FHC
Fernando Henrique Cardoso: A esfinge e os líderes
É do interesse da maioria um governo que respeite o mercado e as necessidades do povo
Nos últimos artigos tenho insistido na necessidade da formação de um “centro democrático progressista”. O que é isso? Desde logo, não se trata de um “centrão”, ou seja, de um agrupamento de pessoas que dominam legendas de partidos e, na prática, se unem para apoiar ou rejeitar propostas do governo, cobrando um preço clientelístico. O “centro democrático” tampouco pode ser um agrupamento anódino, que ora se define como favorável ao povo e esbanja recursos, como os populistas, ora se comporta de modo austero, com bom manejo das contas públicas, mas sem olhar para o povo, como os “neoliberais”. Então, o que seria?
Escrevi sobre o “liberalismo progressista” dizendo que ele se diferencia do “liberalismo conservador, de corte autoritário”. Neste, o mercado é o deus ex-machina que molda a sociedade. O primeiro respeita os mercados, sabe que as economias contemporâneas são “de mercado” (quase sem exceção), mas sustenta que elas não dispensam a regulação e mesmo a ação do Estado na economia. A atuação estatal, não sendo a única e nem mesmo a principal mola do crescimento econômico, continua a ser necessária para evitar que a desigualdade mine a democracia e o crescimento.
Na prática, o risco maior do liberalismo conservador, de caráter autoritário, é o de derrapar para formas abertamente não democráticas de decidir e assim aumentar o fosso entre dirigentes e dirigidos, abrindo espaço para manifestações populares antagônicas ao poder. Já o risco do progressismo é se transformar em populismo e, com o propósito ou o pretexto de servir ao “povo”, desorganizar as finanças públicas, levar à inflação e ao desemprego. O país cai na estagnação, abrindo espaço para a “direita” (ou seja, para formas disfarçadas ou abertas de autoritarismo).
Não terá sido um vaivém entre essas formas de liberalismo, autoritarismo e populismo (mais do que o risco de fascismos ou comunismos) o que vem caracterizando boa parte das formas políticas do mundo contemporâneo? Desse vaivém escapam os países onde liberdade e democracia não formam parte do ethos nacional (os que não são ocidentais ou ocidentalizados). A oscilação acima referida, e mesmo a dúvida sobre o valor da democracia representativa, tem aumentado muito, afetando nações de tradição liberal. Não faltam autores que chamam a atenção para estes desdobramentos: a crise das democracias, como morrem as democracias, o povo contra as elites, e assim por diante, dão título a muitos dos volumes que tratam dos fenômenos políticos contemporâneos.
Por trás desse desaguisado estão os novos meios produtivos e as formas contemporâneas de comunicação, que moldam as sociedades. A primeira vez que me dei conta disso foi em maio de 1968, quando eu era professor da Universidade de Paris em Nanterre. Anos mais tarde, procurando teorizar a esse respeito, disse no discurso em que transmiti a presidência da Associação Internacional de Sociologia, em 1986, que os fios desencapados da sociedade podem se tocar de repente, produzindo curtos-circuitos fora da polaridade tradicional “proprietários versus trabalhadores” e dos partidos que no passado os representavam. Havendo comunicação em rede, as faíscas que se acendem num ponto se propagam para os demais e o protesto atravessa os limites entre classes e segmentos sociais, contaminando amplos setores da sociedade. Essa dinâmica do protesto e a velocidade da sua expansão já eram perceptíveis em 1968. Foi somente quando a TV e o rádio passaram a cobrir as manifestações estudantis que estas entraram em contato com as negociações sindicais, que antes se davam à parte e à distância.
Que dizer agora, quando a internet e as redes conectam as pessoas e saltam as organizações? Se Descartes dizia cogito ergo sum (penso, logo existo), hoje a frase síntese é outra: estou conectado, logo existo. Mais ainda: as forças produtivas contemporâneas, com robôs e inteligência artificial, aumentam a produtividade, concentram a renda e não geram empregos na proporção da procura por trabalho, a despeito da redução da taxa de crescimento da população. E graças à internet muitos ficam sabendo do que acontece.
Não será esse o fantasma por trás dos “coletes amarelos” de Paris, dos partidários do Brexit na Grã-Bretanha ou dos eleitores de Trump que querem ver os Estados Unidos great again? E não haverá risco, em nuestra America, de confundir a Frente Ampla (eventualmente vitoriosa no Uruguai), ou os peronistas argentinos e agora as manifestações no Chile, que lembram o Brasil de 2013, e mesmo no Equador ou na Bolívia, com uma luta tradicional da “esquerda” contra a “direita”, como se ainda estivéssemos nos tempos da guerra fria? A guerra agora é outra: menos desigualdade, fim da corrupção política, mais empregos e melhores salários. E quando há diminuição do ritmo de crescimento, como lembrava Tocqueville sobre a Revolução Francesa, a insatisfação eclode forte, como atualmente no Chile.
Dito isso, o centro liberal precisa ser progressista não apenas porque a igualdade de oportunidades e a garantia de um patamar de condições de vida dignas para todos são essenciais para uma democracia estável e uma sociedade civilizada, mas também porque vivemos outro momento do capitalismo, no qual as políticas públicas devem ser complementadas pela ação da sociedade civil. É do interesse da maioria existir um governo ativo e com rumo. Capaz de respeitar as regras do mercado, mas também os interesses e necessidades do povo. E estes não se resolvem automaticamente na pauta econômica, requerem ação política e ação da sociedade.
Não será esse o miolo de um centro radicalmente democrático e economicamente responsável? Talvez, mas na vida política não basta ter ideias, é preciso que alguém as encarne. Ou aparece quem tenha competência para agir e falar em nome dos que mais precisam ou a esfinge nos devora.
* Sociólogo, foi presidente da República
O Globo: ‘Brasil está vivendo sob o signo do ódio’, diz FHC
Tucano diz que Bolsonaro é guiado por ‘fantasmas’ e incentiva manifestações contra o governo, mas pede ‘paciência histórica’: ‘Não acho positivo propor impeachments’
Bernardo Mello Franco | O Globo
RIO — Está sobrando até para Fernando Henrique Cardoso. Aos 88 anos, o ex-presidente entrou na mira do bolsonarismo radical. Na semana passada, o ministro da Educação, Abraham Weintraub, resolveu compará-lo à Aids. O tucano não quis revidar a agressão. Em entrevista, ele diz que o Brasil está vivendo “sob o signo do ódio” e precisa voltar a cultivar a tolerância. “Ainda não conseguimos entender que o outro é adversário, não inimigo”, afirma.
FH lança nesta sexta-feira o último volume dos “Diários da Presidência”. O livro relata a eleição de 2002 e a transição para a posse de Lula, seu rival histórico. Foi um processo civilizado, bem diferente do tom da política atual. O ex-presidente considera que a Lava-Jato “exagerou”, mas evita criticar a prisão do petista. Numa passagem do novo livro, ele afirma que é impossível governar o país sem “botar a mão na lama”.
Os novos diários mostram como o sr. via o Brasil de 2002. Como vê o Brasil de 2019?
Hoje nós vivemos sob o signo do ódio. Isso é ruim para o Brasil. Ainda não conseguimos entender que o outro é adversário, não inimigo. Não posso tratar o Bolsonaro como inimigo. Ele foi eleito, é o presidente da República. Eu discordo dele. Nunca o vi, nem estou pretendendo vê-lo.
Na campanha, os ânimos se acirram. Mas tem que haver um momento seguinte, em que você reduz o acirramento e busca uma convergência possível. É do jogo ganhar ou perder. O que tem que haver é lealdade com as regras. Isso não é uma coisa que tenha sido ganha no Brasil. Ainda não temos uma cultura realmente democrática.
O sr. tem sido muito atacado pelos bolsonaristas. Na semana passada, o ministro da Educação chegou a compará-lo à Aids...
A declaração dele foi tão importante que eu nem li... (Risos). Nós estamos vivendo um momento de polarização que é muito ruim. Um ministro tem que prestar mais atenção ao que diz. Temos que baixar a bola, aceitar que existem pessoas com pensamentos diferentes.
Como avalia o governo?
É cedo para um julgamento taxativo. O governo tem muitas partes. Há setores que são francamente ideológicos, veem fantasmas em todo lado. É possível que o presidente às vezes seja levado por fantasmas. Outros setores são sensatos. Não acho que os militares sejam insensatos.
É ruim o Executivo não ter uma agenda clara para mostrar ao país. O presidente tem que explicar qual é o rumo. Hoje, quando há rumo, é o rumo ideológico.
Na ditadura, você enfia a espada e faz. Na democracia, é diferente. Minha atitude era oposta à do governo atual. Eles buscam adversários até onde os adversários não existem.
Onde essa busca pelo confronto vai parar?
Não acho positivo propor impeachments. Isso desgasta o país. No caso do Lula, eu fui contrário. No da Dilma, fui muito reticente. Não é que esteja defendendo a Dilma, o Lula ou o Bolsonaro. Estou pensando no país.
