Ferreira Gullar

RPD || Henrique Brandão: Uma noite de autógrafo sem autor e livro

Jornalista, crítico de arte, ensaísta, artista plástico, cronista, dramaturgo, autor de Poema Sujo, sua obra-prima. Assim era Ferreira Gullar que, se vivo fosse, teria completado 90 anos no último mês de setembro

Quem é quem na foto - Rio de Janeiro, livraria Rubayat, 1976.  De pé, da esquerda para a direita: Cacá Diegues, retrato de Ferreira Gullar, Zuenir Ventura, Tereza Aragão (mulher de Gullar), Oswaldo Loureiro, Leon Hirszman, Bete Mendes, Mary Ventura, Arnaldo Jabor, Neném Werneck de Castro, Moacir Werneck de Castro, Mario Cunha, Helena Furtado, João Saldanha, Teresa Cesário Alvim, Neusa Amaral. Sentados: Mario da Silva Brito, Mario Lago, Sergio Augusto, Antonio Pitanga, Ziraldo, Darwin Brandão e Guguta Brandão

No mês de setembro deste ano, o poeta Ferreira Gullar completaria 90 anos. Não conseguiu receber as devidas homenagens. Faleceu em dezembro de 2016, dois meses depois de completar 86 anos.

José Ribamar Ferreira, seu nome de batismo, era um homem de hábitos simples. Sua figura, no entanto, chamava atenção. Magro, com a cabeleira escorrida ao longo do rosto, o nariz adunco e as mãos expressivas – que gesticulavam sem parar enquanto falava – não passava despercebido onde quer que estivesse.

Gullar era muitos. Além de poeta, foi jornalista, crítico de arte, ensaísta, artista plástico, cronista, dramaturgo.

Participou ativamente do Concretismo e do Neoconcretismo, movimentos importantes no cenário da cultura brasileira, nos anos 1950.

Gullar entrou tarde na política. Já rompido com o Neoconcretismo, participava do Centro Popular de Cultura (CPC), ligado à União Nacional dos Estudantes (UNE), quando ocorreu o golpe de 1964. “Eu me filiei ao PCB no dia do golpe de 64. Eu queria participar da resistência a um regime que se impunha ao país pela força”. Após o fechamento da UNE, Gullar e seus companheiros do CPC fundaram o grupo Opinião, que teve grande repercussão com suas peças e shows musicais.

Após o AI-5, em 1968, o regime militar apertou o cerco. Sobrou para todo mundo que se opunha à ditadura, até mesmo para os comunistas ligados ao PCB, que não defendiam a luta armada. A essa altura, Gullar fazia parte do Comitê Cultural do PCB.

Quem avisou que a barra tinha pesado foi Leandro Konder, também membro do Comitê Cultural, com a notícia de que um companheiro havia caído e, sob tortura, entregara todo mundo. Gullar deveria se esconder, pois estava na mira da repressão.

Depois de um tempo escondido, não restou alternativa a não ser o exilio. Clandestino, Gullar seguiu para a União Soviética e, de lá, para o Chile; depois para o Peru e, por fim, para a Argentina. Triste sina: a cada país que chegava, as condições políticas, passado algum tempo, pioravam. A direita ganhava corpo na América Latina.

A Argentina era então presidida por Isabelita Perón, que, pressionada pelos Montoneros à esquerda, preferiu se aliar ao peronismo de direita. O clima se radicalizava. Com o passaporte cancelado pelo consulado brasileiro e com todo o Cone Sul sob ditaduras – além do grave quadro de esquizofrenia de seu filho no Brasil –, a angústia e o desespero tomaram conta do poeta. Gullar achou que era hora de, segundo suas palavras, “expressar num poema tudo o que ainda necessitava expressar, antes que fosse tarde demais – o poema final”.

Assim nasceu o Poema Sujo, sua obra-prima. Gullar trabalhou nele de forma visceral, de março a setembro de 1975. “Nada me fez interromper o poema. Estava entregue a ele todas as horas do dia e da noite”, registrou em Rabo de Foguete, seu livro de memórias do exílio.

Na época, Vinícius de Moraes fazia muito sucesso em Buenos Aires. Em uma das ocasiões em que esteve por lá, na casa de Augusto Boal, também exilado, Gullar leu o poema para Vinícius. “Esse poema é uma coisa muito séria. Quero levar para o Brasil e mostrar para o pessoal. Não há tempo a perder”, disse o poetinha. E assim nasceu a famosa fita, que veio na bagagem de Vinícius e, no Brasil, foi reproduzida entre os amigos.

