Fiesp
Nas entrelinhas: Manifesto resgata narrativa da luta contra a ditadura
Luiz Carlos Azedo | Nas entrelinhas | Correio Braziliense
A Carta às Brasileiras e aos Brasileiros em defesa do Estado Democrático de Direito, lançada ontem nas arcadas da tradicional Faculdade de Direito do Largo São Francisco, da Universidade de São Paulo (USP), na sequência do manifesto de empresários e sindicalistas organizado pela Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) como o mesmo objetivo, resgatou a narrativa da luta pela democracia que aprofundou o isolamento e levou à derrota o regime militar. Organizado por ex-ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), juristas, professores e alunos, o manifesto pode chegar a 1 milhão de assinaturas.
É uma ironia tudo isso. Tanto fizeram o presidente Jair Bolsonaro (PL), os generais que o cercam no Palácio do Planalto e seus apoiadores, saudosistas do regime militar, nos ataque às urnas eletrônica, à Justiça Eleitoral e ao STF, que o mundo jurídico reagiu em defesa dos postulados básicos da democracia e conseguiu galvanizar o apoio da sociedade civil. Isso ficou muito evidente no Largo do São Francisco e em dezenas de outras cidades brasileiras. Não por acaso, o evento relembrou o manifesto lançado nas comemorações dos 150 anos dos cursos de Direito no Brasil, em 1977.
O evento de ontem reuniu remanescentes da manifestação realizada 45 anos atrás, que contou com a participação de cerca mil pessoas, que saíram em passeata no centro de São Paulo, em pleno regime militar. A leitura da nova carta foi realizada pelas professoras da Faculdade de Direito da USP Euníce de Jesus Prudente, Maria Paula Dallari Bucci, Ana Elisa Liberatore Silva Bechara (vice-diretora da instituição) e por um dos signatários da carta de 1977, Flávio Flores da Cunha Bierrenbach, com 82 anos, ministro aposentado do Superior Tribunal Militar (STM).
Em 1977, a motivação dos protestos foi o fato de a celebração oficial ter ficado a cargo do ex-ministro da Justiça Alfredo Buzaid, um dos autores do AI-5. Os juristas Bierrenbach, José Carlos Dias e Almino Affonso decidiram organizar um ato que realmente representasse a comunidade acadêmica e seu entendimento sobre a situação do país. O professor Goffredo Telles Júnior foi encarregado de redigir e ler o manifesto, que entrou para a história.
Outro contexto
O contexto era completamente diferente. O general Ernesto Geisel operava uma abertura política “lenta, gradual e segura”, em resposta à derrota eleitoral do regime, em 1974. Milhares de pessoas haviam sido presas em 1975, a maioria ligada ao antigo PCB. O regime perseguia opositores, censurava meios de comunicação e não permitia a eleição direta de governantes.
Entre junho e agosto, 17 jovens militantes do antigo MEP (Movimento de Emancipação do Proletariado), entre os quais o atual deputado federal Ivan Valente (PSol-SP), haviam sido presos. Em resposta, houve uma grande manifestação de estudantes na PUC do Rio de Janeiro.
Os signatários da Carta aos Brasileiros, pot tudo isso, começavam o documento declarando-se decididos “a lutar pelos Direitos Humanos, contra a opressão de todas as ditaduras”. O texto de 14 páginas terminava afirmando: “A consciência jurídica do Brasil quer um a cousa só: o Estado de Direito”.
O documento, de certa forma, serviu para unificar a agenda do movimento democrático, que desaguou na vitória do MDB nas eleições de 1978 e na campanha da anistia para os presos políticos e exilados, que viria ser aprovada em 1979. Daí em diante, da nova derrota eleitoral de 1982 até a eleição de Tancredo Neves, no colégio eleitoral, em 1985, o regime foi se desagregando, até a derrota final dos militares.