Você desgasta as instituições quando a maioria ganha, mas não leva. O vice-presidente também é eleito, mas ninguém presta atenção. É preciso ter paciência histórica. Quem está contra o Bolsonaro deve manifestar que é contra. Mas não acho que seja o caso de forçar.
A democracia está em risco?
Sempre existe risco. Como dizia Octavio Mangabeira, a democracia é uma planta tenra, que precisa ser regada sempre. Se você não cultiva a democracia e a liberdade, elas morrem. A democracia não é só o formalismo, a eleição. É a crença num conjunto de valores e instituições. Essas instituições estão funcionando.
O Congresso existe, o Supremo está funcionando, a imprensa é livre. Os partidos estão meio arrebentados, mas existem. Temos que usar esses instrumentos para expressar opinião, não para acelerar o ritmo da História. O cara foi eleito.
Eu sei o que é viver num regime sem liberdade. Não é o caso atual. Você tem liberdade para concordar ou discordar do governo. Todo mundo sabe que eu não votei no Bolsonaro nem no candidato do Lula ( Fernando Haddad ), com quem me dou pessoalmente.
Muitos amigos seus tentaram convencê-lo a apoiar Haddad.
Muitos. Eu me dou bem com o Haddad, tenho uma boa opinião sobre ele. Mas naquele momento o PSDB estava em luta com o PT em vários estados. Como é que eu ia tomar posição a favor do PT?
O ministro Gilmar Mendes, que o sr. indicou ao STF, diz que Lula não teve direito a um julgamento justo. Concorda?
Acho que a Lava-Jato exagerou. Que tenha havido algum preconceito contra o Lula e contra o PT, é possível. As pessoas têm preconceito contra mim, contra você... Mas a Justiça julga fatos.
Já fui depor três vezes como testemunha do Lula, a pedido dos advogados dele. Ele foi condenado porque há fatos. Não gosto de ver o Lula preso, mas respeito a Justiça. Ele foi condenado em várias instâncias. Eu lamento. Historicamente, era melhor que não tivesse ocorrido. Mas ocorreu, o que eu vou fazer?
Em que a Lava-Jato exagerou?
Eles podem ter errado? Podem. Pode haver uma visão jacobina? Pode. Isso é bom? Não. Mas não podemos desmerecer a Lava-Jato. Mesmo que tenha exagerado aqui e ali, ela conseguiu prender gente rica e poderosa, o que é uma coisa difícil no Brasil.
Especialmente nos governos do PT, houve muita transigência no sentido de se usar dinheiro público, via empresas, para fins partidários. Isso é corrupção da democracia. Tão ou mais grave que a corrupção pessoal. É inaceitável.
O Supremo está julgando a prisão em segunda instância. Qual é a sua opinião?
A discussão é legítima, mas não acho que você deva deslegitimar toda a Justiça para libertar os que estão presos. Até porque não é só o Lula.
Não é uma decisão simples. Como está na Constituição (que ninguém pode ser considerado culpado sem condenação definitiva), é complicado.
Acho um exagero deixar os réus em liberdade depois de duas condenações. No Brasil, quem tem dinheiro sempre continuou recorrendo para não ser punido. Se os tribunais fossem mais céleres, esse problema não existiria.
O general Villas Bôas, ex-comandante do Exército e assessor do governo, voltou a tuitar às vésperas de um julgamento. Há uma pressão indevida sobre o STF?
A manifestação de militares da reserva é um alerta. Mas não vejo nenhum clima para uma convulsão social, como ele escreveu.
Nos novos “Diários da Presidência”, o sr. reclama que seu aliado José Serra não o defendeu na campanha.
Eu entendia as razões dele, o governo estava com baixa popularidade. Nunca cobrei atitudes de ninguém. Cada um tem um temperamento, vai fazer o quê? Nunca fui uma pessoa de melindres.
Aliás, gostei dessa expressão que o Sergio Moro usou (em mensagem revelada pelo Intercept, o ex-juiz diz que não queria melindrar FH na Lava-Jato). Mas não havia nada concreto que pudesse me pegar. Nunca me meti em corrupção. Não é o meu estilo.
O sr. afirma, nos diários, que é impossível governar sem “botar a mão na lama”.
Eu nunca concordei com a malandragem. Quando fui para o Senado, meus colegas da universidade diziam: “Não sei como você aguenta aquela gente lá”. Aquela gente lá é o Brasil. O Brasil tem malandro, tem esperto, tem burro, tem gente honesta. Você precisa lidar com a realidade para mudá-la. Ou você tem maioria, ou não governa.
A transição de 2002 deixou lições para a política atual?
Muitas. Foi um processo civilizado, democrático. Claro que eu queria que o Serra ganhasse. Quando o Lula foi eleito, tentei mostrar que não seria uma tragédia para o Brasil.
Mas as gravações mostram que o sr. considerava que ele não tinha preparo para o cargo.
Nunca temi que o Lula fosse fazer uma revolução. Ele não é um sujeito que quebre as instituições. Pessoalmente, o Lula é mais conservador do que eu. O que eu temia era que ele não fosse competente para fazê-las funcionar. Ele demonstrou que era competente. Eu errei na avaliação.
Lula diz que o sr. apostava no fracasso dele para voltar depois.
Nunca quis voltar ao poder. Fui presidente duas vezes, basta. Para mim e para o povo.
Bernardo Mello Franco: O que FH escreveu sobre Ciro, Serra, Temer, Dilma...
Em diários inéditos, FH define Ciro como “descabeçado” e “destrambelhado”. Garotinho aparece como um “moleque” mal-educado, que entrava no palácio assobiando
Desbocado, destrambelhado, descabeçado. Fernando Henrique Cardoso usou esses e outros adjetivos para se referir a Ciro Gomes nas eleições de 2002. No último volume dos “Diários da Presidência”, o tucano deixa claro que detestaria passar a faixa ao ex-aliado.
“O Ciro é nada, é um oportunista que vive da imprensa”, criticou, em março de 2001. “Eu não confio no Ciro. Me chamou de ameba, isso é inaceitável. Ele não tem responsabilidade”, reclamou, em agosto de 2002. “O Ciro é um desastre”, resumiu, dias depois.
O presidente comparava o desafeto a Fernando Collor. “É um oportunista, um rapaz perigoso”, criticou, a cinco meses da eleição. Quando Ciro subiu nas pesquisas, ele apelou aos céus: “Meu Deus, livre-nos dele!”.
O diário também registra o desapreço de FH por Anthony Garotinho. “Deixou o Estado do Rio em petição de miséria”, criticou, em setembro de 2002. Em outra passagem, ele chama o ex-governador de “moleque”.
Para o tucano, Garotinho teve o pior comportamento entre os quatro presidenciáveis que o visitaram no Alvorada. “Quase agressivo, entrou assobiando, com pouca educação. (...) Não tem noção das coisas”, anotou.
O presidente só pisava em ovos ao falar do candidato do PSDB, José Serra. A dois dias do primeiro turno, ele deixou escapar um desabafo. “O Ciro diz que nós tivemos o pior desempenho dos últimos 50 anos, e o Serra se cala. O Lula diz que não houve investimento de energia elétrica, ele se cala. O Garotinho diz que eu falei que todo aposentado é vagabundo, ele se cala...”, queixou-se.
Os últimos dois presidentes não ficam bem no livro. FH descreve Michel Temer como “um homem educado, agradável”, mas o responsabiliza por uma traição do PMDB ao governo. No último capítulo, Dilma Rousseff aparece como “a moça que representa o PT na comissão de transição”. Numa passagem premonitória, o tucano diz que ela “tem uma visão favorável a subsídio, não sei o que, subsídio para isso, subsídio para aquilo, enfim, como se o Tesouro fosse o Papai Noel”.
Jair Bolsonaro não é citado nas 1.024 páginas do diário, que cobre os últimos dois anos da Era FH. Deputado do baixo clero, não conseguiu atrair a atenção presidencial.
Bernardo Mello Franco: Lula aos olhos de FHC
Nos últimos “Diários da Presidência”, FH expõe visões contraditórias sobre Lula. O tucano sofreu com os ataques do petista, mas ficou satisfeito com a civilidade da transição
Vem aí o último volume dos “Diários da Presidência” de Fernando Henrique Cardoso. Os principais temas do livro são a eleição de 2002 e a transição para a posse de Lula. Foi um processo exemplar, que lembra como a política brasileira já soube ser civilizada.
No penúltimo dia de governo, os rivais históricos brindaram juntos num churrasco na Granja do Torto. Dias antes, o neto do tucano foi convidado para jogar bola com o neto do petista. “Esse é o grau de amizade”, anotou FH, satisfeito com o clima de reconciliação.
