FHC
Fernando Henrique Cardoso: 1964 – lembranças e tormentos
Rancor? Para quê? Olhar para a frente e manter a democracia é o que conta
Cinquenta e cinco anos passam depressa. A memória se vai, mas ficam recordações. No dia 13 de março de 1964 eu estava no Rio de Janeiro, na casa do meu pai. À noite fui à Central do Brasil pegar o trem de volta para São Paulo. Meu pai, general reformado e ex-deputado federal, residia no Arpoador, no mesmo prédio em que moravam minha avó e um tio. Lá também morava Carlos Drummond de Andrade. Por Copacabana inteira, passando por Botafogo e pelo Flamengo, havia velas acesas nas sacadas de muitos edifícios: a classe média, especialmente a mais alta, protestava contra Jango Goulart, presidente da República que convocara seus apoiadores a se reunirem naquela noite em comício perto da Central do Brasil, em frente à Praça da República.
Tomei o trem, indiferente ao que acontecia. Por acaso, estavam no trem vários amigos: o José Gregori, que viria a ser ministro da Justiça em meu governo; Plínio de Arruda Sampaio, que fora meu colega de curso primário no colégio Perdizes, em São Paulo, e se tornaria deputado federal constituinte; e o engenheiro Marco Antônio Mastrobuono, futuro marido da filha de Jânio Quadros. No jantar, conversas e discussões. O “golpe” estava no ar: de quem seria? Não chegamos a concluir se dos militares e da “direita”, ou das “forças populares”, com Jango à frente, em favor de vagas reformas. Só sabíamos de uma coisa: viesse do lado que viesse, sofreríamos as consequências...
Na época eu era jovem professor-assistente da Faculdade de Filosofia, tinha 33 anos e assento no Conselho Universitário da USP como representante dos livres-docentes. Pouquíssimos sabiam de minhas relações de família com a vida política. Meu pai se elegera deputado federal pelo PTB em 1954. No governo de Getúlio, um primo de meu pai havia sido governador do Rio e outro, ministro da Guerra, o mesmo cargo ocupado por um tio-avô no início dos anos 1930. No governo de Juscelino um tio havia presidido o Banco do Brasil.
Meu pai e muitos familiares pertenciam à ala nacionalista e eram favoráveis à campanha “O petróleo é nosso”, na qual também me envolvi. Nunca me esquecerei do vidrinho de petróleo baiano colocado numa estante na casa do marechal Horta Barbosa, que eu frequentava quando menino, pois sua filha se casara com um irmão de meu pai.
Eu me interessava sobretudo pela faculdade, na qual me tornei professor em 1953, num ambiente avesso a Vargas e distante dos militares.
Minha participação política até então havia sido fugaz: no começo dos anos 1950 estive próximo da esquerda, do Partidão e do círculo intelectual liderado por Caio Prado Júnior na Revista Brasiliense. Rompi com o PC quando os soviéticos invadiram a Hungria, em 1956. Depois do Relatório Kruchev, da mesma época, agitei bastante contra os dirigentes comunistas. Não simpatizava com o populismo de Jango, embora fosse amigo de seu chefe da Casa Civil, Darcy Ribeiro. Nada disso impediu que a partir de 1964 eu fosse considerado “subversivo” pelos novos donos do poder.
No início dos anos 1960, lutava pela organização da carreira universitária e pela Fapesp. No Conselho Universitário ajudei a derrotar a “oligarquia”: com a ajuda de Hélio Bicudo e Plínio Sampaio, ambos do gabinete do governador Carvalho Pinto, elegemos o professor Ulhôa Cintra reitor da USP. Por isso eu gozava de prestígio em camadas de professores e, sobretudo, de estudantes.
Recordo-me de duas reuniões na Faculdade de Filosofia na noite de 1.º de abril de 1964. Numa tentava acalmar os estudantes, pois não entendia bem o que acontecera e achava precipitado haver manifestações. Na segunda tentava o mesmo com meus colegas professores. Tamanha era a confusão que houve quem propusesse um manifesto contra os militares golpistas que apoiavam Jango... Precisei telefonar para um colega, professor da Medicina, pedindo que viesse em meu socorro, para evitar o protesto contra Jango, que estava sendo deposto.
Em seguida a polícia tentou prender outro professor, Bento Prado, confundindo-o comigo. Tive de me “esconder”, primeiro em casas de amigos, em São Paulo, depois no Guarujá, num apartamento do Thomas Farkas, na companhia de Leôncio Martins Rodrigues. De lá saí para ir a Viracopos, cercado por familiares e amigos, sob a batuta de Maurício Segall, que se informava e sabia dos aeroportos ainda sem listas de subversivos a serem capturados. Voei para Buenos Aires, onde me hospedei no apartamento de um colega sociólogo, José Num, que mais tarde foi ministro da Cultura de Néstor Kirchner. Da Argentina fui para o Chile, carregando comigo os escritos da tese que pretendia defender para conquistar uma cátedra que vagara com a saída de Fernando de Azevedo.
Ruth, minha mulher, ficou em São Paulo. Ela procurou, então, o professor Honório Monteiro, que representava a Faculdade de Direito no Conselho Universitário e era afilhado de sua avó. Eu me dava bem com ele, assim como com meus vizinhos de cadeira no Conselho, representantes da Faculdade de Direito, Luís Eulálio Vidigal e Gama e Silva (que fora ao jantar de comemoração de meu doutorado. Mal sabia eu que, anos depois, ele assinaria o AI-5...). Quando Ruth perguntou ao professor Honório: “O que vai acontecer?”, ele, sabiamente, replicou: “Nada, vai mudar tudo”. Perdi a condição de professor, que só retomaria em outubro de 1968 ao vencer o concurso para a cadeira de Ciência Política. A cátedra durou poucos meses. Em 13 de dezembro, Gama e Silva, então ministro da Justiça, leu o AI-5, que fechou o Congresso, suspendeu o habeas corpus, cassou mandatos, e, como vários professores universitários, fui compulsoriamente aposentado em abril de 1969.
A institucionalidade foi quebrada e minha vida mudou. Recordar faz parte da História. Celebrar, o quê? No meu caso, exílio, processos e perda de cátedra. Rancor? Para quê? Olhar para a frente e manter a democracia é o que conta.
*Sociólogo, foi presidente da República
O Globo: 'Negociar com o Congresso não é fazer o mensalão’, diz FHC
Após postar, na semana passada, que presidente que não entende o Congresso cai, ele diz que Jair Bolsonaro precisa repartir o poder para governar
Silvia Amorim e Flávio Freire, de O Globo
O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso acredita que o poder de persuasão de um presidente é fundamental para a aprovação de medidas no Congresso. Por isso, o governo Jair Bolsonaro precisa entender que negociar com deputados e senadores não deve ser confundido com falcatruas.
No domingo retrasado, FH já havia mandado um recado para Bolsonaro: presidente que não entende a força do Congresso pode cair. Por isso, o tucano defende a adoção de uma política de repartição do poder. Sem isso, não há como governar.
Apesar de considerar que os militares compõem um setor mais sensato dentro do governo, FH pondera que são muitas as posições ocupadas pelos integrantes das Forças Armadas.
Na semana passada o senhor escreveu que presidente que não entende o Congresso cai. Por que decidiu entrar na polêmica entre Jair Bolsonaro e Rodrigo Maia?
Vi queda de muitos presidentes. Queria falar com o governo que do jeito que as coisas vão, (o país) está à deriva. Será que ele escutou? Não sei. O Brasil vai precisar fazer alguma reforma e o governo precisa entender que negociar com o Congresso não é fazer o mensalão. Ou tem um projeto e chama aqueles que vão decidir para participar ou fica sozinho. Não pode olhar a representação parlamentar, fechar o nariz e dizer: essa gente não tem nível.
Bolsonaro está passando essa mensagem ao resistir em fazer articulação política pela Previdência e acusar o Congresso de insistir na “velha política"?
Ao rejeitar essa gente ele está rejeitando o Brasil. Não pode. Não tem como desprezar a maioria. Chega uma hora , ela vai dizer: 'Estou aqui e você não é nada'.
Mas há muitos parlamentares envolvidos em escândalos.
Na democracia ou na ditadura você reparte o poder ou não tem como governar. Se você não tem competência para repartir o poder, você compra o poder. Isso não dá. Mas (Bolsonaro) não pode confundir dividir poder com comprá-lo.
Há quem diga que existe uma estratégia do governo para enfraquecer o Congresso. Também acha isso?
Estratégia? Não é o estilo dele ter uma estratégia. É muito elaborado. Não creio que seja essa a ideia de jogar o povo contra o Congresso. Aliás acho difícil isso acontecer no Brasil porque a fragmentação partidária é muito grande. O povo se move quando tem coisas mais objetivas em jogo.
O sr. tentou aprovar uma reforma da Previdência e não conseguiu. Acredita que ela será feita agora?
Não sei. É fácil falar e difícil fazer. Eu só consegui fazer o fator previdenciário. Mas, em última análise, a reforma da Previdência agora vai dar liberdade para o governo governar. Nesse momento o governo está sob absoluta pressão e restrição orçamentária. Mas essa história de ajuste fiscal é para economista. Não é coisa de povo. É um assunto que mexe mais com as estruturas corporativas e daí é importante o poder de persuasão do presidente.
Para persuadir é preciso ter convicção e Bolsonaro já foi criticado por dar sinais trocados sobre a reforma.
Há recuos e não fica claro qual é o caminho que deseja o governo. Há um setor empenhado em ajustar as contas. Há outro empenhado em cultivar o passado onírico guiado por um guru americano (Steven Bannon). E ainda tem os militares, ao meu ver, mais sensatos. O único reparo que faço nessa participação dos militares é que estão ocupando muitas posições. Isso é ruim para eles mesmos. Se o governo for mal vão jogar a responsabilidade neles. Se for bem, vai ser do Bolsonaro. Em 1964 os militares tinham um projeto para o Brasil e havia a guerra fria, a ameaça do comunismo. Os militares não têm hoje projeto para o Brasil. Eles não querem restabelecer a ditadura.
Em suas conversas fora do país, como autoridades internacionais estão vendo esse início de novo governo?
Eles têm uma impressão equivocada de que estamos marchando para o fascismo. Pensam que há aqui um governo autoritário forte. Não é isso. Isso significaria ter um líder, organicidade, crença sobre um modo de organizar a sociedade. Aqui não tem nada disso. Tem gente com pulso autoritário? Tem. Mas é muito diferente de 1964.
O que achou da decisão do governo de criar um escritório de representação comercial em Jerusalém como alternativa à transferência da embaixada em Tel Aviv?
Vamos ver o que os árabes vão dizer. Eles aceitaram? A falta de aderência de projeto política da realidade dá nisso: recuos.
Como avalia a postura da oposição nesse início de governo. Também está sem rumo, inclusive o PSDB?
Está tudo esgarçado. Não estou vendo ninguém se opor a nada. Cadê os candidatos que disputaram com Bolsonaro, o que estão dizendo? Por que não falam? Porque não há projeto. Não é por acaso. O momento é difícil mesmo.
