela. Uma história baseada no livro homônimo da também canadense Miriam Toews, publicado em 2018, que foi, por sua vez, inspirado em fatos reais. Acredite se quiser!
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Na trama, vemos um grupo de mulheres que mora em uma colônia (não identificada no filme, mas que é inspirada na Colônia menonita Manitoba, na Bolívia) que segue dogmas religiosos bastante ortodoxos. Uma sociedade patriarcal, em que as mulheres não frequentam a escola, não aprendem a ler e não são autorizadas a sair das áreas “protegidas”. Coisa que quase todas aceitam “pacificamente”, já que é Deus quem está no comando. Prisioneiras do século 21, guiadas pela fé e pela covardia dos homens.
Acontece que todas as mulheres dali, incluindo crianças e idosas, são vítimas frequentes de atos de violência sexual, sendo, para isso, dopadas com químicos usados na agricultura. As consequências macabras de despertarem com hematomas, sêmen ou sangue no corpo são, em um primeiro momento, atribuídas a seres demoníacos, vindos de outra dimensão e, portanto, impossíveis de ser combatidos. Até o dia em que duas adolescentes revelam ter visto um homem da própria Colônia fugindo na mesma noite em que uma criança fora violentada. Os suspeitos são levados à delegacia.
Diante das evidências e da ausência dos homens, que correm em defesa dos acusados, oito mulheres - brilhantemente interpretadas por Rooney Mara, Claire Foy, Jessie Buckley, Sheila McCarthy, Judith Ivay, entre outras - aproveitam para pensar em alternativas para a situação: 1) perdoar; 2) ficar e brigar; ou 3) fugir. As discussões são devidamente registradas em ata pelo professor dos meninos da Colônia, o sensível August (Ben Wishaw), cuja mãe havia sido excomungada por haver questionado as regras ali estabelecidas. O objetivo de todo esse “falatório" e de seu respectivo registro é ter insumos suficientes para exercer a democracia e fazer valer suas vozes, mesmo que para isso tenham que recorrer a desenhos e/ou símbolos na hora da votação.
Com essa premissa, o filme se desenvolve em torno de muitos diálogos e reflexões (brilhantes, por sinal), muitas trocas de olhares e muitas expressões faciais e gestuais que não escapam à câmara atenta de Luc Montpellier. Aliás, a fotografia é outro ponto forte do filme, belíssima, com o predomínio de cores dessaturadas, frias, escuras, que refletem com maestria a ausência de alegria que parece ditar as regras da vida daquela gente. O formato widescreen (ou panorâmico) ajuda a expor a solidão e o isolamento daquelas mulheres que nunca viram um mapa em suas vidas. Ao mesmo tempo, os planos super abertos do campo contrastam fortemente com o ambiente claustrofóbico do celeiro que lhes serve de congresso para as discussões e votações.
A trilha, assinada pela islandesa Hildur Guonadóttir, também merece destaque, já que alterna momentos sombrios com outros bem iluminados, representando com precisão a esperança daquelas mulheres ali enquadradas.
Entre Mulheres é um filme sobre o valor do diálogo e da democracia, sobre a coragem de enfrentar algozes em nome da liberdade, sobre a união como arma para lutar por uma causa maior, sobre educação de meninos e sobre tantos outros temas de plena relevância em tempos atuais. Lições aparentemente banais para nós, que vivemos em uma democracia e que desconhecemos a vida em cativeiro, mas de extremo valor para aqueles que, tão perto de nós, ainda têm de conviver com a ignorância das sociedades ditatoriais.
Entre Mulheres é também uma história sobre aquele sonho de justiça que insiste em morar em cada um de nós. Sonhos que podem parecer utopias descabidas, fantasias femininas ou até histerias, mas que se colocados em prática têm grandes chances de virar realidade. Sabiamente e, com um certo toque de ironia (já que na vida real as coisas não aconteceram bem assim…), Sarah Polley decidiu abrir seu longa com a frase: "Esta história é fruto da fértil imaginação feminina”. Que assim seja!
Sobre a autora
*Lilia Lustosa é crítica de cinema e doutora em História e Estética do Cinema pela Universidad de Lausanne (UNIL), Suíça.
** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de março de 2023 (53ª edição), editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores. Por isso, não refletem, necessariamente, as opiniões da revista nem da FAP.
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Revista Online | Cinema = Arte + Tecnologia – Uma fórmula esquecida?
