FHC

Fernando Henrique Cardoso: Tempos incertos

O que nos tem faltado é quem inspire confiança em nós mesmos, em lugar de ódio e rancor

Os tempos modernos caracterizam-se pela racionalização crescente, dizem os cientistas sociais. Se é verdade que nas culturas mais simples as crenças ditavam o que se devia fazer, com a complexidade do mundo contemporâneo, sobretudo pós-industrialização, a ciência substituiu as crenças. Se isso não vale para o transcendental, devia valer como baliza para as decisões, em especial as que implicam responsabilidade pública.

A ciência serve de guia para recomendar o provado, não elimina a necessidade de juízo político e moral sobre decisões a tomar. Dilemas difíceis chegam em situações de grande incerteza, como agora, pois não só o futuro parece indefinido, mas o presente se mostra volátil. Nestas horas é que mais se requerem lideranças para responder a desafios que exigem soluções complexas. É tarefa de todos ajudar nos resultados a partir do que se alcançou com o conhecimento. Mas os rumos são de responsabilidade moral dos que lideram. Cabe a eles decidir com base no conhecimento, pensando no que é bom ou mau para as pessoas.

Comentaristas repetem que enfrentamos uma “tempestade perfeita”. Chove e venta copiosamente: o coronavírus é pandêmico, a economia mundial está capenga, para não dizer paralisada ou regredindo, e em muitos países os donos do poder creem em mitos – que não são como os dos primitivos, aos quais não havia saber que se contrapusesse.

Assustados com a tempestade, os que, além de crer neles, pensam encarnar mitos, assumem ares de valentia. Na verdade, receiam que sua força se esvaia no confronto com a realidade, que não compreendem. Buscam culpados e inimigos, em vez de diálogo e convergência para atravessar o temporal com o menor dano possível para a economia e as pessoas, sobretudo as do andar de baixo.

Os que mandam nem sempre entendem os sinais de outros setores da sociedade. Desde que inventaram o “nós” contra “eles”, o adversário virou inimigo. E com inimigo não se conversa, se destrói. A menos que se renda e, ajoelhado, repudie suas ideias “subversivas”, que corroem a “ordem”. Não foi o atual governo que nos enredou e se amarrou nessa disjuntiva sinistra, mas a responsabilidade por sua solução é também de quem nos governa.

Em nosso país, com uma tempestade perfeita, o “nós” contra “eles” é criminoso. A vítima é a estabilidade da democracia, conquista civilizatória que nos tem permitido resolver os conflitos políticos de modo pacífico. Quem a põe em xeque ou silencia ante vozes autoritárias não é conservador, é atrasado, tem teias de aranha na alma. É promotor da instabilidade e conivente com o retrocesso civilizatório. Alguns são cultores da violência, do fanatismo e da ignorância. Subversivos são os que assim procedem, não quem ergue a voz para preservar o patrimônio comum de todos os brasileiros: a democracia que construímos.

Esta consideração alcança todos, mulheres e homens, civis e militares, conservadores, liberais ou progressistas. Só os reacionários, que têm no atraso sua bússola, não veem a distinção entre inimigos e adversários. Estes podem ter visões e objetivos diferentes dos que prevalecem nos que mandam, mas, se respeitadas as decisões da maioria, as leis e a Constituição, a diversidade, a diferença, fazem parte do jogo da democracia. Quando se substitui esta noção pela distinção entre “bons” e “maus” como se houvesse uma guerra permanente, começa-se por querer eliminar os “inimigos” e se termina por matar a democracia.

São tempos incertos os que vivemos. Neles a liderança deve apelar à racionalidade, ao bom senso, ao sentimento de solidariedade e de unidade nacional, admitir que não há caminhos fáceis nem soluções mágicas, e o País deve buscá-los de braços dados. O Brasil tem vulnerabilidades, como os grandes aglomerados urbanos onde milhões vivem do trabalho informal em moradias precárias. Sem falar dos desempregados e dos que perderam condições de se empregar. Tem limitações fiscais, que podem e devem ser flexibilizadas num momento de emergência social e econômica, mas não podem ser desconsideradas. E tem ativos como o SUS, instituições de pesquisa científica como a Fiocruz, universidades como a USP e outras, epidemiologistas de categoria internacional, militares e funcionários devotados ao serviço público, uma sociedade civil ativa, governadores e prefeitos que arregaçaram as mangas para enfrentar o desafio, uma imprensa atenta e instituições públicas de controle a zelar pelo bem comum, etc.

O que nos tem faltado é quem inspire, em vez de ódio e rancor, confiança em nós mesmos. Esta requer serenidade de quem busca despertá-la nos compatriotas; exige compostura, capacidade de convencer pelas ideias, e não pela ameaça.

O Brasil já contou com políticas e políticos que despertavam confiança. Convivi com Tancredo Neves, homem de fala mansa, mas de valores firmes. Foi um político de diálogo, atento à necessidade de buscar denominadores comuns em momentos críticos. E com Ulysses Guimarães, que sabia aliar ao diálogo a firmeza, quando necessário. E assim outros.

Que sua lembrança nos inspire a fazer frente aos arreganhos autoritários com firmeza e serenidade. E novos líderes encarnem o espírito enérgico e conciliador que marcou boa parte de nossa liderança, para em 2022 não se repetir a escolha trágica de quatro anos atrás.

*Sociólogo, foi presidente da República


El País: 'Quem vai ser responsabilizado pelos erros do Governo, queiram ou não, serão os militares', diz FHC

Ex-presidente diz que excesso de generais expõe fraqueza de Bolsonaro. Ele enxerga reação em defesa da democracia e diz que ideias de Guedes estão erradas para o momento

Carla Jiménez, Flávia Marriro e Naiara Galarraga Górtazar, do El País

O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, que vivenciou uma guerra mundial, a ditadura e o exílio, parece bem adaptado à reclusão em sua casa de São Paulo. Prestes a completar 89 anos, tem no coronavírus uma ameaça muito grave. Há dois meses se relaciona somente por telefone com seus filhos e netos. Sociólogo e professor, continua sendo um intelectual clássico, ainda que também mande recados pelo Twitter. Na manhã desta sexta-feira, 29, falou sobre o presidente Jair Bolsonaro, os militares, a pandemia e a economia em uma entrevista ao EL PAÍS Brasil transmitida ao vivo. O ex-presidente enxerga a democracia brasileira atacada por dentro dela mesma, mas enxerga reação. Ele mesmo acaba de assinar um manifesto a favor da democracia feito pelo movimento Estamos Juntos que une intelectuais, artistas e políticos de diversos partidos.

Durante a pandemia, Fernando Henrique escolheu seu lado com clareza na dicotomia em que a política brasileira se move. “Entre economia e vida, de que lado? Eu estou do lado da vida. Há pessoas que estão do lado do mercado. Tentaremos fazer com que as duas coisas sejam compatíveis e nos preparar para o que vem depois”, diz.

Cardoso, presidente de honra do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), que com 31 deputados é o quarto maior grupo parlamentar, está preocupado, mas também não acredita que o Brasil está em um ponto de não retorno. Não neste momento. Vê sinais inquietantes, mas também instituições que respondem aos ataques. O homem que ocupou a Presidência entre 1995 e 2002 deixa claro seu desgosto com Bolsonaro: “O presidente quer mais poderes, como se não tivesse suficiente. O que precisa fazer é exercer o que tem”, responde pela tela do computador. Atrás dele, uma estante repleta de livros e uma diminuta rainha Elizabeth II de plástico que acena.

Apesar do ruído cada vez mais presente sobre uma eventual intervenção militar no Brasil, e os constantes desmentidos dos ministros vindos das Forças Armadas, Cardoso destaca que neste momento não vê riscos. Mas faz uma advertência após lembrar que é filho de um general e neto de um marechal. “Acho que os militares não desejam nesse momento assumir o poder, um golpe. Mas como as democracias morrem? Não precisa ser um golpe militar. O próprio presidente pode assumir poderes extraordinários. E pode tomá-los. Há alguma possibilidade de que ocorra? Diria que não há possibilidade nas condições atuais no Brasil. Podem existir tentativas nessa direção? Podem existir”. Significa, portanto, estar alerta. “Não se pode deixar que a democracia seja erodida de dentro”. Por isso considera essencial levantar a voz quando alguém cruza os limites.

“Quando alguns militares falam é sempre para defender a Constituição. Não estão apoiando abertamente o que dizem alguns ministros e muitas vezes o próprio presidente. Acho que esse é um momento em que é preciso falar claro”.

"Ninguém dá dinheiro a você se acha que não está avançando. Começa a existir algo que não ocorria ao Brasil: começam a achar que não somos confiáveis."