Seu partido, PSDB, vai passar por troca de direção em maio. Se João Doria assumir o comando da legenda, o sr deixa o partido?
Você quer falar do meu partido? Vou ter que pensar depois (risos).
Clóvis Rossi: Brasil / EUA, se melhorar, estraga
Nunca antes na história os dois países foram tão amigos
O presidente Jair Bolsonaro embarca neste domingo (17) para Washington, para reaproximar o Brasil dos Estados Unidos.
De acordo com Bolsonaro e seu chanceler, Ernesto Araújo, o Brasil do PT havia se afastado de Washington por motivos ideológicos.
Bobagem. Pura fake news.
Desde o governo de Fernando Henrique Cardoso, as relações entre Brasil e EUA estiveram em ponto ótimo, provavelmente o melhor da história. Assim continuaram com Luiz Inácio Lula da Silva.
Só sofreram um abalo com Dilma Rousseff, mas por culpa dos americanos (a espionagem nos telefones da então presidente), não por qualquer tipo de ranço ideológico do governo de turno.
Não é uma análise por ouvir falar. Fui testemunha direta de um punhado de cenas explícitas de engajamento muito amistoso de parte a parte.
Relembro uma, a mais emblemática delas, por envolver o sensível tema da proliferação nuclear.
Antes de uma visita de Lula a Teerã, em 2010, o presidente Barack Obama enviou carta a seu colega brasileiro indicando os pontos que deveriam constar de qualquer conversa com os iranianos.
A Folha obteve a carta depois e pôde comprovar que o acordo com o Irã (ao qual se somou a Turquia) seguia ponto a ponto o que Obama queria.
Inclusive no item crucial, de acordo com o presidente americano: o envio de 1.200 quilos de urânio pobremente enriquecido para enriquecimento no exterior até o nível que só permitiria seu aproveitamento para finalidades pacíficas, nunca para a bomba.
Você acha, honestamente, que os EUA confiariam a um governante ao qual tivessem qualquer tipo de restrição, mais ainda ideológica, uma negociação nesse capítulo especialmente sensível?
O relacionamento entre os dois países chegou a um nível tão bom que, uma vez, o segundo homem da embaixada americana na época veio a São Paulo para uma conversa informal com dois ou três jornalistas.
Comentei com ele que, do ponto de vista do jornalismo, as relações Brasil/EUA eram “boring” porque não havia nenhum conflito, nenhum “fla-flu” que é naturalmente matéria-prima mais atraente para o jornalismo.
Ele concordou e argumentou que a função dele, como diplomata, era precisamente essa —a de normalizar o relacionamento, para frustração dos jornalistas.
É claro que todo relacionamento diplomático pode ser melhorado, mas, no nível que havia atingido, há mais margem para estragar do que para aperfeiçoar.
Até porque, no item comércio, o mais apetitoso hoje em dia na diplomacia, Donald Trump já disse, publicamente, que “o Brasil está entre os países mais duros do mundo, talvez o mais duro”.
É lógico supor que, se e quando se falar de acordos comerciais, Trump vai exigir que o Brasil amoleça.
Se Bolsonaro, ansioso por agradar seu ídolo, ceder e dependendo do que e de onde ceder, desagradará a parte de seus apoiadores no empresariado.
Outra ala do bolsonarismo, a dos militares, deve ter em relação aos Estados Unidos a mesma reserva que ouvi, em 1977, do general Hugo Abreu (1916-1979), então chefe do Gabinete Militar do governo Ernesto Geisel.
O general me disse que a pressão americana contra um acordo nuclear entre o Brasil e a Alemanha se devia ao medo de Washington da ascensão de “um Estados Unidos do Sul”.
A ideia de “America First” que Trump abraça não combina, pois, com o “Brazil First” que frequentava a cabeça dos militares. Frequenta ainda?
O Estado de S. Paulo: ‘Assistimos ao renascimento da família imperial’, diz FHC
Ex-presidente considera ‘abusivo’ o uso das redes sociais pelo clã Bolsonaro: ‘Polariza. Isso, para a democracia, não é bom’
Alberto Bombig, de O Estado de S.Paulo
De sapatênis marrom e meia verde-abacate, Fernando Henrique Cardoso recebeu o Estado nesta segunda-feira, 11, no centro de São Paulo, para falar do tema de seu mais recente livro: a juventude. Contou entusiasmado que tem ido caminhar na Avenida Paulista aos domingos, quando a via é fechada para os carros, e disse que tem procurado se adaptar ao modo de pensar das redes sociais, nas quais procura sempre se manter presente. “Eu tenho 87 anos. Quando nasci, a vida era diferente. E daí? Bom não é o passado, é o futuro”, disse o sociólogo e presidente do Brasil por dois mandatos (1995-1998 e 1999-2002).
FHC queria deixar a política partidária de lado na conversa e se concentrar apenas no lançamento de Legado para a Juventude Brasileira (Editora Record), uma coautoria com a educadora Daniela de Rogatis. Porém, ao abordar as redes sociais, acabou analisando o uso do Twitter pelo presidente Jair Bolsonaro: “É muito difícil pensar ‘tuitonicamente’, você pode, no máximo, emitir um sinal”. Para o ex-presidente, a democracia exige raciocínio e a rede social é operada por impulso.
Questionado diretamente sobre o comportamento de Bolsonaro e de seus filhos (Flávio, Eduardo e Carlos) nas rede sociais, FHC se disse preocupado com o envolvimento da família no “jogo do poder” porque “leva o sentimento demasiado longe” e disparou: “Eu acho perigoso. É abusivo, polariza (...) Nós estamos assistindo ao renascimento de uma família imperial de origem plebeia. É curioso isso. Geralmente, na República, as famílias não têm esse peso”. Segundo ele, “Bolsonaro está indo mal por conta própria”.
Leia a entrevista:
Como surgiu a ideia deste seu mais recente livro?
A ideia foi da Daniela de Rogatis, de fazer um livro que resumisse um pouco o que eu tento passar para as novas gerações. É uma coautoria. Também foram acrescentadas aulas que eu dei, uma coisa é falar, outra é escrever.
Qual é o legado que se pode deixar para a juventude brasileira neste momento?
Procuro transmitir um sentimento de amor ao País, respeito ao povo e valorar a democracia. Fui ministro da Fazenda, conheço um pouco de economia, acho que o crescimento econômico é importante, mas a mensagem principal está nos valores e na crença de se ter organizações abertas em que todos possam participar. Tenho em minha fundação atividades com os jovens. Uma é essa, que se deve basicamente a Dani Rogatis, que tem como alvo jovens de famílias empresariais. Há um outro grupo de pessoas, estudantes de curso secundário, escolas públicas e privadas, escolas profissionalizantes. Eles me perguntam qualquer coisa e eu só não gosto de responder a questões de política partidária, não é o meu objeto fazer pregação. O curioso é que as perguntas dos dois grupos, que são diferentes quanto à renda, não são muito diferentes.
O senhor se atualiza com esses encontros?
Claro, é bom manter contato com as gerações mais jovens, participar das inquietações deles também. Eu tenho 87 anos. Quando nasci a vida era diferente. E daí? Bom não é o passado, é o futuro. Sem desprezar o que já aconteceu.
O livro expressa uma grande preocupação com a ausência de líderes de peso. Por quê?
A sociedade contemporânea, paradoxalmente, na medida em que as estruturas e os partidos deixaram de ser tão significativos, porque o contato direto é mais fácil, requer referências. Essas referências só existem quando existem pessoas que as simbolizam. Isso significa que pode estar faltando rumo, alguém para dizer para onde nós vamos. O (Nelson) Mandela na África era isso. Certa vez fui com ele a uma reunião em uma área quase florestal da África do Sul. Quando ele chegou, mesmo sem falar, ele transmitia uma emoção. O que ele estava dizendo não era tão surpreendente. Ele era surpreendente, ele transmitia, ele significa. O mundo precisa disso, de pessoas que apontem rumos mesmo sem falar. Aqui no Brasil, infelizmente, tem muita gente falando e muito pouca gente simbolizando qualquer coisa. Eu posso não estar de acordo com o Lula, mas ele simbolizou em certo momento. Eu vi, em greves, ele simbolizava, por exemplo.
E na transição de seus mandatos para o dele ambos simbolizaram alguma coisa, não?
Bastante. Eu vou publicar o último volume dos meus Diários da Presidência e você verá como trabalhamos com muito afinco para ter uma transição civilizada. Sabe por quê? Pelo meu amor à democracia. É preciso entender que na democracia mudam os ventos, mas certas regras permanecem e precisam ser valorizadas. No caso do Lula é visível. Ele vinha contra mim, contra o PSDB, mas ele ganhou a eleição. Eu digo a mesma coisa com relação ao Jair Bolsonaro. Ele ganhou a eleição e eu não torço para que ele vá mal. Ele está indo mal por conta própria.
De que maneira o senhor acha que essa comunicação via redes sociais impacta a política?
Primeiro, é difícil o Twitter. Você dizer alguma coisa naquele pouco espaço disponível não é fácil. Em geral as pessoas não dizem quase nada, apenas manifestam o que estão fazendo. Isso passou a ser o modo com que as pessoas acham que pensam. É muito difícil pensar “tuitonicamente”. Você pode, no máximo, emitir um sinal. Nós estamos vivendo uma transformação de uma sociedade na qual as elites eram reflexivas para uma sociedade na qual todos são impulsivos. Isso tem efeito. É bom? É mau? Eu não quero julgar. Como a democracia vai se ajeitar com isso é a grande questão. A democracia requer reflexão, escolhas. O Twitter leva mais ao impulso do que a uma escolha racional, e democracia necessita de algo um pouco racional.
Como o senhor vê a maneira como o presidente Bolsonaro e os filhos dele, que são jovens, usam as redes sociais?
Eu acho perigoso. É abusivo, polariza. O Twitter facilita isso, o nós contra eles. Isso para a democracia não é bom. Os líderes de várias tendências não deveriam entrar nesse choque direto. Nós estamos assistindo ao renascimento de uma família imperial de origem plebeia. É curioso isso. Geralmente, na República, as famílias não têm esse peso. Quando têm, é complicado, porque a instituição política não é a instituição familiar, são coisas diferentes. Quando você tem a instituição familiar assumindo parcelas do jogo de poder, você leva o sentimento demasiado longe. O jogo de poder requer um equilíbrio estratégico, de objetivos e meios para se chegar lá. Quando a pura emoção domina é um perigo, porque você leva ao nós e eles: está do meu lado ou está contra mim?
A preocupação do senhor com a radicalização tem sido grande.
Radicalizar no sentido de ir à raiz da questão, não como oposição. O que é central para um sujeito que não seja do Centrão fisiológico? Para mim, são duas coisas basicamente, a crença na democracia e o sentimento de que é preciso maior igualdade social, isso é o miolo do que é radicalmente centro. Nesse livro, isso reaparece, porque faz parte de treinar a pensar no Brasil. Eu tenho uma preocupação com a concentração de renda e poder, me preocupa também que a diferença entre Nordeste e São Paulo seja muito grande. Você não deve deixar que uma nação se divida. A função do Estado é ter maneira de induzir o crescimento e equalizar as oportunidades. Está muito desigual o Brasil.