Lilia Lustosa*, crítica de cinema, especial para a revista Política Democrática online (52ª edição: fevereiro de 2023)
É chegada aquela época do ano em que os cinéfilos de plantão ficam ansiosos para saber quais são os melhores filmes e os melhores profissionais da indústria cinematográfica da temporada. Já tivemos o Globo de Ouro, o Critics Choice Awards, o BAFTA (do Reino Unido), e, muito em breve, teremos os César (França), os Ursos de Berlim e o tão esperado Oscar. Um prêmio que já foi considerado o mais glamoroso de todos por ser outorgado justamente pela Academia de Artes e Ciências Cinematográficas dos Estados Unidos, suprasumo do sonho hollywoodiano.
Acontece que, há alguns anos, esta premiação, que deveria justamente enaltecer aquelas obras que apresentam a melhor combinação entre arte e tecnologia, vem se transformando em algo extremamente difícil de entender. O Oscar se converteu em um prêmio que se pretende politicamente correto, alinhado a seu tempo, mas que é, ao mesmo tempo (e antes de tudo), guiado pelo lobby dos grandes estúdios. Uma prática que foi ganhando cada vez mais força, importando muito mais o montante investido na campanha de divulgação do filme do que o filme em si.
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A temática abordada passou também a ter muito peso, tendo mais chance de serem premiadas aquelas tramas que se atêm à ordem do dia e que respeitam as pautas da atualidade. Até aí tudo certo. Mas e a arte e a ciência, onde ficam? O que estamos vendo ser premiado neste 2023? Sonho ou lobby? Temas da moda ou produções que seguem a antiga fórmula "cinema = arte + tecnologia"?
Se depender do número de indicações, o grande vencedor do Oscar seria Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo, dos diretores Daniel Kwan e Daniel Scheinert, que, além de 14 nomeações, já levou o prêmio de melhor filme no Critics Choice Awards. O longa se divide entre a realidade do cotidiano burocrático e a ficção (quase científica e caótica) da mente humana, uma espécie de realismo mágico com pitadas de ficção científica com ar retrô. Uma bela e original análise do metaverso, tão na moda nos filmes e nas rodas de conversas da atualidade, mas com uma pegada diferente, excêntrica, bem humorada e crítica. Uma história que, em um primeiro olhar, não faz nenhum sentido, mas que, ao mesmo tempo, faz pensar tanto. Tradições, amor, relacionamentos, respeito, diferenças, quebra de expectativas, tudo está ali. Tudo que a vida poderia ter sido e não foi… e tudo que ela é também. A fórmula do cinema está ali bem presente. E os temas da moda também!
Outro forte candidato é Os Fabelmans, do já oscarizado Steven Spielberg, que, por sua vez, já levou prêmios importantes para casa: Globo de Ouro de melhor diretor e de melhor filme. Uma história simples, sem grandes originalidades, mas que abunda em sentimentos, delicadeza e precisão na técnica empregada. Uma autobiografia ficcionalizada que toca de forma elegante e respeitosa em questões muito íntimas do diretor, sem, no entanto, apresentar julgamentos de valor, nem ornamentos desnecessários. Um filme que opta por não mostrar a trajetória profissional de um cineasta consolidado, preferindo apresentar um homem (um gênio) em formação.
O grande "intruso" nesta lista de indicações parece ser a coprodução Alemanha-EUA-Inglaterra Nada de Novo no Front, quefez a proeza de levar 7 estatuetas no BAFTA, das 14 nomeações recebidas, incluindo as de melhor filme em língua não inglesa e a de melhor filme tout court. Uma produção que já tinha mostrado a cara em outras premiações, tendo, porém, até então ficado sem nenhuma estatueta. Para a cerimônia do dia 12 de março em Los Angeles, o “intruso" está nomeado em nada mais nada menos do que nove categorias. Uma história já laureada no passado, quando o longa dirigido por Lewis Milestone arrebatou os Oscares de Melhor Filme e de Melhor Diretor em 1930, ao levar para a telona a história, contada no livro de Erich Maria Remarque, sobre um jovem alemão que, aos 17 anos, se alista para defender seu país na 1ª Guerra Mundial. Uma história narrada pelos olhos do perdedor que, por meio de uma belíssima fotografia contrastando planos gerais super abertos com closes nas expressões faciais dos protagonistas, dá uma repaginada em um tema infelizmente super atual: a guerra e a perda de tantas vidas inocentes.