Mas não é só o que dizem e não dizem os membros do Governo que vêm das Forças Armadas. É também sua crescente presença em órgãos governamentais de todos os tipos, um desembarque inédito desde o final da ditadura, em 1985. “Quando um Governo começa a nomear muitos militares é porque está frágil”, ressalta. E no caso de Bolsonaro, um capitão da reserva, porque é lá nas Forças Armadas que encontra sua rede contatos, mas “o resultado é que o Governo terá um rosto militar. E os responsáveis pelos erros do Governo, queriam ou não, serão os militares”. Incluindo o que acontecer na pandemia de coronavírus. “Nesse momento não, mas depois, sim”. Um general dirige o Ministério da Saúde interinamente após o presidente demitir seus dois predecessores.

https://youtu.be/4wkfnzva0sI

Cardoso lembra algo que há pouco tempo parecia desnecessário frisar. Que não se pode dar a democracia como certa, é preciso cuidá-la como se fosse uma planta e defendê-la cotidianamente. O Brasil de Bolsonaro é cenário de constantes ataques à separação de seus poderes, de seus ministros, seus filhos e seguidores. O assédio à imprensa é cada vez mais frequente. E o próprio mandatário, um saudoso da ditadura, participou de vários atos nos quais se pediu uma “intervenção militar”. Os alertas do ex-presidente Cardoso são calmos, sem estridências: “Existem vários sinais aqui, para dizer suavemente, que são inquietantes”.

Em sua opinião o atual presidente não está à altura do cargo que ocupa. “Ainda temos democracia. Está sendo destroçada, atacada. É responsabilidade do presidente velar pela democracia? Sim. Está velando por ela? Não. Está dizendo coisas que não são apropriadas ao chefe de Estado”.

Apesar de tudo, Cardoso considera que a situação não está madura para um impeachment, que, frisa, “não pode ser um projeto de oposição”. Lembra que Bolsonaro mantém uma base forte, na qual também existem muitos fanáticos.

Ele, que tem tantos contatos no mundo inteiro, é consciente de como a imagem de sua pátria se deteriorou nos últimos tempos. Algo que o modo de Bolsonaro de enfrentar a pandemia agravou. E isso será um problema para reativar a economia, para o que vê a cooperação internacional como imprescindível. Não será fácil. “Ninguém dá dinheiro a você se acha que não está avançando. Começa a existir algo que não ocorria ao Brasil: começam a achar que não somos confiáveis”. O horizonte é sombrio: “Após algum tempo, a pandemia não existirá, mas sim desemprego e falta de crescimento econômico. E podem ocorrer mobilizações sociais. Precisamos nos preparar para viver com isso, e não para contê-lo”.

No plano econômico, considera que as receitas com as quais o ministro Paulo Guedes trabalhava já não servem nessa conjuntura. “Ele tinha um rumo, mas a crise o atingiu. Suas ideias são incorretas agora”.

Ainda que anseie por viajar e comer nos restaurantes de seu bairro, afirma que só sairá de casa quando autoridades e as recomendações sanitárias permitirem.

Leia a seguir alguns dos principais trechos da entrevista, e assista a íntegra no canal do youtube do EL PAÍS Brasil.

Impeachment de Bolsonaro

O impeachment sempre deixa uma marca para as instituições, na cultura do povo. Nós já tivemos recentemente dois impeachments. Mais um é complicado. O impeachment não pode ser um projeto dos opositores. Não tenho por que defender o presidente Jair Bolsonaro. Não votei, nele, estou contra ele, e ele sabe disso. Ele queria me fuzilar quando eu era presidente...

A democracia brasileira está morrendo?

Espero que não. Temos uma sociedade muito dinâmica, e uma imprensa muito livre, e que fala as coisas. Reage, tem como reagir aos ataques. Na ditadura, não tem como, eles te prendem. Fui exilado, perdi a cátedra. É difícil, é outra situação. Eu estive na Espanha no período duro, é outra situação. Não quer dizer que não temos de olhar com preocupação, pode chegar. Se a sociedade, se os líderes e instituições reagirem vai mal, se deixa só o impulso prevalecer, vai mal, vai mal. Qualquer que seja a intenção que esteja no poder. No passado, em 1964 , havia luta entre EUA e URSS, e havia gente contra essa realidade. Imagina que marechal Castello Branco queria ditadura. Nunca. Mas as coisas vão se encadeando. É preciso prestar a atenção e barrar. Bolsonaro reclama do ministro que falou da reunião ministerial [Sergio Moro] e não reclama dos disparates da reunião. Espero que se chegue até a eleição. Espero. Não se pode aceitar a erosão da democracia por dentro, e por fora. É preciso defender a Constituição.

Luta contra inimigos irreais, como nos EUA

A questão no Brasil, como é um pouco nos EUA, é de teia de aranha na cabeça. De atraso. Lutando contra inimigos que não são reais. Terra é plana. Que é isso. Contrassenso. Inspiração ideológica, de lideres que são gurus, que nada tem a ver com a ciência. Isso é atraso. Mas ele foi eleito. Posso achar que foi erro. Mas outro não. Ele tem uma base de apoio. Melhor para o futuro, em termos de história do Brasil, que se chegue a convencer o povo a votar melhor.

Reação em defesa da democracia

Começa a haver reação. ABI [Associação Brasileira de Imprensa] protestando, setores organizados protestam. Entidades, editoriais dos jornais. Por que não reagimos? Estamos com coronavírus. Difícil mobilizar o povo quando não se tem medo. Isso explica, mas não justifica. Todos que têm responsabilidade política têm de se manifestar. Os partidos no Brasil são muito fragmentados e não são mais indutores do comportamento público. Não controlam a opinião pública. Tribunais dizendo, imprensa dizendo.

Militares e Constituição

Nunca vi um militar falar contra a Constituição. Quando alguns militares falam dão um jeito de defendê-la. Não estão abertamente subscrevendo o que dizem alguns ministros e o próprio presidente muitas vezes. Acho que nesta hora é preciso falar, dizer claramente. “Não pode, está errado entrando em áreas de competência que não são suas. Precisa manter a liberdade de imprensa. E mais, a economia sofre as consequências de tudo isso. O mundo mudou e sobretudo o mundo tem medo do que está acontecendo aqui. A incerteza. É precisar dar um rumo. A principal função do presidente é dar um rumo. Aqui há dúvidas sobre as duas questões.

Militares demais no Governo, força de menos

Quando um Governo começa a nomear muito militar, é porque o Governo está fraco. Eu vi isso no Chile, com o presidente Allende. Nomeava muito militar para fingir que tinha força. Aqui não é tanto para fingir que tem força, mas porque são os que ele conhece. Riscos? Militares no Brasil não têm sentido de mercado. Empresa, mercado, lucro. Nem corrupção, não gostam. Mas se habituam às benesses do Governo. Quem não gosta? Tem automóvel, tem casa, tem salário, dobra o salário. Pouco a pouco cria identidade automática, acontece. Ele nomeia essas pessoas porque tem pouco apoio. Eles não vão para lá para se beneficiar, eles vão lá para servir o país. A motivação pode ser qualquer. O resultado é que o Governo vai ter cara militar. E quem vai ser responsável pelos erros do Governo, queira ou não, serão os militares. Eles têm feito um certo esforço de dizer —nós estamos aqui, reiterando que forças militares servem ao Estado, ao Governo. Nós temos que reiterar essa ideia, para que isso se incuta na cultura brasileira. Que militares são órgão de defesa das instituições do Estado.

Militares responsabilizados pela pandemia

Neste momento não, depois vão. Não é bom para eles. Tem muito general. Não tenho nada contra generais. Um ou outro pois têm capacitação técnica para tanto... Muitos generais [no Governo] fazem mal às Forças Armadas, dá essa sensação de tutela militar. Não é compatível com tempo moderno, contemporâneo, com as instituições brasileiras. Os militares terão sempre força, poder.

Ideias erradas de Paulo Guedes para o momento

O ministro da Economia, Paulo Guedes, tem um rumo. Mas o rumo dele bateu com uma crise. As ideias dele estão erradas para o momento, não tem como fazer. Ele ficou meio perdido. Já deveria ter mexido para poder funcionar. É preciso na política sempre falar para o coração e para a cabeça das pessoas. Ter sentimento, as pessoas precisam acreditar naquilo. Neste momento falta o caminho de crença. Entendo a aflição do presidente atual, como eu tive, de querer ir mais depressa. Mas isso aumenta o número de mortos. Entre a economia e a vida, você fica de que lado? Eu fico do lado da vida. Tem gente que fica do lado do mercado. Vamos tentar compatibilizar, e preparar o que vem depois.

Falta liderança contemporânea no Brasil

Hoje ninguém pode falar porque tem medo, está em casa., tem medo da pandemia. Depois de amanha não tem pandemia, mas tem desemprego, e falta de crescimento econômico. E pode haver também movimentação social. Precisamos nos preparar para conviver com isso, e não coibir. A tendência autoritária vai querer coibir. Mas os democratas, vamos não coibir, orientar para um lado, convencer, vencer junto. O líder que quer vencer sozinho está errado. Não vence nada. Só vence com a espada. E ele não tem a espada ainda. E espero que nunca tenha. Porque se tem espada, decepa as cabeças. E se não tem, tem que ganhar as cabeças. Falta no Brasil liderança. E não só no Brasil, está escasso no mundo. E outro dado. Precisa ser liderança contemporânea com o mundo. O mundo é científico, tecnológico. E o mundo será da ciência e da tecnologia, queiramos ou não.