O senhor diria que este livro é mais pessimista ou otimista?
A despeito de tudo, é mensagem de otimismo. Eu não posso ser pessimista. Vim para São Paulo em 1940, vi esta cidade crescer e continua crescendo. Tem 18 milhões de habitantes e todos os dias de manhã tem pão, ônibus, luz elétrica. Ainda é precário? Pode até ser, mas o Brasil mudou para melhor, não foi para pior. Para a classe média alta, talvez a vida seja mais dura. Mas quem pertencia a essa classe há 50 anos? Um grupo pequeno. De vez em quando eu vou passear a pé na Avenida Paulista aos domingos, quando ela está fechada para carros. Você vê o pessoal usufruindo a cidade, não tem briga, é só você não ter medo dos outros. Estão desfrutando a vida. Isso não havia. É uma experiência interessante. É gente que mora na periferia e vem para a Paulista, para a Augusta, para o Minhocão aos domingos usufruir democraticamente da cidade.
O conceito de democracia está em risco no Brasil?
Isso me preocupa. A juventude atual é mais bem-nascida do que a anterior. Desfruta de algumas coisas como se elas fossem dadas. Não sei se isso vai gerar solidariedade. Com quem as pessoas se preocupam na Europa? Com os de fora, com os imigrantes. Aqui, não. São os de dentro que não têm. É preciso despertar nos jovens desse grupo a consciência disso, sem fazer demagogia.
Por que a juventude chegou a um momento de descrédito com os partidos e as instituições?
A forma de organização da produção e da vida na sociedade, com a ligação direta na internet, mudou as coisas. Os partidos não se adaptaram. Os candidatos, alguns, sim. As instituições ficaram aquém das pessoas no mundo todo e isso criou a ilusão de que você pode ter a democracia direta.
Folha de S. Paulo: Ernesto Araújo ataca FHC e diz que Brasil guiou EUA na crise da Venezuela
Em blog, chanceler diz que ex-presidente desprezava povo brasileiro e critica tradição diplomática
SÃO PAULO - Em artigo publicado em seu blog, o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, ataca Fernando Henrique Cardoso por suas declarações sobre a crise na Venezuela, dizendo que o ex-presidente defende “tradições inúteis de retórica vazia” e que ele “abertamente desprezava” o povo brasileiro e os eleitores de direita.
No texto, intitulado Contra o consenso da inação, Araújo também afirma que foi o Brasil que guiou os EUA nas decisões tomadas recentemente em relação ao país vizinho, e não o contrário.
Na última quinta-feira (28), FHC havia postado em seu Twitter que “novas eleições livres são o caminho para o futuro democrático na Venezuela” e que “intervenções militares não conduzem à democracia”.
Araújo criticou FHC, dizendo que ele usa “o mais surrado dos artifícios retóricos” ao criar “uma falsa dicotomia” entre consenso e intervenção armada no país vizinho. “Ao contrário de FHC, eu acredito na diplomacia, porque acredito na força da palavra e do espírito humano para mudar a realidade, porque não sou cínico nem materialista, porque acredito no povo brasileiro, esse povo dos “grotões” que FHC abertamente desprezava (assim como desprezava e despreza os eleitores de direita que o fizeram presidente duas vezes)”, escreveu.
No texto, o chanceler Araújo critica a tradição da política externa brasileira nos últimos 25 anos, baseada no “consenso” —que ele qualifica de “infame”— e dizendo que ela permitiu a consolidação de Hugo Chávez e de Nicolás Maduro no poder na Venezuela, a entrada do país no Mercosul e o “predomínio crescente do bolivarianismo na América do Sul concebida como um bloco socialista”.
“Insistir agora em que esse consenso continue a prevalecer na esfera da política externa, por temor e preguiça, sob o pretexto de ‘manter as tradições’, seria trair o povo brasileiro”, escreveu.
Segundo o chanceler, “uma grande liderança democrática venezuelana” disse a ele que foram as iniciativas do Brasil que “mobilizaram os próprios Estados Unidos a romperem a inércia em que se encontravam até o início de janeiro e a virem colocar seu peso político em favor da transição democrática”. “Não foi o Brasil que seguiu os EUA, mas antes o contrário.”
Araújo também teceu críticas ao ex-ministro Rubens Ricupero, ao afirmar que recebeu o agradecimento dos venezuelanos quando visitou as fronteiras do país com a Colômbia e o Brasil e abraçou o autoproclamado presidente interino da Venezuela, Juan Guaidó, “enquanto Rubens Ricupero e Fernando Henrique Cardoso escreviam seus artigos espezinhando aquilo que não conhecem, defendendo suas tradições inúteis de retórica vazia e desídia cúmplice”.
Fernando Henrique Cardoso: A vez da Venezuela
Insistirá o governo do Brasil no descaminho de subordinar a política externa a uma ideologia?
O Brasil está sendo confrontado com sua História. Quem leu o texto recente de Rubens Ricupero sobre a política externa do governo Bolsonaro perceberá os descaminhos pelos quais poderemos enveredar. Diante dos ensaios de ruptura com as tradições de nossa política externa, empalidecem as diferenças de matiz político-ideológico observadas desde José Sarney até Michel Temer. Basta ler o livro Um Diplomata a Serviço do Estado, do embaixador Rubens Barbosa, para ver que se manteve certo consenso básico sobre o interesse nacional e sobre o modo de adequá-lo a mudanças nos ventos do mundo.
Historicamente a condução da nossa política externa obedeceu a linhas de continuidade, com raras exceções em períodos não democráticos. É ao barão do Rio Branco que se atribui a noção de que deveríamos manter boas relações com os Estados Unidos para fazer o que nos convém na área que nos toca mais de perto, a América do Sul. Na guerra contra o nazismo até bases estrangeiras foram autorizadas a se instalar no Brasil. Mas foi um momento histórico excepcional a requerer que agíssemos assim. Em regra, nunca houve adesões incondicionais: primaram nossos interesses soberanos. Mesmo na guerra fria, quando o bloco capitalista se opunha ao bloco comunista, buscamos manter certa autonomia.
Com a globalização muita coisa mudou no ambiente político e, sobretudo, na interconexão econômica dos países. A diplomacia brasileira, porém, não deixou de se orientar pelo interesse nacional. Em artigo recente publicado neste espaço disse que o atual governo abusa da inconsistência em certas áreas. Para onde nos pode levar esse “abuso da inconsistência” na política externa?
Entende-se que haja incertezas na atualidade, advindas da nova página que se está abrindo nas relações entre os Estados Unidos e a China. A aceitação recíproca, obtida graças às reformas de Deng Xiaoping, às teorias sobre o “socialismo harmonioso” e à ascensão pacífica da China, começa a mudar. Os chineses queriam evitar a “armadilha de Tucídides”: a emergência de nova potência levaria a guerras com o antigo hegemon. Assim, o país abriu a sua economia para capitais internacionais o usarem como plataforma de exportação e se tornou o principal financiador do déficit comercial dos Estados Unidos, comprando títulos do Tesouro americano. Essa estratégia assegurou tempo e gerou os recursos necessários para que a China ampliasse o mercado interno e investisse na formação de empresas globais capazes de disputar a liderança tecnológica com suas rivais americanas.
Estamos chegando a uma profunda revisão dessas políticas, adotadas quando a coincidência de interesses prevaleceu sobre a rivalidade, em ambas as partes. A luta tecnológica pelo predomínio no mundo globalizado pode produzir surpresas desagradáveis. Por trás da retórica arrogante e aparentemente desconexa de Trump existe uma luta real pelo predomínio global. A chamada “guerra comercial” é um sintoma dessa disputa nas tecnologias determinantes do poder futuro, na economia e no campo da segurança. As tensões no Pacífico, do sul da costa chinesa ao litoral do Vietnã, são a face mais visível da dimensão militar do conflito entre as duas potências. O antagonismo ainda é mais agudo no ciberespaço, onde batalhas são travadas diariamente.
Nesse quadro, que interesse poderia ter o Brasil em assumir a priori um dos lados da disputa? Os que sustentam que devemos alinhar-nos em tudo à Casa Branca desconhecem que a sociedade americana é democrática e seu atual ocupante não expressa necessariamente um consenso duradouro. Vamos transferir a embaixada em Israel de Tel-Aviv, contrariando nossa histórica pregação em favor de dois Estados naquela região do Oriente Médio?
E que sentido faz criticar a própria ONU como suspeita de “globalismo”, do qual ela seria o instrumento? A única consequência prática é macular a imagem do Brasil em áreas tão sensíveis e importantes quanto o são os direitos humanos, o meio ambiente e a imigração. O dano à imagem do País, uma vez cristalizado, terá consequências contra os nossos interesses, como já se deram conta os setores mais lúcidos do empresariado brasileiro.
Insistirá o governo no descaminho de subordinar a política externa a uma ideologia, e não às realidades? Em nenhum outro lugar as consequências dessa reviravolta seriam mais nocivas que na nossa vizinhança. A crise da Venezuela se aprofunda. O caso remete à “política do barão”, pois mexe com nossos interesses mais imediatos, na América do Sul. É de louvar a prudência dos militares, mas é de temer a vocalização de alguns líderes políticos sobre nossa ação nesse drama. Sejamos claros: o governo Maduro é antidemocrático e insustentável. Não é de hoje que tenho me manifestado publicamente dessa maneira, em reuniões internacionais, acadêmicas e políticas. Contudo falar em permitir bases estrangeiras em território nacional ou em abrir caminho para aventuras guerreiras nas nossas vizinhanças não tem nada que ver com os interesses brasileiros de longo prazo. E em política externa é disso que se trata.
Apoiar a oposição venezuelana é uma coisa. Imaginar que se deva fazer o que foi feito na Líbia, pensando que forças externas podem reconstruir a democracia no país, é ignorar os fatos. Os desatinos verbais têm sido de tal ordem que resta o consolo de ver os militares recordarem que temos uma tradição de altanaria e soberania a respeitar, soberania nossa e dos demais países.
Bom mesmo seria ver o Itamaraty voltar a ser coerente com sua tradição: ressaltar e criticar o autoritarismo predominante na Venezuela, apoiar a oposição, dar acolhida às vítimas do arbítrio do atual governo e manter acesa a chama democrática. Abrir espaço para que terceiros países, mormente distantes da América do Sul, queiram resolver o drama político pela força não nos convém e fere nossas melhores tradições de atuação internacional.
*Sociólogo, foi presidente da República
Fernando Henrique Cardoso: E agora?