Alguns poucos filmes, porém, parecem ser unanimidade, como a animação Pinóquio, do mexicano Guillermo Del Toro, que já levou o Globo de Ouro, o Critics Choice e o BAFTA. Um exemplo perfeito do uso sa velha fórmula "arte + tecnologia" para discutir temas da atualidade: guerra, fortalecimento da extrema direita, ética, imperfeições, expectativas e tantas coisitas más.
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*Lilia Lustosa é crítica de cinema e doutora em História e Estética do Cinema pela Universidad de Lausanne (UNIL), Suíça.
** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de fevereiro de 2023 (51ª edição), editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.
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Revista online | Avatar 2: Sublime até debaixo d’água
Lilia Lustosa*, especial para a revista Política Democrática online (50ª edição: dezembro/2022)
Há treze anos, James Cameron revolucionava a história do cinema ao resgatar uma tecnologia antiga, porém, já bem esquecida: o 3D. Depois de longos 15 anos de investimento e pesquisa, o diretor canadense criou câmeras sofisticadas e deu nova cara e qualidade às imagens tridimensionais em movimento.
Pandora, o mundo criado por ele em Avatar (2009), foi o que melhor se viu em termos de ilusão de profundidade até aquele então, arrebatando praticamente todos os prêmios de efeitos visuais e direção de arte da temporada, ainda fazendo escola, já que reacendeu o interesse por essa tecnologia dos anos 20. Bem recentemente, o mesmo Cameron, mais uma vez, é o responsável por outra reviravolta na estereoscopia, com câmeras ainda mais modernas, desta feita, capazes de capturar à perfeição imagens tridimensionais debaixo d’água.
Em Avatar: O Caminho da Agua (2022), o deslumbramento causado pelos cenários das matas de Pandora, desloca-se para a costa do planeta, região onde vive a tribo Metkayina, seres aquáticos, não mais azuis como os filhos de Omaticaya, mas verdes claros, com caudas em vez de rabo e pés e mãos que funcionam como nadadeiras. Seres, no entanto, igualmente conectados com a natureza.
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O efeito de Metkayina em nossos olhos é simplesmente sublime! Um universo deslumbrante, de azul intenso, que penetra na íris e na alma de espectadores. Para chegar a esse ponto, além de ter trabalhado à exaustão com a equipe no desenvolvimento da nova tecnologia, Cameron exigiu ainda que seu elenco mergulhasse literalmente na água para as filmagens a fim de que tudo parecesse mais natural, mais crível. Fizeram curso de mergulho e aprenderam a passar longos minutos em apneia. Um esforço físico e mental que valeu a pena. A imersão nas águas (e na história) é tal que, em dado momento, tem-se vontade de prender a respiração para mergulhar com eles!
Importante dizer que, do mesmo modo que acontece com o primeiro filme, o enredo em si não é o ponto mais forte desta produção. O que deslumbra em Avatar 2, mais uma vez, é o mundo que se descortina na tela.
Com a Terra cada vez mais inabitável, a solução continua sendo tomar Pandora e construir ali um novo lar para os terráqueos. Omaticaya é então atacada pelos humanos que querem ali estabelecer residência, não sem antes impor sua cultura e seus hábitos aos povos originários, que, aos olhos da Terra, parecem estranhos, cheios de superstições, magias e valores selvagens e equivocados.
A trama se passa alguns anos depois da história do primeiro filme, quando Jake Sully (Sam Worthington), agora convertido em Na’Vi, e Ney’tiri (Zoë Saldanha) constituiram família – têm quatro filhos –, e vivem pacificamente em sua terra, ambos exercendo papeis de liderança naquela sociedade. Isso até serem atacados mais uma vez pelos humanos e sentirem-se obrigados a deixar tudo para que sua gente não seja dizimada. Como refugiados, vão pedir abrigo na terra dos Metkayina, povo Na’Vi que habita a costa de Pandora, e que os recebe entre o receio e a solidariedade. Ali, a família de Sully vai ter que se adaptar às novas regras, assimilar os hábitos da tribo, aprender sua língua e ainda exercer a humildade para aceitar a ignorância intrínseca ao ser estrangeiro.
Veja, a seguir, galeria:
Usando e abusando de clichês para compor seus personagens e sua história, Avatar 2 é, assim, uma grande e bela alegoria da colonização, além de ser também, uma espécie de manifesto de cunho ecológico, que prega a defesa da natureza e a vida em harmonia com Eiwa, a “mãe-terra” de Pandora. Mas isso é verdadeiro também para o primeiro filme da franquia. A novidade aqui é a introdução da alegoria dos refugiados, tema atual, preocupante e bem trabalhado no filme de Cameron.