As reuniões para ouvir o Poema Sujo se multiplicaram. O poema circulava em audiências domésticas, enquanto seu autor permanecia na Argentina, onde a situação política se deteriorava.

Foi então que um grupo de amigos resolveu fazer uma noite de lançamento do poema, sem a presença do autor e sem livro. Seria um ato político, a fim de ajudar na operação de trazer Gullar de volta ao Brasil. Em um mundo distante das redes sociais, a mobilização era feita por telefone ou no boca a boca, nas mesas de bar. Diante das circunstâncias, acabou virando um feito relevante. Várias pessoas compareceram para demonstrar solidariedade e manifestar repúdio ao regime militar.

Dessa noite de autógrafos, sem livro e sem autor, restou a fotografia feita ao fim do evento, que dá a dimensão daquele momento histórico. A trajetória política dos que aparecem na imagem ganhou rumos diferentes, após a derrocada da ditadura. Muitos, inclusive, já morreram. Mas, naquele momento, importava marcar posição contra o regime militar. De um lado, armas e repressão; de outro, um livro de poesia que ainda não existia e cujo poeta estava exilado.

A mensagem não podia ser mais clara.
*Jornalista e escritor


FAP doa mais de 5 mil exemplares na 33ª Feira do Livro de Brasília

Participação da Fundação foi destaque do evento, com obras e palestras com grande participação do público

Germano Martiniano

(Brasília, 27/06/2017) - Na última semana, 16 a 25 de junho, a Fundação Astrojildo Pereira (FAP) participou da 33ª Feira do Livro de Brasília. Na ocasião a FAP montou seu próprio estande, onde doou livros produzidos pela Fundação, como os do historiador Alberto Aggio, que esteve no local para sessão de autógrafos de Um Lugar no Mundo – Estudos de história política latino-americana. No total, 5.010 livros foram doados, o que ratifica o sucesso do estande. Cristovam Buarque, senador e presidente da Fundação, também participou do evento ao palestrar para o público.

De acordo com a assessora de imprensa da FAP, Ana Paula Almeida Miranda e Kildare Vieira de Souza, auxiliar administrativo, a reação do público presente na feira em relação ao estande da Fundação foi muito positiva. “As pessoas ficaram surpresas por poderem apreciar obras tão importantes e significativas sem ter que pagar por elas", informou Ana Paula. "Parabenizaram a iniciativa da FAP, que estimula a leitura e, ao mesmo tempo, promove a instituição de maneira inteligente, fazendo melhor proveito do dinheiro público”, completou.

Quem também elogiou a participação da FAP foi a coordenadora da 33ª Feira do Livro de Brasília, Cleide Soares. “A participação da FAP foi muito positivia. Os visitantes ressaltaram a importância dos livros sobre política e temas históricos distribuídos pela Fundação em entrevistas e em pesquisas realizadas na própria feira", informou.  De acordo com Cleide Soares, a palestra do Cristovam Buarque foi muito concorrida e seguiu com público por quase uma hora depois de seu término, com autógrafos e bate-papos. "O livro da FAP sobre Ferreira Gullar fortaleceu o poeta tropicalista, que foi um dos homenageados da feira”, acentuou a coordenadora.

Com a temática “Inclusão e Cidadania”, a 33ª Feira do livro de Brasília buscou misturar todas as culturas em um único espaço, por isso foram convidados diversos artistas, músicos, escritores, poetas, entre outras personalidades de várias partes do Brasil e até do mundo. Dentre os principais convidados estavam o poeta Antônio Cicero, o antropólogo baiano Antônio Risério e o premiado escritor Cristovão Tezza. O evento também homenageou o cantor Belchior e, como foi dito, o poeta Ferreira Gullar, que faleceram há pouco tempo.

 


Fernando Gabeira: O ano da encruzilhada

E se nunca pudermos sair de 2016? Esta pergunta me impressionou, embora fosse apenas uma piada. O ano foi tão intenso que parece um longo pesadelo. Talvez tenha sido intenso para todos, mas aqui no Brasil, com a profunda crise econômica e um toque de realismo fantástico, 2016 foi mais assustador. Às vezes penso que toda essa intensidade não se deve apenas ao ano que termina. Num mundo conectado, muitos de nós consultam a internet de 15 em 15 minutos e ficam desapontados quando não acontece nada.

