Fernando Henrique Cardoso
"Brasil, Brasileiros - Por que Somos assim?" será lançado nesta quinta (14) na Fundação FHC
A Fundação Astrojildo Pereira (FAP) e a Fundação FHC convidam para o lançamento, nesta quinta-feira (14), do livro: "Brasil, Brasileiros - Por que Somos assim?", organizado e publicado pela FAP e pela Verbena Editora.
O lançamento, que vai ocorrer na sede da Fundação FHC, em São Paulo, será antecedido de um diálogo entre o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e o senador Cristovam Buarque (PPS-DF).
A pergunta que serve de subtítulo à obra não poderia ser mais oportuna. Ela se coloca como passo necessário a que o Brasil encontre saídas para uma das mais graves crises de sua história.
Nessa perspectiva, servirá de provocação ao diálogo entre o ex-presidente e o senador.
Na coletânea, os organizadores, o senador Cristovam Buarque, Francisco Almeida e Zander Navarro, apontam características que, mesmo transformadas, perduram nas relações sociais e políticas ao longo da história brasileira, de um lado impulsionando, de outro frustrando a aspiração por um país mais justo, igualitário e democrático. Oferecem assim uma rica contribuição analítica para orientarmos a mudança na direção desejada.
O evento será transmitido ao vivo pelo canal da FAP no Facebook: www.facebook.com/facefap.
Serviço
Data: 14/12/2017, a partir das 17h
Local: Fundação FHC - Rua Formosa, 367, 6º andar, São Paulo (SP)
Confira, abaixo, a apresentação do livro "Brasil, Brasileiros - Por que Somos assim?"
http://www.fundacaoastrojildo.com.br/2015/wp-content/uploads/2017/11/Apresentacao.pdf
FHC: Quais os rumos do País?
Se não organizarmos já um polo democrático, podemos ver no poder quem não sabe usá-lo
Quando ainda estava na Presidência, eu dizia que o Brasil precisava ter rumos e tratava de apontá-los. Nesta quadra tormentosa do mundo, cheia de dificuldades internas, sente-se a falta que faz ver os rumos que tomaremos.
Com o fim da guerra fria, simbolizado pela queda do Muro de Berlim, em 1989, tornou-se visível o predomínio dos Estados Unidos. Desde antes do final da guerra fria, por paradoxal que pareça, em pleno governo Nixon – do qual Henry Kissinger era o grande estrategista – começou uma aproximação do mundo ocidental com a China. Com a morte de Mao Tsé-tung e a ascensão de Deng Xiaoping, os chineses puseram-se a introduzir reformas econômicas. Iniciaram assim, ao final dos anos 1970, um período de extraordinário crescimento. A partir da virada do século passado, o peso cada vez maior da China na economia global tornou-se evidente. No plano geopolítico, porém, os chineses buscaram deliberadamente uma ascensão pacífica, escapando à “armadilha de Tucídides” (a de que haverá guerra sempre que uma nova potência tentar deslocar a dominante).
Enquanto a China não mostrava todo o seu potencial econômico e político, tinha-se a impressão de que o mundo havia encontrado um equilíbrio duradouro, sob a Pax Americana. A Europa se integrava, os Estados Unidos e boa parte da América Latina se beneficiavam do comércio com a China e a África aos poucos passava a consolidar a formação de seus Estados nacionais. As antigas superpotências, Alemanha e Japão, desde o fim da 2.ª Guerra Mundial haviam adotado a “visão democrático-ocidental”. No início do século 21 apenas a antiga União Soviética, transmutada em República Russa, ainda era objeto de receios militares por parte das alianças entre os países que formaram a Otan. Como ponto de inquietação restava o mundo árabe-muçulmano.
Na atualidade, o quadro internacional é bem diferente. Com a “diplomacia” adotada por Trump, a Coreia do Norte desenvolvendo armas atômicas, as novas ambições da Rússia, as tensões nos mares da China e o terrorismo, há temores quanto ao que virá pela frente. Os japoneses veem mísseis atômicos coreanos passar sobre sua cabeça, os chineses fazem-se de adormecidos, o Reino Unido sai da União Europeia, os russos abocanham a Crimeia e os americanos vão esquecendo o Acordo Transpacífico (TPP, ou Trans Pacific Partnership Agreement), abrindo espaço à expansão da influência dos chineses na Ásia e deixando perplexos os sul-americanos que faziam apostas no TPP. Também perplexos estão os mexicanos, ameaçados pela dissolução do Nafta, outro dos alvos de Trump. A inquietação americana pode aumentar pelas consequências da política chinesa de construir uma nova rota da seda, ligando a China à Europa através da Ásia e do Oriente Médio, bem como pela aproximação entre Pequim e Moscou.
É neste quadro oscilante que o Brasil precisa definir seus rumos. Toda vez que existem fraturas entre os grandes do mundo se abrem brechas para as “potências emergentes”. Há oportunidades para exercermos um papel político e há caminhos econômicos que se abrem. Não estamos atados a alianças automáticas e, a despeito de nossas crises políticas, nossos erros e dificuldades, estamos num patamar econômico mais elevado que no tempo da guerra fria: criamos uma agricultura moderna, somos o país mais industrializado da América Latina e avançamos nos setores modernos de serviços, especialmente nos de comunicação e financeiros. Podemos pesar no mundo sem arrogância, reforçando as relações políticas e econômicas com nossos vizinhos e demais parceiros latino-americanos.
Entretanto, nossas desigualdades gritantes são como pés de chumbo para a formação de uma sociedade decente, condição para o exercício de qualquer liderança. As carências na oferta de emprego, saúde, educação, moradia e segurança pública ainda são obstáculos a superar.
Pelo que já fizemos, pelo muito que falta fazer e pelas oportunidades que existem, há certa angústia nas pessoas. A confusão política, o descrédito de lideranças e partidos, se expressa na falta de rumos. A opinião pública apoia os esforços de moralização simbolizados pela Lava Jato, mas quer mais. Quer soluções para as questões sociais básicas, e também para os desafios da política, que precisam ser superados, caso contrário o crescimento da economia continuará baixo e a situação social se tornará insustentável. O Congresso, por fim, aprovou uma “lei de barreira” e o fim das coligações nas eleições proporcionais. Foram passos tímidos, na forma como aprovados, mas importantes para o futuro, pois levarão à redução do número de partidos, com o que se poderá obter maior governabilidade e talvez menos corrupção.
Entretanto, quem são os líderes com a lanterna na proa, e não na popa? A crer nas pesquisas de opinião, os políticos mais cotados para vencer as eleições em 2018 mais parecem um repeteco do que inovação, embora haja entre alguns que estão na rabeira das pesquisas quem possa ter posições mais condizentes com o momento. E boas novidades podem emergir. Alguns dos que estão à frente ainda insistem em suas glórias passadas para que nos esqueçamos de seus tormentos recentes, e pouco dizem sobre como farão para alcançar no futuro os objetivos que eventualmente venham a propor.
