Fernando Henrique Cardoso

Valor: Parte do PSDB “namora” o presidente, diz FHC

Para o ex-presidente, atual chefe de Estado é forte politicamente, sabe se comunicar com a população e que tem chances reais de se reeleger em 2022

Por Cristiane Agostine, Valor Econômico

SÃO PAULO - O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso afirmou ontem que um dos maiores problemas do PSDB para fazer oposição ao governo Jair Bolsonaro é que parte do partido “namora” o presidente. FHC disse que Bolsonaro é forte politicamente, sabe se comunicar com a população e que tem chances reais de se reeleger em 2022.

Fernando Henrique cobrou mudanças na forma de lideranças do partido se comunicarem com a população e defendeu a escolha de um nome tucano para liderar a oposição a Bolsonaro, com vistas à próxima eleição presidencial.

“Há um pressuposto que pode levar ao autoritarismo em nome da salvação nacional, de um projeto grandioso, em nome do bem-estar da maioria. Temos que fazer isso de forma democrática, antes que façam de forma não democrática. Há esse risco. Há risco real de que isso aconteça no Brasil. Bolsonaro é um sintoma disso aí”, disse FHC.

“[O presidente] É candidato. Bolsonaro pode ganhar a eleição de novo, dependendo da forma como atuemos. Se ficarmos só com as nossas ideias e só entre nós, ele ganha”, afirmou o ex-presidente, ao participar de um debate sobre “Brasil e o mundo pós pandemia”, promovido pelo PSDB e pelo Instituto Teotônio Vilela, do partido.

O ex-presidente afirmou que Bolsonaro sabe falar com o “homem comum”, explora o discurso da defesa da ordem, que é um desejo da população, e tem o domínio das redes sociais. “Ele [Bolsonaro] chegou lá porque ele é o homem comum. Ele estoura, fala bobagem de uma maneira rude. Isso toca a pessoas, que são a maioria, que é parecida com esse estilo”, disse o tucano. Para FHC, a população está com “raiva” dos políticos e isso abre espaço para a demagogia e o populismo de direita, que tende ao autoritarismo.

Fernando Henrique disse que o PSDB precisa ter identidade e construir um discurso de oposição ao governo. “Temos que ver como ser contra Bolsonaro”, disse. “Temos que ter uma posição. Isso depende de muito de quem vai falar em nosso nome. É fundamental. Quem vai falar e o que vai falar. Um problema é que parte do PSDB namora o Bolsonaro. Temos que falar em nome do interesse do Brasil contra o Bolsonaro. O enigma político é esse. Temos que unificar nossa linguagem nessa direção.”

Ao falar com lideranças nacionais do PSDB, FHC disse que o partido precisa de “pessoas que guiem e deem o caminho”. “Precisa de pontos de referência. A escolha de quem vai ser candidato é sempre importante. Quem fala orienta os demais”, afirmou, sem defender um nome para a eleição presidencial de 2022. O tucano disse ainda que o PSDB precisa “expressar o sentimento que não seja da classe dominante”. “Não precisa de muitas ideias, precisamos de pessoas capazes de simbolizar essas ideias. Ver quem é que tem essa capacidade”, afirmou. “Temos que unificar nosso discurso e ter consciência de que sozinhos não vamos chegar lá. O homem [Bolsonaro] é forte.”

Durante o debate, o senador Tasso Jereissati (CE) reforçou que o partido perdeu sua identidade. “Agora não somos nada porque não somos nem uma coisa nem outra. Dentro de nossos quadros existe uma salada de frutas muito grande. Uma mistura de muita gente completamente diferente e que não tem absolutamente nada a ver com nossos princípios”, disse. “Precisamos começar tudo de novo, se é que queremos sobreviver.”


Valor: “Se houver fracasso, povo vai atribuir às Forças Armadas”, diz FHC

Ex-presidente vê perigo na presença numerosa de militares no governo Bolsonaro

Por Carolina Freitas, Valor Econômico

SÃO PAULO - O ex-presidente da República Fernando Henrique Cardoso (PSDB) disse considerar perigosa a ocupação de numerosos cargos do governo federal por militares, como acontece na gestão Jair Bolsonaro. Para o tucano, além de haver o risco de os integrantes das Forças Armadas gostarem do poder, a imagem da instituição fica indissociável do governo.

“O povo vai atribuir, se houver fracasso, às Forças Armadas, e não à política. É complicado, é perigoso”, afirmou ontem Fernando Henrique em palestra sobre geopolítica no Congresso WebHall, promovido pela Escola Paulista de Medicina, da Unifesp, e transmitido pela internet.