Nossa demanda por fatos novos parece ter aumentado. O Brasil tem sido generoso, embora os fatos sejam quase sempre negativos e não nos levem, necessariamente, a lugar nenhum. Ferreira Gullar dizia que a vida não basta, daí a importância da arte. Goethe, por sua vez, dizia que a arte é um esforço dos vivos para criar um sistema de ilusões que nos protege da realidade cruel. Dentro de um universo mais amplo, a política também deveria ser um sistema de ilusões que nos ampara da brutalidade do real. Carmem Lúcia, de uma certa maneira, expressou isto quando disse ou democracia ou guerra, referindo-se a uma possível falência do estado, o que nos jogaria numa batalha de todos contra todos.

Navegamos em águas tempestuosas. O processo político que era destinado a melhorar nossa convivência tornou-se, ele mesmo, uma expressão da realidade mais tosca e brutal. Renan Calheiros foi para a cama com sua amante e até hoje estamos tentando tirá-lo do cargo, não por suas aventuras amorosas, mas por um enlace mais perigoso entre empreiteiros e políticos. Ele não cai por uma paixão proibida, mas sim porque defende o vínculo com os financiadores das campanhas, riqueza pessoal e até dos seus momentos românticos. Renan é um general da luta contra a Lava-Jato, embora Lula reclame esse posto e ninguém lhe dê muita atenção no momento. O papel histórico de Renan foi coordenar uma reação às investigações, usando como pretexto a lei de abuso de autoridade. Mesmo se um general cair, e nada mais sustenta Renan exceto gente correndo da polícia, a batalha final entre um sistema de corrupção estabelecido e as forças que querem destruí-lo ainda não chegará ao final.

E é essa batalha, com a nitidez às vezes perturbada pelas peripécias individuais, que está em jogo. Na verdade, ela está, nesse momento, apontando para uma vitória popular. Quando digo vitória, digo apenas tomada de consciência. O sistema de corrupção que a Lava-Jato enfrenta, com apoio da sociedade, é muito antigo e poderoso. E essa batalha vai lançar luz na antiguidade e no poder da corrupção no Brasil. O próprio STF é um órgão do velho Brasil, organizado burocraticamente para proteger os políticos envolvidos. Jornalistas que combateram o governo petista agora hesitam diante da manifestação popular. “Vocês estão fortalecendo o PT”, dizem eles. Como se a ascensão de um presidente do PT, um partido arrasado nas urnas, conseguisse deter um projeto de recuperação econômica, já votado pela maioria. Se 60 senadores que votaram no primeiro turno não se impõem sobre Jorge Viana é porque são uns bundões ineficazes e não mereciam estar onde estão. Infelizmente, a coisa é mais complicada. Usaram de tudo para combater a Lava-Jato. Agora dissociam a luta contra a corrupção da luta para soerguer a economia. E dizem que uma prejudica a outra. Coisas do Planalto. Não importa muito se Renan fica alguns dias, se Jorge Viana vai enfrentar os senadores e a realidade nacional. O que importa mesmo é o fato de que a sociedade está atenta, acompanha cada movimento, e não se deixa mais enganar com facilidade.

Um personagem do realismo fantástico, Roberto Requião, disse que os manifestantes deveriam comer alfafa. Os que não gostam de ver povo na rua argumentam sempre com mais cuidado. Requião foi ao ponto, pisando sem a elegância de um manga larga ou um quarto de milha. As manifestações incomodam. Revelam uma sociedade atenta, registrando cada detalhe das covardes traições dos seus representantes. Ela teve força para derrubar uma presidente. Claro que precisará de uma força maior para derrubar todo o sistema de corrupção que move a política brasileira. Um sistema muito forte. Um STF encardido, incapaz de se sintonizar com o Brasil moderno; um tipo de imprensa que atribui o desemprego e a crise econômica à Lava-Jato e não aos equívocos e roubalheira do governo deposto; e, finalmente, os guardiões de direitos humanos dos empreiteiros e senadores, incapazes de se comover com a vida mesmo e as pessoas que são esmagadas pelas autoridades.