É preciso reconstruir a confiança entre sociedade e poder. Não parece que o presidente atual tenha essas qualidades
Fazer campanha é uma coisa, governar é outra. O novo governo mal começou, por isso tenho sido cauteloso ao falar dele. Dei algumas entrevistas na França e participei de discussões. Num diálogo na Maison de l'Amérique Latine sobre o último livro de Alain Touraine, quatro ou cinco ativistas pertencentes a um "coletivo" levantaram uma faixa. Nela se lia: "Lula livre!" e algo sobre os "golpistas". Como não fui eu quem mandou prender Lula, foi a Justiça, e jamais participei de golpe algum, vi o "ato" com fleuma. Mas, de ato em ato, se vai formando no subconsciente das pessoas e da mídia a convicção de que houve um golpe no Brasil que destituiu Dilma Rousseff. Estaríamos agora, com a eleição de Bolsonaro, caminhando para o fascismo... As perguntas feitas por alguns jornalistas tinham esse pano de fundo. Que o governo é "de direita" é certo, assumidamente. Que haja fascismo, só com má-fé. Os que ouviram na TV Globo as declarações do general Mourão podem eventualmente discordar, mas nada há de fascismo nelas.
No governo existem tendências autoritárias e gente que vê fantasmas no "globalismo". Também há pessoas que, contra os supostos males da "ideologia de gênero", advogam que meninos usem roupas azuis e meninas, cor-de-rosa. Mais grave, existem pessoas do círculo familiar do presidente que parecem ter relações bem próximas com as milícias cariocas. Já houve quem dissesse, e é certo, que a democracia é como uma planta tenra, precisa ser regada todos os dias. Cuidemos, pois, para evitar o pior. Que a essas tendências se oponham outras, abertamente democráticas.
O governo atual é consequência do medo (da violência que se espraiou), do horror à corrupção política (a Justiça e a mídia mostraram que ela é epidêmica) e da ansiedade pelo "novo". Que temos culpa no cartório, os do "antigo regime", é inegável. Se não culpa pessoal, culpa política. Nesse caso, de pouco adianta bater no peito.
É preciso reconstruir os laços de confiança entre a sociedade e o poder, o que requer liderança e ação institucional. Não parece que o presidente atual tenha as qualidades para tanto. Mas também as oposições estão em jogo: se simplesmente se opuserem a tudo ou aderirem acriticamente ao governo, pobre democracia.
O PSDB precisa reconhecer que perdeu feio e analisar o porquê disso, bem como atualizar-se. Será capaz? Não sei. O mundo mudou muito, a própria "social-democracia" é datada. Ela correspondeu ao que de melhor poderia haver nos marcos do capitalismo industrial, ao longo do século 20: a conciliação entre a "lógica do capital" e os valores da liberdade e da igualdade, do ideal democrático. A expressão dessa conciliação foram os Estados de bem-estar construídos nos países industriais avançados, nos quais se inspiraram líderes e partidos latino-americanos que chegaram ao poder depois do predomínio do autoritarismo na região.
A resposta aos novos desafios é mais difícil – não só no Brasil e na América Latina, também nos "países centrais" – do que foi a resposta social-democrata na época do desenvolvimento capitalista urbano-industrial. Como dar ocupação e renda à maioria da população em economias globalizadas, em que o aumento de produtividade dependerá cada vez menos de mão de obra não especializada e mais de conhecimentos, habilidades, capacidades de adaptação e invenção que podem ser oferecidos por trabalhadores especializados ou máquinas inteligentes? Mesmo que se possa assegurar uma renda mínima decente a todos, como resolver a questão da ocupação das pessoas marginalizadas do mercado de trabalho? São questões para as quais não existem respostas prontas. Mas tampouco o liberalismo econômico as tem. É ilusão acreditar que o crescimento da economia contemporânea solucionará por si os novos desafios da “inclusão social”.
E nós, aqui, vamos empurrar a questão da equidade para debaixo do tapete e rezar para que o "mercado" resolva tudo? É a tal tipo de visão que os social-democratas vão aderir? Ou os setores da sociedade fortemente comprometidos com a democracia, com as liberdades e com ideais de maior igualdade e dignidade humana terão forças para atualizar o ideário e abrir caminhos novos? A ver... É esse o enigma que nos espera. Diante dele, xingamentos e conceitos historicamente esvaziados(como o de fascismo) são insuficientes tanto para explicar o que acontece na sociedade quanto para apontar os rumos do futuro.
Nessa falta de rumos tanto o governo como as oposições estão enredados. Até o momento a agenda governamental é a da campanha: bandido bom é bandido morto, cadeia para os corruptos, adesão a outro pensamento único, o de Trump, e assim por diante. Mas a solução para os problemas da criminalidade, da violência, da corrupção, do lugar do Brasil no mundo não admite respostas singelas.
É preciso retomar o ritmo positivo da economia, o que depende de equilibrar as contas públicas e assegurar a solvência do Estado. Por isso, entre as múltiplas questões em pauta a reforma da Previdência prima. Seu andamento depende não apenas de coordenação política no Congresso, uma tarefa complexa, mas também de o governo definir um rumo claro a seguir e convencer a sociedade de que essa reforma é um passo necessário. Não se põe em marcha tal processo sem uma visão convincente sobre para onde se quer conduzir o País.
Esse desafio é não só do governo, mas do País. Portanto, as oposições têm papel em seu encaminhamento e solução. Jogar fora a "pauta social" e substituí-la por outra, "econômica", não nos conduzirá pelo bom caminho. Aderir ao governo para obter vantagens políticas repugna ao eleitorado. Mantenhamos nossas crenças, tomemos posições claras, sem adesismo ao governo nem irresponsabilidade com o País. Sobretudo, imaginemos, critica e criativamente, como atualizar o ideário da social-democracia, cujas fronteiras não se limitam ao PSDB.
*Sociólogo, foi presidente da República
Folha de S. Paulo: FHC diz que é oposição ao governo Bolsonaro
Ex-presidente considera que a gestão atual é de extrema direita e já afeta a imagem do país
Paloma Varón, da Folha de S. Paulo
Presidente do Brasil entre 1995 e 2002, Fernando Henrique Cardoso, fundador e presidente honorário do PSDB, está em Paris, onde participou do diálogo com o sociólogo e seu ex-professor, Alain Touraine. O ex-presidente concedeu entrevista exclusiva à RFI logo antes de entrar na sala, lotada, para debater com o colega, com quem mantém um diálogo que já dura cinco décadas.
No debate intitulado “Ordem contra a democracia?”, organizado pelo Colégio de Estudos Mundiais, da Fundação Casa das Ciências do Homem (FMSH, na sigla em francês) e que teve lugar na Casa da América Latina, em Paris, os dois sociólogos discutiram a crise dos sistemas democráticos ocidentais. Dando continuidade a este ciclo de debates, a Fundação organiza, no dia 31 de janeiro, também na capital francesa, uma conferência intitulada “Brasil: as raízes da vitória da extrema direita”.
Na entrevista para a RFI, FHC, como é conhecido no Brasil, explica por que, mesmo não tendo votado no presidente Jair Bolsonaro e sendo “oposição”, não apoiou Haddad em outubro de 2018. Fala também da crise da democracia brasileira, do fim de um ciclo iniciado com a Constituição de 1988 e de suas expectativas quanto ao novo governo.
No final do evento, membros do coletivo Alerta França-Brasil, criado em Paris em 2016 por ocasião do processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff, abriram uma faixa em frente à mesa onde aconteceu o debate e chamaram o ex-presidente de “golpista”. Perguntado se tinha se incomodado com o protesto, Cardoso disse que não, pois “estava acostumado”.
A seguir, veja a entrevista:
RFI - O que aconteceu com o Brasil?
FHC - Uma transformação muito grande, porque o sistema político tal como ele foi montado por nós mesmos com a Constituição de 1988 chegou ao fim de um ciclo. Houve uma desmoralização da vida política, houve também um processo de corrupção que corroeu bastante o poder no Brasil e um desencantamento do povo. E o povo reagiu elegendo um candidato que era pouco conhecido, mas que aparecia como se fosse uma ruptura com tudo o que tinha sido feito anteriormente. Não acho que isso signifique o fim da democracia – na França muitas pessoas acreditam que foi –, é mais complexo que isso, é um ciclo que chega ao fim. É preciso refazer o sistema político, recriar confiança nas pessoas. Quem vai ser capaz de fazer isso é a questão.
RFI - Mas se não é o fim da democracia, como alguns pregam, é o sinal de uma crise da democracia?
FHC - Bom, as democracias estão em crise em geral. Onde há democracia representativa, mesmo aqui na França, penso que há um certo desencontro entre a vontade das pessoas e a representação delas na vida política. Então neste sentido sim, porque você tem hoje novas formas de comunicação que são fundamentais, que conectam as pessoas com muito mais velocidade, independentemente das instituições sociais e tudo o mais. Então, neste sentido, é uma transformação. Se a gente chamar de crise, é uma crise. No nosso caso, a gente tem um problema mais sério, que é a desmoralização. Não só uma crise de desajuste das regras democráticas na vida social, mas também de corrupção no próprio poder, que ficou visível, gerando repulsa da população. Há risco para a democracia? Sempre há risco para a democracia. Eu acho que era o Sérgio Buarque de Holanda que dizia que a democracia é uma plantinha tênue, que tem que regar todo dia, tem que molhar para poder vicejar, para florescer. Então eu não vou dizer que não haja sempre o perigo de uma tentativa de autoritarismo. Eu já passei por momentos bem difíceis no Brasil e sei como é isso, mas por enquanto temos bastante liberdade na imprensa, na movimentação social. Vamos ver como o governo vai se posicionar. Eu, pessoalmente, tenho discrepâncias grandes com a visão de alguns setores do governo, mas isso faz parte do jogo, às vezes você ganha e às vezes você perde. Quando as pessoas que ganham querem evitar que haja a mudança de governo, que haja eleições, que haja liberdade de imprensa, aí complica. Aí você tem uma crise mais profunda. Nós não chegamos a este ponto, ao meu ver.
RFI - Em uma entrevista recente, o senhor falou que, se este governo for de extrema direita, seria oposição. Ainda existe esta dúvida se é ou não um governo de extrema direita?
FHC- Não, não tenho dúvidas. Eu seria oposição de qualquer maneira, eu não votei nele. E eu não votei nesse porque tinha um outro candidato [em quem votar], de um outro partido, e também porque eu não concordo com as ideias que ele expressou durante a campanha. Agora isso não me leva a dizer que o governo vá ser um governo que quebre as regras democráticas, isso é outra coisa. Eu discordo da orientação política e acho que o que eu tentei dizer foi o seguinte: na eleição, não houve uma votação de escolha entre esquerda e direita, entre democracia e ditadura. Isso não estava em jogo. O que estava em jogo era esta irritação da população com a corrupção e pela existência de uma violência espraiada no país. Eles queriam ordem. Foi mais em função de simbolizar a ordem e não estar vinculado a processos corruptivos que levou Bolsonaro à eleição. O que não quer dizer que o governo não tenha dentro dele elementos de direita. Tem.
RFI – E de extrema direita?