Levantamento do Tribunal de Contas da União (TCU), divulgado em julho, aponta que há 6.157 militares da ativa e da reserva em cargos civis no governo.

Fernando Henrique foi cauteloso ao responder sobre a possibilidade de uma ruptura da democracia no Brasil. “Sempre há risco”, disse. “Não acredito que haja um propósito neste momento de fazer uma ditadura, mas às vezes, sem propósito, as coisas acontecem.”

FHC disse perceber entre os militares um discurso de que precisam “salvar a pátria”. O ex-presidente explicou porque considera esse raciocínio um erro.

“Durante muitos anos que eu tive convívio com os militares, eles tinham mudado a percepção da sua própria capacidade de exercer o poder sem tomar em consideração os outros, pelo bem da pátria. Eles são patriotas em geral. Mas o problema não é eles serem patriotas ou não. É que a pátria é diversa, você tem que compor essa diversidade. Os militares tinham aprendido isso”, afirmou Fernando Henrique.

“Eu sinto que agora há uma tendência de novo a que alguns pensem que podem salvar a pátria. A pátria se salva sozinha. Nós temos que ter regras que permitam o funcionamento das divergências dentro de um contexto, respeitando regra, respeitando a Constituição, dando espaço pra todo mundo.”

O ex-presidente comentou brevemente a notícia, que veio à tona semana passada, de que o presidente Jair Bolsonaro teria decidido, mas acabou dissuadido, de intervir no Supremo Tribunal Federal (STF), em maio. “Os ministros do Supremo tomam uma decisão que interfere no outro Poder [Executivo], que fica irritado e tem reações que não são razoáveis: ‘Quero nomear novos nomes do Supremo!’ Isso aí já é o começo de uma conversa ruim.”

Fernando Henrique Cardoso classificou o presidente Jair Bolsonaro como alguém que não sabe o que acontece no mundo.

Ao comentar a rivalidade entre Estados Unidos e China, FHC afirmou que os países brigam por espaço para ter influência e relações comerciais, por exemplo, com países como o Brasil. “São decisões muito complicadas, que estão longe de ser a vida política brasileira. Você elege pessoas que parece que estão fora do mundo, que têm ideias anacrônicas. O presidente às vezes não tem que saber nada, tem que saber conduzir, mas é bom que saiba de algo que está acontecendo no mundo, que não tenha a visão tão fechada sobre certas questões.”

Bolsonaro busca alinhamento com os EUA, por meio de aproximação com o presidente americano Donald Trump. Declarações do presidente brasileiro e de ministros ofensivas à China causaram tensão com o país oriental.

O ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta participou do mesmo evento que FHC, em outro painel, e fez também críticas à militarização. Mandetta classificou o momento atual na Saúde como uma “grande noite” e um “apagar de luzes”. A pasta está sob comando de um interino, o general Eduardo Pazuello, sem experiência ou conhecimentos em saúde. “Com a militarização, vem a grande noite do Ministério da Saúde. Apagam-se as luzes. A primeira ação é esconder os números.”

De acordo com o ex-ministro, os “generais de plantão no Ministério da Saúde” obedecem à determinação política de Bolsonaro ao tentar tirar a responsabilidade do governo federal no combate à covid e deixar o ônus para Estados e municípios. “Calam-se frente ao enfrentamento da pandemia.”


Fernando Henrique Cardoso: Dois centenários

O Brasil precisa de intelectuais da têmpera de Celso Furtado e Florestan Fernandes

O ser humano é dotado de memória. Mas também se esquece. Há, contudo, pessoas que se transformam em ícones: essas não há como esquecer. Este ano, 2020, se vivos estivessem, e não só em nossa memória, fariam 100 anos Celso Furtado e Florestan Fernandes. Um deixou marcas na economia, o outro na sociologia. Ambos, em nossa história intelectual.