Nem sempre foi assim. No calor da disputa, o sociólogo sofreu com os ataques do operário. “O Lula é realmente um despreparado, além de ser grosseiro”, desabafou, em outubro de 2001. “Ele é um clown. Foi um líder e hoje é uma réplica de si mesmo, e de quinta categoria. É patético”, esbravejou, seis meses antes.
No início da campanha, FH levantava dúvidas sobre o favoritismo do oposicionista. “O Lula é boa pessoa, é intuitivo, mas não é preparado. Quando começar a falar, vai assustar todo mundo”, apostou, em agosto de 2001. Ele parecia convencido de que o rival não conseguiria pilotar o governo. “Eu acho, e lamento dizer isso, que o Lula não está preparado para ser presidente”, sentenciou. “Não estudou nada, não trabalhou, não se aperfeiçoou”.
Aos poucos, FH foi dando o braço a torcer. “Começo a perceber que o Lula penetrou muito. Penetrou em camadas que acham que o Lula mudou, que o PT é outro”, admitiu, em maio de 2002. A desconfiança passou a dar lugar à ironia. “O Lula fez ontem um discurso beijando a cruz”, disse, em junho, quando o petista prometeu respeitar os contratos. “Estão muito bonzinhos”, debochou.
FH assistiu ao último debate na TV do Alvorada. Achou Lula “demagógico”, mas reconheceu que sua vitória era irreversível. Depois da abertura das urnas, ele zombou do primeiro discurso do eleito. “Mais parecia eu falando. Só que eu falaria com mais ênfase e talvez com mais graça, sem um documento nas mãos para ler”.
No fim do diário, o presidente registrou seu incômodo com a festa em torno do sucessor. “Curioso, não sei se fizeram uma entronização tão sacra assim quando fui eleito. Menos ainda quando fui reeleito”, reclamou.
Folha de S. Paulo: General Heleno manda FHC calar a boca após crítica do ex-presidente ao governo
'Por que no te callas', comentou o chefe do GSI em post no qual o tucano condena demissões em áreas culturais
SÃO PAULO - O general Augusto Heleno, chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), atacou o ex-presidente da República Fernando Henrique Cardoso nas redes sociais na noite deste sábado (5).
Em um tweet no qual o tucano critica o governo Jair Bolsonaro no Twitter, o general perguntou "por que no te callas", ou por que não te calas, em espanhol.
Em uma postagem publicada no início da tarde de sábado, FHC comparava a violência do atual governo com aquela praticada por bandidos. "Armas nas mãos de bandidos ou de quem não sabe usá-las aumenta o medo. Demitir funcionários em áreas culturais por ideologia repete o desatino", escreveu. No final, chamava as pessoas a protestar.
O perfil oficial do PSDB também interveio no bate-boca. "Quem anda bem calado frente a vários absurdos é o senhor, ministro Augusto Heleno. Lembre-se que é Brasil acima de tudo", comentou no post original.
A Folha revelou nesta sexta (4) que o Ministério da Cidadania exonerou 19 funcionários da Funarte ligados ao diretor teatral Roberto Alvim, que assumiu o órgão em junho. A reportagem apurou que a demissão foi uma retaliação do ministro Osmar Terra às tentativas de Alvim de se aproximar do presidente Jair Bolsonaro.
No mesmo dia, uma reportagem mostrou que a Caixa Econômica Federal, outro órgão ligado ao governo, criou um sistema de censura prévia a projetos culturais realizados em seus espaços em todo o país.
Em meio a suspeitas de censura sobre o cancelamento de ao menos cinco projetos já aprovados pela Caixa em editais, funcionários afirmaram que a instituição agora analisa o posicionamento político dos seus criadores, seu comportamento nas redes sociais e outros pontos polêmicos antes de dar o aval para que eles entrem em cartaz.
O comentário de Heleno no Twitter remete a uma "chamada" do rei Juan Carlos da Espanha ao então presidente da Venezuela, Hugo Chávez, em uma reunião de chefes de Estado em 2007.
Fernando Henrique Cardoso: Falta rumo
Os sinais de nova crise lá fora se somam às dificuldades de sair dela aqui dentro
Há dias em que escrever é um prazer. Nem sempre: hoje, por exemplo, este artigo me custou bastante. Por quê? Cansaço de uma noite mal dormida me fez sentir a velhice, o que em mim é raro. Mas há também motivos que nada têm que ver comigo. Dá certo desalento voltar aos temas que têm dominado o noticiário do cotidiano nacional: os enganos repetitivos (na verdade, as crenças) do governo atual; a morte absurda de crianças alvejadas à bala, as árvores que queimam na Amazônia e alhures, tanto por motivos cíclicos como pela devastação criminosa em busca de discutível lucro... E por aí vamos, de pequenas e grandes tragédias à estagnação das ideias.
Por trás do “mesmismo” do dia a dia vão se formando nuvens um tanto menos habituais e que nos podem trazer maiores aborrecimentos. A mais difusa e também a mais ameaçadora delas diz respeito ao “estado do mundo”. Desde que Kissinger convenceu Nixon a normalizar a relação dos Estados Unidos com a China e os chineses, levados por Deng Xiaoping, se dedicaram a construir o “socialismo harmonioso” (seja lá o que isso signifique), as apreensões de uma nova guerra mundial sumiram do mapa. A antiga União Soviética desabara, Cuba estava contida, a Coreia do Norte ameaçava mais a do Sul do que o mundo, a guerra entre Índia e Paquistão se acalmara. Restava apenas o “Oriente Médio” e o Norte da África como palcos de guerra, com os americanos bombardeando e conquistando o Iraque, a Europa fazendo o mesmo na Líbia. Crises que pareciam muito longínquas de nós, brasileiros.
Dava a impressão de que a “nova a ordem mundial”, por certo assimétrica, conteria suas desavenças nos limites das Nações Unidas, com uma ou outra ação militar “corretora”, sem abalar as estruturas internacionais de diálogo. São elas que começam a se romper no atual decênio. As ideias representadas por Trump encontram eco na realidade de uma China que de “copiadora” passou a criadora de novas tecnologias e até mesmo de uma Coreia do Norte cujos mísseis ameaçam chegar à costa do Pacífico da América do Norte. Sem falar no renascimento da Rússia como potência militar que cobra seus “direitos” de vassalagem, incorpora a Crimeia, invade terras da Ucrânia e produz temor nos nórdicos.
Neste novo quadro assistimos, ao mesmo tempo, a uma verdadeira revolução nas técnicas e nas relações produtivas. O mundo contemporâneo emprega cada vez mais tecnologias poupadoras de mão de obra e criadoras de grandes volumes de bens e serviços que se transformam em lucros nas mãos de poucos (inteligência artificial, robôs, revoluções na microbiologia, novas técnicas agrícolas, e assim por diante). Em conjunto, elas permitem o prolongamento das vidas humanas, oferecem pouco emprego e, dado o regime social prevalecente, criam não mais “exércitos de reserva”, mas excedentes de mão de obra dispensáveis para o aumento da produção. Em suma, um mundo bem diferente do sonho tanto dos liberais quanto dos marxistas.
Provavelmente é isso que, subconscientemente, está por trás da reação “irracional” dos coletes-amarelos na França, da desconfiança generalizada quanto à democracia representativa, da vontade de voltar ao isolamento, com o Brexit ou com a guerra comercial de Trump. Enfim, com a ascensão de novos pretensos “homens fortes” que, pulando as instituições, voltariam a fazer o “bem do povo”.
Fossem só razões ideológicas e já seria um momento tenso. Mas há mais: os mercados financeiros mundiais começam a dar sinais preocupantes, refletindo a inquietação política e, sobretudo, a diminuição da produção, com a demanda fraca. Para responder à prolongada e profunda crise de 2008 os bancos centrais dos países desenvolvidos reduziram os juros dramaticamente e inventaram o quantitative easing (com injeções maciças de dinheiro nas economias). Que fazer agora se uma nova crise se apresentar, ainda que não tão grave como a anterior? Ora, os juros já estão baixos (em muitos lugares são negativos). E a situação fiscal dos governos ricos não é de folga, limitando o arsenal de medidas para estimular a economia. No Brasil, ainda é possível reduzir os juros, mas o desaguisado das contas públicas deixa o Estado exaurido e sem capacidade para “puxar” os investimentos. Os sinais de nova crise lá fora se somam às dificuldades de sair dela aqui dentro.
É neste contexto que se torna imperioso, como eu costumava dizer quando exerci o governo, definir rumos. Mais do que isso: convencer o povo de que os rumos propostos são bons para o País e para as massas, sobretudo para os mais pobres.
De uma coisa estou convencido: há que pôr um ponto final na dinâmica de polarização que tomou conta do País. Até o STF se deixou enredar nela: os juízes discutem e brigam pelo adjetivo, dando à Nação a impressão de que, uma vez mais, o formalismo vai se impor à substância. Quando não parecem não se dar conta das repercussões mais amplas das decisões tomadas.