A tese Estado mínimo x Estado forte pós pandemia

Isso deve mudar [na cabeça da sociedade brasileira]. Depende da ação, se colocar de maneira forte e convincente. Quando Sistema Único de Saúde (SUS) foi proposto, nós apoiamos. É importante, dá assistência a quem não tem dinheiro. Mostra sua valia agora. O problema é que ele é subfinanciado. Agora nós sabemos, vamos saber depois? Os homens têm memória mas também esquecem. Eu não quero que esqueçam. Vão falar da pandemia se continua falando sobre. E não da pandemia, mas falar da pobreza e da desigualdade. Tem que fazer economia social de mercado. Governo não tem que ser grande nem pequeno. Tem que funcionar. O mercado não dispensa regulamentação. Neste momento de crise, todo mundo pede Governo... dinheiro, dinheiro.

De ajuda emergencial a renda básica permanente

A necessidade se impôs. É um passo importante. Pode ter que precisar aumentar imposto. Quem tinha ideia fixa [sobre renda universal] era o deputado Eduardo Suplicy. Houve condição depois de que as famílias colocassem os filhos da escola. A ideia do Bolsa Família nasceu no meu Governo. Houve o Bolsa Escola, depois teve um Bolsa Saúde. Depois o Governo Lula juntou tudo e virou Bolsa Família, e transformou em instrumento político. Está feito. E acha que alguém vai tirar? Não, porque tem sentido social. No mundo do futuro, com economia que se tecniciza, vai ter que ajudar. Tem que ter dinheiro que vem de quem tem mais.


FHC, Rubens Ricupero, Celso Amorim e outros: A reconstrução da política externa brasileira

A diplomacia atual contraria princípios constitucionais na letra e no espírito

É preciso que Congresso e o Judiciário cumpram seu papel de controle da constitucionalidade das ações diplomáticas

Apesar de nossas distintas trajetórias e opiniões políticas, nós, que exercemos altas responsabilidades na esfera das relações internacionais em diversos governos da Nova República, manifestamos nossa preocupação com a sistemática violação pela atual política externa dos princípios orientadores das relações internacionais do Brasil definidos no Artigo 4º da Constituição de 1988.

Inovadora nesse sentido, a Constituição determina que o Brasil “rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios: I- independência nacional; II- prevalência dos direitos humanos; III- autodeterminação dos povos; IV- não-intervenção; V- igualdade entre os Estados; VI- defesa da paz; VII- solução pacífica dos conflitos; VIII- repúdio ao terrorismo e ao racismo; IX- cooperação entre os povos para o progresso da humanidade; X- concessão de asilo político”.

“Parágrafo único. A República Federativa do Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações”.

É suficiente cotejar os ditames da Constituição com as ações da política externa para verificar que a diplomacia atual contraria esses princípios na letra e no espírito. Não se pode conciliar independência nacional com a subordinação a um governo estrangeiro cujo confessado programa político é a promoção do seu interesse acima de qualquer outra consideração. Aliena a independência governo que se declara aliado desse país, assumindo como própria uma agenda que ameaça arrastar o Brasil a conflitos com nações com as quais mantemos relações de amizade e mútuo interesse. Afasta-se, ademais, da vocação universalista da política externa brasileira e de sua capacidade de dialogar e estender pontes com diferentes países, desenvolvidos e em desenvolvimento, em benefício de nossos interesses.

Outros exemplos de contradição com os dispositivos da Constituição consistem no apoio a medidas coercitivas em países vizinhos, violando os princípios de autodeterminação e não-intervenção; o voto na ONU pela aplicação de embargo unilateral em desrespeito às normas do direito internacional, à igualdade dos Estados e à solução pacífica dos conflitos; o endosso ao uso da força contra Estados soberanos sem autorização do Conselho de Segurança da ONU; a aprovação oficial de assassinato político e o voto contra resoluções no Conselho de Direitos Humanos em Genebra de condenação de violação desses direitos; a defesa da política de negação aos povos autóctones dos direitos que lhes são garantidos na Constituição, o desapreço por questões como a discriminação por motivo de raça e de gênero.

Além de transgredir a Constituição Federal, a atual orientação impõe ao país custos de difícil reparação como o desmoronamento da credibilidade externa, perdas de mercados e fuga de investimentos.

Admirado na área ambiental, desde a Rio-92, como líder incontornável no tema do desenvolvimento sustentável, o Brasil aparece agora como ameaça a si mesmo e aos demais na destruição da Amazônia e no agravamento do aquecimento global. A diplomacia brasileira, reconhecida como força de moderação e equilíbrio a serviço da construção de consensos, converteu-se em coadjuvante subalterna do mais agressivo unilateralismo.

Na América Latina, de indutores do processo de integração, passamos a apoiar aventuras intervencionistas, cedendo terreno a potências extrarregionais.

Abrimos mão da capacidade de defender nossos interesses, ao colaborarmos para a deportação dos Estados Unidos em condições desumanas de trabalhadores brasileiros ou ao decidir por razões ideológicas a retirada da Venezuela, país limítrofe, de todo o pessoal diplomático e consular brasileiro, deixando ao desamparo nossos nacionais que lá residem.

Na Europa ocidental, antagonizamos gratuitamente parceiros relevantes em todos os domínios, como França e Alemanha. A anti-diplomacia atual afasta o país de seus objetivos estratégicos, ao hostilizar nações essenciais para a própria implementação da agenda econômica do governo.

A gravíssima crise de saúde da covid-19 revelou a irrelevância do Ministério das Relações Exteriores e seu papel contraproducente em ajudar o Brasil a obter acesso a produtos e equipamentos médico-hospitalares. O sectarismo dos ataques inexplicáveis à China e à Organização Mundial de Saúde, somado ao desrespeito à ciência e a insensibilidade às vidas humanas demonstradas pelo presidente da República, tornaram o governo objeto de escárnio e repulsa internacional. Criaram, ao mesmo tempo, obstáculos aos esforços dos governadores para importar produtos desesperadamente necessários para salvar a vida de milhares de brasileiros.

O resgate da política exterior do Brasil exige o retorno à obediência aos princípios constitucionais, à racionalidade, ao pragmatismo, ao senso de equilíbrio, moderação e realismo construtivo. Nessa reconstrução, é preciso que o Judiciário, guardião da Constituição e o Congresso Nacional, representante da vontade do povo, cumpram o papel que lhes cabe no controle da constitucionalidade das ações diplomáticas.

A fim de corresponder aos anseios do nosso povo e corresponder às necessidades reais do Brasil, a política externa precisa contar com amplo respaldo na opinião pública, e a colaboração na sua concepção de todos os setores da sociedade. Requer também o engajamento do nosso corpo de diplomatas: uma política de Estado e não uma ação facciosa voltada para excitar os ânimos e exacerbar os preconceitos de uma minoria obscurantista e reacionária. Nossa solidariedade e decidido apoio aos diplomatas humilhados e constrangidos por posições que se chocam com as melhores tradições do Itamaraty.

A reconstrução da política exterior brasileira é urgente e indispensável. Deixando para trás essa página vergonhosa de subserviência e irracionalidade, voltemos a colocar no centro da ação diplomática a defesa da independência, soberania, da dignidade e dos interesses nacionais, de todos aqueles valores, como a solidariedade e a busca do diálogo, que a diplomacia ajudou a construir como patrimônio e motivo de orgulho do povo brasileiro.

Fernando Henrique Cardoso é ex-Presidente da República e ex-ministro das Relações Exteriores.
Aloysio Nunes Ferreira, Celso Amorim, Celso Lafer, Francisco Rezek e José Serra são ex-ministros das Relações Exteriores.
Rubens Ricupero é ex-ministro da Fazenda, do Meio Ambiente e ex-embaixador do Brasil em Washington.
Hussein Kalout é ex-secretário Especial de Assuntos Estratégicos da Presidência da República.


O Estado de S. Paulo: FHC pede renúncia de Bolsonaro. 'Poupe-nos de um impeachment'

Ex-presidente tucano diz presidente está cavando sua própria cova

Redação, O Estado de S.Paulo

Após a demissão do ministro Sérgio Moro, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso cobrou nesta sexta-feira, 24, em suas redes sociais, que o presidente Jair Bolsonaro renuncie. Segundo ele, a sociedade deve ser poupada de mais um processo de impeachment.

"É hora de falar. Pr (presidente da República) está cavando sua fossa. Que renuncie antes de ser renunciado. Poupe-nos de, além do coronavírus, termos um longo processo de impeachment. Que assuma logo o vice para voltarmos ao foco: a saúde e o emprego. Menos instabilidade, mais ação pelo Brasil.

FHC: 'Não sou médico, mas devemos ouvir os especialistas. O único remédio nesse momento é ficar em casa' Foto: Alex Silva/Estadão

Fernando Henrique Cardoso

@FHC

É hora de falar. Pr está cavando sua fossa. Que renuncie antes de ser renunciado. Poupe-nos de, além do coronavírus, termos um longo processo de impeachment. Que assuma logo o vice para voltarmos ao foco: a saúde e o emprego. Menos instabilidade, mais ação pelo Brasil.

5.147 pessoas estão falando sobre isso
No pronunciamento em que anunciou sua demissão, Moro afirmou que Bolsonaro quis ter acesso a relatórios de inteligência da PF, que são sigilosos. Relatou que investigações no STF preocupavam o presidente da República. “O presidente me quer fora do cargo”, disse Moro, ao deixar claro que a saída foi motivada por decisão de Bolsonaro.

Na visão dele, a demissão de Valeixo de forma “precipitada” foi uma sinalização de que Bolsonaro queria a sua saída do governo.