Com pouco tempo desde sua estreia, Avatar 2 já se pagou, tendo feito mais de US$ 550 milhões de bilheteria, contra os 350 milhões de seu orçamento. A aposta de Cameron, porém, é ultrapassar a marca de 1 bilhão em box-office mundialmente e, com isso, garantir o lançamento de Avatar 3 no final de 2024 e quem sabe das sequências 4 e 5 em um futuro próximo. Entre o primeiro e o segundo filmes se passaram 13 anos, tempo suficiente para desenvolver novas tecnologias capazes de surpreender os olhos mais exigentes. Mas será que um sequeal lançado tão em seguida será capaz de tirar nosso fôlego outra vez? Enquanto esta hora não chega, vale abrir olhos, coração e mente, e mergulhar fundo nesta grande fábula chamada Avatar.
Sobre a autora
*Lilia Lustosa é crítica de cinema e doutora em História e Estética do Cinema pela Universidad de Lausanne (UNIL), Suíca.
** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de dezembro/2022 (50ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.
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Revista online | Bardo: A viagem de Iñárritu
Lilia Lustosa*, especial para a revista Política Democrática online (49ª edição: novembro/2022)
Um filme que tem como subtítulo “falsa crônica de algumas verdades” já nos deixa intrigados e de sobreaviso para o que vamos ver desfilar na tela. Realidade? Ficção? Surrealismo? Realismo mágico? Bardo tem um pouco de cada, já que o mexicano Alejandro González Iñárritu misturou tudo e nos presenteou com essa maravilha de filme.
Uma história nada convencional, que nos leva diretamente ao âmago do diretor, ao esconderijo de seus traumas e de suas angústias, representado aqui pelo personagem Silverio Gacho (Daniel Giménez Cacho), um documentarista mexicano que volta à sua terra natal depois de quase 20 anos morando nos Estados Unidos. Um cidadão ilustre de seu país, mesmo que tenha decidido abandoná-lo. Ou, quem sabe, justamente por isso…
A história se passa em um limbo que permite a Silverio ver de longe sua própria vida, fazendo um mea culpa e, ao mesmo tempo, tentando identificar acertos. Um estado mental que faz refletir sobre decisões tomadas, lutos vividos, cicatrizes deixadas e feridas não curadas dessa caminhada sem guia que é a vida. Aliás, esse limbo explica o título do filme, já que “bardo”, no budismo, significa um estado intermediário entre a morte e o renascimento.
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Bardo é um filme nostálgico, melancólico, além de ser uma bela reflexão sobre imigração, deslocamento, pertencimento, sobre sentir-se deslocado, às vezes, tresloucado, fora de lugar. Sobre estar nesse não-lugar de ser estrangeiro, de ser muito mexicano para ser americano e muito americano para ser mexicano.
Para colocar tudo isso na tela, Iñarritú recorre ao onírico, aos símbolos, às metáforas, percorrendo elementos de sua própria filmografia, o que, para olhos atentos, não será difícil de identificar. Há pistas bem claras, como os planos aéreos do deserto que separa México dos EUA e que é palco para uma das cenas mais fortes de Babel (2006). Ou os estupendos planos gerais rodados em 65mm como os vistos em O Regresso (2015). Ou, ainda, os fantásticos planos-sequências que perseguem o protagonista em um caminho quase labiríntico, claustrofóbico, assim como acontece em Birdman (2014).
No entanto, apesar da maestria com que conduz essa obra grandiosa (e cara) que é Bardo, o diretor mexicano tem sido alvo de muitas críticas por parte de especialistas, que o acusam de arrogante, narcisista e de haver realizado ali uma pseudo autocrítica. Isso porque o que está em questão em seu longa é uma imigração privilegiada, que não teve que atravessar nenhum deserto, nem quaisquer águas bravias. Ou seja, uma expatriação voluntária que lhe permitiu ver o país de cima, da classe executiva, e que o fez aterrissar em solo seguro, protegido por um visto migratório, com a sempre liberdade de poder voltar.