Não nos esqueçamos de que os presidentes que marcaram nossa História recente (falando só dos que já estão mortos) agregaram, não dissolveram. Juscelino, mesmo enfrentando duas sublevações militares (as revoltas de Jacareacanga e Aragarças), pacificou o País e modernizou o setor produtivo e a infraestrutura do Brasil, somando capital nacional e estrangeiro.
E mesmo Vargas, apesar de ter chefiado um governo forte, repressivo mesmo, e que teve seus momentos de tensão, soube incorporar as massas urbanas e definir um rumo para a economia, nas condições da época. Percebeu que a guerra se aproximava e, embora houvesse negaceado com o Eixo, terminou por se juntar aos Aliados. Cobrou preço, entretanto: a indústria siderúrgica foi feita com empréstimos dos americanos.
Será que estaremos condenados nas próximas eleições presidenciais a votar em polos agarrados a ideologias mofadas? Ou teremos capacidade para unir o centro democrático e progressista para retomar, com a vitória nas urnas, o rumo de grandeza que o País necessita e merece?
* Sociólogo, foi presidente da República
Fernando Henrique Cardoso: Falta fazer
Não basta a boa economia, é preciso o bom governo e a boa sociedade
No artigo anterior escrevi sobre o Plano Real. E no pós-Real? Muita coisa mudou na economia, na política e na sociedade. O pesadelo da inflação e da dívida externa ficou no passado. Políticas universais de educação e saúde se estruturaram e programas de transferência de renda para os mais pobres se estabeleceram. Houve alguma melhoria – nunca suficiente – na renda do trabalho. Falta ainda algo essencial: taxas de crescimento contínuas que – mesmo sem serem espetaculares – permitam oferecer mais emprego e renda. Para isso o ordenamento das contas públicas, conquista perdida nos governos do PT, é condição necessária. Os passos iniciais para sua recuperação foram dados com a reforma da Previdência.
Nem tudo, porém, depende só de nós. Exemplifico: foi o entendimento dos Estados Unidos com a China, levado a efeito pela dupla Nixon-Kissinger, que assentou as bases da estabilidade e do crescimento mundial nas décadas seguintes. Os benefícios plenos daquele entendimento se concretizaram depois que Gorbachev desencadeou um processo de mudança que resultou na Queda do Muro de Berlim e no colapso da União Soviética, facilitando a ampliação da União Europeia e pondo fim à guerra fria. Nesse contexto, aos poucos, a ideologia terceiro-mundista foi se debilitando, abrindo espaço para uma nova era de convivência entre os países: a da globalização. Com ela a pobreza mundial diminuiu, houve intensificação do comércio internacional e algumas nações da periferia mundial aproveitaram para se integrar às cadeias globais de valor.
Entre nós, os efeitos da estabilização e da maior integração econômica tornaram possível difundir políticas sociais inclusivas e introduzir tecnologias de ponta na agricultura, na mineração, nos setores financeiros, bem como em alguns processos industriais. Nossas exportações, que ainda são modestas, tiveram chance de expansão, em particular durante o boom das commodities. Em conjunto, isso deu a sensação de que “chegara a vez do Brasil”.
Infelizmente, a má condução da economia, na última parte do governo Lula e no de Dilma, mergulhou o País na pior recessão de sua História, da qual nos recuperamos lentamente, a despeito dos esforços do governo Temer. É cedo para ver se o atual governo logrará retomar o crescimento econômico e praticar políticas inclusivas.
O desaguisado inicial lança dúvidas sobre tal desfecho. Faltam estratégias que deem ao povo o sentimento de que “desta vez vamos”. Mais ainda. Na era da globalização as tecnologias de produção e comunicação estão sujeitas a renovações constantes. Tudo depende de avanços científicos e tecnológicos e da capacidade dos governos de os anteverem e criarem condições para sua vigência. Os sinais dados até agora são desanimadores.
O futuro é incerto: há retrocesso no plano internacional. Além de a vaga populista de direita ser crescente, o entendimento sino-americano tropeça na rudeza “trumpista”, com a qual fazem coro os autoritários da direita mundial. Abrem-se assim espaços para a reaproximação da Rússia com a China.
Imaginava-se em passado recente que no Ocidente predominariam os valores de um liberalismo progressista, com a aceitação das diferenças, a valorização da pessoa humana e o apoio a políticas sociais inclusivas. Acreditava-se que os mercados, instrumentos do êxito econômico, não implicariam o desfazimento da ação política e do papel dos Estados. Era o sonho da Terceira Via. Vê-se agora a revitalização de forças opostas a essa visão. Forças que não são liberal-conservadoras, normais nas democracias, mas reacionárias, atrasadas.
É nesse contexto que, com realismo e sem utopias regressivas, as agremiações políticas brasileiras terão de se reposicionar. Diante do liberal-autoritarismo é preciso insistir no liberal-progressismo. Este não pensa apenas nas pessoas e em sua liberdade (valor essencial), mas também no conjunto da população. Supõe, consequentemente, uma ação pública sinalizadora para os mercados e redutora de desigualdades da sociedade. Ações que, sem arbitrariedades políticas, promovam a capacidade e o bem-estar das pessoas, redistribuam renda e preservem o meio ambiente.
Há muito a pensar e fazer. Não basta a boa economia, é preciso o bom governo e a boa sociedade. Sem isso as nuvens do mundo, já carregadas, despejarão mais água na chama de um futuro melhor para o País e as pessoas.
Nossos partidos políticos ficaram aquém das expectativas. Sem falar na desilusão que foi o PT, mesmo o PSDB e o PMDB – um, social-democrata, o outro, democrático-popular – se enredaram na teia das corrupções, magnetizados pelo estatismo, fiador do patrimonialismo. A social-democracia envelheceu sem responder aos desafios das “sociedade em redes”: os contatos diretos voltaram a valorizar as pessoas, as novas formas de produção estagnaram a renda das classes médias e aumentaram as desigualdades. O populismo do passado, integrador das massas na política, deu passo à arrogância do populismo de direita, que espalhou o medo do imigrante, da violência e das mudanças.
Os movimentos políticos renovadores estão se organizando fora dos partidos. Entretanto, a democracia política requer formas institucionalizadas de ação. Que fazer? Renova-se a pergunta. Ainda haverá partidos capazes de se reinventar? A “nova política”dispensará partidos e será simbolizada apenas por líderes? Esse impulso carismático escapará de ser outra versão de fascismo? Duvido.
Chegou a hora de refazer percursos, de reconhecer erros e assumir, sem oportunismo, posições políticas condizentes com o estilo de produção, sociabilidade, comunicação e modo de agir contemporâneos. Em vez de aderir de corpo e alma ao “trumpismo” ou de sonhar com um estatismo caduco, é melhor agir em defesa dos interesses nacionais e populares, com postura não agressiva, mas altiva. Mãos à obra, repito.
*Sociólogo, foi presidente da República
Folha de S. Paulo: FHC critica 'incontinência verbal' de Bolsonaro e contesta fala sobre ditadura
Tucano disse que presidente contraria documentos oficiais em caso do pai do chefe da OAB
SÃO PAULO - O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB) criticou nesta quarta-feira (31) a "incontinência verbal" de Jair Bolsonaro (PSL) e somou-se à onda de repúdio contra o presidente pelas afirmações sobre o pai do presidente nacional da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), Felipe Santa Cruz.
Em uma rede social, o tucano escreveu que Bolsonaro "despreza os limites do bom senso por sua incontinência verbal".
"Contraria documentos oficiais sobre o pai do presidente da OAB e dá vazão a rompantes autoritários. Prejuízo para ele e para o Brasil: gostemos ou não foi eleito. O que diz repercute e afeta nossa credibilidade", afirmou FHC.
Um dia antes, no mesmo perfil, o ex-presidente fez um apelo por sensatez e razão, "diante da barbárie do presente", sem mencionar pontos específicos.
Desde que Bolsonaro chegou à Presidência, FHC tem feito comentários negativos sobre o atual presidente. Em abril, disse que o governo era pior do que ele esperava e não tinha feito nada até aquela altura. Em janeiro, declarou-se de oposição ao atual ocupante do Planalto.
Mais cedo, nesta quarta, Bolsonaro disse que não quebrou o decoro ao dizer que poderia explicar ao presidente da OAB como o pai dele desapareceu durante a ditadura militar (1964-1985). A declaração de dois dias atrás provocou uma série de repercussões entre políticos e entidades.
"Não tem quebra de decoro. Quem age desta maneira perde o argumento", afirmou o presidente em Brasília. Capitão reformado do Exército, ele defende a atuação dos militares na ditadura e, para se contrapor a setores da esquerda, tem dito que "não pode valer um lado só da história".
Como mostrou a Folha, documentos oficiais desmontam a versão de Bolsonaro sobre a morte de Fernando Santa Cruz. O presidente disse que o servidor público foi morto por militantes de esquerda, mas a tese contraria toda a série de relatórios produzidos pela própria ditadura sobre Fernando.