Está tudo ficando cristalino e esta é uma das grandes qualidades de crises profundas. Se o Congresso quiser marchar contra a vontade popular, que marche. Se o Supremo continuar essa enganação para proteger políticos, que continue. Importante é a sociedade compreender isto com clareza. E convenhamos: se quiser tolerar tudo, que tolere. A chance de dar uma virada e construir instituições democráticas está ao alcance das mãos. Com um décimo da audácia dos bandidos, as pessoas bem-intencionadas resolvem essa parada.


Fonte: http://gabeira.com.br/o-ano-da-encruzilhada/


J. R. Guedes de Oliveira: Honorável poeta Ferreira Gullar

Em princípio de outubro de 2015, no 13º. SALIMP – Salão do Livro de Imperatriz, realizei uma palestra sobre a figura de Ferreira Gullar, enaltecendo os seus valores artísticos e contribuindo com o significativo evento, já que o poeta era filho do Maranhão.

Lembrei a todos da importância desta figura, que leva nome em Imperatriz, no “Teatro Ferreira Gullar”, justa homenagem ao intelectual consagrado, da Academia Brasileira de Letras.

Apresentei, em data show, uma retrospectiva de sua vida, suas andanças, seu exílio, sua enorme produção literária e o seu humanismo irradiante. Uma plateia seleta ouviu-me a recitar seus poemas, entrecortados de sua extensa biografia.

Hoje, dia 4, domingo, logo pela manhã, abro a internet e leio os artigos do “blog” do Gilvan Cavalcanti de Mello – leitura diária, palpitante, importante e sempre atualizada. Fico a apreciar, demoradamente, o artigo do poeta: “Solidariedade”. Entre outras coisas que nos dizem respeito e que cala profundamente, o seu espírito construtivo e de visão universal:

“A sociedade não necessita ser irretorquivelmente igualitária, mesmo porque as pessoas não são iguais. Um perna de pau não deve ganhar o mesmo que o Neymar, nem o Bill Gates o mesmo que ganha um chofer de táxi. E por falar nisso, para que alguém necessita ter a sua disposição milhões e milhões de dólares? Para jantar à troca fora? Se ele investir esse dinheiro numa empresa, criando bem e dando emprego às pessoas, tudo bem. Mas ninguém necessita ter dez automóveis de luxo, vinte casas de campo nem dezenas de amantes. Tais fortunas devem ser divididas com outras classes sociais, investidas na formação cultural e profissional das pessoas menos favorecidas, usadas para subvencionar hospitais e instituições para anteder pessoas idosas e carentes.  Sucede que só avançaremos nesta direção se pusermos de lado os preconceitos esquerdistas e direitistas, que fomentam o ódio entre as pessoas.  Sabem por que Bill Gates deixou a presidência de sua empresa capitalista para dirigir a entidade beneficente que criou? Porque isso o faz mais feliz, dá sentido à sua vida”.

Pois é. Foi assim que Ferreira Gullar terminou o seu estrondoso artigo, que merece toda a nossa admiração e nosso reconhecimento de seu pensamento e da sua ação.

Lido tudo, anotado e refletido, abro as manchetes e, meu espanto total, somado à tragédia chocante e triste  dos chapecoenses: falece, hoje, domingo, Ferreira Gullar, aos 86 anos de idade. Perde o Brasil também um poeta que fez história, que dignificou tudo o quanto escreveu.

Louvo a este poeta de envergadura; louvo a sua cadência de homem das letras; louvo o homem sem medo; louvo, mais ainda, o seu grande brilho que ficará entre nós permanentemente.

Aqui, o seu poema “Traduzir-te”, em homenagem póstuma:

TRADUZIR-SE

Uma parte de mim
é todo mundo;
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.
Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.
Uma parte de mim
pesa, pondera;
outra parte
delira.
Uma parte de mim
almoça e janta;
outra parte
se espanta.
Uma parte de mim
é permanente;
outra parte
se sabe de repente.
Uma parte de mim
é só vertigem;
outra parte,
linguagem.
Traduzir-se uma parte
na outra parte
— que é uma questão
de vida ou morte —
será arte?

palestra-ferreira-gullar
Palco da minha palestra sobre Ferreira Gullar – Imperatriz-MA, outubro/2015.