FHC – De extrema direita. Com visão bastante reacionária, em alguns setores. Agora, isso vai prevalecer? Aí depende, depende do jogo da sociedade, depende da resistência do Parlamento, da imprensa, não é tão simples assim. As pessoas quando ganham, não fazem tudo o que querem. Eu fui presidente eu não fiz tudo o que eu queria. Não se consegue, a sociedade existe. Então eu acho que a oposição precisa sempre existir. Na democracia, é necessário que exista oposição. Agora oposição, ao meu ver, o que não pode é ser destrutiva, no sentido de dizer que tudo o que vai ser feito pelo governo é errado porque vem do governo. Eu não sei, o que fizer errado eu sou contra. O que não tiver errado, por que eu vou ficar contra? Eu digo errado no sentido do bem-estar do povo, do crescimento da economia, da manutenção das regras democráticas. Se houver e quando houver atentado quanto a estas questões, eu acho que quem está na condição deve protestar, deve reagir.
RFI – O senhor acabou de dizer que não votou em Bolsonaro. Por que não declarou voto ou apoiou a Haddad, num momento tão decisivo da História do Brasil?
FHC – Isso é outra coisa, porque eu nunca estive de acordo também com as posições do PT, que levaram à situação, a este descalabro em que nós estamos. Eu me dou com o Haddad, pessoalmente, e não tenho nada contra ele, pelo contrário. Agora, ele botou uma máscara de Lula. Bom, o Lula fez coisas positivas, sem dúvida, mas ao mesmo tempo é responsável pelas transformações negativas ocorridas na vida política brasileira. Então há momentos em que a gente tem que ter noção de que “pô, eu não tô nem cá, nem lá”, não é a minha escolha, eu não sou obrigado a optar. Se houvesse o risco de quebra da democracia, aí sim. Depende da avaliação. Eu avaliei que não, que nós temos capacidade de resistência. Não vi nestes termos. Eu sei que muitas pessoas do PT dizem: “É o fascismo”. Mas eles não conhecem a História. Não tem fascismo, assim como não tem comunismo. Os dois lados têm esta visão um pouco antiquada. Então eu não sou obrigado a fazer uma escolha, eu não estou escolhendo entre a liberdade e a ditadura, entre o fascismo... Bom, também entre o fascismo e o comunismo fica difícil fazer uma escolha.
RFI – Esta questão se deve ao fato de que aqui na França eles estão acostumados a ver os partidos tradicionais fazerem uma frente republicana contra a extrema direita cada vez que ela chega ao segundo turno de uma eleição. E, poucos dias antes do segundo turno no Brasil, eu fui à Assembleia Nacional francesa e falei com deputados de diversos partidos e tendências que não entendiam por que não houve isso no Brasil.
FHC – Eu sei, eu conheço bem a vida francesa. Mas não houve também nenhum esforço, o PT nunca se mostrou aberto neste sentido, então é difícil encontrar razões [para apoiar]. Fizeram tantas coisas erradas, será que o meu voto vai fortalecer estas coisas erradas? Mas também não vou votar naquele em quem eu não acredito. Eu não vi como uma situação de que o novo governo é uma ameaça à democracia. Neste caso, teria de se fazer uma frente democrática. Mas não foi posto assim lá. Foi posto depois ou na hora do desespero da campanha final. Mas não é o que estava em jogo, eram outras questões que estavam em jogo. Talvez eu esteja equivocado, vamos ver daqui a pouco. Se eu estiver é ruim, porque aí vamos ter de lutar pela liberdade. Eu já lutei outras vezes, eu não teria nenhuma dificuldade, ainda mais agora, a esta altura da vida, eu digo o que eu penso. Eu não achei que valesse a pena comprometer minha posição de pensamento por uma candidatura que se dizia progressista, mas que tem em si as marcas do desastre que houve no Brasil: a estagnação da economia, pauperização, não intencionada, mas como consequência de muitos malfeitos e muita corrupção. A corrupção não era pessoal só, mas das instituições, o que é mais grave.
RFI - Esta corrupção das instituições já não existia antes? Não é um caso crônico do Brasil?
FHC - Não, aí é que está a diferença. Você pode dizer que sempre houve corrupção, sempre haverá, aí é outra coisa. Não é isso não: é a organização da corrupção como base de poder. É outra coisa, muito mais grave. Não é corrupção de A, de B ou de C que é má-conduta pessoal, que está errado, mas além disso você tem aqui a corrupção de um sistema que passava pela utilização de empresas públicas para financiar empresas privadas que financiavam partidos de maneira sistemática. Isso é algo muito contra a democracia, contra a liberdade. E eu não posso escolher este lado contra o outro.
RFI - Qual a sua opinião em relação à Operação Lava Jato, o senhor a apoiou?
FHC – Eu sempre apoiei, mesmo se há exageros. Vou dar um exemplo: um governador do meu partido, do estado de Minas Gerais, foi condenado a 21 anos. O que ele fez? Ele eu não sei se fez, mas algumas pessoas que trabalhavam com ele fizeram um contrato com o governo, que na verdade era para usar dinheiro para a campanha dele. Foi condenado a 21 anos, é um exagero. Como é que você resolve isso? Apelando. Porque a Justiça funciona. Você não pode dizer que há uma perseguição política no Brasil. Há muita gente na política que está sendo condenado, por acusações de corrupção, de mau uso do dinheiro público. Você pode discutir isso na Justiça, pode discutir se a pena é correta. Os juízes da Lava Jato são da primeira instância, depois você recorre à segunda instância e ainda tem o Supremo Tribunal Federal. Então, se todas instâncias dizem que é culpado, o que que eu vou fazer? Ou eu acredito que a Justiça e a democracia existem ou eu faço o quê?
RFI – Voltando ao governo Bolsonaro, já estamos no 14º dia de seu governo, qual a sua avaliação destes primeiros dias? O senhor acha que o fato de o Brasil ter eleito um presidente de extrema direita vai afetar negativamente a imagem do país no exterior e particularmente na França?
FHC – Vamos começar por aí. Afeta. É claro que afeta. A percepção do resto do mundo e particularmente na França é negativa. O governo começou complicado, com a recusa do pacto de imigração, dizer que vai sair da convenção sobre o clima, são posições difíceis de imaginar que o mundo aceite com aplausos. Dentro do governo, tem setores ultraliberais, na parte econômica, setores que são culturalmente atrasados, reacionários, e setores que são fora do mundo, “démodé”.
RFI – E como fazer com que isso funcione? Para que eles se entendam para governar?
FHC – Este é o ponto, é difícil ver. Você vê que, no começo do governo, estão dando muitas cabeçadas, um diz uma coisa, o outro diz outra coisa e tal. Eu sou prudente, eu fui presidente, eu sei que é difícil, não gosto de jogar pedra toda hora e às vezes no começo as pessoas custam a se ajeitar. Mas aí é mais do que isso, são setores muito desencontrados. Eu sou brasileiro em primeiro lugar; o meu partido, para mim, vem depois. Eu quero o bem-estar do povo e tenho uma visão de mundo. Acredito na humanidade, acho que tem valores universais, direitos humanos, essa coisa toda, então eu torço para que não façam erros, não torço para que errem. Deixa ver o que vai acontecer. Mas que estão dando cabeçada, estão.
Fernando Henrique Cardoso: Novo ano, novos desafios
Espero que o novo governo ache rumos melhores do que alguns membros apontam
Ao iniciar o ano, as pessoas estão cheias de esperança, querendo o melhor para si e para o País. É também o que eu desejo para os leitores e para todos os brasileiros. Contudo os desejos não substituem os fatos, e estes podem impedir que aqueles se realizem em 2019. Certamente torço para que o Brasil encontre um rumo melhor. Mas um olhar realista se impõe.
Comecemos olhando para o mundo. Desde o fim da guerra fria e, especificamente, desde que, no início da década de 1970, Henry Kissinger convenceu o então presidente Richard Nixon a visitar a China e a normalizar as relações com aquele país, vivemos um período de relativa tranquilidade no sistema internacional. O entendimento sino-americano visou de início a isolar a União Soviética, rival da China no mundo comunista. À medida que aquela foi declinando, dissolvendo-se em 1991, o mundo assistiu à crescente complementaridade econômica entre a maior potência mundial, os Estados Unidos, e a potência em ascensão, a China.
Com a Pax americana, coadjuvada pela China, os conflitos se tornaram localizados. A ambição que motivou a formação das Nações Unidas, a de pôr um ponto final nas grandes guerras mundiais, ficou ainda mais próxima da realidade com o colapso do mundo soviético, iniciado com a simbólica queda do Muro de Berlim, em 1989.
Sob a liderança de Deng Xiaoping, ao final dos anos 1970, os chineses compreenderam que seu país precisaria reformar-se e abrir-se ao mundo para prosperar. De Deng Xiaoping até o atual líder chinês, Xi Jinping, todos sustentaram uma política externa orientada para evitar a chamada "armadilha de Tucídides": a colisão e ao final a guerra entre a potência hegemônica e a emergente. As lideranças chinesas falavam de uma ascensão pacífica e de um "socialismo harmonioso", juntando o regime de partido único e o Estado socialista com a integração financeira e produtiva ao mundo capitalista. A China abriu-se às multinacionais que quisessem disputar seu mercado ou exportar, desde que aceitassem as regras do poder. E mais: tornou-se a maior detentora de papéis do Tesouro americano.
Há sinais, contudo, de que a Pax global começa a ser ameaçada não propriamente pela guerra convencional ou atômica, permanecendo um cenário remoto, mas por uma crescente disputa pela liderança tecnológica, da qual a guerra comercial ora em fase de escaramuças é o aspecto mais visível. A disposição de Trump de desmantelar a ordem liberal vigente visa a impedir que a China assuma a dianteira na corrida tecnológica nas áreas de inteligência artificial e computação quântica. Sob Xi Jinping os chineses já não escondem suas ambições na corrida tecnológica, mesmo no campo militar disputam o controle de parte do Pacífico. Mais do que na interferência online nos processos políticos dos Estados Unidos e da Europa, como os russos, a China aposta na sua capacidade no terreno tecnológico para o sucesso econômico e bélico. Ainda não conhecemos os desdobramentos dessa disputa, mas parece que a ordem liberal pós-guerra fria está ficando para trás, com riscos para a paz mundial.
O Brasil tem um novo governo. Fala-se muito que o País, na esteira da onda conservadora no mundo, virou à direita. Será esse o sinal enviado pelo eleitorado, que em sua maioria votou por repúdio ao PT, à falta de segurança pública e à podridão política, sem, entretanto, algum conteúdo ideológico definido? Se o novo governo deslizar para a direita, será menos porque o eleitorado assim decidiu e mais porque os vencedores assim pensam.
Pensam? Depende: na economia o governo é liberal, nos costumes, reacionário e, quanto à visão do mundo, basicamente anacrônico, a julgar pelo que disseram alguns de seus membros. Dos militares pouco ou nada se ouviu a respeito. Subscreverão as teses do futuro chanceler? Ou a norma de que sem objetivos e sem preparação não há guerra a ser ganha?