O ativista político desapareceu em fevereiro de 1974, após ter sido preso junto de um amigo chamado Eduardo Collier por agentes do DOI-Codi, órgão de repressão do regime militar, no Rio.
A Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos emitiu no último dia 24 um atestado de óbito de Santa Cruz, no qual informa que ele morreu em 1974 de forma "violenta, causada pelo Estado brasileiro, no contexto da perseguição sistemática e generalizada à população identificada como opositora política ao regime ditatorial de 1964 a 1985".
Colega de partido de FHC, o governador João Doria também se posicionou contra as declarações de Bolsonaro e disse ser "inaceitável que um presidente da República se manifeste da forma que se manifestou em relação ao pai do presidente da OAB".
"Foi uma declaração infeliz", afirmou Doria na segunda-feira (29). O gesto foi interpretado como um sinal de afastamento do tucano em relação a Bolsonaro, mas o governador negou isso no dia seguinte. Ele falou que mantém boas relações com o presidente e não torce "pelo tropeço" dele.
Fernando Henrique Cardoso: Vinte e cinco anos do Real
De novo o País está em perigo. Mãos à obra, a começar pela reforma da Previdência
Neste mês de julho de 2019 o Plano Real comemora 25 anos. As novas gerações não se lembram, mas a inflação foi um flagelo. De dezembro de 1979 a julho de 1994, a inflação acumulada atingiu aproximadamente 12 trilhões por cento.
A renda do trabalhador era corroída pela alta crônica e crescente dos preços. Sofriam principalmente os trabalhadores mais pobres, sem organização sindical a maioria. Onde o sindicato era forte havia greve a toda hora: as empresas concediam aumentos salariais, mas os repassavam ao consumidor, alimentando a espiral inflacionária. Protegiam-se melhor dela os bancos, os grandes aplicadores, as empresas capazes de impor seus preços ao mercado e o governo, que tinha suas receitas indexadas e contava com a inflação para ajustar o valor real dos seus gastos. Daí o aumento da pobreza e da desigualdade provocado pela inflação.
O governo defendia o seu caixa, mas não conseguia planejar as suas ações. Nem as empresas, muito menos os pequenos empreendedores, as famílias e as pessoas. A inflação era um flagelo especialmente para os mais pobres, mas infernizava o País como um todo.
Foi nesse contexto que ouvi, perplexo, em Nova York o presidente Itamar Franco me perguntar pelo telefone se eu aceitaria trocar o Ministério das Relações Exteriores pelo Ministério da Fazenda. Estávamos em maio de 1993. Seria o quarto ministro da pasta em sete meses de governo. Disse-lhe que não deveria trocar o então ministro, Eliseu Rezende, mas que, ausente do Brasil, não sabia avaliar a situação. Ele respondeu que conversaria com o ministro e me informaria. Mais tarde mandou avisar que não precisava mais falar comigo. Fui para o hotel desanuviado, até ser despertado de manhã por minha mulher, Ruth, desgostada por eu haver sido designado para pasta tão difícil.
Voltei ao Brasil com meu chefe de gabinete, embaixador Sinésio Sampaio Góes. Disse-lhe que precisaria dele no novo ministério, pois não conhecia bem os funcionários de lá. Voei pensando no discurso de posse do dia seguinte. Repeti o mantra de José Serra: o Brasil tem três problemas; o primeiro é a inflação, o segundo também e terceiro, idem. Mas “com que roupa” poderia dirigir o Ministério da Fazenda? Sou sociólogo, embora haja trabalhado na Cepal e iniciado a carreira universitária na Faculdade de Economia da USP. Só havia um jeito: convocar uma boa equipe de economistas e cuidar da política. Tinha recebido carta branca de Itamar.
A isso me dediquei com afinco. O primeiro a topar foi Clóvis Carvalho, que designei secretário-geral. Edmar Bacha aceitou ser assessor. Consegui a nomeação de um jovem, Gustavo Franco, para a Secretaria de Política Econômica, que seria chefiada por Winston Fritsch.
Acompanharam-me ainda meu assessor no Senado Eduardo Jorge (Caldas Pereira) e um antigo aluno e amigo, Eduardo Graeff. No começo imaginávamos um plano tradicional de controle dos gastos.
Foi a partir de uma sugestão de Edmar Bacha (a de se tomar como índice de correção monetária as Obrigações do Tesouro Nacional) que começamos a pensar numa transformação mais profunda. Ali começou a nascer a URV, inspirada em texto teórico de André Lara Resende e Pérsio Arida, escrito dez anos antes. Mais tarde o presidente Itamar, sempre inquieto, proporcionou-me incluir ambos na equipe.
André substituiu Pedro Malan na chefia da negociação da dívida externa, enquanto este assumiu o Banco Central, quando ao início de agosto de 1993 Itamar se desentendeu com o presidente anterior do banco e resolveu demiti-lo. Outro choque entre Itamar e um alto funcionário, desta vez o presidente do BNDES, me permitiu convencê-lo a escolher Pérsio Arida para o cargo. Daríamos a sensação de estar fazendo um novo Plano Cruzado. Embora não fosse certo, era tudo o que Itamar queria.
Estava assim formada a equipe básica dos que trabalharam no Plano Real, que se reunia sob a batuta de Clóvis Carvalho. Eu comparecia a algumas discussões. Quando a proposta era muito complicada, sobretudo com equações, dizia logo: esclareçam melhor porque eu terei de explicar tudo ao País. E foi o que fiz. Das decisões tomadas, duas devem ser destacadas. A primeira foi a sugestão de anunciar com antecipação tudo o que faríamos, nada de surpresas! A segunda foi a de tomar cuidado com as questões legais. A essa tarefa Eduardo Jorge e Gustavo Franco se dedicaram, com apoio de profissionais do Direito. Evitamos os erros jurídicos que ocorreram em outros planos.
Dediquei-me a explicar o plano (tarefa que foi continuada com sucesso por Rubens Ricupero). Falei com cada bancada partidária no Congresso, com os principais líderes sindicais, incluídos os da CUT, com os ministros e, especialmente, com a Nação. Mudar o rumo de uma economia não é só tarefa técnica. É política. É de convencimento, e não apenas “dos mercados”, mas da população. Sem que a mídia e os comunicadores houvessem entendido e, até certo ponto, aceitado o desafio da estabilização da moeda nada de profundo aconteceria. Mais ainda: a URV não era “um truque”, mas uma ponte sólida para uma moeda estável.
Um programa econômico da magnitude do Real é um processo, leva tempo. Requeria a renegociação da dívida externa, como fizemos antes de lançar a nova moeda, bem como a privatização de muitos bancos públicos, especialmente os estaduais, a negociação da dívida pública de Estados e municípios e muitas outras medidas tomadas ao longo dos meus dois mandatos na Presidência, culminando com a Lei de Responsabilidade Fiscal. Foram necessários tempo, persistência e coragem. Só assim se ganha o que é fundamental: a credibilidade.
Por isso é importante relembrar os 25 anos do Plano Real. De novo, o País está em perigo. Mãos à obra, a começar pela reforma da Previdência.
*Sociólogo, foi presidente da República
Fernando Henrique Cardoso: Preencher o vazio político
Um partido pode mudar de nome, mas de pouco adianta se não atualizar propósitos e práticas
No mês passado o PSDB, em congresso nacional, elegeu nova direção, que terá tarefa pesada: atualizar as diretrizes e, principalmente, as práticas do partido. Isso no momento em que o Brasil passa por uma tempestade e requer renovação. Com efeito, na recente eleição presidencial a marreta cega da História destruiu o que já estava nos escombros: o sistema político e partidário criado a partir da Constituição de 1988, que com o tempo se foi deformando. O País percebeu que as bases de sustentação do sistema partidário e eleitoral estavam em decomposição. Organizações empresariais, partidos e segmentos da sociedade civil chafurdavam na teia escusa da corrupção para sustentar o poder e obter vantagens.
Pode ter havido injustiças e exagero da parte de delatores e mesmo de “salvadores da pátria”. Mas o certo é que as más práticas atingiram o cerne do sistema de poder e levaram o povo à descrença. O governo atual nasceu desse sentimento e da insegurança pela presença crescente do crime organizado e da falta de bem-estar, agravada pela crise econômica. A campanha foi plena de negatividade: não à corrupção, não ao crime, não ao “sistema”. Mas rala na positividade sobre o que fazer para construir um sistema político melhor.
Reconhecer esta realidade implica fazer o mea-culpa da parte que cabe aos políticos do “velho sistema”. Mais do que isso, reconstruir a crença em mecanismos capazes de reforçar a democracia e levar o País a um crescimento econômico que propicie bem-estar à maioria da população. Será possível?