Se não organizarmos rapidamente um polo democrático (contra a direita política, que mostra suas garras), que não insista em “utopias regressivas” (como faz boa parte das esquerdas), que entenda que o mundo contemporâneo tem base técnico-científica em crescimento exponencial e exige, portanto, educação de qualidade, que seja popular, e não populista, que fale de forma simples e direta dos assuntos da vida cotidiana das pessoas, corremos o risco de ver no poder quem dele não sabe fazer uso ou o faz para proveito próprio. E nos arriscamos a perder as oportunidades que a História nos está abrindo para ter rumo definido.
*SOCIÓLOGO, FOI PRESIDENTE DA REPÚBLICA.
Hubert Alquéres: Centrão, de coadjuvante a protagonista
Desde a redemocratização, o Centrão sempre esteve no poder, mas em papel de coadjuvante. Fernando Henrique Cardoso e Lula, com enormes diferenças, contaram com as forças do atraso em nome da governabilidade. Mas sem transformá-las em principal núcleo de sua base de sustentação.
Com a vitória no Congresso do “Fica Temer”, a constelação de siglas partidárias que formam essa massa gelatinosa adquiriu status de protagonista. Chegou ao núcleo duro do poder, em condomínio com o PMDB, com quem tem identidades nos métodos e na forma de se fazer política.
A assunção do Centrão altera os polos da dualidade estabelecida no governo Temer. Desde o início havia um lado renovador, expresso na equipe econômica, em quadros como Pedro Parente e mesmo em políticos antenados com a modernidade como José Serra e Mendonça Filho.
Havia também o lado arcaico constituído por partidos e políticos formados e forjados em práticas patrimonialistas. Velhos camaradas como Geddel Vieira Lima, Romero Jucá, Moreira Franco, Eliseu Padilha.
Michel Temer é originário desse campo. Por circunstâncias, se compôs com o polo reformista.
Os dois blocos não deixaram de existir, bem como os seus conflitos. O que muda de figurino é a opção do presidente pelo atraso como forma de administrar o contencioso em sua base de sustentação.
Até a delação da JBS, Temer vislumbrava a possibilidade de entrar para a história como um presidente reformista, condottieri da travessia para 2018. Daí nasceu a agenda da reforma, a autoridade da equipe econômica e a escolha do PSDB como principal aliado. Quanto mais seu grupo era atingido, mais força ele transferia para os tucanos, pois necessitava deles para manter a pinguela.
Se antes a preocupação era com a imagem com a qual entraria na história, com a denúncia do Procurador Geral da República, Rodrigo Janot, passou a ser pela sobrevivência. Às favas a história e a opinião pública. Com esse espírito foi a guerra no Congresso, tendo o Centrão como principal estaca de sustentação.
Em grande medida, a escolha se deu por falta de opção. Com o escândalo que o vitimou, perdeu apoios no PSB, PPS e PSDB. Seu aliado preferencial entrou em barafunda com o enrosco do seu presidente licenciado Aécio Neves.
O PSDB saiu da votação dividido, não confiável aos olhos do governo, e queimado com seus eleitores que não aceitam suas dubiedades éticas. Ainda teve de pagar o mico do parecer do tucano mineiro Paulo Abi-Ackel, à favor de Temer. Tudo isso para, mais cedo ou mais tarde, ser alvo da “reacomodação de forças” no interior do governo.
Sim, os tucanos são os grandes perdedores desse imbróglio, com suas vísceras expostas à opinião pública. Divididos, ou não, continuarão no governo, mas com status rebaixado, como coadjuvantes. E com a autoestima de seus militantes esgarçada.
A decepção de peessedebistas históricos com as dubiedades do alto tucanato fica patente em carta dos economistas Edmar Bacha, Elena Landau, Gustavo Franco e Luiz Roberto Cunha ao senador Tasso Jereissati: “Infelizmente, incapaz até agora de se dissociar de um governo manchado pela corrupção institucionalizada que herdou do PT, o PSDB tem optado por deixar vazio o centro político ético de que o país tanto precisa”.
A hegemonia no interior do condomínio governista sai das mãos das forças comprometidas com a austeridade fiscal, com os fundamentos macroeconômicos e com as reformas e vai para setores acostumados à gastança, que só entendem a linguagem da liberação de verbas e cargos.
Essas forças podem até dar uma base sólida a Temer para enfrentar novas denúncias, o que não pode ser confundido com a necessária estabilidade para levar as reformas adiante. Mesmo uma reforma da previdência extremamente desidratada, limitada à idade mínima, encontrará resistência em uma base que se move exclusivamente em função de interesses clientelistas e fisiológicos.
A dependência do Centrão põe em riscos ganhos da política econômica, compromete o equilíbrio das contas públicas e alimenta desconfianças do mercado de que Temer fará novas concessões populistas às corporações para preservar o seu mandato.
A equipe econômica fica tensionada pela compulsão da base de fazer bondades com o erário público. Há um exemplo emblemático: a expectativa era obter R$ 13 bilhões com a MP do Refis/2017, mas a arrecadação deve ficar em R$ 500 milhões se for aprovado o parecer do deputado Newton Cardoso Jr (PMDB-MG), que atendeu a pleitos de empresários da indústria e do agronegócio.
De concessão em concessão o governo perde seu ímpeto reformista, deixa de lado qualquer veleidade modernizante.
O Centrão estava órfão e recolhido ao fundo do palco desde a cassação do seu líder Eduardo Cunha. Com a delação de Wesley Batista vislumbrou a oportunidade de voltar ao primeiro plano, cerrando fileira em torno de Temer. Assumiram o papel de Pit Bull do Temerismo por saber que é dando que se recebe. E já estão recebendo.
* Hubert Alquéres é professor e membro do Conselho Estadual de Educação (SP). Lecionou na Escola Politécnica da USP e no Colégio Bandeirantes e foi secretário-adjunto de Educação do Governo do Estado de São Paulo
É normal que Rodrigo Maia sinta 'comichão' para assumir Presidência, diz FHC
Segundo FHC, presidente da Câmara é 'mais que humano, é político'; ex-presidente também disse, em entrevista à GloboNews, que Temer deve deixar posição defensiva e partir para o ataque se quiser contribuir para solução da crise política
João Paulo Nucci, O Estado de S.Paulo
O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso afirmou ser "muito difícil" que o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), não sinta um "comichão" com a possibilidade de assumir a presidência da República. "Suponho que seja uma pessoa correta, não vai fazer nada contra o presidente. Mas ele é humano. Mais que humano, é político", disse o tucano em entrevista ao programa Roberto D'Ávila, da GloboNews, nesta terça-feira, 11. "Na vida pública, por mais que as pessoas queiram ser leais, há interesses pessoais e políticos que se sobrelevam."