Certamente, sua mudança para a terra de Tio Sam não tem nada a ver com a de seus tantos compatriotas que arriscam o que têm e que não têm para realizar o american dream. Nem por isso os questionamentos de Bardo são menos valiosos. O que Iñarritu coloca sobre a mesa em sua autoficção, como ele mesmo descreve o filme, é algo interessante de ser pensado e discutido. Uma história fantástica, que se distancia dos classicismos cinematográficos e que se dispõe a mostrar as contradições e idiossincrasias da elite mexicana – também chamada de Whitexicans –, da qual ele faz parte. Classe que sofre uma crise existencial constante por estar tão perto dos EUA, mas, ao mesmo tempo, tão distante de seus costumes e mentalidade. Crise também por se saberem roubados pelos gringos no passado, mas cientes de que, hoje, muito de sua economia funciona com base nos investimentos (ou exploração) das tantas indústrias americanas ali instaladas. Ou, ainda, nas tantas remessas de dinheiro feitas por aqueles que conseguiram atravessar a fronteira e “vencer na vida”.
Confira, a seguir, galeria:
Bardo, com seu humor ácido e sua direção de arte excepcional, é finalmente uma grande crítica à alta sociedade mexicana, conseguindo, ao mesmo tempo, atingir em cheio imigrantes ou expatriados de outras nacionalidades, que terminam por identificar-se com aquelas angústias e sentimentos de não-pertencimento, de traição à pátria, de abandono e, ainda, de uma colonização não cicatrizada.
Apesar de suas quase 3 horas de duração, Bardo flui bem, conduzindo o espectador de maneira quase hipnótica pelos labirintos da cabeça (e do país) desse grande diretor que já nos presenteou com obras extraordinárias como Amores Brutos (2000) e 21 Gramas (2003) e que agora nos mostra que a memória não é feita apenas de verdades.
Sobre a autora
*Lilia Lustosa é crítica de cinema e doutora em História e Estética do Cinema pela Universidade de Lausanne (UNIL), Suíca.
** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de novembro/2022 (49ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
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Revista online | Um tsunami chamado Godard
Lilia Lustosa*, especial para a revista Política Democrática online (48ª edição: outubro/2022)
A Nouvelle Vague, um dos movimentos cinematográficos mais importantes da França (e do mundo), gerou de fato, como seu título sugere, uma onda volumosa no universo cinematográfico, quiçá um tsunami que revirou tudo de pernas para o ar e revolucionou para sempre o curso da sétima arte. Suas águas revoltas abalaram os padrões até então estabelecidos, impulsionados pelo então ousado neorrealismo italiano e, ainda, pela maneira descontraída e original de segurar a câmera de um certo Jean Rouch, cineasta etnográfico que se misturava ao objeto filmado e fazia movimentos desajeitados e “fora da ordem” para conseguir apreender o real.
Por trás da nova onda que surgia naquele final dos anos 1950, estava também um jovem franco-suíço de classe alta, Jean-Luc Godard, que, apesar da origem burguesa (Godard era filho de pai médico e mãe de família de banqueiros), foi pouco a pouco se rebelando contra o sistema vigente, tão injusto com alguns e tão generoso com outros. Muito cedo ele percebeu que a caneta e a câmera poderiam ser usadas como instrumentos para reparar tais injustiças e ingressou como crítico da famosa Cahiers du Cinéma, revista que reunia um bando de jovens cinéfilos idealistas que sonhavam com um novo cinema para a França, um cinema de autor, menos preso aos padrões do classicismo em voga.
Aproveitando-se, então, das novas tecnologias da época – como a câmera leve e o gravador portátil Nagra –, Godard ousou dispensar o tripé, colocar a câmera na mão, filmar nas ruas e ainda romper com a quarta parede, colocando Jean-Paul Belmondo falando diretamente para a câmera (e para os espectadores) já em seu primeiro longa-metragem, Acossado (1960). Na ocasião, decidiu também não respeitar a continuidade dos planos (os raccords), causando certo estranhamento na plateia que assistia àquelas cenas com encanto e estarrecimento. Um verdadeiro ícone da Nouvelle Vague.
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A partir dali, Godard não mais parou de inovar, radicalizando e politizando cada vez mais a estética e a temática de seus filmes. De O Desprezo (1963), passando por Banda à parte (1964), por A Chinesa (1967) e por tantos outros longas, sua obra acabou por conduzi-lo ainda nos anos 60 a formar o grupo Dziga Vertov junto com Jean-Pierre Gorin, politizando completamente sua arte. Inspirados pela ideologia marxista, seus filmes se tornaram menos comerciais, mais experimentais, e fugiam da ideia da autoria (pessoal). Godard começou a se desentender até mesmo com os amigos da Nouvelle Vague, como François Truffaut, um dos membros fundadores do movimento. Em sua visão, o colega compatriota estava “se aburguesando” demais, enquanto ele buscava justamente escapar da cilada armada pelas elites francesas.