Hoje, a situação é completamente diferente. Generais voltaram ao poder pelas mãos de um ex-capitão que deixou a ativa por indisciplina e se elegeu presidente da República. O Centrão substitui a antiga Arena, da qual o PP é o legítimo sucessor, no controle do Congresso. Entretanto, o poder moderador na República é exercido pelo STF e não pelas Forças Armadas, embora o atual ministro da Defesa, Paulo Sérgio Nogueira, se comporte como se fosse xerife das eleições.
A narrativa golpista de Bolsonaro assusta a sociedade civil, cujas lideranças se uniram para defender a democracia sem a intermediação dos partidos. Esse é o eixo político institucional da disputa eleitoral em curso, mas é a situação da economia que decidirá o pleito. Por meio da chamada PEC Emergencial, que desconsidera a legislação eleitoral, o governo usou o peso do seu poder econômico para mudar a correlação de forças nas eleições. Por isso, Bolsonaro tripudia do manifesto.
Elio Gaspari: A Fiesp expôs sua alma em reunião com Bolsonaro
Grandes empresários mostraram-se pedestres e pedinchões
Na sexta-feira da semana passada Jair Bolsonaro e três ministros participaram de um evento organizado pelo presidente da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp). Numa videoconferência de uma hora, falaram 14 grandes empresários ligados à guilda. É um penoso documento histórico e está na rede.
Dez deles gastaram seu tempo com platitudes ou simples bajulações. Alguns disseram o óbvio: há o problema dos transportes, o mercado se contraiu, e as empresas precisam de crédito.
Ofertas concretas e bem-vindas vieram de Jean Jereissati (Ambev) e de David Feffer (Suzano). Um contou que sua fábrica do Rio foi reciclada para produzir álcool que será doado à rede pública. O outro revelou que doará 500 mil máscaras.
A reunião produziu três “Momentos Fiesp”. O primeiro aconteceu depois que Eugênio de Zagottis, falando pelas farmácias, pediu o razoável adiamento da remarcação de preços prevista para a semana que vem: “O Brasil não precisa dessa manchete”.
Deu-se uma saia justa. Carlos Sanchez, representante da indústria farmacêutica, retomou a palavra, dizendo que os aumentos para remédios relacionados com a Covid-19 poderiam ser adiados. Quanto aos demais, só haveria dois caminhos, um dólar de R$ 4 para o seu setor ou uma redução de 5% na margem das farmácias, que deveria ser repassada à sua indústria. A proposta de Zagottis ficou no ar.
Num outro episódio, Rubens Ometto, o maior produtor de álcool neutro do país, trouxe uma agenda filosófica: “A gente precisa tomar muito cuidado com as promessas que têm sido feitas para a população, porque às vezes você pode quebrar uma cadeia dos serviços e dos negócios que são feitos, como a promessa de itens grátis, como água, como luz, como esse negócio todo. Vai se criando uma ideia de que não há necessidade de pagar.”
Tudo bem, mas tinha-se acabado de tratar, sem sucesso, da conveniência de se adiar um aumento de preços de remédios.
No terceiro episódio, Edson Queiroz Neto pediu que aviões da FAB fossem à China para buscar suas encomendas relacionadas com a epidemia. Tomou um contravapor do ministro da Casa Civil, Braga Netto, lembrando-lhe que a Vale fretou um avião para buscar o material que doará.
A Vale, que não estava na reunião, fechou na China a compra de cinco milhões de testes rápidos. A primeira remessa, de um milhão, deve chegar na sexta-feira. Os quatro milhões restantes chegarão em meados de abril. Essa doação equivale à metade das unidades que o Ministério da Saúde estima necessitar. Tudo sem necessidade de pagar.
A Fiesp mostrou um rosto cenográfico, e alguns grandes empresários mostraram-se pedestres e pedinchões. (Paulo Skaf, presidente da Fiesp, prometeu cinco mil leitos. Enquanto ele falava, o ministro Luiz Henrique Mandetta tamborilava com os dedos na mesa.)