“O presidente me disse que queria ter uma pessoa do contato pessoal dele, que ele pudesse colher informações, relatórios de inteligência, seja diretor, superintendente, e realmente não é o papel da Polícia Federal prestar esse tipo de informação. As investigações têm de ser preservadas. Imagina se na Lava Jato, um ministro ou então a presidente Dilma ou o ex-presidente (Lula) ficassem ligando para o superintendente em Curitiba para colher informações”, disse Moro, ao comentar as pressões de Bolsonaro para a troca no comando da PF.


Fernando Henrique Cardoso: Durante e depois da crise

Abra-se o Tesouro para garantir a sobrevivência das pessoas e empresas, depois se vê como pagar

Estamos atravessando tempos bicudos. Não só por causa do coronavírus, mas também porque há um vazio político no mundo. Quando não, há uma histeria direitista sem que se veja o “outro lado” do espectro. Ou sumiu, ou os tempos são outros e mesmo a antiga divisão, que persiste, entre esquerda e direita - com suas variantes ao redor de um centro abstrato - não dá mais conta das reais adversidades do mundo contemporâneo: aquecimento global, substituição de mão de obra por “máquinas inteligentes” e agora, como se fossem poucas as tormentas, as pandemias.

Estou, como bom cidadão - e idoso -, fazendo esforço para me isolar. Confesso que ando cansado de ouvir tanta gente, a toda hora, falando de doenças e mortes. Não me refiro aos especialistas, como o ministro da Saúde, que precisam mesmo falar. Ele tem sido competente, claro e sensível às necessidades do momento. Certos presidentes melhor que não falem, pois falam e “desfalam” ao sabor das circunstâncias, despreparados para entender o presente e, mais ainda, para projetar o futuro.

Sei que é difícil. Na última sexta-feira, assisti no Zoom (ah, quantos inventos de interlocução sem a presença das pessoas foram criados no mundo e como são úteis...) a uma discussão, organizada pela Fundação FHC, entre o ex-embaixador do Brasil na China Marcos Caramuru e um especialista americano em economia chinesa, Arthur Kroeber.

Além dos impactos econômicos da pandemia, discutiram o que poderá acontecer com a geopolítica mundial depois da crise. Kroeber afirmou que a crise reforça a posição dos setores mais duros da sociedade e do governo americano, que veem na China uma ameaça, um vírus a ser contido. O embaixador Caramuru acredita que, se essa visão prevalecer nos Estados Unidos, crescerá a influência chinesa no mundo. Para ele, só os Estados Unidos veem a China como adversária implacável da paz e da prosperidade. Os demais países - nós incluídos - deveriam aproveitar os espaços econômicos no futuro para aumentar nossas exportações e induzir os chineses a fazerem mais investimentos aqui.

É certo que é preciso pensar no depois. Os países e seus povos não vão acabar. A crise virótica, por mais difícil e custosa que seja em termos de vidas e de recursos, um dia vai passar. Mas, e antes disso, durante a pandemia? O óbvio já disse acima e a maioria das pessoas sabe e compartilha: nada, se possível, de ir à rua ou juntar-se com outras pessoas. Estamos todos (os que podemos...) como prisioneiros, não por ordem da Justiça ou pelo arbítrio dos poderosos, mas para tentarmos nos salvar e salvar os outros.

Aproveitemos para pensar no estilo de vida que vivemos. A solidariedade, no cotidiano da maioria das pessoas, transformou-se em mera frase, sem correspondência em atos. Por que não aproveitar a prisão voluntária para pensarmos um pouco mais sobre nós mesmos, nossa família, os amigos, os vizinhos e a sociedade mais ampla?

Sei que para alguns a adaptação em casa é mais fácil. Eu próprio aproveito para escrever e ler. Mas, e as pessoas que vivem nas favelas ou nas periferias sem verde algum, apinhadas sob um mesmo teto? E as que perderão o emprego como consequência indireta do coronavírus? Portanto, ao mesmo tempo que mergulharmos em nossa consciência para ver se ainda somos humanos, é hora de pensar também em como transformar em gesto a intenção de ser solidário. Não faltam boas iniciativas da sociedade civil para angariar e canalizar doações.

Sem diminuir a importância dessas iniciativas, a ação decisiva é dos governos. Os economistas não sabem qual será a profundidade da crise e em quanto tempo virá a recuperação. Mas num ponto a maioria concorda: às favas (por ora!) a ortodoxia e os ajustes fiscais. Voltamos aos tempos de Keynes e, quem sabe, os mais apressados deixarão de jogar os “social-democratas” na lata de lixo da História.

Os governos, e não só o daqui, começam a perceber que é melhor gastar já e salvar vidas do que manter a higidez fiscal e produzir cadáveres e depressão econômica. A dívida pública vai aumentar. Depois se verá como pagá-la. Este se é dúbio: em geral a maior parte da conta vai para o conjunto da população, e não para os que mais podem. Terá de haver mobilização política para que desta vez seja diferente.

Que o Tesouro se abra (e se já estiver vazio, que se endivide ainda mais). Com um porém: que os governos usem bem o dinheiro e não transformem gastos extraordinários em gastos permanentes. Melhor haver um “orçamento de guerra” do que criar bazucas permanentes contra o Tesouro.

É disto que se trata: reforçar estruturalmente a saúde pública e a ciência básica, fazer gastos extraordinários para garantir a sobrevivência das pessoas e das empresas mais vulneráveis e, mais à frente, distribuir com equidade a carga de impostos para reduzir o déficit e a dívida pública, que vão crescer inevitavelmente.

*Sociólogo, foi presidente da República


Fernando Henrique Cardoso: É hora de ação coordenada e de ter rumo

Não é hora de jogar pedras. Nem de fazer elogios descabidos. É hora de ação coordenada e de ter rumo. É este o papel principal de quem exerce a Presidência e demais posições governamentais. O coronavírus não é culpa de ninguém: aconteceu. Como outras tragédias já ocorreram com a humanidade.

Ainda bem que, apesar da tragédia das doenças, dispomos no Brasil de algumas vantagens: as informações fluem e o SUS existe. Além de existir uma indústria farmacêutica que pode rapidamente se adaptar às nossas necessidades. Poucos países (nenhum capitalista e com mais de 100 milhões de habitantes; nós temos mais de 200) possuem um sistema nacional de saúde capaz de atender, de modo universal e gratuito —só no ano de 2019 foram 12 milhões de internações hospitalares e mais de 1 bilhão de consultas ambulatoriais. Nós dispomos dele.

Antes do SUS, havia atendimento médico gratuito para as corporações e para o funcionalismo civil e militar. Os pobres tinham de recorrer às santas casas de misericórdia. Foi na Constituinte de 1988, com o empenho de deputados que eram médicos sanitaristas e de uns poucos que apoiaram as reivindicações deles que houve, finalmente, a decisão de criar o SUS, tomada pela maioria.

Sua posta em prática se deve a ministros como Adib Jatene, César Albuquerque e José Serra e a funcionários do calibre do então secretário-geral do ministério, Barjas Negri.

Mas deve-se, principalmente, à dedicação de médicos, enfermeiros, atendentes e funcionários, tanto do setor público quanto do privado, que foram capazes de dar vida a uma instituição que hoje é básica, o SUS. E às faculdades de medicina, assim como as de enfermagem, que formam profissionais competentes para trabalhar em hospitais que, na ponta, têm qualidade.

Cabe aos governos, diante da crise atual de saúde, atuar. Escrevo governo no plural, pois, além do governo federal, existem os estaduais e os locais. Estão tentando agir. Não é fácil: requer coragem, competência e coordenação. E não requer choques desnecessários com a mídia, mas deixá-la fazer seu papel, importantíssimo, de informar às pessoas o que fazer e aos governos o que ainda falta fazer.

Não cabe, como há pouco ocorreu, assistir a um ir e vir de opiniões sobre se convém ou não o isolamento total, se a prioridade é para garantir a produção e os empregos ou a saúde do povo. Não são metas incompatíveis, há que cuidar dos dois lados, da saúde e da produção. O que não cabe mais, diante de “tanto horror perante os céus”, é discutir se primeiro é isso, depois é aquilo. A mensagem de todos deve se dirigir a todos, sem dar sinais, mesmo que retóricos, de que ao cuidar de um lado vamos nos esquecer do outro.

Foi o que faltou ao presidente. Foi o que fez, corretamente, o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta. Com palavras simples e deixando transparecer sentimento, explicou o que acontece e o que é preciso fazer. Agora, cabe a cada um de nós, uma vez informados pela mídia e pelos agentes de saúde, fazer o que nos corresponde. Uma crise da magnitude da atual não se resolve só pelo governo. Nem sem ele. Mas requer, sobretudo, compreensão e ação de todos.

Não é fácil ficar parado. Teremos de inventar, por um tempo, o que fazer mesmo se estivermos isolados de nossos locais de trabalho, como ocorre muitas vezes. Ou, quando estamos neles, melhor estarmos mais distanciados fisicamente uns dos outros do que habitualmente fazemos.

Por quanto tempo? Ninguém sabe, de ciência certa. Vamos cumprir o devido e esperar que quarentenas e isolamentos não durem muito. Convém que os que mandam digam por quanto tempo e deem esperanças a quem cumpre o isolamento, mas nem eles sabem. Só sabem o que nós todos sabemos, principalmente os mais velhos: se não fizermos nada será pior, e talvez alguns de nós não tenhamos mais a oportunidade de fazer qualquer coisa.