Ferreira Gullar: A luta poética

Documentário - Ferreira Gullar, nasceu em 1930, em São Luís, Maranhão. Criado na periferia operária da cidade, Gullar trabalhou como radialista, até vir para o Rio de Janeiro, em 1951. Mas já trazia na bagagem o esboço do livro A luta corporal. Jornalista, dramaturgo, crítico de arte, Ferreira Gullar foi um militante das causas sociais e políticas. Faleceu em 04 de dezembro de 2016, aos 86 anos, no Rio de Janeiro.


Marcus Vinícius: O Homem ainda está na cidade

Ferreira Gullar, no grandioso Poema Sujo, pensando sobre as várias velocidades e tempos pelos quais as existências se desenrolam afirmou que “variados são os modos como uma coisa está em outra.”. Hoje, Gullar não está mais na cidade, não caminha mais pelas quitandas, nem observa as bananas que apodrecem como a própria vida. Todavia, Gullar permanece em nós, uma voz firme como um relâmpago capaz de gerar os espantos necessários à criação.

No escuro desses tempos difíceis, a voz de Gullar continua ressoando como um alerta contra as simplificações e os dogmatismos. Sua última crônica, publicada hoje na Folha de São Paulo o demonstra, revelando o homem que aprendeu, a partir dos traumas e das derrotas, a falência da revolução e do socialismo, mas que manteve, inabalável, a perspectiva da construção de uma sociedade mais igualitária e justa.

Sua trajetória, a qual acompanhei durante alguns anos como objeto de pesquisa, acompanha as grandes transformações e angústias do século XX e início do XXI. Em todos os momentos, Gullar esteve disposto a se lançar ao debate público, seja com sua poesia ou suas intervenções políticas.

Nos anos 1950, recém chegado ao Rio, se engaja nas vanguardas artísticas, fazendo parte dos movimentos concretista e neoconcretista. Na breve e profunda mudança para Brasília no início dos anos 1960 percebe que as vanguardas o levaram ao silêncio e no contato com os trabalhadores candangos preenche o silêncio com a política. Assume a presidência do CPC e, no dia do golpe de 1964, filia-se ao Partidão.

Sempre contrário a via armada para a derrubada do regime militar, Gullar se contrapôs aos militares no terreno em que eram mais fracos, a política. Apesar disso, terminou clandestino e exilado no início dos anos 1970.

No exílio, experimenta o autoritarismo dos comunistas da URSS e dos militares chilenos e argentinos. Na busca pela sobrevivência, imerso em sua própria trajetória, compõe em Buenos Aires sua maior obra, o Poema Sujo. O poema emociona a todos e chega ao Brasil como uma ausência, em uma fita cassete com a voz do poeta, que retorna somente alguns anos mais tarde.

No contato com o autoritarismo e a derrota de Allende, Gullar percebe os problemas da esquerda revolucionária e afirma não estar mais disposto a conciliar com os radicalismos tolos. Nos anos 1980, em um poema em homenagem aos 60 anos do PCB, acerta as contas com a cultura política pecebista, mantendo em si aquilo de mais essencial, a vontade de justiça e a necessidade da política.

Mesmo fora da política partidária, Gullar nunca abandona a política. Prossegue intervindo no debate político nacional, apontando desde o início os problemas do petismo e mantendo-se firma na defesa da democracia e do espírito republicano, pensando a necessidade da transformações da sociedade brasileira a partir de uma chave reformista.

Assim, o que fica em nós de Gullar, além, é claro, da sensibilidade incrível de sua poesia, que certamente será ressaltada por muitos, a figura de um homem que sempre combateu pela igualdade, por aquela vida banal que descreveu milimetricamente em seus versos.

Em muitos poemas, Gullar abordou a morte e suas relações com o tempo dos vivos. Escrevendo sobre a morte de Clarice Lispector, Gullar observou as pedras e pensou que existiam independentes e exteriores à morte da amiga. Todavia, feitos de carne, continuamos a existir, numa tarde de dezembro, carregando os maxilares de nossos mortos, como naquela poema de Drummond que Gullar sempre citava. O corpo de José Ribamar Ferreira morreu, Ferreira Gullar certamente está presente.

* Marcus Vinícius Furtado da Silva Oliveira é Historiador, mestre em História na Unesp/Franca e doutorando do Programa de Pós-Graduação em História e Cultura


Poeta Ferreira Gullar morre de pneumonia aos 86 anos no Rio

O escritor, poeta e teatrólogo Ferreira Gullar morreu na manhã deste domingo, 4, no Rio de Janeiro, aos 86 anos. Gullar estava internado no Hospital Copa D'Or, na Zona Sul do Rio com um quadro de insuficiência respiratória e pneumonia, apontada como a causa da morte. Ainda não há informações sobre o velório.