Para o líder tucano, o presidente Michel Temer deve deixar a posição defensiva e partir para o ataque se quiser contribuir para a solução da crise política. "O poder começa a erodir. Não importa se as denúncias são corretas ou erradas. Não adianta fazer uma guerra de trincheira, parado", disse na entrevista gravada na tarde desta terça-feira, 11, e exibida à noite.
FHC comparou a posição atual do peemedebista à fracassada Linha Maginot, criada pelos franceses para tentar se defender da invasão da Alemanha na Segunda Guerra Mundial. "Os alemães fizeram a guerra de movimento, a blitzkrieg (na Segunda Guerra Mundial)."
O ex-presidente usou a metáfora bélica para defender que a gestão Temer precisa demonstrar à população que ainda tem condições de governar ou de propor saídas para o impasse - nem que seja a abreviação do mandato ou a realização de uma reforma política. "O Temer ainda teria condições de abrir uma página nova no Brasil, (fazer) um gesto de grandeza." A atual postura do presidente, segundo o tucano, poderá até levá-lo a permanecer no cargo até o fim do mandato, mas com o poder esvaziado. "Pode ficar no governo, mas não governa mais. (Temer) está preocupado com o que a Câmara vai fazer. Amanhã, com o que a Justiça vai fazer."
Sobre a permanência do PSDB na gestão Temer - o partido comanda quatro ministérios -, FHC reiterou que ainda não há uma decisão formal sobre o assunto e que a reunião no Palácio dos Bandeirantes na noite desta segunda-feira, 10, que reuniu líderes do partido, não tinha como deliberar sobre o assunto. O tema será discutido oficialmente em uma reunião da Executiva do partido no mês que vem.
Do ponto de vista prático, no entanto, o ex-presidente diz que a relação entre Temer e o partido fica "muito difícil" a partir do momento em que os deputados tucanos votarem pela aceitação da denúncia da Procuradoria-Geral da República contra Temer. "Creio que maioria dos deputados (do PSDB) vai dizer sim, a opinião pública está muito comovida. Aberto o processo (contra Temer no Supremo Tribunal Federal), como fica o partido?"
O ex-presidente confirmou durante a entrevista que escreveu uma carta a Temer em junho, após a divulgação da gravação que o empresário Joesley Batista, da JBS, fez do diálogo que manteve com Temer. "Escrevi o que eu achava que era possível fazer dada a situação que está criada." FHC não obteve resposta de Temer. "Não era pra responder, era para ele refletir."
O líder tucano voltou a dizer que o melhor cenário para a saída da crise é a realização de eleições diretas. "Mas não sou qualquer apressado. Diretas já não pode, é copiar o passado. Precisa ter reforma política, avançar nas reformas."
A entrevista ao jornalista Roberto D'Ávila foi concedida no apartamento de FHC em São Paulo, pouco antes do ex-presidente embarcar para a Europa - viagem que o impediu de ir à Brasília, a pedido de Temer, para uma reunião. "Nunca me neguei e nunca me negaria (a dialogar). Pensei que iria à casa dele, em São Paulo. Mas pegar avião para Brasília é mais complicado."
FHC voltou a dizer que não tem mais pretensões de ocupar cargos públicos - seu nome é sempre lembrado para a eventualidade de uma eleição indireta à Presidência. "Não é que eu não queira, mas tenho 86 anos. (...) Ser presidente é um esforço extraordinário."
Mais do que questões políticas, o que mais o preocupa é o País, segundo Fernando Henrique. "Temos 14 mihões de desempregados, criminalidade enorme. Sessenta mil homicídios no ano. E tem desconforto político, é muito problema." Ainda assim, é preciso avançar no processo que está passando "a limpo o Brasil", disse o presidente. "Destampou a panela e as pessoas viram que tem coisa podre aí. Não vai acabar a Lava Jato, não deve acabar."
Estado de S. Paulo: Na prática, o PSDB deixou o governo, mas mantém cargos
Encontro de segunda-feira preparou terreno para que os quatro ministros do PSDB no governo deixem o governo Temer
Pedro Venceslau, O Estado de S.Paulo
O jantar oferecido na segunda-feira, 10, pelo governador Geraldo Alckmin (PSDB) na ala residencial do Palácio dos Bandeirantes ao primeiro escalão do PSDB teve dois objetivos: estabelecer um armísticio na sigla e preparar o terreno para que os quatro ministros tucanos deixem a administração Michel Temer.
O encontro ocorreu após o cancelamento de um encontro que o presidente teria domingo, 9, em São Paulo com o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e os senadores Aécio Neves (MG), José Serra (SP) e Tasso Jereissati (CE).
Existem duas versões sobre o caso. Segundo interlocutores de Temer, ele avaliou que “não haveria mais clima” para a conversa devido às declarações dos senadores Tasso, presidente licenciado, e Cássio Cunha Lima (PB). O primeiro versou sobre o estado de “ingovernabilidade” do Brasil e o segundo teria dito em um encontro com investidores que “em 15 dias haverá um novo governo”.
Já FHC disse a assessores que a reunião foi uma sugestão do pessoas ligadas a Temer, mas que ele não poderia participar por problemas de agenda. O fato é que o Palácio do Planalto já foi informado pelos tucanos que a bancada decidirá sozinha sobre a admissibilidade da denúncia da Procuradoria-Geral da República (PGR). Ou seja: na prática o partido deixou o governo, mas mantém os quatro ministérios na Esplanada dos Ministérios.
Depois de liberar o voto dos tucanos na votação contra Temer na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara, o líder da bancada do PSDB, Ricardo Tripoli (SP), reunirá o grupo nesta terça-feira, às 16h, para deliberar sobre a posição no plenário da Casa.
Com 46 deputados federais, a tendência é de que os parlamentares sejam liberados novamente para votar como quiserem. Defensor do desembarque, Tripoli disse na segunda-feira, 10, no jantar no Bandeirantes, que dos sete deputados da legenda na CCJ, Temer contará com apenas dois votos a seu favor.
Fernando Henrique Cardoso: Crise, não só política
Está nos faltando a mensagem que aponte caminhos de esperança para passos à frente
Há poucas semanas participei de um encontro preparatório de uma conferência que organizarei em Lisboa para a Fundação Champalimaud sobre a crise da democracia representativa. Ao encontro compareceram, ademais dos responsáveis pela fundação, Alain Touraine, Pascal Perrineau, Michel Wieviorka, Ernesto Ottone, Miguel Darcy e Nathan Gardels, entre outros intelectuais. Os debates ressaltaram que a população desconfia da justeza e mesmo da capacidade de gestão dos sistemas político-partidários prevalecentes nas democracias representativas. Um dos presentes citou o abade Sieyès, que afirmava: “Se o poder vem dos que estão em cima, a confiança vem dos que estão em baixo”. Escapam dessa crise, por óbvio, os países onde prevalecem formas autoritárias de mando em que conta a repressão, não o consentimento.