Mas não deixemos de lado a esperança de que dias melhores virão. É boa a ideia de separar um orçamento, “de guerra”, para os dias que correm e manter a noção de que tanto reformas como tetos de gasto só não serão cumpridos pelas circunstâncias. Mas não nos iludamos: os bancos, especialmente os públicos, precisarão soltar dinheiro, o governo há que provê-lo, as contas não vão fechar. Juntos, porém, seremos capazes de ultrapassar os maus momentos que atravessamos.

*Fernando Henrique Cardoso, ex-presidente da República (1995-2002), é sociólogo e professor emérito da USP.


Celso Lafer: ‘Diários da Presidência, 2001-2002’

No errático momento atual do Brasil, a palavra e a sabedoria de FHC merecem atenção

A publicação deste quarto volume finaliza o disciplinado empenho de Fernando Henrique Cardoso em dar acesso ao registro que fez do dia a dia de suas atividades nos oito anos que presidiu o País. É empreitada de largo fôlego, cujo enredo esclarece como caminhou sem perder o rumo no “grande sertão” da política brasileira no democrático exercício das responsabilidades da Presidência.

É uma obra original na sua feitura. Não é um diário na acepção usual da literatura confessional da sensibilidade de estados de espírito. Nada tem que ver com uma burocrática agenda comentada do expediente do dia a dia. Não é uma autobiografia política, mesmo porque o registro feito no calor da hora não permite uma narrativa organizadora, decantada pela memória da experiência, no tempo mais longo da reflexão. Não é igualmente uma discussão elaborada com rigor acadêmico sobre como mesclar pensamento e ação. Essa mescla, no entanto, está presente nos Diários, pois com frequência FHC se posiciona como analista observador da ação, extraindo do cotidiano de sua experiência presidencial o alcance mais amplo dos movimentos das forças sociais e políticas, da lógica política das instituições e das pessoas com quem interagiu.

FHC tem os dotes da facilidade da narrativa. É o que dá sabor aos Diários, nos quais não falta o realismo político da objetividade nem, ocasionalmente, a acrimônia da irritação, sempre permeada pela educada civilidade que caracteriza o seu modo de ser.

Todos os ingredientes dos gêneros acima mencionados têm presença, mas não dão a identidade intelectual dos Diários da Presidência. Trata-se de uma obra singular, única na sua amplitude, no campo da ciência política sobre o que é o processo decisório no ápice do sistema político brasileiro. “Governar é escolher”, afirmou Mendès-France, e os Diários explicitam circunstanciadamente, com a disciplina da responsabilidade, “de dentro”, e não “de fora”, o desafio de conduzir a pauta decisória de um país grande e complexo.

Não são triviais os riscos desses desafios. Passam por não se afogar na avassaladora demanda dos pleitos da vida política, para não reduzir o governo à mera rotina da “politique politicienne” de que falam os franceses. Exige coragem e capacidade de enfrentar os graves riscos do inesperado, que tem o potencial de descarrilar um governo. Disso são exemplos as múltiplas crises financeiras que superou. Não prescinde da aptidão na lida com a resistência que a realidade impõe a uma ação inovadora.

Enfrentar esse desafio requer a qualificada competência de liderança dotada de visão do País baseada na experiência e no conhecimento e com antenas para o movimento das coisas, entrelaçada com o ânimo da “ideia a realizar” dos novos rumos a serem trilhados. Os componentes estratégicos do fim, do caminho e da vontade estão sempre presentes na impregnação dos rumos norteadores do processo decisório que permeia os Diários e no modo como FHC direcionou e acompanhou o trabalho dos seus ministros e colaboradores.

No explicar e compreender, fluem as razões das políticas públicas da gestão da economia e da sua consolidação institucional, da atenção dada às de educação e saúde e ao papel que tiveram no resgate da dívida social do País, das relacionadas à tutela dos direitos humanos e da sustentabilidade ambiental e de uma miríade de medidas voltadas para a melhoria das condições do País, como a elevação generalizada dos indicadores do desenvolvimento humano na sua gestão revela.

Também tem destaque a dedicação a um novo patamar de presença e de credibilidade do Brasil no globalizado mundo contemporâneo, voltado para assegurar a tradução de necessidades internas em possibilidades externas. Nessa matéria os Diários ilustram os méritos e o alcance de uma diplomacia presidencial, conduzida com pleno domínio das prioridades e das relevâncias de quem sabe se orientar no mundo.

É inequívoco o inventário do positivo legado da Presidência FHC. Criou condições de um futuro melhor para o Brasil, governando democraticamente e sem violência, com respeito pelo Estado de Direito, pelas instituições e pelas divergências de opinião.

Na sua pós-Presidência FHC se afastou da militância política diária. Criou com espírito universitário uma reconhecida instituição apartidária de estudo e reflexão e vem participando do debate público. Essa participação está norteada pelas preocupações com a agenda do presente na perspectiva do futuro, permeada pelo tema dos rumos e do sentido de direção que assinalou construtivamente o processo decisório de sua Presidência e que é parte de seu legado de homem público.

É esse lastro que confere autoridade à sua palavra. Autoridade, para me valer das indicações do politólogo Karl Deutsch, traduz-se na prioridade da transmissão de mensagens, na qualidade e na legitimidade do seu conteúdo e da sua relevância para a sociedade.

No errático e desestabilizador momento atual do Brasil, a palavra e a sabedoria acumulada de FHC merecem respeito e atenção.

* Professor emérito da Faculdade de Direito da USP, foi ministro de Relações Exteriores (1992 e 2001-2002)


Fernando Henrique Cardoso: Hora de convergir

Precisamos de grandeza para superar desafios. E de liderança: temos a que o povo escolheu. Mas o voto não é um cheque em branco

Nem parece semana de carnaval. Em lugar da modorra habitual no circuito político, muita agitação. O círculo próximo ao presidente não deu folga. Nem ele. Foi um chacoalhar o tempo todo. Agora, depois da quarta-feira de cinzas, é melhor acalmar e refletir.

Falar de impeachment (mesmo que haja nos meios jurídicos e nos tribunais superiores quem tenha considerado a hipótese cabível) seria, no mínimo, arriscado. O país viu dois presidentes diretamente eleitos serem atingidos por este mecanismo constitucional. Não é simples, ele desgasta os Poderes e deixa mágoas de difícil superação. Mais ainda: por trás da votação no Congresso e das alegações jurídicas, no impeachment existe sempre um movimento popular, que não se vê no momento. Melhor nem cogitar, prematuramente, de tal movimento.

Pelo contrário, precisamos, como nação, de mais tranquilidade: temos pela frente dois enormes desafios. Um generalizado e de consequências ainda imprevisíveis, mas todas negativas, que é a ameaça de uma pandemia, o coronavírus. Outra, sentida por todos e mais diretamente pelos mais pobres, o arrastado crescimento da economia. O desemprego passou a ser considerado como “em diminuição” quando, na verdade, ainda há cerca de 12 milhões de desempregados, fora os desalentados que nem empregos buscam mais, e sem contar a baixa qualidade de muitos dos “empregos” disponíveis. O tempo de desemprego tem aumentado. Significa dizer que parte dos que perderam o emprego terá dificuldade de reinserção no mercado de trabalho, quando o investimento voltar e novas tecnologias forem incorporadas ao processo produtivo.

Um país que está inseguro — insegurança agravada pelo temor de uma eventual pandemia — e que tem desemprego tão alto e resistente à queda precisa urgentemente de sensatez e de coordenação. Elas são necessárias para reduzir a insegurança e criar clima favorável ao investimento, sem o qual o crescimento da economia seguirá anêmico.

Nesta hora, faz falta a liderança: o presidente e seu círculo têm sido desastrados no falar, quando não no agir. Acirram, em vez de desanuviar, as ondas que nascem no meio político. Não raro, são eles próprios a produzir turbulência a partir de um impulso de confronto incompatível com o bom funcionamento das instituições e potencialmente perturbador da ordem democrática.

Felizmente, os chefes dos outros poderes, especialmente o da Câmara, percebem a situação e não lançam mais lenha à fogueira. De quem tem responsabilidade com o país se espera, no mínimo, que não compartilhe da loucura, não cale diante das tropelias, ainda que retóricas, e que não apenas tenha juízo para não acelerar ainda mais o descalabro como também aja, com prudência, mas com clareza de propósito, para colocar freios à marcha da insensatez.

Sei que é difícil, dificílimo, pedir bom senso em momentos de polarização. Mas é o de que o povo e o país precisam. Assisti muitas vezes no decurso dos acontecimentos, no Brasil e em outros países, governos de competência restrita apelar para o que lhes resta, em geral para os militares. Estes, por formação e, no momento atual, cada vez mais por convicção, sabem que a ordem não consensual e imposta por coação vale menos, para os objetivos nacionais, do que a ordem que deriva do livre consentimento das pessoas. Sabem que a ordem autocrática é pior do que a ordem democrática em que o poder está submetido a limites e controles institucionais e à soberania popular. Em quaisquer circunstâncias, entretanto, para eles, a ordem é um valor a ser preservado.