Um dos mais importantes literatos da história da literatura brasileira, Ferreira Gullar passeou por vários campos da expressão poética, literária e crítica, quase sempre com um forte tom político. Avesso a rotulações binárias, usualmente se colocava no sentido contrário ao do poder em questão.

Seu primeiro livro, depois renegeado pelo autor, foi Um Pouco Acima do Chão, em uma edição de autor em 1949. Cinco anos depois, veio A Luta Corporal, este já com os primeiros esboços da poesia esteticamente ambiciosa em que ele trabalharia incansavelmente até Em Alguma Parte Alguma e Bananas Podres, dois de seus livros mais recentes.

Ele estava com os irmãos Augusto e Haroldo de Campos na Exposição Nacional de Arte Concreta, em 1956, considerada o marco inicial do movimento concretista, expressão poética fundamental do século 20. Porém a contribuição foi breve: em fevereiro do ano seguinte, Gullar publicou um artigo no Suplemento Dominical do Jornal do Brasil questionando as teses do movimento, e o rompimento viria em seguida.

A disputa entre "concretos" e "neoconcretos" sempre ocupou um campo mais ou menos nebuloso entre a intelectualidade, mas os ecos, que influenciaram muitas das expressões artísticas nacionais desde os anos 1960, chegaram até 2015, quando Augusto de Campos e Ferreira Gullar trocaram cartas agressivas pelo jornal Folha de S. Paulo.

Em 1976, ele lançou seu trabalho mais célebre, o Poema Sujo -- cem páginas de poesia na sua mais alta expressividade política. Símbolo de resistência à ditadura, o poema chegou aos brasileiros primeiro por uma fita que pertencia a Vinicius de Moraes, trazida de Buenos Aires, onde Gullar estava exilado.

Colecionador de prêmios, Gullar venceu o Machado de Assis da Biblioteca Nacional em 2005, e o Camões, o mais importante da língua portuguesa do mundo, em 2010. Era membro da Academia Brasileira de Letras (ABL) desde 2014 -- depois de anos dizendo que esta honraria ele não aceitaria.

Ele nasceu em São Luís (MA), em 10 de setembro de 1930, como José Ribamar Ferreira. Gullar deixa a esposa, dois filhos e oito netos.


Fonte: cultura.estadao.com.br/noticias/geral,morre-ferreira-gullar-aos-86-anos,10000092453


Ferreira Gullar: Fim do comunismo gerou vazio ideológico que precisa ser preenchido

O "Manifesto Comunista", escrito por Karl Marx e Friedrich Engels em 1848, deu início a uma visão crítica do regime capitalista. Assim, mudaria a história humana, para o bem e para o mal, durante o último século e meio.

Para o bem porque pôs à mostra a exploração do trabalho humano, posta em prática pelo capitalismo; para o mal, porque, em nome de uma suposta igualdade, criou um regime autoritário e às vezes cruel.

É verdade, porém, que o regime soviético, por excluir de si a exploração capitalista, acendeu no espírito dos que a repeliam uma utopia que, ali, conforme acreditavam, começava a realizar-se.

A morte de Lênin e a ascensão de Stálin tornaram o regime soviético mais sectário e repressivo, levando à divisão da intelectualidade ocidental de esquerda, quando uma parte dela se tornou trotskista.

De qualquer modo, a imagem da URSS foi favorecida pelo surgimento do nazismo e a deflagração da Segunda Guerra Mundial. Esse fato obrigou uma aliança dos países capitalistas com o regime stalinista contra a Alemanha de Adolf Hitler. Terminada a guerra, derrotado o nazismo, o conflito ideológico ressurgiu designado como Guerra Fria.

Após o desgaste provocado pelo stalinismo, o marxismo, no campo ideológico, ganhou novo fôlego com a Revolução Cubana, em 1959.

Em vários países latino-americanos, o sonho comunista renasceu com o surgimento de grupos guerrilheiros. A presença de um país comunista a poucos quilômetros do território norte-americano acirrou o conflito ideológico entre as duas potências rivais. Os arsenais nucleares, porém, de um e do outro lado, impediram o conflito armado.