Perrineau chamou a atenção para dados mostrando que não diminuiu a confiança nas famílias, nas instituições comunitárias, no localismo. A crise parece ser mais “política” e quanto mais distante a pessoa está dos centros de poder, mais desconfia deles. Tem inegavelmente uma dimensão territorial: quanto mais afastados estão os núcleos populacionais das novas modalidades de produção e da vida associativa contemporânea “em rede”, maior a probabilidade do seu enraizamento nas tradições, maior o “conservadorismo” e maior temor do “novo”, principalmente da substituição do trabalho humano por máquinas. Pior ainda, por máquinas “inteligentes”.
Há mais: nessa quebra de confiança vão de cambulhada as instituições políticas criadas ao longo dos dois últimos séculos, os partidos e os parlamentos. O analista se surpreende quando vê que na distribuição de voto, tanto nas últimas eleições francesas como nas inglesas do Brexit ou nas norte-americanas que elegeram Trump, o “voto operário” se deslocou para a “direita” e com ele se foi também boa parte do voto proveniente do que se chamava de “pequena burguesia”. O Labour Party inglês, os democratas nos Estados Unidos e os socialistas e comunistas na França foram levados de roldão pelo voto “conservador” ou, quem sabe, pela formação de uma maioria de outro tipo, como fez Macron.
Em resumo, há algo de novo no ar e não apenas nas plagas brasileiras. Uma nova sociedade está se formando e não se vê claramente que instituições políticas poderão corresponder a ela. Dito à moda gramscsciana: o velho já morreu e o novo ainda não se vislumbra; ou, se vislumbrado, não é reconhecido, acrescento.
Que força motora provoca tão generalizadas modificações? Relembrando o assessor de Clinton que dizia sobre o fator-chave nas eleições “é a economia, seu bobo”, poder-se-ia dizer agora: é a globalização (como digo há décadas). Esta surgiu com as novas tecnologias (nanotecnologia, internet, robotização, contêineres, etc.) que revolucionaram as relações produtivas, permitiram a deslocalização das empresas, a substituição de mão de obra por máquinas, a interconexão da produção e dos mercados, etc. Tudo visando a “maximizar os fatores de produção”, ou seja, concentrar os centros de criatividade, dispersar a produção em massa para locais de mão de obra abundante e barata e unificar os mercados, sobretudo financeiros. Criaram-se assim condições para a emergência de sociedades novas.
Novas não quer dizer “boas sociedades”, depende de para quem. Sem dúvida o crescimento exponencial da produtividade e da produção aumentou a massa de capitais no mundo. Sua distribuição, entretanto, não sofreu grande desconcentração. Mais ainda, o “progresso” trouxe, ao lado da diminuição da pobreza no mundo, o aumento do desemprego formal e dificuldades para a empregabilidade, posto que o trabalho humano conta mais, nos dias de hoje, se com ele vier criatividade. Globalmente houve um amortecimento do controle nacional de decisões (pela concentração de poder nos polos criativo-produtivos e bancários) sem haver regras de controle financeiro global. Com isso a ameaça de crises, ou ao menos a percepção da possibilidade delas, aumentou as incertezas.
É inegável que a “nova sociedade” incrementa a mobilidade social (forma-se o que, à falta de melhor nome, se está chamando de “novas classes médias”) e ao mesmo tempo se criam contingentes não desprezíveis de inocupados ou impropriamente ocupados (novas formas de subemprego). Ao mesmo tempo se deslegitimam as formas institucionais anteriores, os partidos, e mesmo as de coesão social (as classes com seus sindicatos e associações). Criam-se sociedades fragmentadas, às que se somam, em situações como a brasileira, a fragmentação dos partidos. Em qualquer caso, dá-se perda de sua credibilidade. Pouco a pouco se dissipam os laços entre “a sociedade” e o “sistema político”. Há, portanto, mais a ser entendido e contextualizado do que uma crise do sistema representativo.
Isso implica novos populismos e leva a “direita” ao poder? Não necessariamente. Alain Touraine, em sua apresentação, referiu-se a um tema que lhe é caro: liberdade, igualdade e dignidade são os motes nos quais há que persistir. Mas como? Trump juntou os cacos da “velha sociedade”, o rustbelt, temerosa dos outros e do futuro (lá vêm os imigrantes, ou os terroristas ou, extremando, os “muçulmanos”) e ganhou. Macron, contudo, ganhou defendendo a liberdade e o progresso (a globalização e a integração da Europa) e combateu as corporações, poderosas na França.
Em países como o nosso, isso não basta: há que insistir na igualdade (nas políticas sociais, em reformas que combatam os privilégios corporativos). E, principalmente, na “dignidade”, no respeito à pessoa e à ética. O “basta de corrupção!” não é uma palavra de ordem “udenista”. É um requisito para uma sociedade melhor e mais decente.
Em momentos de transição, a palavra conta: só ela junta fragmentos, até que as instituições e suas bases sociais se recomponham. É o que nos está faltando: a mensagem que aponte caminhos de esperança para passos à frente.
* Fernando Henrique Cardoso é sociólogo. Foi Presidente da República
Fonte: http://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,crise-nao-so-politica,70001873312
Luiz Carlos Azedo: O Leite derramado
Publicado no Correio Braziliense em 05/03/2017
Fernando Henrique Cardoso endossou o coro dos que criticam o vazamento das delações premiadas e defendeu uma espécie de separação do joio do trigo
As delações premiadas dos executivos da Odebrecht ainda estão em sigilo, mas parte de seu teor já chegou ao conhecimento público em razão dos depoimentos na Justiça Eleitoral de Marcelo Odebrecht e mais quatro executivos da Odebrecht envolvidos nas operações de financiamento da campanha da chapa Dilma Rousseff-Michel Temer, via caixa dois da empresa. Os depoimentos foram prestados na ação de cassação da chapa impetrada pelo PSDB, a pedido do relator do processo no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ministro Herman Benjamin.
A reação é uma espécie de Deus nos acuda no establishment político do país. O ex-diretor da Odebrecht Fernando Reis, por exemplo, disse, em depoimento, que foi incumbido de repassar R$ 4 milhões à tesouraria do PDT em troca do apoio do partido à reeleição da chapa Dilma-Temer. Esse teria sido o preço do acordo feito com o presidente da legenda, Carlos Lupi, ex-ministro do Trabalho do governo petista (aquele mesmo que disse “Dilma, eu te amo!”, ao pedir desculpas à ex-presidente da República, depois de ser demitido da pasta por ela).