Não é para “dar um golpe” que os militares aceitam participar do atual governo. Sentem sinceramente que cumprem uma missão, diante da dificuldade ou incapacidade do governo de recrutar maior número de bons quadros em outros setores da sociedade. O risco para a democracia e para as próprias FFAA como instituição permanente do Estado é de que se borre a fronteira entre os quartéis e a política.

Como se desdobrará a situação atual? Depende de como se comportarem líderes (não só políticos, mas da sociedade toda). É hora de convergir e assegurar o que mais necessitamos: coesão em torno de princípios e objetivos de proteção da democracia contra tentações populistas de índole autoritária. Sem sufocar as divergências naturais nas democracias, é urgente restabelecer o entendimento de que adversário político não é inimigo, de que política não é guerra, de que opositores eventuais do governo não são inimigos da pátria. É preciso ativar os anticorpos democráticos para neutralizar os impulsos de estigmatizar os políticos, como se difunde em parte das mídias sociais.

Precisamos de grandeza para superar nossos desafios. E de liderança: temos a que o povo escolheu. Mas o voto não é um cheque em branco e acima de qualquer mandatário está a Constituição. Termino citando de memória palavras de Ulysses Guimarães: divergir da Constituição, alterá-la por meio de emenda, sim; desrespeitá-la jamais.

*Fernando Henrique Cardoso, sociólogo, ex-presidente da República


Folha de S. Paulo: Brasil sofre vácuo de lideranças, e polarização é ameaça, diz FHC

Para tucano, ataque de Jair Bolsonaro a repórter da Folha é inaceitável e ele deveria se comportar como presidente

Igor Gielow, da Folha de S. Paulo

O Brasil precisa de liderança, e o posto hoje está vago. A opinião é do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB), que governou de 1995 a 2002.

Para ele, o comportamento de Jair Bolsonaro, que insultou a repórter da Folha Patrícia Campos Mello, foi "inaceitável". O atual titular do Planalto precisa se comportar como um presidente, avalia FHC.

Ele descarta risco institucional. Afirma, contudo, que "o alarme precisa ser dado" porque a polarização vigente no país ameaça a democracia —e aponta para a rejeição à corrupção e ao PT como ponto de partida do debate atual.

No seu campo político, de olho no Planalto em 2022, ele elogia o governador Eduardo Leite (PSDB-RS) pela gestão e pela juventude (34 anos).

Sobre um protegido político seu, Luciano Huck, ele disse que o apresentador da TV Globo precisa "se transformar num líder político", porque hoje "conhece o caldeirão" [referência ao nome de seu programa e ao contato com a população em quadros da atração]. Já o governador João Doria (PSDB-SP) "conhece o poder".

O tucano, 88, elogiou os presidentes da Câmara (Rodrigo Maia, DEM-RJ) e do Senado (Davi Alcolumbre, DEM-AP). Ele falou no fim da tarde de quarta (19), na Fundação FHC, no centro paulistano.

Como o sr. vê o clima político do país?
O risco é a polarização. Você não pode deixar que a polarização afete o jogo democrático, que supõe a diferença. É preciso que algumas pessoas que têm responsabilidade institucional, como foi o caso dos presidentes da Câmara e do Senado, manifestem sua estranheza.

Eu sou bastante cuidadoso, sobretudo no exterior, porque fui presidente e sei que as coisas são difíceis. Mas está chegando um momento em que os que são responsáveis pelas chefias do aparelho institucional se comportem institucionalmente. Quem tem função presidencial tem de se comportar como tal. Eu sei que às vezes você fala por falar.

No episódio da repórter da Folha, o limite foi ultrapassado, não?
Aí a coisa passou para outro plano. É inaceitável, não tem cabimento você fazer referências assim a qualquer mulher, pelo que apareceu na mídia. Não acho que haja risco institucional, não sou alarmista. Acho apenas que é preciso ter um certo cuidado. Vamos pegar uma pessoa que me deu muita dor de cabeça política, o Lula. Ele agiu institucionalmente no cargo —no que diz respeito às questões pelas quais ele foi preso.

Nós sentimos o gostinho da liberdade. Só quem viveu com censura, como eu vivi, sabe. Isso acabou. Você não pode atacar todo dia a mídia. Eu sei que a mídia exagera também, talvez até seja sua função.
Quem tem poder político não pode utilizá-lo contra isso. Pode reclamar, mas não pode usar sua força para coibir. Não vai dar certo, vai abrir espaço para o regime que não se quer.

Mas o sr. vê risco disso?
A democracia é uma planta tenra, não pode dar de barato que não vai virar outra coisa. Temos de dizer: "Cuidado, hein? Não passe desse ponto, senão passa". O alerta tem de ser dado, sem alarmismo. Quem tem poder não pode exagerar. Você tem de se autocontrolar.

Como vê a renovada militarização do governo?
Eu não tenho nenhuma versão negativa das Forças Armadas, nem poderia ter. Meu pai era general, meu avô foi marechal.

Quando vejo os generais nomeados, tudo bem, é preciso ver como é a pessoa, se funciona ou não funciona. Agora, tem limite para tudo. Tem de haver um certo equilíbrio que, quando é rompido, as prejudicadas são as Forças Armadas. Você não pode confundi-las com o poder político.

Governadores escrevem carta contra o presidenteMaia bate-boca com o general Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucional), o Congresso toca a agenda mais positiva. Como o sr. vê isso?
Veja as reformas. O Parlamento assumiu a primazia, o que leva a crer que uma parte do Executivo não assumiu como tarefa sua fazer passar.

Isso é inegável. O Brasil não é uma República parlamentarista, o povo rejeitou isso. Num regime presidencialista, a iniciativa é do Executivo, o Parlamento não pode substituir, pode suprir lacunas.
E levar adiante as reformas não significa só mandar a reforma. Tem de falar com os parlamentares e tem de convencer a nação sobre a necessidade delas.

Como o sr. vê a atuação do Paulo Guedes? Em todo governo há um ministério cujo titular é mais capaz de liderar. Eu não conheço o Guedes, mas sou favorável à reforma da Previdência, tentei fazer uma também. Está faltando falar com o país. Quando o presidente não tem interesse ou qualidade, o ministro precisa falar.

Sim, mas aí o ministro falou que as domésticas não deveriam ir tanto à Disneylândia.
Ele não tem experiência política.

Isso não trai um espírito da certa elite brasileira?
É algo cultural. Nos Estados Unidos, eles conseguiram acreditar na Constituição, em que todos são iguais perante a lei. Aqui não é bem assim. As pessoas não se sentem iguais. Todos nós temos, em graus diferentes, impulsos que não são democráticos, que não são de igualdade.

Não deveria ser assim. Então, acho que essas expressões contra mulheres, contra pobres, vêm daí, de um desprezo de classe que é incompatível com a regra democrática.

Fala-se muito em uma extensão do mandato do Rodrigo Maia, por exemplo, vamos mudar a Constituição.
Não acho que seja solução, nem creio que ele aceite isso. Tem de respeitar as regras. Se você as desrespeita no Congresso, vai começar a desrespeitar no Executivo.

O sr. promoveu mudança em 1997, com a adoção da reeleição. Não é contraditório? É diferente agora?
Veja, eu sempre fui favorável a um mandato maior. Nós não discutimos na Constituinte, e quatro anos não é nada para alguém governar. É melhor ter uma reeleição. Mas você não pode ser favorável à permanência. Tem limite.

O tumulto político segue até a eleição de 2022?
Depois da eleição municipal de outubro, tudo vai girar em torno da expectativa de futuro. Apesar das instituições, elas não funcionam sem lideranças. É preciso ter pessoas. Você não leva o eleitorado a votar pelo que você fez, mas sim pelo que você pode fazer. Alguém vai encarnar esse futuro. Pode ser o próprio Bolsonaro, com a permanência da polarização. Eu não gostaria.

Quem é o tal centro? Huck, Doria e Eduardo Leite?
Eu vejo o Eduardo Leite positivamente porque ele faz um bom governo e é jovem. Eu vou fazer 90 anos no ano que vem, é preciso passar o bastão.
Veja os movimentos de renovação da política, eles não estão nos partidos. Mas não basta ser jovem. O que eu vejo, em renovação, está por aí, neles [o trio acima]. Quem vai ser, vai depender do que vai acontecer.

E o ar está sulfuroso, a polarização de 2018 ainda está presente.
Exatamente, ela vem de trás. A polarização vem da oposição ao PT, é isso. Corrupção e PT. Aí você vem imaginar que tem comunismo no mundo? Isso é ridículo, é anacrônico, para dizer o mínimo.

E o Huck? Ele se colocou, não?
Ele se colocou um pouco mais. Mas o Huck por enquanto é uma celebridade. Ele está se transformando num líder político. Vai ter que se transformar se quiser ser presidente, vai ter de passar por essa etapa. Pode? Pode.

E o Doria?
Ele tem, digamos, virtudes diferentes. O Huck conhece o caldeirão. O João conhece o poder. É difícil saber o que vamos precisar mais daqui a um ano e meio, o que vai sensibilizar mais o povo. Será a capacidade de conhecer o Estado e trabalhar com as forças organizadas ou será a erupção de um sentimento coletivo? Eu não sei. Idealmente, todos deveriam se unir.