Não obstante, os norte-americanos, temendo o surgimento de outras Cubas na América Latina, acionaram seus recursos políticos e militares para instaurar ditaduras anticomunistas nos países onde o perigo era maior.

Os guerrilheiros foram praticamente todos eliminados pela repressão militar, o que, se por um lado deteve a luta armada, por outro atraiu a solidariedade de grande parte dos latino-americanos, ressentidos com a truculência dos regimes militares. Em função disso, surgiram partidos que, embora atuando na legalidade, continuavam a alimentar o sonho da revolução anti-imperialista.

Sucedeu que, naquele período, o regime soviético –principal potência militar e ideológica do sistema–, começou a dar sinais de mudanças que culminariam em seu colapso.

Esse fato, que teve importância decisiva no processo político-ideológico de quase todos os países, ganha, na América Latina, uma conotação particular: o projeto revolucionário anti-imperialista, que ali surgira, não tinha mais condições de exibir, como objetivo, um regime que fracassara.

É então que nasce o socialismo bolivariano, inventado por Hugo Chávez e que, na verdade, é um tipo novo de populismo e de que seriam outros exemplos os governos dos Kirchner na Argentina, de Evo Morales, na Bolívia, de Rafael Correa, no Equador, e de Luiz Inácio Lula da Silva, no Brasil.

Esse populismo chegou a despertar o entusiasmo de setores intelectuais e estudantis, que não aceitam admitir que o sonho da sociedade justa tenha se extinguido. É certo que, em cada um desses países, o populismo adquiriu caráter específico, ainda que, em todos eles, estivessem presentes argumentos ideológicos da exploração dos pobres pelos ricos e da identificação do imperialismo norte-americano como o inimigo principal a ser combatido.

Mas essa pregação político-ideológica não se sustentou por muito tempo –a não ser em setores restritos da população. Do mesmo modo que os próprios governos populistas, que entraram e crise e se acabaram ou estão a caminho de finarem.

É verdade que esse populismo não tinha a riqueza ideológica do marxismo que, sem dúvida, foi a utopia dominante do século 20. Por isso mesmo, o fim do regime comunista provocou um vazio ideológico, que necessita ser preenchido, uma vez que a sociedade humana, sem utopia, torna-se inviável.


Ferreira Gullar: Não basta ter razão

Não tem cabimento demonizar o populismo, ainda que ele contenha inevitavelmente contradições que podem levá-lo ao impasse. É inegável, porém, que ele parte da constatação de que a sociedade é, sem dúvida alguma, desigual.

Há uma minoria rica, uma classe média de alguns recursos e –particularmente em países com o nosso– uma maioria que vive ao nível da necessidade, mal tendo como sustentar e educar os filhos.

Eleger como objetivo de governo a melhoria das condições de vida dos mais pobres é indiscutivelmente um propósito louvável. Mas não basta ter razão para estar certo.

O problema é que esse populismo é ideológico e, por isso, faz do propósito de ajuda aos mais pobres um projeto de governo. Ao contar com o apoio dessa maioria carente, transforma-se em um modo de permanecer indefinidamente no poder.

Hugo Chávez, por exemplo, chegou a fazer aprovar uma lei que permitiria que ele fosse reeleito indefinidamente pelo resto da vida. Para enganar o povo, inventou um outro que daria à maioria o direito de depor o governante se ele traísse o interesse popular.

Se digo que o populismo latino-americano é ideológico, é que ele surgiu em decorrência da revolução cubana – que provocou um surto de guerrilhas no continente– como alternativa, após o fim dos regimes comunistas em quase todo o mundo.

De qualquer modo, o sonho da revolução proletária se desfez. O populismo troca a luta de operários contra a burguesia pela luta de pobres contra ricos. Assim, se o populismo não se assume comunista, procura em compensação se apresentar como anticapitalista.

Como não nasce de uma revolução que elimina da sociedade a classe capitalista, vale-se do governo para usar os recursos públicos na tarefa de dar casa, comida, escola e outros confortos até então fora de seu alcance, para assim, ao mesmo tempo, conquistar os votos dessa maioria da população.

Mas, para fazer isso, tem que contar com o apoio do capitalismo, como ocorreu na Argentina, na Venezuela e no Brasil.