Essa é a tarefa pesada dos que se dedicam à política e não acreditam que basta o “carisma” ou a mensagem salvadora de um demagogo. Pior ainda quando a sociedade dispõe dos meios de comunicação para as pessoas se relacionarem saltando organizações, partidos incluídos. O “movimento” é desencadeado pelo contágio eventual provocado por uma mensagem que dispara nas redes. Basta ver a dor de cabeça que a última greve dos caminhoneiros deu ao governo, que não tinha sindicatos nem partidos com quem negociar. Não deve ser diferente do que está acontecendo na França com o movimento dos “coletes amarelos”.
O Estado e o poder do governo, contudo, não se coadunam com estímulos frequentes, às vezes erráticos, que partem das redes sociais. Requerem organização e alguma estabilidade para a implantação de políticas. Daí que, a despeito de as sociedades atuarem “em redes”, os partidos e o próprio Estado continuem sendo necessários à política. Não os partidos “como eram antes”, nem sem que haja o reencantamento da política. Árdua tarefa!
Com que meios preencher o vazio político e evitar, ao mesmo tempo, o predomínio do mero arbítrio dos poderosos? Vê-se no dia a dia o desencontro entre setores do governo – os da área econômica, os com experiência da disciplina e dos valores militares, os intoxicados por ideologias retrógradas e os que veem conspirações anticristãs, antiocidentais, etc. E, principalmente, entre o governo e partes da população. Disso deriva a sensação de que vivemos momentos de crise até mesmo institucional. Começam a aparecer propostas, umas tresloucadas (é só esperar e... haverá mais um impeachment, imaginam), outras mais institucionais (preparemo-nos para o... parlamentarismo), e no meio tempo, aos trancos e barrancos, a máquina pública anda, mas tão devagar que dá a sensação de estar quase parando e o País perdendo a corrida global.
Sem trombetear alarmismo e depois de reconhecerem que falharam, os partidos – em particular o PSDB –, devem pôr os pés no chão. O caminho mais imediato e disponível para religar o poder aos eleitores seria mudar a legislação eleitoral e instituir o voto distrital misto. Há projetos em andamento no Congresso que poderiam ser aprovados antes das próximas eleições municipais. Esse é o passo viável, por duas razões fundamentais: cabe aos parlamentares federais tomar a decisão, que não afetará de imediato o futuro de cada um deles, mas, sim, o dos vereadores, o que facilita a aprovação. Segundo, no nível municipal é mais visível a teia que liga os vereadores com os eleitores, mecanismo indispensável para fortalecer os partidos. Sem tais vínculos a tarefa de governar se confunde com a de formar coligações ocas. Mais ainda: a experiência mostra que querer resolver tudo de uma só vez mais desorganiza do que institui novas práticas. Melhor, pois, antes de falar em parlamentarismo fortalecer os partidos, mudando a circunscrição em que os representantes disputarão o eleitorado.
Além das medidas já aprovadas que dificultam a criação de partidos – os quais no geral são mais sopas de letras do que instituições para orientar o voto do eleitor –, é conveniente aumentar as exigências doutrinárias para a sua formação. Os partidos, para sobreviverem, terão de ser capazes de viver “nas redes” e explicitar a que vieram para além delas. Um partido como o PSDB pode mudar de nome, mas de pouco adianta se não atualizar seus propósitos e práticas.
Hoje, quando não há mais “muros de Berlim”, os partidos podem proclamar que o Estado não deve substituir o mercado e que este não resolve, por si, os problemas da desigualdade. E deveriam saber que, sem aceitar a diversidade e a regra da maioria, as ditaduras podem chegar longe na economia. Mas, vivendo como nós nos ares da liberdade, a troca não vale a pena, mesmo que traga solução rápida do crescimento e, com ele, a da pobreza: seu custo humano e político é muito alto.
Democracia, crescimento, emprego, inclusão social e segurança são os temas a serem enfrentados. Se um partido sozinho não consegue transformar esses ideais em políticas públicas, que faça alianças e crie força formando parte de um centro progressista que aponte ao eleitorado o rumo do futuro.
*Sociólogo, foi presidente da República
Folha de S. Paulo: 'Estamos em transição, mas sem saber para quê', afirma FHC
Ex-presidente diz que sistema político criado em 1988 desapareceu na última eleição
Vinicius Torres Freire, Folha de S. Paulo
Fernando Henrique Cardoso diz que sistema político criado em 1988 desapareceu na última eleição, pautada mais pela negação do que pela proposição; sociólogo e ex-presidente acredita que sucessor de Bolsonaro deverá ser um nome carismático.
No princípio da reforma política brasileira está o verbo de um líder quase carismático, afirma o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, 87, em entrevista à Folha, um dia depois das manifestações de 15 de maio.
FHC diz que esse é um caminho arriscado, mas saída provável para a superação da crise do sistema político do pós-1988, que para ele se desmilinguiu, e de um cenário de instituições abaladas pela fragmentação e pelo imediatismo das redes sociais.
Quanto ao impasse criado pelos atritos entre Jair Bolsonaro e o Congresso, FHC diz que a democracia depende de paciência histórica e comedimento no uso da força política.
Pode haver impeachment? FHC diz que continua reticente quanto a essa medida —em sua visão sempre traumática, mas por vezes inevitável. “O que produz impeachment é a confluência da infração legal com a paralisia do governo, quando o Congresso para de decidir”. Não seria o caso agora, avalia.
Quanto à liderança carismática, trata-se de alguém com grande capacidade de comunicação (sim, um Luciano Huck), que pode criar um projeto nacional pactuado que aglutine movimentos políticos novos.
Ao falar de carisma, FHC trata de Max Weber. Para o sociólogo alemão (1864-1920), o líder carismático deve sua força ao reconhecimento de suas características extraordinárias. Isto é, daquelas que lhes são atribuídas por um grupo social que reconhece a autoridade legítima desse líder, de quem espera a transformação da rotina cotidiana, da vida normal e, no limite, da ordem estabelecida.
O ex-presidente observa que PT e PSDB, que organizaram a disputa política por um quarto de século, não perceberam a “tempestade que vinha”. Além das mudanças na interação via redes, o surgimento rápido de grupos sociais e a perda de representatividade de organizações tradicionais da sociedade civil contribuíram para a ruptura e o aumento do conflito nas elites do poder. Há uma transição para não se sabe onde.
“A eleição de Bolsonaro foi consequência do ‘não’, não do ‘sim’. ‘Não quero PT, corrupção, partidos, políticos, desordem, crime’”, diz FHC.
“Nossa elite política é também consequência da mudança muito rápida da sociedade. Tem menos habilidades políticas tradicionais, que a antiga classe dominante tinha. Nossa democracia é mais representativa [agora], mas não quer dizer que seja mais capaz de lidar com grandes problemas institucionais. Mas vai aprender”.
O governo não forma uma coalizão. O Congresso fala em ter pauta própria. A insatisfação com a situação econômica e social cresce. Na política, onde vai dar isso?
Algo está errado no nosso sistema institucional. Depois de 1988, todos os presidentes sofreram impeachment ou foram presos, com a minha exceção. Há um sistema de coalizão em que não há partidos, que se deterioraram mais, se desmilinguiram.
A formação de maiorias é cada dia mais difícil. Por outro lado, o nosso sistema é presidencialista, mas o Congresso tem um peso grande, tem força. A Constituição foi preparada para um regime parlamentarista.
Quando o Executivo tem a capacidade de propor uma agenda à nação, quando motiva a nação, o Congresso de alguma maneira se ajusta a essa agenda. Quando o Executivo não tem essa capacidade, o Congresso tenta fazer a agenda e começa a patinar. Estamos nessa fase.
Crise política ou constitucional?
O sistema [político] anterior, que nós montamos em 1988, sumiu nessas eleições, depois de muitos problemas. Mas não vejo no Executivo a capacidade de propor uma agenda aceita nacionalmente, porque negocia pouco e não controla o Congresso. Então, abriu-se uma zona de dúvida, de incerteza.
E então...?
Como já passei por vários momentos desse tipo ou mais graves do que esse, nunca fui muito inclinado a apoiar impeachments. Continuo não sendo.
Alguns autores recentes nos Estados Unidos chamam a atenção para o fato de que, no sistema americano, há certa dose de tolerância. Não se usam todos os poderes disponíveis. Não é aconselhável o Congresso usar todos os poderes, porque isso vai resultar em um trauma, sem que a população tome consciência dos verdadeiros problemas.
O que fazer?
Estamos em uma transição, mas não se sabe para quê. Se sabe o que não se quer. A eleição do presidente Bolsonaro foi consequência do “não”, não do “sim”. “Não quero PT, corrupção, partidos, políticos, desordem, crime, não, não, não”. Mas o que fazer?
Os mercados apostam na reforma da Previdência. É verdade que o Estado está falido. A lei do teto amarra mais a possibilidade de manobra do Executivo. Então há a expectativa de que, se for aprovada a Previdência, vai resolver. Não tenho certeza.
O que está faltando no Brasil é confiança: em nós mesmos, no governo, no futuro do país. O investidor sofre os efeitos disso, não põe dinheiro. Os últimos dados são preocupantes, a taxa de crescimento per capita é nula e não há empregos.