Parece difícil.
É difícil. E é indiscutível que o presidente tem força, a hipótese de reeleição precisa sempre ser considerada. Ele já se elegeu e a polarização rende para quem está polarizando. Ela é ruim para o país e para a democracia, mas rende voto.

Em 1995, o sr. enfrentou aquela greve dos petroleiros. Eles estão parados de novo. O sr. faz algum paralelo de pressão, vê a possibilidade de outras agitações sociais?
Essa é a principal questão do mundo, a crise das instituições. A explosão moderna se dá não só nas relações formais de classes, há curtos-circuitos em qualquer coisa.

Eu me lembro que encontrei por acaso o ministro Eliseu Padilha [Casa Civil de Michel Temer] durante a greve dos caminhoneiros de 2018 e ele não tinha com quem conversar. Não havia líder, partido, sindicato. Isso obriga a liderança de pessoas, que falem com a nação. Pode acontecer de novo? Pode.

Os protestos de 2013 tiraram algo dessa pressão, não?
Sim, mas mostraram a possibilidade. Não sei quando vai estourar de novo ou em que setor. Há um mal-estar, insegurança, basta ver o desemprego. As pessoas se sentem inseguras, precisam de liderança. Não quero ser injusto com quem exerce a liderança, é difícil.

A liderança também se impõe pela situação, como ocorreu quando Winston Churchill virou premiê britânico no começo da Segunda Guerra Mundial. O posto de líder no Brasil está vago?
Acho que sim. Há alguns candidatos.

O Brasil é um país muito diverso, é difícil você exercer influência. Estamos em um momento em que é preciso construir pontes. É mais difícil do que saltar no vazio. E estamos construindo muralhas.


Fernando Henrique Cardoso: Angústias e crença

É pena ver o governo mergulhado em crenças atrasadas que podem prejudicar nosso destino

Fim e começo de ano são épocas de balanço pessoal, familiar, das empresas e mesmo do País. Sem maiores pretensões, direi umas poucas palavras sobre o mais geral: o que me preocupa ao ver o Brasil como nação.

Primeiro, a maior angústia coletiva: levantar o gigante de seu berço. Tarefa que vem sendo feita ao longo de gerações. É inegável que houve avanços, alguns consideráveis. Bem ou mal, de uma sociedade agrário-exportadora, que usava escravos como mão de obra, o País passou a dispor de uma economia urbano-industrial, baseada no trabalho livre. Para isso não só as migrações internas, como a imigração foram fundamentais. Com elas se acentuou nossa diversidade cultural.

Hoje somos uma nação plural, na qual a contribuição inicial dos portugueses se robusteceu muito, não apenas por havermos conseguido passar da escravidão para o trabalho livre, mas também por termos incorporado os negros à nossa sociedade (embora ainda de forma parcial) e em nossa cultura. Incorporamos também um significativo conjunto de pessoas vindas da Europa latina e de outros segmentos populacionais do continente europeu, além de árabes e asiáticos, sobretudo japoneses. E desde o início da colonização houve miscigenação com as populações autóctones.

Dado o mosaico, será que conseguimos de verdade criar uma nação consciente de seu destino comum e acreditar que ele seja bom? Esse é o desafio que explica parte de nossas incertezas. Hoje somos muitos, mais de 210 milhões de pessoas habitam o Brasil. Nossa força, como também nossas dificuldades se ligam ao tamanho dessa população: somos muitos, diferentes e desiguais. Não me refiro à desigualdade provinda da diversidade, que nos enriquece, mas da que mantém na pobreza boa parte dos nossos conterrâneos. Esta é outra fonte de nossas angústias: como envolver num destino comum, de prosperidade e bem-estar, tanta gente social, cultural e economicamente desigual? Se há algo a admirar nos Estados Unidos é que, como nação, e apesar de existirem as mesmas, e até maiores, diversidades e confrontos entre seus habitantes, eles conseguiram criar e transmitir o sentimento de que “estão juntos”. A crença nos valores da pessoa humana, da democracia e da liberdade, que a Constituição americana expressa, serviu de cimento para que os Estados Unidos avançassem.

Precisamos de algo semelhante. Um dos caminhos é o da educação. Enquanto tive poder de decisão, pendi para ampliar a inclusão dos jovens na pré-escola e no ensino fundamental. Não porque descreia da importância do ensino secundário e do superior (nem poderia, dada minha vivência como professor), mas porque nos dias de hoje quem é bom de verdade avança, mesmo que sozinho, e se torna “global”. Porém o que conta para a formação nacional é a média, e não a ponta de excelência. E a média não avança se a base da pirâmide não for ampla e sólida.

Até que ponto se conseguiu avançar?

Em certos setores, bastante: nos segmentos produtivos nos quais fomos capazes de introduzir ciência e tecnologia. Assim aconteceu especialmente na agricultura, que desde o passado se apoiou na tecnologia. O Instituto Agronômico de Campinas exemplifica bem o que ocorreu com a produção cafeeira. Por trás de cada produto em que a agricultura avançou sempre houve o apoio de alguma instituição de fomento e pesquisa.

Mesmo na indústria houve esforços consistentes no desenvolvimento de uma indústria de base moderna (aço, petroquímica) e na produção de bens de transporte tão sofisticados quanto aviões. A indústria extrativista, que era pouco eficiente, se agigantou (basta ver o que aconteceu com o petróleo). E tudo isso requereu melhorias na infraestrutura.

No mundo contemporâneo, a tradução de ciência em tecnologia se acelerou. E o Brasil tem mostrado dificuldade de acompanhar essa aceleração, o que tende a aumentar a distância entre nós e os países mais avançados, limitando as nossas possibilidades de desenvolvimento.

É essa a grande preocupação quanto a nosso futuro. Pouco se fez em algumas das áreas que mais avançam na era contemporânea: robótica, inteligência artificial, machine learning, todo um conjunto de tecnologias características da chamada indústria 4.0.

É pena ver o governo atual mergulhado em crenças atrasadas que podem prejudicar no largo prazo o nosso destino como nação. Se, em vez de namorar o criacionismo e o “terra-planismo” – uma quase caricatura –, os que nos governam acreditassem mais na ciência, na diversidade e na liberdade; se, em vez de guerrear contra fantasmas (como o “globalismo” ou a penetração “gigantesca” do “marxismo cultural”), os que se ocupam da educação, da ciência e da tecnologia no Brasil voltassem sua vista para observar como se dá a competição entre as grandes potências e dedicassem mais atenção à base científico-tecnológica requerida para desenvolvimento de um país moderno, democrático e que preza a liberdade, estaríamos mais seguros de que nossas inquietações, com o tempo, encontrarão solução.

Espero que encontrem, pois os governos passam e as nações permanecem.

*Sociólogo, foi presidente da República


Fernando Henrique Cardoso: Cidadania e prosperidade

A rotina pesa mais que a vontade de mudar, de construir um futuro melhor. Voltemos a sonhar

Todo começo de ano, a mesma ladainha: feliz ano novo! É difícil escapar do lugar-comum e não pretendo dele me afastar (pelo menos neste início de janeiro). Tenho boas razões para manter certo otimismo, pois chego aos quase 90 anos – que cumprirei no próximo ano se os fados assim dispuserem – mantendo o bem-estar, o que supõe certa autonomia pessoal. E posso dizer, sem arrogância, que me sinto mais livre, mais à vontade, para dizer o que penso e o que me emociona. Já não serão amarras ideológicas ou partidárias que irão frear meus impulsos. Por certo, a família sempre há que tomar em consideração, assim como também os amigos. Quanto aos demais, importam, mas não tanto como a família ou os amigos.

Dito isso, justifico meu otimismo relativo. Nasci, em 1931, num Brasil mais pobre (nasci no Rio e lá vivi até os 9 anos). Era comum ver nas cidades pessoas usando tamancos, nos campos havia medo dos bichos-de-pé, o analfabetismo no País era avassalador, as classes médias altas compravam manteigas e queijos, bem como uvas e muitas outras gulodices mais, importados.

Automóveis usava quem os tinha: os ricos – e olhe lá – ou, então, os altos burocratas. O comum dos mortais usava o bonde. No Rio havia um reboque em cada bonde, chamado “taioba”, com passagem mais barata. Em São Paulo havia os “camarões”, mais fechados, e também havia o bonde duplo comum. Para ir a São Paulo (cidade para onde vim em 1940), ou ir de lá ao Rio, usavam-se mais frequentemente os trens, também com categorias de primeira e segunda classe. A grande renovação foi a chegada das “litorinas” (comboios menores e mais ágeis), cujo percurso – diurno – durava cerca de oito horas, enquanto os trens requeriam 12. Avião era para os valentes e milionários... De carro, quem podia, dividia a longa viagem de 12 a 14 horas ou mais e se alojava no meio do caminho num hotel ou em alguma fazenda de parente ou amigo. No verão chovia sem parar, tornando um lamaçal os trechos de terra do que veio a se chamar Via Dutra. E era via de pista única, com mão para ir, outra para voltar.