Sua fama e sua influência, porém, já atravessavam fronteiras e inspiravam cineastas em diversas partes do mundo, incluindo os jovens cinemanovistas que, naquele agitado início dos anos 60, se reuniam no Rio de Janeiro em torno do baiano Glauber Rocha e viam em Godard um modelo e uma fonte de inspiração para realizar um cinema genuinamente brasileiro, de baixo custo, independente e livre das amarras das indústrias cinematográficas nacional e internacional.
E Godard não parou por aí… Nos anos 1980, com o capítulo Dziga Vertov já encerrado, causou mais uma vez polêmica com o ousado Eu Vos Saúdo Maria (1985), que trazia a história bíblica de Maria e José para um mundo contemporâneo, colocando em pauta (e em dúvida) a gravidez da moça virgem, mãe de um messias salvador. O filme foi rejeitado pelo papa João Paulo II naquele então e, claro, proibido no Brasil da ditadura militar.
Confira, abaixo, galeria de imagens:
O século 21 chegou, e Godard continuava ativo e operante. Ganhou o Prêmio do Júri no Festival de Cannes, com seu experimental Adeus à Linguagem (2014), dividindo o prêmio com Mommy (2014), do canadense Xavier Dolan, 59 anos mais novo que ele. Em 2018, o incansável cineasta emplacou mais um filme em competição em Cannes, Imagem e Palavra (2018), nomeado em diversas categorias, mas acabou levando “apenas” a Palma de Ouro honorária do Festival por sua contribuição à sétima arte.
O céu parecia ser mesmo seu único limite… E, recentemente, mais uma vez, o franco-suíço causou espanto ao anunciar o iminente suicídio assistido, permitido por lei na Suíça, seu país de morada e de segunda nacionalidade. Para o espanto e a tristeza de milhões de cinéfilos, o longa experimental que foi sua vida chegou ao fim no dia 13 de setembro último. No entanto, enquanto os créditos continuam a subir na tela, sua influência e inspiração seguirão para sempre nas retinas, mentes e lentes dos milhares de discípulos e fãs mundo afora.
Que os céus recebam Godard de portões abertos e se deixem inundar por sua criatividade, rebeldia e talento!
Sobre a autora
*Lilia Lustosa é crítica de cinema e doutora em História e Estética do Cinema pela Universidad de Lausanne (UNIL), Suíça.
** O artigo foi produzido para publicação na revista Política Democrática online de outubro de 2022 (48ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
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Revista online | Top Gun: Maverick – um voo de nostalgia
Lilia Lustosa*, especial para a revista Política Democrática online (44ª edição: junho/2022)
Recentemente, uma sequela (sequel, em inglês) vem arrasando quarteirões e dando o que falar justamente por despertar na plateia aquela sensação gostosa de reviver o passado, de voltar no tempo, de reencontrar ídolos ou crushes da juventude. Top Gun: Maverick é uma explosão de nostalgia, com direito a Tom Cruise, Val Kilmer, Danger Zone (música de Kenny Loggins) e aquele sentimento de anos 1980 que invade por completo tela e mente.
Trinta e seis anos depois do sucesso de Top Gun: Asas Indomáveis (1986), longa-metragem que lançou Tom Cruise ao estrelato e garantiu seu lugar na cultura pop mundial, o novo Top Gun veio ainda melhor, mostrando que o tempo, às vezes, pode aprimorar uma obra, assim como faz com bons vinhos.
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Para dirigir essa sequela de peso, Joseph Kosinski foi o escolhido. Conhecido por sua aptidão no uso da computação gráfica – Tron: O Legado (2010) e Oblivion (2013) –, desta feita, o diretor americano optou por manter a estética e o estilo de seu predecessor, Tony Scott, filmando in loco, sem fundo verde. As cenas de abertura são exatamente como as do primeiro filme, incluindo a fonte utilizada para apresentar os créditos. Kosinski parece não ter querido deixar dúvidas sobre a filiação de seu Top Gun, prestando, ao mesmo tempo, bela homenagem ao diretor britânico que tirou sua própria vida em 2012. Kosinski agrega, porém, verniz de modernidade ao filme, aliando o que há de melhor na tecnologia atual ao realismo do cinema daqueles tempos. Em Top Gun: Maverick, os atores voam mesmo! Não é CGI. E mais, eles filmam também, já que nem diretor nem cinegrafista podiam acompanhá-los nos voos.