Alguma reforma vai passar. Mas não se consegue orientar uma maioria para um projeto com mais durabilidade. Falta continuidade nas políticas públicas.
Ainda falando do curtíssimo prazo: há uma sensação de aceleração da crise. O que vem a seguir?
Sociólogos gostam de explicar os diversos aspectos das mudanças sociais, que são importantes, mas não é assim que as coisas acontecem no dia a dia. Por vezes as coisas explodem quando se menos espera, como em maio de 1968 na França.
Você pode ter um fio desencapado em qualquer setor da sociedade —tem sempre fio desencapado. A manifestação de ontem [quarta-feira, 15 de maio] foi porque o governo formulou de maneira equivocada o que iria fazer com a educação. Recuou, mas não adiantou. Aquilo foi a fagulha. Tem momentos em que esses movimentos não param mais, como na França, em que todo sábado tem manifestação dos coletes amarelos contra o Macron.
E hoje você tem uma sociedade que se move por este aparelho aqui [mostra o celular], que conecta pessoas, que salta as estruturas, organizações, partidos, governos, tudo. Isso coloca em questão como as formas de governo, que requerem um pouco de persistência, vão se adaptar a uma sociedade que, como diz o [Zygmunt] Bauman [sociólogo polonês, 1925-2017], é líquida.
As questões políticas precisam ter uma atenção maior. Por que não se aproveita agora para fazer o voto distrital? Não é para fazer parlamentarismo neste momento, porque as pessoas não vão acreditar. Voto distrital para dar uma maior proximidade entre o eleitor e o eleito.
Não sei se resolve, mas alguma coisa tem de ser tentada. Mas está tudo esquecido, está tudo concentrado: “ou faz a reforma da Previdência ou o país acaba”. O Brasil não acaba, mas vai mal e não basta a reforma da Previdência.
O grau de conflito político e na elite do poder está alto. Não é só conflito partidário. Vem também do Ministério Público, do Judiciário. Por que houve esse destampatório? Por que a elite não baixa a bola?
Esse é o ponto. Ou se consegue um clima que se permita baixar a bola e, ao mesmo tempo, fazer mudanças, ou vamos ficar nesse impasse.
Qual foi a proposta do governo? Foi muito mais no sentido linha-dura. O Congresso acaba de tornar a lei de drogas mais dura, até tentei intervir, mas era tarde. É [uma lei] contra a maré do mundo, acham que vão resolver, mas vão agravar a situação. Agora vão discutir o porte de armas.
As pessoas estão com medo, há crime organizado, que controla a cadeia, o exército de reserva do crime. Qual a resposta da sociedade? Põe por mais tempo na cadeia, mais presos. É irracional. Como se muda o irracional? Pelo emocional. É preciso de uma liderança capaz de contrapor argumentos e tocar as pessoas.
Há grupos sociais novos que não se sentiam representados, novas classes médias, pessoas ligadas ao mundo do agronegócio, conservadores, religiosos, que pareciam não se sentir representados pelo menos pelos partidos, PT e PSDB, que organizavam ou mesmo dominavam o debate, a disputa política. Quando falta essa representação, há rupturas...
Aconteceu por aqui. O Brasil funcionava em um sistema com PT e PSDB, mas não esqueça o PMDB, o grande partido do Estado, era o pessoal que sabia manejar o Estado.
O PFL [DEM] era uma coisa intermediária, entre o Estado e o PSDB. A elite dirigente de PT e PSDB não entendeu o que poderia acontecer, nunca entendemos. O PT dizia que nós éramos de direita, neoliberal etc. Uma coisa realmente patética.
O país é conservador. A questão do Brasil é: quem conduz o atraso, que é parte do Brasil. O PT esperava acabar com o atraso. O PSDB convivia mais com o atraso, tentava conduzir o atraso. Isso que estou chamando de atraso se tornou uma posição política. Não é o velho atraso, clientelista, só. Não. É ideológico. Tem ideias de colocar um molde no país, ideia de outra natureza. Isso nunca foi percebido pela direção do PT ou do PSDB, nem nada.
Antes da eleição, o senhor dizia que Luciano Huck era uma possibilidade [de candidatura]. Neste momento, é mais fácil criar um movimento mais personalista, que consiga agregar tendências e formar um novo movimento político, ou há chance de formação de partido ou de reorganização de partidos que estão por aí?
Max Weber tinha pavor do que ele chamava de dominação burocrática, tinha medo do comunismo, que ia por aí, era nacionalista, democrata. Achava que, em certas circunstâncias, só o carisma quebra as estruturas de dominação. Aqui no Brasil, poucos votam em partidos. Qual o partido do Bolsonaro? PSL. Existe uma organização? Não existe.
Então, o Huck...
Achava que, dado o grau de deterioração das forças políticas, era preciso uma renovação. Não deu, por motivos pessoais dele. Nesta situação, de novo será preciso haver preeminência do verbo. Não é o que eu gosto, não é o que eu quero. Estou dizendo que a coisa pode ir por aí.
A sociedade contemporânea quebrou muito a coesão das pessoas. A sociabilidade é diferente. Ela vive no verbo, desorganizadamente. Acho que só com alguém que tenha capacidade de falar e ser ouvido você pode, eventualmente, criar um novo início.
Bolsonaro tem um tanto disso.
O problema não é de ele ter ido por aí. É de talvez não ser capaz de se expressar de uma maneira que as pessoas sintam que, por ali, tem caminho.
Aqui, não me parece que o presidente Bolsonaro tenha as características pessoais, a capacidade pessoal. Você vê que é uma família que está operando, que é contrário um pouco ao nosso espírito aqui, não é uma pessoa, é uma família, que está batendo com instituições, militares, não sei até que ponto.
É pouco provável que partidos consigam se organizar e predominar nesta transição. Não se sente isso de nenhum lado, não apenas na vida política. As grandes instituições brasileiras do passado tinham peso, como a OAB, a ABI, os sindicatos, as centrais sindicais, inclusive religiões como a católica. Perderam a capacidade de condução.
Então, a mudança precisaria de carisma.
Acho mais provável que haja pessoas com capacidade de juntar, de chamar, de conclamar para uma direção. A sociedade que está em gestação precisa de condução quase carismática. Isso é perigoso, se não houver uma contrapartida da organização de estruturas que segurem. Veja o que está acontecendo na Turquia ou na França, em que os partidos existiam, sindicatos existiam com força.
O impeachment de Dilma Rousseff resultou do aumento da intensidade do conflito político e causou ainda mais conflito. Foi uma boa ideia?
Sempre fui reticente quanto aos impeachments. A todos. Por que reticente? Pelo trauma que produzem. O voto para presidente foi para quem está sendo “impichado”; o vice-presidente no Brasil ninguém sabe quem é, quando vota.
No caso do Lula, quando houve o mensalão, havia um movimento de impeachment. Eu não queria. Não é que eu não achasse justo, [mas era como se eu dissesse] “olha a consequência”. Você faz um impeachment do primeiro líder sindical que é presidente da República? Vêm as elites e derrubam? Você vê a leitura que vai ser. O custo histórico é muito elevado.
E o caso de Dilma Rousseff?
Fui reticente também. Não fui contra, porque era muito difícil naquele momento ser contra. Quando é que acontece impeachment no Brasil? Quando o governo para de governar. É preciso ter uma razão legal, é verdade. Mas o que produz impeachment é a confluência de alguma infração legal com a paralisia do governo, quando o Congresso para de decidir.
Quando o Congresso passa a não decidir, o governo começa a paralisar, é quando se criam as condições mais propícias para o impeachment [FHC atribui a tese a estudo do cientista político Wanderley Guilherme dos Santos]. Quando paralisa, não tem outro jeito. Não é o caso atual. Aí continuo a ter a visão dos teóricos americanos: vai devagar, dá tempo ao tempo, “paciência histórica”, uma expressão que é fácil para sociólogo e difícil para político.
O seu partido também tem muitas acusações de corrupção, de Aécio Neves ao caso Paulo Preto. É dominado por alguém marginal na história do PSDB, João Doria. Teve influência grande na derrubada de Dilma Rousseff, na votação do impeachment e com as pautas-bomba. Perdeu quase metade da bancada na Câmara e o candidato a presidente teve votação quase nenhuma. Que futuro tem o PSDB?
O mesmo dos demais grandes partidos. Ou seja, depende.
Por quê? O Brasil vai passar por um momento que não é de partido. No meio tempo, o que acontece? Os partidos têm dinheiro, o fundo partidário. Têm meios de sobreviver. Os grandes partidos têm algum enraizamento. O PSDB tem forte enraizamento em São Paulo, por exemplo.
Não posso dizer que todos os partidos vão desaparecer. Mas estão sofrendo reveses enormes porque não perceberam a tempestade que vinha por aí. Veio a tempestade e estão molhados.