A compra de apoio político é um dos motivos mais fortes para cassação de uma chapa, por isso o depoimento do executivo passou a ser um dos mais importantes no processo. Em nota, Lupi rebateu a acusação com os argumentos de que o “ônus da prova” cabe ao acusador e “o PDT foi o primeiro partido político que declarou oficialmente apoio à chapa de Dilma Rousseff”. Segundo o presidente do PDT, o apoio da legenda, anunciado em 10 de junho de 2014, “aconteceu meses antes do suposto pagamento”.
Mas não somente o PDT estrilou com os depoimentos. Até o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso criticou publicamente a cobertura da imprensa em relação à Operação Lava-Jato: “Parte do noticiário de hoje (sexta-feira) sobre os depoimentos da Odebrecht serve de sinal de alerta. Em vez de dar ênfase à afirmação feita por Marcelo Odebrecht, de que as doações à campanha presidencial de Aécio Neves, em 2014, foram feitas oficialmente, publicou-se a partir de outro depoimento que o senador teria pedido doações de caixa dois para aliados.”
O ex-presidente da República destacou que Aécio “não fez tal pedido”, nem Marcelo Odebrecht “fez tal declaração em seu depoimento ao TSE”. Para Fernando Henrique, “há uma diferença entre quem recebeu recursos de caixa dois para financiamento de atividades político-eleitorais, erro que precisa ser reconhecido, reparado ou punido, daquele que obteve recursos para enriquecimento pessoal, crime puro e simples de corrupção”.
Verdades alternativas
Fernando Henrique Cardoso endossou o coro dos que criticam o vazamento das delações premiadas e defendeu uma espécie de separação do joio do trigo: “Divulgações apressadas e equivocadas agridem a verdade, e confundem os dois atos, cuja natureza penal há de ser distinguida pelos tribunais”. Segundo o líder tucano, “a palavra de um delator não é prova em si, apenas um indício que requer comprovação. É preciso que a Justiça continue a fazer seu trabalho, que o país possa crer na eficácia da lei e que continue funcionando”.
Acontece que a ação penal contra a chapa Dilma-Temer virou uma espécie de bumerangue. Além de colocar em xeque o governo de transição, voltou-se contra líderes importantes do PSDB, entre eles, o presidente do partido, Aécio Neves, autor da ação, o ex-candidato a governador de Minas Pimenta da Veiga e o senador Antônio Anastasia (MG), cujas campanhas teriam recebido recursos do caixa dois da Odebrecht. “A desmoralização de pessoas a partir de ‘verdades alternativas’ é injusta e não serve ao país. Confunde tudo e todos” — protestou Cardoso. A manifestação é música para o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, de quem o tucano foi testemunha de defesa num dos processos que investiga as relações do petista com a construtora OAS.
O ovo da serpente, porém, é origem do caixa dois eleitoral: recursos públicos desviados de obras e serviços, de certa forma, igualam quem só gastou o dinheiro na campanha, quem ganhou para fazer campanha e quem meteu o dinheiro no bolso. É que a Justiça Eleitoral, o Ministério Público Federal e a Polícia Federal, assim como os cidadãos, não fazem a menor distinção quanto a isso: todos os que receberam dinheiro de caixa dois cometeram crime eleitoral, independentemente dos crimes conexos, como lavagem de dinheiro, sonegação fiscal, corrupção passiva ou ativa etc. Esse é busílis da crise ética, que ameaça implodir o sistema político. Só quem pode separar o joio do trigo é o Supremo Tribunal Federal (STF).
FHC e o "algoritmo que rege a política" no #ProgramaDiferente
O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso fala com exclusividade ao #ProgramaDiferente sobre a crise institucional no Brasil e comenta sobre o "novo algoritmo da política", ou as mudanças globais que ele identifica com precisão em artigo recente. Assista.
Artigo de FHC: O algoritmo da política mudou
Diversamente do progressismo do século XVIII, centrado no indivíduo, e do XIX, centrado na classe, o atual deve se centrar nos que nascem e vivem ‘em redes’
A eleição de Donald Trump confirma o que já se pressentia. Na França, mesmo sem vencer, é provável que Marine Le Pen aumente sua votação. Será o temível “direita volver”? Sim e não. É indiscutível que a onda contemporânea é de rechaço aos “males da globalização”. Os que simbolicamente representam a “globalização feliz”, na expressão do sociólogo Pascal Perrineau, estão colhendo o repúdio dos deserdados dela. Mas isso é só parte da história.
Ao mesmo tempo, a sociedade está refazendo liames de solidariedade e definindo formas de comportamento orientadas por valores que se afastam do padrão anterior. As razões desse sacolejar não podem ser reduzidas às consequências, negativas para alguns, da integração global dos mercados, da alta produtividade das novas tecnologias e do consequente drama do desemprego.
Nossos modelos mentais se formaram, a partir do século XIX, de modo pós-iluminista: menos do que a razão, contariam os interesses. Estes, desigualmente distribuídos graças às heranças das famílias e às regras de êxito nos mercados, davam sustentação mais ou menos sólida aos laços de classe, que se espelhavam em ideologias. Foi esse mundo que Marx levou ao extremo ao definir a luta de classes como o “motor da História”.
A partir daí, aproveitando resquícios da Revolução Francesa, podiam-se classificar as posições políticas entre esquerda e direita e um centro “amorfo”, ou, como o qualificou Maurice Duverger, um pântano eterno. Por quê? Porque o proletariado e seus aliados simbolicamente eram a “esquerda” revolucionária (posição na Assembleia Nacional onde tomavam assento os militantes mais ardorosos) e se contraporiam à burguesia, que defendia os interesses de conservação da ordem (a “direita”).
Esse mundo se transformou profundamente. Novas formas de produzir, com a disseminação das inovações tecnológicas da automação, miniaturização e especialmente comunicação em rede, criaram uma economia de alta produtividade e baixa empregabilidade, com o encolhimento do setor fabril e a expansão dos serviços. As sociedades capitalistas acrescentaram à estrutura de classes (sem desfazê-las) mecanismos de mobilidade ocupacional e formas de interação e de eventual coesão social, que se fazem e desfazem rapidamente dispensando estruturas organizacionais intermediárias.
As pessoas se juntam e se separam por redes intercomunicadas. Estas, de tempos em tempos, levam à ação coletiva: as paradas, os protestos, as “ondas eleitorais” que se formam independente mente dos partidos. Tudo isso assusta os membros do establishment tanto da esquerda quanto da direita: organizações multinacionais, sindicatos, mídia tradicional, partidos, igrejas etc. se sentem inseguros, e frequentemente partes deles se voltam “contra tudo isto que está aí”.