No dia seguinte a essa cena espetaculosa e irrelevante, uma franquia da Domino’s, sem fanfarra, mandou umas 30 pizzas aos profissionais da saúde de um hospital público do Centro do Rio, com o seguinte bilhete:
“Com um toque de amor, em agradecimento a todos vocês que estão na linha de frente, se sacrificando por nós”.
De vez em quando, surge a ideia de que o ato de pagar (e de receber) não é tudo na vida de um povo, de uma empresa ou até de uma pessoa.
Sérgio Pessôa: A lógica da ação coletiva
Em 19 de junho, o procurador-geral de Justiça do Estado de São Paulo, Gianpaolo Smanio, argumentou que o ajuste fiscal não pode ser feito no orçamento da Justiça. Smanio considera que o gasto com Justiça é investimento, e não despesa.
O fato de nosso Judiciário custar, como proporção do PIB, de quatro a seis vezes mais do que o Judiciário de qualquer país da OCDE não sensibiliza o procurador.
Transcorrido exato um mês, em 19 de julho, no mesmo espaço da Folha, o presidente da Firjan, Eduardo Eugênio Gouveia Vieira, argumentou que a contribuição compulsória de 2,5% sobre a folha de salários que financia boa parcela da atividade das instituições do Sistema S se justifica em razão dos elevados retornos sociais das atividades empreendidas por essas instituições.
Em ambos os casos, não há preocupação com o custo e o benefício. Basta haver algum benefício. Ajuste fiscal bom é ajuste fiscal sobre os outros.
Recentemente, a Defensoria Pública da União requereu no STF a sua inclusão como colaboradora nos diversos processos de inconstitucionalidade da emenda constitucional que estabeleceu um teto para o crescimento do gasto primário da União. A justificativa é que, para melhor servir a população, a Defensoria Pública precisa de mais recursos.
Temos visto -por parte dos funcionários do BNDES e das associações empresariais- fortíssima reação contrária à criação da TLP (Taxa de Longo Prazo), iniciativa que trará transparência às operações do BNDES. A TLP retira do banco o poder de emprestar com subsídios sem que estes tenham sido avaliados e aprovados pelo Congresso Nacional.
A retórica das corporações é travestir o seu interesse particular no interesse da sociedade.
Além disso, as corporações demonstram inconsistência. Se é para manter todos esses gastos, como fazer campanha pela queda da carga tributária? Como a Fiesp pode colocar um pato na frente de seu prédio e simultaneamente ser contra o fim da contribuição compulsória de 2,5% para financiar o Sistema S e ser contra a criação da TLP?
A OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) foi contrária à PEC dos gastos. Agora, no dia 18, divulgou nota contrária à subida do imposto sobre a gasolina de R$ 0,41 por litro. Subtende-se que, para todas essas corporações, há despesas que podem ser cortadas e receitas que podem ser levantadas de forma muito fácil, com fortíssimo impacto positivo sobre o Orçamento.
Os candidatos óbvios são: os juros pagos aos banqueiros, a corrupção e a isenção de lucros e dividendos no Imposto de Renda da Pessoa Física.
Já escrevi diversas vezes sobre juros. Apesar de bem salgada, essa conta é bem menor do que se imagina. Se considerarmos juros reais pagos excluindo o IR que incide sobre a correção monetária da dívida, trata-se de uma conta de 2% a 3% do PIB.
O combate à corrupção é necessário, mas longe de ser a panaceia de R$ 200 bilhões por ano alardeada pela procuradora da República Thaméa Danelon no mais recente programa "Roda Viva", da TV Cultura.
Finalmente, a isenção da distribuição de lucros e dividendos do IRPF é função da elevada alíquota que praticamos no Brasil na pessoa jurídica. Há algum espaço para aumentar a tributação, mas certamente muito menos do que se imagina.
Teremos que atuar em todas as margens. Não há saída simples, ao contrário do que pensam as corporações.
* Samuel Pessôa é físico com doutorado em economia, ambos pela USP, sócio da consultoria Reliance e pesquisador associado do Ibre-FGV.