Podem se secar? Não tenho certeza. Vão tentar. O partido que está no governo não é partido. A próxima eleição vai ser movida pela definição dos candidatos. O PSDB vai ter candidato.
Como as grandes estruturas partidárias têm recursos, ainda têm alguma ressonância e dominação de certas áreas, podem permanecer. Mas isso não é força suficiente para levar adiante um país.
Por isso estou insistindo no Weber. Há momentos em que você precisa de líder. E a sociedade contemporânea, quanto mais ela dissolve estruturas, ela requer referências, que é um paradoxo. Não sei quem vai ser capaz de ser essa referência.
Quem poderia ser essa referência?
No caso do PSDB, o governador de São Paulo [João Doria] tem força, porque é governador de São Paulo e é obstinado. Tem suas qualidades. Já tem experiência. Ganhou São Paulo. Não acreditei que ele fosse ganhar. Ganhou. Conseguiu se adequar aos meios de comunicação contemporâneos e tem uma linguagem que atinge essas pessoas que estão subindo na sociedade, as novas camadas sociais.
Haverá outros? É possível. Conheço o governador do Rio Grande do Sul [Eduardo Leite], que é do PSDB, parece composto, adequado. Tem o Paulo Hartung, que foi um bom governador [do Espírito Santo], de um estado com base eleitoral menor. O PFL [DEM] tem o Ronaldo Caiado, que agora é governador de Goiás. O Caiado tem capacidade expressiva. Não sei se o PMDB tem alguém.
O PT também tem bases. Vai permanecer.
Não tenha dúvida.
O PT vai mudar?
Difícil, porque tem o Lula. O PT cresceu muito por causa do Lula. E o Lula é também o limite do PT. O Lula não aceita muito um outro dentro do PT. A esquerda do Lula é uma coisa muito relativa, também. Não sei muito qual é a concepção dele. Ele é um operador, competente como operador.
É preciso recompor um centro radical. Digo “radical” para evitar o fisiologismo, um centrão. Nesse momento, ser razoável, ter bom senso, está mal, pois o momento é de engalfinhamento. Isso não faz com que eu me engalfinhe. Espero que seja possível manter um pensamento mais tolerante, valores essenciais à democracia. Mas é preciso fazer reformas, não apenas aquelas para salvar o caixa [do governo], mas para salvar as pessoas.
Não só aqui. A tecnologia moderna, a sociedade da economia 4.0, não dá emprego. Ou melhor, dá emprego para quem é muito qualificado. O que vai se fazer com os outros?
Estão discutindo de novo o que era antiga ideia do [Eduardo] Suplicy [renda mínima universal]. De qualquer maneira, é preciso fazer alguma coisa. É preciso falar em nome disso, se chame de esquerda ou não, dos “deserdados da terra”, dos “condenados da terra” [referência a um livro famoso nos anos 1960, do revolucionário e ensaísta marxista e anticolonialista Frantz Fanon, francês da Martinica, 1925-1961], aqui ou nos Estados Unidos.
*Vinicius Torres Freire, colunista da Folha, foi secretário de Redação do jornal. É mestre em administração pública pela Universidade Harvard (EUA).
Fernando Henrique Cardoso: Assim não dá
Para o Brasil ter rumo é preciso ver os que mandam empenhados no bem-estar coletivo
Já recordei em outras oportunidades o que ouvi de Bill Clinton em Camp David. Quando visito um país, disse ele, pergunto e procuro responder: qual seu maior temor e seu maior sonho? Palavras simples e profundas. No âmago do sentimento de cada povo sempre há algo em torno dessas questões. Aplicando ao Brasil, penso que no inconsciente nacional o que mais tememos é não “dar certo” e o que mais desejamos é crescer, ter desenvolvimento.
Esses sentimentos raramente são conscientes. Traduzem-se de forma concreta, por exemplo, em “quero ter emprego”, quero que “os meus” tenham percursos prósperos; ou, ao contrário, o País não vai para a frente porque “os políticos” roubam muito, “os governos” não ajudam. Ou ainda, na versão mais antiga, não avançamos porque “eles” não deixam (o imperialismo, os estrangeiros ou quem seja). Até agora, porém, não perdemos a esperança de “dar certo”. Depois de 1988, com a nova Constituição, passamos a entender que desenvolvimento requer democracia e inclusão social.
Talvez estejamos começando a viver outro momento. O da desesperança. As pessoas deixam, aos poucos, de acreditar nelas próprias como coletividade. A “culpa” não é de ninguém, é de todos.
Nem culpa é, trata-se de desalento. Também, dirão os mais ácidos, “com esta classe política”... E imaginam que o País seria melhor sem os políticos. Com quem, então: com tecnocratas, com autoritários? Os que assim pensam, sem dar continuidade a seus temores, nos deixam com eles. Para contrastar, li recentemente um texto sobre a China. Chama-se O sonho chinês ou como evitar a dupla armadilha, de Osvaldo Rosales. Desde o governo de Deng Xiaoping, os chineses têm metas aceitas pela maioria (ou inculcadas nela), o governo dispõe de estratégias para orientá-las e de táticas para pô-las em prática. Dispensa, contudo, a democracia que conhecemos e queremos.
Será que não é possível para os brasileiros voltarmos a ter esperança? Nos momentos de incerteza é que mais se precisa de crença. Falta chacoalhar o País outra vez, como fez Juscelino em seu tempo e mesmo o Plano Real, e vislumbrar um futuro mais venturoso. É melhor sonhar com os pés no chão, logo, é preciso dar os primeiros passos. Como imaginar um futuro melhor se as taxas de desemprego não se reduzem? Como reduzi-las sem investimento e como investir sem acreditar no futuro? Parece a quadratura do círculo, mas não é.
A reforma da Previdência vem nesse contexto: é preciso demonstrar que o Estado faliu e, sem concentrar todos os males na Previdência, muito menos nos pobres ou só no funcionalismo, falar francamente com a Nação, e não só com o mercado. É necessário aprovar a reforma da Previdência não só para obter o “equilíbrio fiscal”, mas para progredirmos. Ela é necessária porque o Estado, num país de desigualdades e pobreza como o nosso, precisa atuar em todo os setores da sociedade e não dispõe mais de recursos. A reforma da Previdência, além de ser fiscalmente essencial, é necessária para dar ao Estado condições de ampliar os recursos para a educação, a saúde, etc. E também para assegurar o pagamento futuro de pensões. Precisamos de um Estado hígido, o que não quer dizer pequeno, e precisamos de mais investimentos, que terão de vir principalmente do setor privado. Sem crescimento da economia, por mais que se reduzam os gastos, faltará pão às pessoas e combustível para o governo andar.
Não basta a reforma da Previdência. Para o País ter rumo é preciso ver os que mandam empenhados no bem-estar coletivo. Os problemas, por sua multiplicidade, parecem intransponíveis; sua solução, por isso mesmo, não pode ser unitária. É preciso que o povo veja sinais de avanço em várias áreas. Isso requer o uso do “verbo” – da palavra – não para alvejar inimigos, mas para despertar entusiasmo (que etimologicamente quer dizer “deus no coração”, crença).
Que contraste entre o necessário para o País voltar a sonhar e o bate-boca diário, via redes sociais, mantido pelos familiares da República! Não roubar é obrigação, e é pouco; é preciso ter compostura e pensar grande. O desânimo só cederá se houver recuperação da confiança. Caso contrário, na prática, as esperanças no governo se desvanecerão, como as pesquisas de opinião estão mostrando. Sei, por experiência, que governar é difícil. Não convém, pois, precipitação no julgamento.
Como ainda estamos em crise (basta olhar o desemprego), é preciso haver sinais positivos para que a crença se mantenha. É hora de apresentar e explicar ao País uma agenda para vencer os desafios do crescimento econômico, da redução da pobreza e da injustiça social. Uma agenda que convoque a Nação, sem sectarismo, para a reconstrução do caminho difícil, mas possível, de desenvolvimento. Políticas que sejam de Estado, e não deste ou daquele governo. No mundo contemporâneo, o governo precisa explicar os porquês de sua agenda para alavancar o desenvolvimento. Este requer a conjugação entre políticas governamentais (incluídas as distributivas e demais pertinentes na área social), um grande esforço na área de ciência e pesquisa, para aumentar a produtividade, e requer ainda a cooperação da “iniciativa privada”, nacional e estrangeira, sobretudo na área de infraestrutura. O Estado, por si, será incapaz de tal proeza. Pior, poderá embaraçar a gestão sem conseguir o aumento da produtividade na economia e nas ações públicas.
Sem elas, como generalizar a crença no País e fazer o povo sentir bem-estar? Falta explicar o porquê das reformas, no plural, e estabelecer uma ligação clara entre a agenda do governo e os interesses nacionais e populares de longo prazo. Só assim voltaremos a crer em nós. Sem isso assistiremos a uma indefinida transição entre a estagnação que herdamos do lulopetismo e não se sabe o quê. Assim não dá.
*Sociólogo, foi presidente da República