Às consequências sensíveis da globalização em momentos de crise (estagnação, deslocalização e desemprego), portanto, somam-se também tensões em torno a padrões de comportamento. Há novos parâmetros quanto ao que seja aceitável em uma sociedade crescentemente diversa (paradas de “orgulho gay”, ascensão política de migrantes, presença ativa de minorias, lutas pró-direito de aborto, regulamentação do uso das drogas etc.).
Há também reações tradicionalistas contra todas essas mudanças. Se a isso somarmos os conflitos pela hegemonia mundial e as ameaças inquietantes do terrorismo, completa-se o quadro no qual, mais que “de direita” (no sentido clássico), as reações são de medo. Refletem o desejo de retorno ao que foi ou se imaginava ter sido bom no passado (“Make America great again”) e de proteção e segurança (protecionismo, nacionalismo xenófobo etc.) frente às ameaças do presente.
O assunto não se esgota, portanto, em dizer: é a direita que está vitoriosa, embora seja. Não é qualquer direita, é a direita do orgulho nacional xenófobo, do “fora, imigrantes”, do protecionismo e do personalismo autoritário, valores em parte compartilhados por certa esquerda. Mais correto diante da vitória de Trump seria repetir Angela Merkel e dizer: nós temos princípios, amamos a liberdade, temos respeito à dignidade humana e à democracia.
As regras desta se aplicam a todos, independentemente da cor da pele, da orientação sexual, religiosa ou partidária. Ao mesmo tempo, não se deve fechar os olhos às consequências da “globalização assimétrica” que põe à margem regiões inteiras do mundo e setores internos das sociedades, mesmo das mais prósperas. Diante das transformações sociais e culturais que estão ocorrendo, o pensamento progressista não deve cantar loas à debacle da globalização que arrasta com ele os princípios “iluministas”, que Marx acolhia (com a pretensão de superá-los).
Tampouco cabe fechar o nariz com repugnância ao que está ocorrendo. O mal-estar precisa ser entendido para recriar-se a esperança. As propostas para o futuro devem olhar as necessidades concretas das pessoas. Foi isso que os “brancos, pobres e pouco educados” (o proletariado...) viram na demagogia de Trump.
Não basta denunciá-la como enganosa, embora seja: é preciso escutar o drama dos perdedores, dar-lhes uma resposta efetiva, não fechar os olhos aos efeitos negativos da globalização, e, não menos importante, reafirmar ao mesmo tempo os princípios fundamentais da liberdade, da dignidade humana e da igualdade democrática.
Diversamente do progressismo do século XVIII, centrado no indivíduo, e do XIX, centrado na classe, o atual deve se centrar em pessoas que nascem e vivem “em redes”. Não repudiam o coletivo: querem existir dentro dele mantendo suas autonomias, sua liberdade de escolha. O algoritmo é outro. Há os interesses, mas os valores também contam.
Fernando Henrique Cardoso é sociólogo e ex-presidente da República
Fernando Henrique Cardoso: O algoritmo da política mudou
As propostas para o futuro devem olhar as necessidades concretas das pessoas
A eleição de Donald Trump confirma o que já se pressentia. Na França, mesmo sem vencer, é provável que Marine Le Pen aumente sua votação. Será o temível “direita volver”? Sim e não.
É indiscutível que a onda contemporânea é de rechaço aos “males da globalização”. Os que simbolicamente representam a “globalização feliz”, na expressão do sociólogo Pascal Perrineau, estão colhendo o repúdio dos deserdados dela. Mas isso é só parte da história. Ao mesmo tempo a sociedade está refazendo liames de solidariedade e definindo formas de comportamento orientadas por valores que se afastam do padrão anterior. As razões desse sacolejar não podem ser reduzidas às consequências, negativas para alguns, da integração global dos mercados, da alta produtividade das novas tecnologias e do consequente drama do desemprego.
Nossos modelos mentais se formaram, a partir do século 19, de modo pós-iluminista: menos do que a razão, contariam os interesses. Estes, desigualmente distribuídos graças às heranças das famílias e às regras de êxito nos mercados, davam sustentação mais ou menos sólida aos laços de classe, que se espelhavam em ideologias. Foi esse mundo que Karl Marx levou ao extremo ao definir a luta de classes como o “motor da História”.
A partir daí, aproveitando resquícios da Revolução Francesa, podiam-se classificar as posições políticas entre esquerda e direita e um centro “amorfo”, ou, como o qualificou Maurice Duverger, um pântano eterno. Por quê?
Porque o proletariado e seus aliados simbolicamente eram a “esquerda” revolucionária (posição na Assembleia Nacional onde tomavam assento os militantes mais ardorosos) e se contraporiam à burguesia, que defendia os interesses de conservação da ordem (a “direita”).
Esse mundo se transformou profundamente. Novas formas de produzir, com a disseminação das inovações tecnológicas da automação, miniaturização e, especialmente, comunicação em rede, criaram uma economia de alta produtividade e baixa empregabilidade, com o encolhimento do setor fabril e a expansão dos serviços. As sociedades capitalistas acrescentaram à estrutura de classes (sem desfazê-las) mecanismos de mobilidade ocupacional e formas de interação e de eventual coesão social, que se fazem e desfazem rapidamente dispensando estruturas organizacionais intermediárias. As pessoas juntam-se e se separam pelas redes intercomunicadas. Estas de tempos em tempos levam à ação coletiva: as paradas, os protestos, as “ondas eleitorais” que se formam independentemente dos partidos políticos. Tudo isso assusta os membros do establishment tanto da esquerda quanto da direita: organizações multinacionais, sindicatos, mídia tradicional, partidos, igrejas, etc., sentem-se inseguros e frequentemente partes deles se voltam “contra tudo isso que está aí”.
Às consequências sensíveis da globalização em momentos de crise (estagnação, deslocalização e desemprego), portanto, se somam também tensões em torno a padrões de comportamento. Há novos parâmetros quanto ao que seja aceitável numa sociedade crescentemente diversa (paradas de orgulho gay, ascensão política de migrantes, presença ativa de minorias, lutas pró-direito de aborto, regulamentação do uso das drogas, etc.). Há também reações tradicionalistas contra todas essas mudanças.
Se a isso somarmos os conflitos pela hegemonia mundial e as ameaças inquietantes do terrorismo, completa-se o quadro no qual, mais que “de direita” (no sentido clássico), as reações são de medo. Refletem o desejo de retorno ao que foi ou se imaginava ter sido bom no passado (“make America great again”) e de proteção e segurança (protecionismo, nacionalismo xenófobo, etc.) diante das ameaças do presente.