Para concluir, diante do quadro internacional, quais devem ser os objetivos básicos de um país como o Brasil, grande, populoso, diverso e excêntrico, isto é, distante dos polos do conflito? Acelerar o crescimento da economia, em bases socioambientais sustentáveis, para dar melhores condições de vida ao povo, preservar o acervo de boas relações que o País construiu ao longo do tempo, afirmar (e praticar internamente) valores que nos são caros, a começar pela democracia. Para isso, por que tomar partido diante de um eventual choque de interesses entre a China e os Estados Unidos ou de quem quer que seja? Por que tomar partido nas disputas que dividem os Estados Unidos e a Europa? Melhor será, penso, cuidar de manter nossa influência na América do Sul, região a que pertencemos, e, sem entrar em briga graúda, participar mais amplamente dos fluxos globais de comércio, informação, criatividade e desenvolvimento, para obter a melhor inserção possível no mundo.
É, no mínimo, anacrônico pensar que a disputa por poder e influência no sistema internacional se dê entre gladiadores comunistas e capitalistas, cruzados da fé cristã contra cosmopolitas sem fé e sem pátria. A luta real é por mais ciência e tecnologia, para melhorar a qualidade dos empregos e da vida em sociedades que não devem nem podem mais se encerrar em si mesmas nem se agarrar dogmaticamente a identidades étnicas, religiosas, etc., fechadas e excludentes. A ideologia que se insinua é tão distante dos interesses permanentes de um país como o Brasil quanto o foi a que ela pretende substituir.
Por isso espero que o novo governo encontre rumos melhores do que os que, com estridência, apontam alguns de seus membros. À oposição cabe criticar impulsos ideológicos, alertar para os riscos de alinhamentos automáticos e contribuir para que os interesses reais do Brasil e de sua gente prevaleçam na definição e implementação das políticas, externa e interna.
*Sociólogo, foi presidente da República
Folha de S. Paulo: 'Creio que o AI-5 passou para não voltar', diz FHC sobre o decreto de 1968
Por Laura Mattos, da Folha de S. Paulo
SÃO PAULO - Fernando Henrique Cardoso estava em sua casa, no bairro do Morumbi (zona sul de São Paulo), quando escutou o anúncio do Ato Institucional número 5, na noite de 13 de dezembro de 1968. Lembra-se perfeitamente da voz do ministro da Justiça, Gama e Silva, que havia sido seu colega no Conselho Universitário da USP, informando em cadeia nacional de rádio e televisão as medidas que iriam endurecer a ditadura militar.
Fazia apenas dois meses que Fernando Henrique voltara ao Brasil e a ministrar aulas na Universidade de São Paulo, após um exílio imposto pelo golpe de 1964. Percebeu o que estava por vir, pegou o carro e se dirigiu à Cidade Universitária (zona oeste), onde se organizavam protestos. O AI-5, que fechou o Congresso, acabou com o habeas-corpus e concedeu poderes ilimitados ao Presidente, teria logo consequência mais direta em sua vida: em abril de 1969, com 37 anos, seria aposentado compulsoriamente da universidade. Aos 87, o ex-presidente do Brasil relembra nesta entrevista à Folha esse "clima horroroso" de 50 anos atrás.
De que movimentos o sr. participava para ser considerado pelos militares um "subversivo" e ter sido obrigado a se exilar após o golpe de 1964?
Na época de 1964, eu era professor da USP, só participava do debate público. Era acusado pelas ideias, não pela ação. Exercia certa liderança, fundara no passado a associação dos docentes e havia sido eleito, então, representante dos professores assistentes.
O sr. foi oficialmente expulso ou recebeu algum tipo de ameaça e decidiu partir?
Fui obrigado a deixar o país em 1964 porque tentaram me prender e a Justiça militar abriu um processo contra mim. Em Santiago, trabalhei na Cepal [Comissão Econômica para a América Latina e Caribe], da ONU [Organização das Nações Unidas], e fui professor na Universidade do Chile, de 1964 a 1967. De lá fui para a França a convite de Alain Touraine [sociólogo] para criarmos um departamento na Universidade de Paris (Nanterre), onde fiquei entre 1967 e 1968.
O sr. e dona Ruth já tinham filhos quando foram para o exílio?
Sim. Um tinha nove anos e as outras, meninas, sete e cinco.
Por que decidiram voltar em 1968? Foi consequência do aparente fortalecimento dos movimentos de oposição, marcado pelas grandes passeatas?
Voltei porque um catedrático da USP morrera deixando uma vaga. Eu estava, desde 1964, fora da USP, pois a reitoria se negou a conceder-me licença. Além disso, o clima político parecia desanuviar-se, o que com o AI-5 não ocorreu.
Da sua volta até o anúncio do AI-5, como foi a vida em São Paulo, as aulas na USP e o clima na universidade?
Eu morava no Morumbi [zona sul] em uma casa que começamos a construir quando fui para Santiago. Ganhei o concurso para a cadeira de ciência política da USP em outubro de 1968. Nessa época não sofri qualquer processo. Houve sim acusações internas à USP, por parte de outros professores. Logo depois, em abril de 1969, fui aposentado compulsoriamente pelo AI-5, aos 37 anos.
O sr. se recorda do momento do anúncio? Onde estava e qual foi a sua sensação?
Recordo-me perfeitamente da leitura do decreto do AI-5 e da voz do ministro Gama e Silva, da Justiça, o Gaminha, que havia sido meu colega no Conselho Universitário. Eu estava em minha casa e logo percebi o que aconteceria. Peguei o carro e fui para a faculdade. Em seguida começaram as aposentadorias compulsórias.
Com o AI-5, o que mudou na sua vida? As consequências foram imediatas ou o sr. só seria afetado a partir do seu afastamento compulsório da USP?
As consequências gerais foram imediatas. Até a minha compulsória, eu fora eleito por alunos e professores diretor do Departamento de Sociologia, estávamos fazendo uma reforma curricular, mas o clima passou a ser de protestos abafados e mesmo abertos. Um dia fomos cercados pela polícia na Cidade Universitária. Mas disso já havíamos provado em 1964 na rua Maria Antonia [sede na USP na Vila Buarque, região central]. Basta dizer que houve "guerra" entre provocadores e alunos da filosofia, com coquetéis molotov -um atingiu minha sala e queimou documentos. A partir do AI-5, eram notícias vagas de reações, medo e repressão. Embora voltasse a ser convidado a dar aulas na França e em Yale, resolvi ficar em São Paulo e fui um dos fundadores do Cebrap [Centro Brasileiro de Análise e Planejamento], instituição que continua existindo. Posto para fora da USP e trabalhando no Cebrap [que reuniu intelectuais afastados de suas funções pela ditadura], o clima era horroroso. Qualquer carro que parasse em frente à casa já se pensava na polícia política. Sabia de pessoas, às vezes amigos, presos e mesmo torturados ou mortos, como o [jornalista Vladimir] Herzog.
O sr. nunca mais voltou a ser professor da USP?
Só voltei a dar um curso, durante um semestre, depois da lei de anistia [1979]. Não regressei mais à carreira pois estava dirigindo o Cebrap, dando aulas eventualmente no exterior (École des Hauts Etudes [França], Cambridge [Inglaterra], Stanford e Berkeley [Estados Unidos], em períodos distintos) e meus ex-alunos ocupavam, com brilho, as funções que eu e outros deixáramos. Eu sempre gostei de não repetir experiências, buscar novos desafios.
O sr. já tinha àquele momento alguma intenção de entrar na carreira política?
Não tinha, embora a política não fosse experiência distante: meu pai, que era militar (chegou a general), era também advogado e foi deputado federal por São Paulo. Minha participação foi consequência das lutas contra a ditadura (SBPC [Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência], jornais "nanicos" como "Movimento" e, sobretudo, "Opinião", a Comissão de Justiça e Paz etc.). Foi Ulisses Guimarães quem me levou a ser candidato ao Senado em uma sublegenda do MDB, não para ser eleito, mas para somar votos a quem seria reeleito, Franco Montoro. Eu nem sabia que o segundo colocado, como fui, seria o suplente do titular... Montoro eleito governador, tornei-me senador. Na época estava dando aulas em Berkeley.
O AI-5 é algo enterrado ou ainda corremos o risco de passar por algo assim?
Espero e creio que sim, o AI-5 passou para não voltar. E ainda bem.
Folha de S. Paulo: É exagero dizer que Bolsonaro é golpista, diz Almino Affonso, cassado em 64
Ex-ministro do Trabalho de Goulart afirma que quadro é diferente do que levou ao regime militar
Ricardo Kotscho e Catia Seabra, da Folha de S. Paulo
SÃO PAULO- Prestes a completar 90 anos, o ex-deputado Almino Affonso afirma que a omissão dos grandes partidos, sobretudo PSDB e MDB, abriu um vazio político no Brasil. Dele, surgiu Jair Bolsonaro.
Ministro do Trabalho de João Goulart (1961-64), Almino não vê hoje cenário propício a um novo golpe de Estado.
Mas, ao lamentar a falta de líderes capazes de ocupar esse vazio e lembrar a Alemanha assolada após a 1ª Guerra, afirmou: “O Hitler ocupou”.
Ex-tucano e ex-emedebista, Almino faz um apelo para que o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso assuma uma atitude de estadista.
Almino afirma ainda que a concentração de poder nas mãos do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva matou o debate interno no PT.
Em 1961, o sr advertiu que a renúncia do então presidente, Jânio Quadros, fazia parte de um golpe de Estado. Para o sr., há hoje risco de um golpe, como afirmam integrantes da esquerda?
Não chutei [à época]. É provado. Tem um livro, chama “História do Povo Brasileiro” [aponta a estante], escrito, muito tempo depois, por ele [Jânio] e por Afonso Arinos, em que ele confessa a renúncia como algo articulado para o golpe. Na tribuna, fiz por pura intuição.
A mensagem que ele manda ao país para justificar a atitude era uma contradição: o Exército está com ele, o povo está com ele, o empresariado está com ele… Tudo estava com ele. E o país era ingovernável?
Hoje, existe um cenário propício?
Vejo um quadro rigorosamente diferente. Tivemos naquele período a Guerra Fria. Tudo que não levava apoio ao EUA era presuntivamente prova de que apoiávamos a URSS. Essa visão influiu na opção militar. Mas houve causas de natureza social, inflação galopante, crise social aguda, desemprego, dívida externa.
De nossa parte, uma reforma agrária contestada por interesses contrariados. No Congresso, a maioria era favorável a manter a Constituição como estava, de modo que impedia uma reforma. São causas laterais que criaram um conflito da inviabilidade do governo Jango.
E hoje?
Hoje você tem um governo de uma liderança que, para setores da sociedade, é inaceitável e questionável. Mas daí dizer que dele resulta uma articulação golpista, acho que é uma visão exagerada.
Bolsonaro chega ao governo sem que tenha um programa minimamente apresentável. Ele foi eleito por essa maioria fascinante do ponto de vista numérico como um grande protesto nacional contra tudo. Não especificamente a favor dele.