Para que os atores pudessem enfrentar tantos desafios, o próprio Maverick – ops! Tom Cruise – preparou um boot camp de três meses para deixar todos no ponto para subir nos aviões. Kosinski, por sua vez, instalou quatro câmeras dentro de cada jato, duas viradas para os atores e duas para fora, e ainda lançou mão de drones e aviões com a equipe de filmagem voando ao lado dos protagonistas. Uma proeza de realização e, sobretudo, de montagem, ponto alto do filme. As sequências de voos são de tirar o fôlego. Super-realistas e editadas à perfeição para fazer os espectadores voarem junto naqueles caças supersônicos.
O roteiro, talvez, seja o ponto mais fraco do longa. Mas isso já era no original. Afinal, a trama de Top Gun 1 é bem simples: piloto rebelde, com muito talento, mas que não gosta de obedecer às ordens. Entra para a equipe de elite da Marinha americana, a Top Gun. Por seu temperamento, vai acumulando inimigos e perdendo oportunidades na carreira. Para piorar a situação, em um momento de rebeldia aérea, acaba perdendo seu melhor amigo e parceiro de voo, Nick “Goose” Bradshaw (Anthony Edwards). Uma ferida difícil de cicatrizar e que vai apagar um pouco a chama de rebeldia de Pete “Maverick” Mitchell.
No filme atual, o capitão Maverick é um piloto de testes, estagnado na carreira e na vida. Ele é chamado para treinar a equipe escolhida para uma missão quase impossível. Os seis pilotos selecionados da Top Gun terão que eliminar um inimigo que não tem cara (russos, chineses?). Entre eles está Bradley “Rooster” Bradshaw (Miles Teller), filho de seu amigo Goose. Maverick vai viver um dilema: treinar o rapaz para que ele participe dessa missão suicida ou eliminá-lo do grupo, protegendo sua vida, mas impedindo-o, com isso, de alcançar seus sonhos?
Top Gun 2 traz à tona velhos sentimentos, fantasmas e medos, além de propor uma reflexão sobre a maturidade e a passagem do tempo. Não que Maverick tenha perdido a rebeldia, mas agora ela é mais pensada, contida, controlada. As transformações físicas também têm destaque. Nesse quesito, um momento especial é a aparição de Tom “Iceman” Kasansky (Val Kilmer), antigo inimigo de Maverick, que, por seu talento e conformação às regras, chega à diretoria da Top Gun. Na vida real, sabe-se que Val Kilmer passa por um momento difícil, tendo perdido a voz depois de um câncer de garganta. Mas a tecnologia do século 21 torna sua participação possível e emocionante.
Quem ficou de fora mesmo foi a música-tema do primeiro Top Gun, Take My Breath Away, interpretada pela banda Berlin. Para seu lugar, Hold My Hand foi especialmente composta, interpretada por ninguém mais, ninguém menos que Lady Gaga. Será que ela também leva o Oscar, como fez sua predecessora?
Mas o melhor de Top Gun: Maverick é que ele prescinde de conhecimento prévio do filme de 1986, sendo assim um excelente entretenimento também para os jovens de hoje. As explicações necessárias estão todas ali, permitindo que todos desfrutem dessa aventura banhada de sol oitentiano. Mas, se der, vale assistir ao primeiro Top Gun e, também, ao documentário Val (2021), dirigido por Ting Poo e Leo Scott. Eles podem acrescentar um tom de sépia às emoções do presente, fazendo tudo ganhar mais alma e sentido.
Sobre a autora
*Lilia Lustosa é crítica de cinema e doutora em História e Estética do Cinema pela Universidad de Lausanne (UNIL), Suíça.
** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de março de 2022 (44ª edição), editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores. Por isso, não refletem, necessariamente, as opiniões da publicação.
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Revista online | Uma ficção bem real
Henrique Brandão*, especial para a revista Política Democrática online (43ª edição: maio de 2022)
Medida Provisória é o primeiro longa dirigido por Lázaro Ramos, ator conhecido pelos filmes, novelas e séries da TV Globo em que atuou. O filme estreou nacionalmente em 14 de abril, ocupando 150 salas, um lançamento poderoso em se tratando de produção nacional.