O assunto não se esgota, portanto, em dizer: é a direita que está vitoriosa – embora seja. Não é qualquer direita, é a direita do orgulho nacional xenófobo, do fora imigrantes, do protecionismo e do personalismo autoritário, valores em parte compartilhados por certa esquerda. Mais correto diante da vitória de Trump seria repetir Angela Merkel e dizer: nós temos princípios, amamos a liberdade, temos respeito à dignidade humana e à democracia. As regras desta se aplicam a todos, independentemente da cor da pele, da orientação sexual, religiosa ou partidária. Ao mesmo tempo não se devem fechar os olhos às consequências da “globalização assimétrica”, que põe à margem regiões inteiras do mundo e setores internos das sociedades, mesmo das mais prósperas.
Diante das transformações sociais e culturais que estão acontecendo, o pensamento progressista não deve cantar loas à débâcle da globalização, que arrasta com ela os princípios “iluministas”, que Marx acolhia (com a pretensão de superá-los). Tampouco cabe torcer o nariz com repugnância para o que está ocorrendo. O mal-estar precisa ser entendido para se recriar a esperança.
As propostas para o futuro devem olhar as necessidades concretas das pessoas. Foi isso que os “brancos, pobres e pouco educados” (o proletariado...) viram na demagogia de Trump. Não basta denunciá-la como enganosa, embora seja: é preciso escutar o drama dos perdedores, dar-lhes uma resposta efetiva, não fechar os olhos aos efeitos negativos da globalização e, não menos importante, reafirmar ao mesmo tempo os princípios fundamentais da liberdade, da dignidade humana e da igualdade democrática.
Diversamente do progressismo do século 18, centrado no indivíduo, e do século 19, centrado na classe, o atual deve se centrar em pessoas que nascem e vivem “em redes”. Não repudiam o coletivo: querem existir dentro dele mantendo suas autonomias, sua liberdade de escolha.
O algoritmo é outro. Há os interesses, mas os valores também contam.
* Fernando Henrique Cardoso é sociólogo, foi presidente da República.
Senador Cristovam Buarque assume presidência da FAP neste sábado, na Câmara de SP
Em solenidade neste sábado, 3 de dezembro, a partir das 10h da manhã, tomarão posse os novos diretores e conselheiros da FAP (Fundação Astrojildo Pereira) para o biênio 2016-2018, na Câmara Municipal de São Paulo.
O novo presidente do Conselho Curador é o senador Cristovam Buarque (PPS/DF), e o diretor-geral é o jornalista Luiz Carlos Azedo, colunista político do Correio Braziliense. A presidência de honra será ocupada pelo cientista social Luiz Werneck Vianna, mestre em ciência política pelo Iuperj e doutor em sociologia pela USP.
Entre as presenças confirmadas no ato, para uma exposição sobre o atual momento do Brasil, estão o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e os ministros da Cultura, Roberto Freire, e da Defesa, Raul Jungmann, ambos do PPS. Também devem comparecer representantes das fundações partidárias vinculadas ao PSDB, ao PMDB, ao PSB e ao PV, entre outros parlamentares, intelectuais, dirigentes partidários e lideranças políticas.
Fernando Henrique Cardoso: A crise do Brasil
Devemos demonstrar que podemos reinventar o significado e os rumos de nossa política
Em 31 de agosto, o Senado brasileiro destituiu a presidenta Dilma Rousseff. Após cinco longos dias de debate, 61 dos 81 senadores, muito acima dos dois terços necessários para se destituir um presidente, a condenaram por crimes fiscais e orçamentários. Seus partidários disseram que a presidenta foi vítima de um “golpe parlamentar”. Haviam retirado do poder injustamente uma pessoa eleita por 54 milhões de votos, inocente de quaisquer crimes. Na América Latina modelos de democracia e Estado de direito como Cuba, Venezuela, Bolívia e Equador ecoaram esse protesto.
Certamente, nada disso é verdade. A realidade, como de costume, fala por si só. O processo de impeachment foi ao mesmo tempo judicial e político. O procedimento estabelecido pela Constituição brasileira foi seguido ao pé da letra. As duas Câmaras do Congresso aprovaram por maioria absoluta, primeiro, o início do processo, e depois, a condenação da presidenta. O julgamento realizado no Senado foi liderado pelo presidente do Supremo Tribunal. O principal órgão judicial do país reafirmou diversas vezes a legitimidade do processo. Mas é certo que não estavam em jogo somente os crimes de uma pessoa, mas muitas outras coisas. O processo foi o resultado da convicção, expressada nas ruas por milhões de brasileiros, de que o sistema de poder instituído pelo ex-presidente Lula e o Partido dos Trabalhadores é o culpado pelo fato do Brasil afundar na crise econômica, política e moral mais grave desde a restauração da democracia em 1985.
Dilma, em sua defesa no Senado, muito emocionada, insistiu em sua inocência. Mas sua beligerância não a justifica e não a absolve de sua irresponsabilidade fiscal – os bilhões de dólares transferidos ilegalmente a empresas privadas e estrangeiras – e de sua incapacidade, quando presidia o conselho de administração da Petrobras, para impedir o saque da maior empresa brasileira em benefício do PT e dos demais partidos que apoiaram seu Governo.
E o que tudo isso nos deixou? Sem dúvida, as ilusões perdidas de todos os que acreditaram nas promessas do PT. Mas também uma economia em recessão e um desemprego em massa, uma sociedade destroçada por uma onda sem precedentes de escândalos de corrupção e um sentimento generalizado de decepção. Mesmo que a presidenta não tenha sido a autora dos atos de corrupção, revelados graças a uma imprensa independente e juízes sem medo, ela se beneficiou politicamente deles. Os políticos processados pertencem a tantos partidos que, na realidade, é a “classe política” em seu conjunto que está sendo julgada diante de uma opinião pública atenta. A queda do Governo do PT provocou o desmoronamento de todo o sistema político.
Existem motivos para otimismo. A democracia brasileira demonstrou sua capacidade de resistir e se adaptar
Ainda assim, existem motivos para o otimismo. A democracia brasileira demonstrou sua capacidade de resistir e se adaptar. Milhões de pessoas saíram às ruas. O que estamos presenciando no Brasil são os efeitos de transformações econômicas e tecnológicas imensas. A globalização enfraqueceu os Estados nacionais, as sociedades estão cada vez mais fragmentadas por uma nova divisão de trabalho e à mercê das tensões e dos desequilíbrios de uma diversidade cultural cada vez maior. As consequências são a inquietude, o temor pelo futuro e a incerteza sobre como manter a coesão social, garantir o emprego e reduzir as desigualdades. A ação popular e a opinião pública têm um poder transformador. Mas as instituições são necessárias. Não existe democracia sem partidos políticos. As estruturas proporcionam o terreno e as oportunidades para que o ser humano aja, mas a é vontade dos indivíduos e de setores da sociedade, inspirados por seus valores e interesses, o que abre a porta às mudanças.