É contra o desamparo, o desemprego, a corrupção, contra os partidos políticos que se deterioraram e foram se transformando em grupelhos. Ele tem o privilégio de ter uma maioria fascinante. Quem, antes dele, teve algo semelhante? Getúlio Vargas, no mandato de 1950. Fora isso, quem? Nem o Lula.
Em 2002, Lula teve mais votos.
Mas não com essa dimensão.
O sr. acha que o povo deu um cheque em branco?
Essa é a inquietação. Você tem um país ainda sem programa, a revolta é real e numa expectativa de que ele responda. E Bolsonaro tem pela frente muitas perguntas.
O seu foi o 14º nome da lista de cassados no dia 9 de abril de 1964, pelo golpe deflagrado sob pretexto de salvar o Brasil do comunismo. Aos 89 anos, o sr. ainda se considera um perigoso comunista?
Não vejo correlação entre o passado e hoje. Não vejo a presença comunista no país sendo objeto de um debate. Menos ainda de um risco qualquer.
O sr. mesmo já disse que em 1964 não havia esse risco.
Não havia o risco comunista de verdade. Mas houve uma programação acusatória, com a grande imprensa inclusive, e influiu muito na decisão dos militares. Se pegar todos os manifestos dos principais líderes militares no dia do golpe, os quatro generais, todos dizem que estão salvando o país do comunismo.
Mas esse discurso voltou. Quem faz oposição ao Bolsonaro é chamado de comunista, vermelho. Essa ameaça estava no discurso de campanha do presidente eleito.
Quem são os comunistas hoje nessa acusação implícita ou explícita? Seria o PT? O PT não tem nada de comunista. Lula nunca foi comunista. Haddad é nada comunista. Não vejo nenhuma organização comunista que justifique esse tipo de argumentação.
O sr. atribui o golpe ao contexto da Guerra Fria. Hoje quais são os interesses geopolíticos em jogo nessa guinada de poder no Brasil? O mundo está caminhando para a direita?
O mundo está tendo uma projeção à direita crescente. O quanto isso se articulará em organizações à maneira do nazismo e do fascismo me parece, neste instante, muito distante.
Mas há algo que pode associar-se. Termina a Primeira Guerra Mundial. Você tinha a Alemanha arrasada, humilhada. Nesse imenso vazio, surge uma liderança que gradualmente incorpora esse protesto. Foi criando o Hitler. Esse potencial me inquieta. Não estou dizendo que ele está configurado. Mas há algo de semelhante.
Assistindo à montagem do governo, o sr. diria que ele aponta para um equilíbrio social?
Não votei nele. Dei nota dizendo que votaria no Haddad. Mas ele está tendo, até com razões de eu aplaudir, atitudes que ganham apoios impensáveis. Exemplo: a convocação do Sergio Moro para o ministério. Joga crédito para o ponto de partida do governo. Não há governos que não tenham em seus ministérios balanças e contrabalanças.
Na volta do exílio, o sr. participou de governos do MDB e do PSDB. Nas eleições, esses dois partidos foram derrotados pela onda conservadora de Bolsonaro. O que aconteceu que o chamado centro se desmanchou?
Ambos os partidos descumpriram os papéis mínimos para os quais nasceram. O PSDB ficou tão marginalizado diante dos problemas a serem enfrentados que teve a derrota que teve. Culpa pessoal do Alckmin? Quem quiser analisar dirá o sim, dirá o não. Geraldo sim, Geraldo não. Mas teve o arrebentamento interno partidário.
O PSDB estava fraturado de ponta a ponta do país em plena eleição. E, se eu tomo a presença do PSDB como partido da oposição ao longo dos governos Dilma e Lula, quando a corrupção se transformou em um tema —não estou dizendo que houve ou não houve, mas se transformou em um tema de presença política diária—, o papel do PSDB foi de uma omissão total. Ele não cumpriu o papel de anticorrupção.
E o MDB?
Tudo o que estou dizendo vale enormemente para o próprio governo. Se você levar em conta o número de figuras ligadas ao governo sucessivamente acusadas perante o STF... Alguns estão presos. Outros com processo caminhando. Onde o MDB cumpriu essa papel anticorrupção? Pelo contrário. Afundou-se nisso.
O sr. acha que se o PSDB tivesse expulsado o Aécio e demais acusados poderia se credenciar para o papel de anticorrupção?
Pelo menos, tinha o dever de cumprir esse papel. Com uma história pessoal de um jovenzinho que chegou à presidência da Câmara, ligado a essa figura marcante que foi Tancredo Neves, senador da República que quase chegou à Presidência, Aécio tinha o dever de cumprir esse papel de vanguarda. Não cumpriu. Tudo que falo do PSDB canaliza-se em figuras omissas. Lamento dizer que Aécio Neves não cumpriu o papel que o cargo dele o obrigava.
Mas se ele mesmo foi denunciado.
Só agrava o que está dizendo.
O sr. acha que o PSDB deveria ter expulsado Aécio? Que Alckmin deveria ter coordenado o trabalho de investigação interna?
Mas o Alckmin entrou na presidência do PSDB anteontem. Ele ficou literalmente só. Não estou defendendo o Alckmin. Constatando. Alckmin foi candidato à Presidência sem partido. FHC, líder nacional, disse uma palavra sobre isso? Nenhuma. O Aécio nem tinha condições de dizer no grau de estar sob quase que em uma condenação grave. Meu amigo José Serra, por problemas de saúde ou não, silenciado.
Serra também foi acusado.
Lamentavelmente também ele. Você pega o Tasso Jereissati… As lideranças do PSDB deixaram Alckmin literalmente só.
E, nessa reta final, o único que se manifestou contra o Bolsonaro, diante de risco de retrocesso, foi o próprio Tasso. O sr. acha que o PSDB se omitiu?
Estou dizendo que as omissões não são de agora. Vêm vindo gravemente. E não dá para excluir isso do grau de desatenção popular que houve.
Alckmin perdeu para Bolsonaro no interior de São Paulo, depois de ter sido três vezes e meia governador do estado. É pobre como explicação analisar essa derrota pelo mero “errou, não foi enfático, não é bom orador”. Para mim a explicação é esse vazio da corresponsabilidade, sobretudo do PSDB e MDB. Porque o PT ficou no banco dos réus. E também não cumpriu o papel do anti que deveria ter cumprido de maneira enfática.
O sr. já disse que em 1964 os dois lados tinham um projeto de país e que hoje não existe nenhum. Qual seria o projeto nacional para o país?
Que surja um partido que cumpra um papel efetivamente democrático. Os partidos se esvaziaram. Não há debate interno. Nem no PT.
No meu último mandato de deputado federal, o PT tinha uma bancada brilhante. Para qualquer tema, antes de decisão, tinha uma reunião. Isso murchou. “Quem é candidato? Lula quer.
Quem é? Não quer”. Isso se tornou tão autocrático que matou muito a vitalidade do partido. Essa é minha visão de fora.
No PSDB foi assim. No MDB não precisa nem falar. Há algo antidemocrático profundo. Um amordaçamento na sociedade.
O Brasil não tem um projeto?
Se tem, não tive a honra de saber. Em abril, completo 90 anos. Quero comemorar meus 90 anos sabendo qual é o projeto. Juro a você que vou para a rua.
Que projeto faria o sr. ir às ruas?
A preliminar é recriar a mensagem da articulação democrática no país. Ou há partido que democraticamente funcione ou não tem saída.
O sr. acha que a concentração de poder nas mãos de Lula foi nociva?
Foi. Fiz a comparação do que foi a bancada do PT no último mandato que exerci, onde havia uma presença real de debate. O Lula cumpriu um papel de liderança exponencial, mas afogou a possibilidade de participação generalizada. As figuras foram sumindo.
Nos atos contra a prisão dele houve uma mobilização maior, inclusive de jovens. O sr. acha que isso poderia revigorar o partido ou o PT está condenado ao esfacelamento?
Esse drama não é de um, mas de todos os partidos. Ou esses partidos ressurgem ou não sei. Volto agora à sua primeira pergunta, se no quadro atual há riscos [à democracia] ou não. Quando você não tem uma comunidade organizada, tem. Tem lá uma figura importante da velha Grécia que dizia que não há lugar vazio. O vazio se ocupa. É tão verdadeiro isso.
O Bolsonaro ocupou.
Não quero fazer essa comparação para não ficar fazendo fantasias adoidadas: o Hitler ocupou. Havia o vazio na Alemanha. E o vazio se ocupa. Há uma liderança [no Brasil]? Eu diria que, potencialmente, há. Há intelectuais de valor, figuras com conhecimento de história, que percebem tudo que estamos dizendo aqui. Ou não percebem?
O sr. acha que o Bolsonaro pode ser esse líder? O sr. diz que existe um vazio programático e organizativo no país. O sr. acha que alguém pode ocupar esse vazio?
Não sei o que é o Bolsonaro. Quero que o Brasil saia do atoleiro. Mas ele até agora não revelou isso. Para mim, o primeiro gesto dele foi a escolha do Moro, de muita significação. Se ele puder aqui, ali e ali, cria em torno dele este núcleo para um governo que pense. Até agora, não mostrou isso.
Quem poderia ocupar essa liderança?
Tem uma figura que teve uma história. Foi o Fernando, FHC. Foi duas vezes presidente da República, ministro das Relações Exteriores e ministro da Fazenda, em algo que foi significativo, que foi o Plano Real. Ele vai perdoar-me pela relação humana.
Seria um homem que tem condições pessoais para poder dizer “convido, proponho nós três para…”. As precondições ele tem. Por que não assume? Digo, de público, assuma, Fernando. Você tem uma história, tem condições, tem renome, tem um nome limpo. Assuma. Não diga as coisas em meio-termo. Não diga em reticências. O país está precisando de alguém que assuma um papel relevante e congregue em nome disso.
O sr. acha que Moro pode vir a ocupar um papel de liderança? Dizem que ele tem um projeto político.
Não sei se ele tem temperamento político. Porque não basta saber. É preciso ter um quê, um certo charme. Para uma liderança política, ele não revela ter.
Especula-se o nome de Moro para a sucessão, João Doria está se articulando para 2022 e Ciro Gomes já está articulando uma frente cirista. O sr. consegue vislumbrar um cenário para 2022?
Não vai faltar nunca candidato a candidato. Precisamos de um estadista neste país.
O sr. citou FHC.
Não estou dizendo que ele é. Fiz um apelo para que ele seja. Ele vai se zangar comigo. Mas não disse que ele é.
O sr. acha que, se ele tivesse atuado como um estadista durante essa eleição, o resultado seria outro?
Se o PSDB tivesse atuado como deveria, não estaríamos neste atoleiro. O PSDB tem uma corresponsabilidade muito grande por esse quadro negativo.
Por que declarou voto em Haddad?
Porque sou defensor absoluto do dever de votar. Entre os dois, eu dizia “há, pelo menos, do lado de Haddad figuras que eu, de alguma forma, conheço, sei e quem sabe pode criar no entorno dele ”. Do outro lado, eu não sabia nada. Não sei nada do Bolsonaro.