De lá para hoje as mudanças foram enormes. Tornamo-nos uma das dez maiores economias do mundo (embora na rabeira delas). A economia se industrializou e a de serviços cresceu. A agricultura e a mineração brilharam. O País se urbanizou: mais de dois terços da população vivem em cidades (ou em suas muitas periferias pobres). O analfabetismo não chega a abranger 7% da população maior de 15 anos e vem caindo há alguns anos. Universidades (pelo menos no nome) o País as tem às dezenas, e olha que as primeiras foram criadas nos anos 1930, embora houvesse antes escolas isoladas, mais antigas. E o Serviço Único de Saúde (SUS), por mais que seja criticado nas cenas em que as tevês mostram filas enormes, é uma realidade de dar inveja a muitos povos: o atendimento é universal e gratuito. Antes só eram acolhidos nos hospitais os membros de alguma categoria profissional ou os que batiam às portas das Santas Casas de Misericórdia. Naturalmente, os mais ricos pagavam e tinham atendimento melhor, mesmo no passado.

E temos democracia. Só se avalia o bem que representa respirar o ar da liberdade quando se perde tal possibilidade. Quem, como em meu caso, viu o País viver com ditaduras ou autoritarismos durante cerca de 25 anos, intermitentes, sabe que respirar a liberdade é algo essencial. O estudo e a prática profissional no exterior, bem como o exílio, me ensinaram a respeitar as instituições que provêm e garantem as liberdades individuais e os direitos, das pessoas e coletivos. Desejo, portanto, que continuemos a desfrutar a liberdade e a democracia.

Há mais, contudo. Escrevi que no passado a maioria das pessoas tinha piores condições de existência. Muitos ainda as têm. O modo de melhorar esta situação é conhecido: crescimento da economia e políticas públicas que levem a maior igualdade. Crescimento razoável e contínuo. Ficaram no passado as taxas de 7% e 8% ao ano de crescimento do PIB. Quanto mais amadurece uma economia, menores são as taxas médias de crescimento. Mas almejar crescer 4% ao ano durante uma década (e daí por diante) é possível e necessário. Mas não suficiente: também é preciso redistribuir a renda, oferecendo mais educação, saúde, emprego e o que seja necessário para a sobrevivência dos despossuídos (mesmo bolsas, para evitar tragédias). E também mudar as regras de tributação, não só para simplificá-las, mas para que elas pesem mais sobre quem mais pode e menos nos que mal conseguem consumir o necessário para sobreviver.

É neste ponto que o carro pega. O futuro de um país se joga com sonho e ação. Se olharmos para trás, veremos que o sonho se esvaeceu. Persiste, mas é menos nítido na imaginação das pessoas. A rotina pesa mais que a vontade de mudar, de construir um futuro melhor para todos. É o que desejo para 2020 e para daí em adiante: que voltemos a sonhar. Tenhamos mais grandeza, não no sentido da arrogância, mas da fé em nosso destino nacional. Precisamos de maior coesão e menos diferenças entre “nós” e “eles”, sejam quais forem os “nós” e os “eles”. Para tanto precisamos diminuir as desigualdades: elas começam no berço, mas se consolidam na pré-escola e no ensino fundamental. Daí por diante, nem falar...

E não devemos perder de vista que vivemos numa civilização científica-tecnológica. A batalha do futuro se dará no campo da educação e da cidadania. É preciso que estejamos “conectados”, sem perder os valores básicos: precisamos utilizar a razão e saber que ela, sem sentimento, se torna mecânica, autocrata. Desejo que 2020 aumente a consciência de que podemos melhorar. Para isso deveremos estar juntos. A melhoria de um, quando prejudica o outro, desfaz a base que precisamos prezar: nossa coesão como pessoas que vivem na mesma comunidade nacional.

Bom ano novo, com emprego, prosperidade, mais igualdade e cidadania.

* Sociólogo, foi presidente da República.


Fernando Henrique Cardoso: Resposta democrática às explosões sociais

Depredações precisam ter fim para que o processo constituinte no Chile possa avançar

Em conferência recentemente feita em Valparaíso, no Chile, Manuel Castells voltou a caracterizar as manifestações populares contemporâneas (como já o fizera em seu livro Rupturas) como “explosões”, mais do que como movimentos sociais. Parece que a irritação contra “los que mandam” se generaliza.

Castells, que há muito estuda as “sociedades em rede”, mostra que estas são fruto da comunicação interpessoal via internet. Os novos meios de comunicação tornam-se não só propiciadores da expansão de movimentos sociais, como também facilitadores de súbitas expressões coletivas de repúdio. Estas chegam a dar a sensação de serem capazes de abalar as estruturas de poder, o que às vezes de fato se verifica.

Desde que mostrou os efeitos do uso de telefones celulares para explicar como se deu a reação na Espanha contra as explicações inaceitáveis do governo sobre o caso famoso do atentado na estação de metrô madrilenha de Atocha, nosso autor escreveu vários trabalhos que confirmavam suas análises sobre as sociedades da “informação”.

Pois bem, novamente o caso do Chile chama a atenção: país exemplo de crescimento econômico e estabilidade institucional, de repente surge no noticiário mundial como mais um caso de revolta popular e reação policial violenta.

Convém repetir o dito por Castells na conferência de Valparaíso: o Chile é mais um caso de uma série de manifestações com dinâmicas semelhantes. Ou nos esquecemos do ano de 2013 no Brasil? Ou da primavera árabe? E por que não acrescentar o Occupy americano ou os coletes amarelos franceses? E em nossa América Latina, a vizinha Bolívia agora mesmo, ou pouco antes o Equador? E acaso o que tem ocorrido no Iraque nas últimas semanas será diferente?

Sim e não. Há algo em comum: mudanças tecnológicas e culturais que põem em xeque as estruturas de poder em todo o mundo. Nos países em que há eleições e liberdade, a reação popular, contraditoriamente, é maior e mais visível. Nos autoritários, o controle da informação e as restrições políticas, por ora, contêm os ímpetos populares. A diferença se nota mesmo onde a liberdade não é plena: basta comparar Hong Kong com a China continental.

O certo é que as explosões sociais se tornaram quase o “novo normal”, quando antes eram um ponto fora da curva. Nos anos 60 e 70 surgiram ondas de protesto social. A origem do mal-estar estava nas universidades, mas ele só se irradiava quando se fundia com as reivindicações tradicionais “de classe”. Aí, sim, parecia que o sistema pegaria fogo.

Eu vi de perto o que aconteceu em 1968 em Nanterre – onde Castells era jovem professor assistente. O movimento estudantil ultrapassou os limites da universidade, mas só se tornou um fato político nacional quando ganhou a adesão dos sindicatos, confluência que levou a uma greve geral de grandes proporções. No conjunto, o movimento apareceu como uma revolução cultural, ainda sem símbolos claros para se expressar.

As explosões contemporâneas não se orientam por grandes projetos utópicos. No Chile, o protesto se passa num país que cresceu economicamente e ampliou muito o acesso à educação superior. Não é decorrência do empobrecimento, mas da frustração de expectativas que se foram elevando ao longo de 30 anos de crescimento acelerado, ainda que mais lento no período mais recente.

A onda de protestos no Chile mostra que uma economia de mercado não dispensa, e sim requer, mecanismos de promoção e proteção social que só o Estado é capaz de manter. Prova também que, se já não há lugar para as utopias igualitaristas, a igualdade de direitos continua a ser uma aspiração forte das sociedades democráticas.

O presidente Piñera fez o que se espera de um chefe de Estado em momentos de crise: apelou ao conjunto dos partidos políticos em defesa da democracia. O efeito foi positivo, a maioria deles se engajou num acordo para responder aos protestos.

As forças políticas, da direita ao centro-esquerda, convergiram em torno da proposta que simboliza o desejo de mudança expresso nas ruas: uma nova Constituição. A atual ainda carrega parte das suas marcas de origem, na ditadura do general Pinochet, embora tenha sido reformada em vários pontos ao longo dos 30 anos de democracia.

Com exceção de partidos menores de esquerda, as lideranças políticas juntaram-se em torno de uma saída democrática. À diferença do caso brasileiro, em que coube ao Congresso essa tarefa, no Chile a nova Constituição será obra de uma assembleia constituinte exclusivamente eleita para essa finalidade.

Em abril o povo decidirá em plebiscito se a assembleia constituinte terá representantes dos partidos políticos (no máximo, metade) ou será integralmente formada por constituintes eleitos por outras formas de representação da sociedade. A nova Constituição será submetida a referendo popular.

Que o presidente eleito e os partidos tenham construído em poucos dias um acordo pelo qual cedem poder em favor de um processo deliberativo que produzirá a nova Constituição do país mostra a consciência das lideranças políticas chilenas sobre a necessidade de assumir riscos para restabelecer a legitimidade das instituições políticas e da autoridade pública. Sob pressão, agiram com coragem: ampliaram significativamente os canais de participação política da sociedade e assumiram o compromisso, governo e oposição, de apurar as violações de direitos humanos na repressão aos protestos.

Pesa agora sobre as forças sociais e políticas que não aderiram ao acordo a responsabilidade de cooperar para que a normalidade se restabeleça nas ruas. Protesto político é legítimo. Depredações ao patrimônio público e privado são crime. Estas precisam ter fim para que o processo constituinte possa avançar sem sobressaltos.

Só o caminho da política democrática levará o Chile a bom porto. Confio que o Chile saberá consolidar-se como uma comunidade nacional em que a cidadania tem vez e voz na definição do presente e na construção do futuro.

*Sociólogo, foi presidente da República