Devemos demonstrar no Brasil que podemos reinventar o significado e os rumos de nossa política; caso contrário, o descontentamento voltará a lançar o povo às ruas, para protestar contra sabe-se lá quem e a favor do que. O desafio que enfrentamos é fechar a brecha existente entre a demos e a res publica, entre as pessoas e o interesse geral, voltar a tecer os fios que podem unir o sistema político e as demandas da sociedade.
Fernando Henrique Cardoso foi presidente do Brasil e é membro do Conselho do século XXI no Berggruen Institute
Fonte: El País
Fernando Henrique Cardoso: A história ensina
A política requer desprendimento e grandeza
Em julho passado André Franco Montoro faria cem anos. Em um país desmemoriado é bom recordar: Montoro foi dos raros políticos capazes de, sendo realistas, não deixar de lado os sonhos, as crenças, os valores. Em época de pouco caso ao meio ambiente, Montoro exortava as pessoas a plantarem hortas, a darem preferência à navegabilidade dos rios, a deixarem de lado os egoísmos nacionais e olharem para a América Latina, a dizer não à bomba atômica. E principalmente, a entender que a política requer desprendimento e grandeza. Foi assim quando, quase sozinho, impôs ao antigo PMDB um comício pelas eleições diretas-já na Praça da Sé, em 1984. E outro exemplo nos deu quando, lidando com outros gigantes, apoiou Tancredo Neves para a disputa no Colégio Eleitoral.
Conto um episódio. Nos preparativos para a eleição indireta do novo presidente, a Veja publicou uma entrevista de Roberto Gusmão, então chefe da Casa Civil de Montoro, em que este, falando por São Paulo, lançava o nome de Tancredo Neves para concorrer pela oposição. Na época, além de muito ligado a Ulysses Guimarães, eu era presidente do diretório do PMDB de São Paulo. Ulysses, como fazia habitualmente, passou na manhã subsequente à publicação da entrevista pelo casarão que então sediava o partido. Perguntou-me de chofre: "isso é coisa do Gusmão ou do Montóro"? Como ele pronunciava. Confirmei que era opinião do governador de São Paulo. "E você, o que acha?" Disse-lhe: "O senhor sabe dos laços de respeito e amizade que nos unem, mas nas circunstâncias é a opção para ganharmos no Congresso". Redarguiu: "quero ouvir isso do Montóro".
E assim, uma noite jantamos Montoro, Ulysses, Gusmão e eu, e cada um de nós, sob o olhar severo de Ulysses, confirmou nossas opiniões. Ulysses, não teve dúvidas: chefiou a campanha pela eleição de Tancredo. De fato, eleitoralmente quem poderia concorrer com Tancredo era Montoro, dado o volume de votos de São Paulo, que pesariam em eleições diretas. Tancredo, entretanto, teria vantagens táticas no convencimento de um Colégio Eleitoral composto por congressistas. Realista, Montoro logo propôs o nome mais viável. Vencemos.
Então estava em jogo a redemocratização do país, a convergência era necessária. Ela teve que ser ampliada para englobar os que antes eram adversários. Assim atravessamos o Rubicão e fomos, pouco a pouco, reconstruindo a democracia. Escrevo isso não só para valorizar a trajetória política e humana de gigantes como Montoro, Ulysses e Tancredo, mas para fazer paralelo com o presente.
Para o Brasil poder reconstruir-se, depois do tsunami lulopetista, ingloriamente culminado com quem talvez menos culpa tenha no cartório, a ainda presidente Dilma, é preciso grandeza. Não nos iludamos: estamos atravessando uma pinguela, a ponte é frágil. Sempre fui renitente a processos de impeachment porque, mesmo quando bem embasados, como o atual, implicam em destronar alguém que teve o voto popular e entregar o poder a quem também o recebeu, mas de forma mediata, em comparação com o presidente (a) a ser destronado. Contudo, a Constituição deve ser respeitada. Não adianta sonhar sem realismo com um plebiscito que talvez nos levasse a novas eleições. O mais provável é que nos levasse a uma escolha precipitada, se não à via indireta do Congresso pela impossibilidade de se obter a renúncia da incumbente e do vice. Mesmo que a destituição de ambos viesse por ordem do Supremo Tribunal Eleitoral, isso só ocorreria no próximo ano, quando a Constituição manda que a eleição seja indireta.
Logo, o que de melhor temos a fazer é fortalecer a pinguela, caso contrário caímos na água, e quem sabe, fortalecida, a pinguela se transforme mesmo em ponte para o futuro. Não é tarefa fácil e não cabem hesitações, nem ambições pessoais. A desorganização da economia, da política e da vida do povo causada pelos desatinos dos governos petistas vai requerer serenidade, firmeza, objetivos claros e muita persistência. Não é momento para exclusões. O PT e seus aliados são partes da vida nacional. Que se reconstruiam, que desistam das hegemonias e se habituem à competição democrática e à alternância no poder.
Precisamos fixar algumas prioridades, aliás, sabidas. Primeiro consertar a economia, começando pelas finanças públicas e por aceitar que, gastar sem haver recursos, não é política "de esquerda", é erro; quem paga as consequências dos erros (desemprego, inflação e desinvestimento) é o povo. Segundo, que não dá para governar com dezenas de "partidos" que são meras letras justapostas para obter vantagens financeiras. A cláusula de desempenho e a proibição de coligações nas eleições proporcionais se impõem. Terceiro, não basta o equilíbrio fiscal, é preciso alcançá-lo de modo favorável ao crescimento e à redistribuição de renda. O crescimento, em nosso caso, vai depender de o Estado bem desempenhar seu papel de regulador (por exemplo, nas parcerias público/privadas e nas concessões) e se abster de abarcar tudo. Quarto, que algum sinal na Previdência (por exemplo, a fixação progressiva de uma idade mínima para as aposentadorias) e no mercado de trabalhos (por exemplo, apoiar a sugestão do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo que dá maior peso às negociações) será importante. Por fim, é preciso entender que a agenda do atraso, preconizada por setores fundamentalistas, que se opõem aos direitos sociais e às políticas de identidade (de gênero, cor, comportamento sexual etc.) e equalizadoras (as cotas, as bolsas e etc.) é tão perniciosa quanto a paixão pela hegemonia voluntarista.
Há que aceitar as diferenças e conciliar pontos de vista olhando para o horizonte. É hora de mais Montoros e dos demais gigantes que nos tiraram do autoritarismo e nos levaram à democracia.
Fonte: El País