Essa aliança inevitável compromete, de certo modo, o caráter anticapitalista que o populismo necessita ostentar. Para superar a contradição, é levado a adotar medidas e atitudes que aparentem sua hostilidade ao capitalismo, como dificultar as relações políticas com os norte-americanos e adotar exigências nos contratos com grandes empresas. Isso termina por reduzir –como no caso do Brasil– o comércio exterior e, internamente, leva ao fracasso projetos econômicos que necessitam de capital privado.

Somado isso às despesas com os programas sociais que beneficiam milhões de pessoas, é inevitável que a crise econômica termine por se instalar no país.

Para que se veja com clareza a diferença entre um governo não populista e um governo populista, tomo como exemplo os programas sociais do governo Fernando Henrique Cardoso e o do governo Lula.

FHC criou os programas Bolsa Escola, Bolsa Alimentação e Luz no Campo, que Lula criticou, acusando o presidente do PSDB de estar dando esmola aos trabalhadores e a suas famílias.

Quando assumiu o governo, porém, adotou os mesmos programas, trocando os nomes para Bolsa Família e Luz para Todos, aumentando em vários milhões o número dos beneficiados.

O resultado foi que a fusão dos programas e esse aumento de milhões de pessoas tornaram quase impossível a sua fiscalização, o que induziu muita gente a largar seu emprego para viver da ajuda do governo. Há mesmo exemplo de pequenos municípios em que quase todos vivem do Bolsa Família.

É que o populismo, na melhor das intenções, parte de que o problema da desigualdade social se resolve com o dispêndio do dinheiro público. Trata-se de uma ilusão. Não há mágica capaz de resolver problema tão complexo, do dia para a noite, às custas do Tesouro Nacional.

A solução efetiva desse problema exige que os mais pobres tenham condições efetivas de criarem seus filhos, educá-los e dar-lhes qualificação profissional. E temos que tomar isso a peito, sem demagogia. (Folha de S. Paulo – 09/10/2016)


Fonte: pps.org.br


Lançamento: Em um rabo de foguete: Trauma e cultura política em Ferreira Gullar

Marcus Vinícius de Oliveira dá os primeiros passos em sua promissora trajetória de historiador com o livro Em um rabo de foguete: Trauma e cultura política em Ferreira Gullar. Trata-se de uma versão revisada de seu mestrado concluído na Unesp em 2015. Em linhas muito bem escritas, o autor nos traz a trajetória de Ferreira Gullar desde seu engajamento intelectual junto ao Partido Comunista Brasileiro (PCB), na década de 1960, até os dias mais atuais.

Marcos Sorrilha Pinheiro

Historiador e professor da Unesp, Campus Franca


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Ferreira Gullar e as culturas políticas das esquerdas

Pesquisa é desenvolvida na Unesp de Franca.

Dia 30 de setembro Marcus Vinicius Furtado da Silva Oliveira apresenta na Unesp de Franca a dissertação de mestrado "Um rabo de foguete: Ferreira Gullar e a crítica às  culturas políticas das esquerdas (1970-1985)".

A pesquisa objetiva compreender em que medida as experiências com o exílio e os autoritarismos das ditaduras latino americanas se configuram enquanto eventos traumáticos capazes de alterar profundamente as concepções de mundo do poeta e crítico literário maranhense Ferreira Gullar, entre 1963 e 1985.

Para tanto, são utilizados enquanto fontes históricas de ensaios produzidos pelo poeta ao longo desse período, bem como seu livro de memórias do exílio publicado em 1998. Com a leitura dos ensaios pretende-se demonstrar que, durante os anos 1960, Gullar inicia um processo de construção de uma concepção de mundo, próxima à cultura política comunista compartilhada pelo PCB.

Com as experiências do exílio essa concepção de mundo se altera, de modo que as expectativas revolucionárias são canceladas em Gullar. Isso ocorre em virtude destas experiências terem se configurado enquanto traumas.

O trauma, nesse sentido, é compreendido como um passado que se presentifica, sendo capaz de transformar as leituras que o indivíduo traumatizado opera acerca da realidade e de seu próprio passado.

Assim, a crise da expectativa revolucionária, bem como a adesão a uma cultura política reformista ocorrem, em Gullar, a partir dos traumas advindos do exílio e das ditaduras.

Comissão Examinadora
Alberto Aggio – Orientador
Fabiana de Souza Fredrigo – UFG
Marcos Sorrilha Pinheiro – FCHS

Fonte: Assessoria de Comunicação e Imprensa Unesp