Fez sucesso. Logo na primeira semana em cartaz, Medida Provisória bateu a marca de 100 mil espectadores e arrecadou mais de R$ 2 milhões. Na segunda, chegou a 237 mil espectadores. Um feito e tanto, que merece aplausos.
E como um filme que não se inscreve no perfil dos campeões de bilheteria do cinema nacional dos tempos atuais, marcado por comédias ligeiras e rasteiras e produções voltadas para o público infanto-juvenil, conseguiu esse excelente desempenho?
A resposta, me parece, está na abordagem de um tema crucial, que ganha ainda mais relevância nestes tempos de retrocesso explícito: o racismo estrutural, elemento nefasto, um dos alicerces sobre os quais nossa sociedade foi constituída.
O longa é uma adaptação de Namíbia, Não!, peça de Aldri Anunciação que Lázaro Ramos dirigiu para o teatro em 2011. Rodado em 2019, trata-se, em tese, de uma ficção que acontece em um futuro distópico. Na trama, o Congresso aprova uma medida provisória que obriga os cidadãos negros a migrar para a África, a fim de retornar suas origens.
O filme não tem sutilezas. Evidencia o confronto de duas situações distintas, marcadas pela história excludente da sociedade brasileira: de um lado, os pobres, em sua maioria negros; e, de outro, a elite privilegiada.
Medida Provisória não é um filme de ousadia estética e formal. Ao contrário, a narrativa é convencional, a linguagem é a com que nos acostumamos a ver todos os dias na TV, nas novelas e na maioria dos filmes dos canais de streaming.
Lázaro Ramos realiza um filme bem-feito, que conta com excelente fotografia, uma direção de arte competente e bela trilha sonora. O elenco ajuda muito. Taís Araújo, Seu Jorge e Alfred Enoch brilham.
Filmado em grande parte na região portuária do Rio, contrapõe os grandes prédios corporativos envidraçados, recém-construídos, às vielas com o casario da Pedra do Sol e adjacências – no que já foi conhecido, no início do século XX, como a “Pequena África”. É o cenário perfeito para o contraste que permeia a história.
Não é a primeira vez que os pretos são protagonistas no cinema nacional. Nem será a última, pois somos um país onde a presença do negro é decisiva para a formação do país.
Nesse sentido, me veio à lembrança Quilombo, filme de Cacá Diegues, de 1984. Nele, o diretor quis filmar uma alegoria de Palmares, o maior quilombo da história do Brasil, destruído em 1694. A mensagem de Cacá era a de que a comunidade quilombola era uma sociedade fraterna, onde os cidadãos viviam livres, em plena comunhão, em contraponto à tradição herdada de Portugal, repressiva e conservadora. Uma visão idílica, com certeza.
Toda obra artística reflete o espírito de sua época. Quando Quilombo foi lançado, vivia-se um período de avanço da democracia, com o povo nas ruas pedindo Diretas Já e a ditadura militar vivendo seus estertores. Dali a quatro anos seria promulgada a Constituição Cidadã. A situação permitia que se vislumbrasse um futuro melhor, e a obra de Cacá insinuava que, no alto da Serra da Barriga, em Alagoas, havia um modo de vida diferente sendo gestado.
Lázaro Ramos concebe seu filme em uma realidade bem diferente. As conquistas sociais inscritas na Constituição de 1988 sofreram retrocessos que se agravaram com o atual governo e sua base de apoio no Congresso. As forças reacionárias ascenderam com força, no Brasil e no mundo. O quilombo agora é chamado de “afrobunker”, e a mata virgem alagoana foi substituída pelo concreto das cidades. O momento é de resistência. A mensagem é clara ao final: “Em uma cultura de morte, a sobrevivência é desobediência civil.”
Em tempos sombrios, de ensaios golpistas, de negacionismos ideológicos, de atraso institucional, de conservadorismo oficial, Medida Provisória, uma ficção distópica, parece bem plausível. Não à toa, tem recebido aplausos ao fim das sessões, quando todos voltamos à realidade. E o grito de “Fora, Bolsonaro” toma o cinema. A ficção é mais real do que nunca.
Sobre o autor
*Henrique Brandão é jornalista.
** Este artigo foi produzido para publicação na revista Política Democrática online de maio de 2022 (43ª edição), editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
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