E a própria forma que, ao longo da campanha, o Bolsonaro teve expressões de um radicalismo estúpido até, eu me perguntei por que daria crédito. Eu também não achava que estávamos indo para uma solução. Com devido respeito, Haddad não encarnava uma solução. Haddad é um ser humano respeitável. Mas não encarnava a solução.
Revista Veja: FHC - “O centro radical”
FHC diz que eleição explodiu o sistema, afirma que “fascismo” e “comunismo” são apenas fantasmas e que partido sem conexão com a sociedade estará liquidado
Por Ana Clara Costa, da Revista Veja
Prestes a terminar o quarto volume de suas memórias do período em que ocupou a Presidência da República (1995-2002), Fernando Henrique Cardoso, de 87 anos, acredita que o momento político do Brasil requer “paciência histórica”. Diz que o país vive um período de transição, com o fim de um ciclo iniciado na Constituição de 1988, em que os partidos criados falharam em representar os anseios da sociedade. FHC afirma ser exagero ligar o governo Bolsonaro a um movimento “fascista”, apesar da migração das forças políticas para a direita. O tucano prega a construção de um “centro radical” para se opor a medidas extremas e declara que, se o PSDB não ocupar esse papel, ele não vê razões para continuar no partido. “Se o PSDB virar uma sublegenda do governo, qualquer governo, estou fora.”
O senhor tentou, no período eleitoral, criar uma força democrática de centro, e não deu certo. O que aconteceu?
Não houve interesse do eleitor em escolher o centro porque ele achou melhor botar ordem na casa. Quem simbolizou segurança, ordem e combate à corrupção ganhou. Não houve discussão econômica.
Como ocorreu essa tentativa de costurar uma frente?
Estou mais fora da política do que as pessoas pensam. Mas eu acho o seguinte: quando há uma polarização como houve no Brasil, o medo prevalece acima de tudo. A razão perde sentido prático. As pessoas que querem ser razoáveis, como é meu caso, ficam sem espaço. Uns dizem “Eu sou o bem e quero extirpar o mal”. E, quando você diz “Cuidado, o bem e o mal são relativos, é preciso conviver”, você fala sozinho.
Mas o senhor chegou a fazer um movimento concreto nesse sentido?
Eu falei com algumas pessoas, fiz uma ou outra reunião. Mas não estou no cotidiano do partido e acho também que não tinha mais espaço. A polarização não depende de você querer. Ela acontece. Quando a população descobriu as bases podres do poder, ficou contra o poder e quem o simboliza. Acho um absurdo que alguns tenham sido derrotados, gente séria, competente. Mas é assim que funciona. Política não é uma escolha de quem é mais competente, quem é melhor. É de quem, naquele momento, bate com o sentimento do eleitor.
Como chegamos a esse estado de coisas?
Nossa visão do mundo político nasceu no século XIX e se consolidou no XX. Havia as classes, não necessariamente opostas umas às outras, e os partidos, que representavam uma ideologia pertinente aos interesses e valores dessas camadas. O mundo atual rompeu isso porque a mobilidade social aumentou, a coesão entre esses grupos diminuiu e há fluxos de dinheiro e comunicação muito grandes. O primeiro sociólogo que viu esse movimento chama-se Manuel Castells, meu colega em 1968 em Nanterre (na Universidade Paris X, na França, onde FHC lecionou) e meu amigo até hoje. A Sociedade em Rede, livro que Castells lançou em 1996, é, no fundo, isso. Estamos em um momento de transição, e a nova sociedade é dos que estão conectados. Essa conexão salta estruturas e até instituições nacionais.
“Os dois lados estão inventando fantasmas. Um vê fascismo, o outro acha que o comunismo está à porta. Há uma guerra de narrativas. E narrativas em que não entra o povo”
O Brasil vive um momento de desmonte das estruturas, ou, como o senhor diz em seu último livro, “uma nova era”?
Sociologicamente, eu diria que, nestas eleições, “a história se manifestou estourando tudo de maneira cega”. Há momentos em que há explosões, e aqui houve uma explosão limitada, mas foi uma explosão do sistema anterior. Então, há um processo geral que permeia todas as sociedades que estão conectadas. É preciso agregar a tremenda corrupção que houve ao horror que ela produziu. O povo se assustou e disse “basta!”
Houve uma “direitização” do Brasil?
No espectro direita-esquerda, é claro que estas eleições foram mais para a direita. Antes, os partidos polares eram o PT e o PSDB, e quem fazia o meio de campo era o PMDB, que era o partido de Estado, das estruturas políticas. Na verdade, PT-¬PSDB foi uma polarização forçada. O PT dizia que a direita era o PSDB. Agora viu que não é. A sociedade mudou muito, e aqueles que se supunham progressistas não foram capazes de simbolizar algo que o povo aceitasse. Isso quer dizer que o país é conservador? Pode ser. A tendência dos países em geral é se conservar. Todo mundo fala em mudança, em evolução, mas as pessoas têm medo de mudar. Aqui, vão conservar o quê? Não está claro, porque o governo não existe ainda.
A campanha eleitoral foi amparada em valores mais conservadores, como Igreja, família.
Nesse aspecto, seria um conservadorismo que eu diria que a maioria dos brasileiros aceita. Mas a verdade é que o mundo contemporâneo tem muita diversidade. O que se entendia como família era marido, mulher e filhos. Os líderes hoje — não é o meu caso — têm ou tiveram várias mulheres. Como compatibilizar isso com um valor tradicional? Não sei. Porque a realidade mudou, a diversidade passou a ser parte da vida. Como impedir a diversidade? Pode falar que vai, mas, na hora de fazer, não é tão simples.
O Brasil nunca foi território de êxito para posições fanáticas. Considerando-se o acirramento dos ânimos nas eleições, o senhor acha que esse traço da sociedade brasileira pode se transformar em fascismo diluído?
Não. Olha, os dois lados estão inventando fantasmas. Um vê fascismo, o outro acha que o comunismo está à porta. Isso era na época da Guerra Fria, quando o comunismo existia, havia a União Soviética. Onde está isso hoje? Na China? A China está vendendo, comprando, utilizando os instrumentos de mercado para tomar conta do mundo. Na Coreia? A Coreia do Norte é força que imanta alguém? Não. E o fascismo? O fascismo era uma organização que tinha um pensamento, uma concepção corporativa e que se opunha ao comunismo. Então, o que se vê frequentemente são duas imagens do passado. Há uma guerra de narrativas. E narrativas em que não entra o povo, que não está em uma nem em outra. O povo quer trabalho, proteção contra a violência, essas coisas mais normais.
Seria, então, um movimento cíclico de alternância de poder?
De certa forma, porque Jair Bolsonaro representou o encerramento de um ciclo. Talvez o que tenha terminado agora seja o ciclo que inauguramos na Constituição de 1988, quando tivemos uma visão de pluralidade partidária mas acabamos não criando partidos, e sim corporações de interesses de grupos, de pessoas. Mas isso quer dizer que o novo ciclo vai ser permanentemente como ele é hoje? Não. O importante é entender que o momento que vivemos não tem nada a ver com o que ocorreu em 1964. É outro momento. As Forças Armadas não estão pressionando pelo autoritarismo.
“O PSDB ganha quando ele não é ideológico, quando tem pragmatismo com valores. Será que o PSDB vai ser capaz de se reorganizar de forma mais equilibrada? Se não for, estou fora”
Há declarações de generais sugerindo temor de politização dos quartéis.
Mas eles tentam controlar também. E nem sei se vai haver, porque, na verdade, depende um pouco do que o governo faça e de como a sociedade reaja ao que ele fizer. Não há uma teorização de que chegou a hora de quebrar o Estado e fazer outro.
O senhor vê alguma tendência de autoritarismo, como ocorre na Hungria?
Creio que não. O que não quer dizer que eu não tenha preocupação. Acredito que democracia não é dada para sempre, é preciso que ela esteja ativa. Mas nós vivemos uma situação em que, primeiro, eu não votei em quem ganhou, e quem ganhou, ganhou eleitoralmente. Não tem golpe aí. Segundo, a imprensa continua existindo como ela é. Com sua natureza crítica. Em uma sociedade aberta, a imprensa só sobrevive criticando.
Diante das mudanças de estruturas, que papel deverá ter a oposição no novo governo?
Há espaço para o PT? Primeiro, temos de ver o que sobra nesses escombros. Não creio que o PT vá sumir, porque ele expressa setores da sociedade. É preciso que todos os partidos que quiserem sobreviver entendam que o resultado eleitoral é consequência de atos também deles. Essa repulsa é porque os partidos não funcionaram. Mas, mais que uma oposição, é necessário o fortalecimento do que eu chamo de “centro radical”.
O que seria um “centro radical”?
Um centro que não seja amorfo, mas que tenha posições, e que elas não sejam extremadas. E mais: não adianta juntar apenas deputados. Ou tem a sociedade no meio — líderes empresariais, sindicais, religiosos e universitários — ou não existe. Se for mantida a separação entre política e sociedade, a rede vai acabar ligando a sociedade e a política ficará de fora.
Como fazer essa ligação em meio a tanta frustração com a política?
Esses movimentos que apareceram nestas eleições, o Agora, o RenovaBR, o Acredito, são muito importantes, porque é uma nova geração que surge. E chegou o momento em que a geração que estava no mando precisa passar o bastão — não a geração à qual eu pertenço, que já está há muito tempo fora. Mas isso não é uma decisão pessoal, é preciso que a geração seguinte queira pegar o bastão, que tenha energia para isso. Mas tem de dar um pouco de tempo ao tempo. Não se muda de repente tudo. Tem de ter o que eu chamei, num artigo que escrevi, de paciência histórica. Sei que é fácil dizer isso para quem não está no jogo. Mas é necessário.
O PSDB não sabe se ficará no governo ou se será oposição. O senhor antevê um racha e a criação de uma nova legenda?
É possível, mas não é conveniente. Se o PSDB cometer o erro de ser uma sublegenda do governo, acabou. É mais um. Se ele fizer, pelo lado contrário, oposição sistemática estilo PT, também acabou. Ou ele atua realmente como centro radical, na forma como eu defini, ou ele não tem mais sentido. Acho que o PSDB ganha quando ele não é ideológico, quando ele tem pragmatismo com valores, não o pragmatismo do oportunismo clientelístico. Mas neste momento isso não é aceito, porque o pessoal não está equilibrado. Será que o PSDB vai ser capaz de se reorganizar de uma forma mais equilibrada? Se ele não for, eu estou fora.
O senhor sairá do partido se houver adesão ao governo?
Se o PSDB virar uma sublegenda do governo, qualquer governo, estou fora.
O senhor se desfiliará?
Por enquanto não, por enquanto estou fora da posição, mas vamos ver, não sei qual vai ser a dinâmica no PSDB. Perdemos a eleição por erros também nossos. Temos de ser capazes de fazer autocrítica. Sobreviver porque vai ter um carguinho, sobrevive-se, mas com migalhas. Não com voto da maioria, não com o coração nem com a mente da maioria. Ah, para que vou me meter nisso a esta altura da vida?