Conheci bem os dois. Fui formado na Faculdade de Filosofia da USP por muitos “mestres”. No meu caso, nenhum foi mais importante do que Florestan, desde que me deu um curso introdutório, em 1949. Celso conheci quando eu fazia, em 1962, uma pesquisa sobre o papel dos empresários no desenvolvimento econômico e fui ao Recife, com Leôncio Martins Rodrigues, para entrevistar alguns deles. Celso, então, já era diretor-superintendente da Sudene. Posso tê-lo visto antes em alguma conferência em São Paulo – também minha memória, aos poucos, está repleta de esquecimentos…

Não me esqueço, porém, de dois episódios. Fomos procurá-lo em seu apartamento, modesto, na Praia de Boa Viagem. Emprestou-nos um jipe da Sudene, com um motorista. Aproveitamos a visita que um casal de jornalistas iugoslavos faria ao Engenho da Galileia, famoso pelas ocupações de Francisco Julião, líder das Ligas Camponesas, para conhecermos a Zona da Mata. Anos mais tarde, eu detido na Oban, fui minuciosamente inquirido sobre os dois “comunistas” que haviam ido comigo àquelas plagas. Não os conhecia, foram apenas companheiros de viagem. O motorista era também informante da polícia…

Quando Celso e eu já éramos amigos, estava em Barcelona, no inverno de 1986, visitando minha filha Beatriz, que estudava lá. Uma bela manhã tocou o telefone. Era Celso, queria saber se eu também seria nomeado ministro, pois ele fora convidado por José Sarney para ocupar a pasta da Cultura. Teria de deixar a Embaixada do Brasil junto à Comunidade Europeia, em Bruxelas, para onde fora nomeado. Celso, servidor público por excelência, além de grande intelectual, era falado para outros ministérios, como o da Fazenda ou do Planejamento. Coube-lhe o da Cultura, que organizou e ao qual emprestou o prestígio de seu nome.

Disse-lhe que eu não poderia sequer ser cogitado para uma função ministerial porque era senador exercendo a suplência e quem ocuparia minha função no Senado seria o segundo suplente, que era prefeito de Campinas. Teria de renunciar à prefeitura para assumir o Senado. Aconselhei-o a aceitar o ministério, sem que me houvesse perguntado.

Quiseram os fatos que fôssemos amigos. Em Paris, mais de uma vez fiquei no seu apartamento. Da mesma maneira, inúmeras vezes Celso ficou em meu apartamento em Brasília quando eu era senador.
Também frequentes foram nossos encontros quando morávamos na França. Ao longo de 1961, Celso, Luciano Martins, de quem ele era muito chegado, eu, e, eventualmente, Waldir Pires almoçávamos juntos.

A amizade, que se manteve, nunca me fez esquecer que foi com seus livros, especialmente A Formação Econômica do Brasil, que comecei a entender as mudanças que ocorreram no País.

Quando, em 1964, estivemos (Celso por alguns meses antes de ir para Yale) a viver em Santiago, moramos juntos. E conosco Francisco Weffort e Wilson Cantoni. Celso havia trabalhado antes na Cepal e, além de ser amigo dos economistas chilenos, era admirado por Prebisch, nosso inspirador e chefe do Ilpes e do BID.

Não sei de outro economista (mais do que isso: cientista social) que tenha influenciado tanto a minha geração como Celso. E muitas outras mais. Não só pelo que renovou na visão sobre a economia (somando Keynes a Prebisch e Kaldor), mas como homem público exemplar.

Inteligente, culto e modesto. Dele as gerações futuras não apenas se recordarão, como lhe serão agradecidas. Celso mostrou-nos o quanto a economia brasileira se integrava à economia mundial e como sem uma ação do Estado teria sido impossível (ou muito mais difícil) avançar tanto quanto avançou. Além do mais, sabia escrever: iniciara a vida na literatura.

O mesmo digo sobre Florestan Fernandes: homem de cultura enciclopédica, conhecia tanto sociologia como antropologia e os escritos dos economistas clássicos não eram misteriosos para ele. De Marx a François Simiand, conhecia-os bem. Mais do que isso: desvendou não só os males da escravidão e dos preconceitos de cor, como também mostrou as bases burguesas em que se assentava o poder no Brasil. Amava as pesquisas, tanto as sociológicas como as antropológicas, mas sabia que sem hipóteses os dados não falam. Sabia interpretar o que conhecia pelas pesquisas. A ele devo o ter-me dedicado à sociologia, que era sua paixão.

Do mesmo modo que no caso de Celso, os escritos de Florestan vieram para ficar. Tanto os sobre A Organização Social dos Tupinambá e A Função Social Da Guerra Na Sociedade Tupinambá, como os estudos sobre os negros no Brasil e sobre o caráter pouco democrático da nossa forma de viver e, sobretudo, de mandar. É de intelectuais dessa têmpera que o Brasil precisa. Que pesquisem e saibam antever o que pode acontecer. Sem medos nem arrogâncias. Com sabedoria.

*Sociólogo, foi presidente da República


Fernando Henrique Cardoso: Tempos confusos

Se não souber falar, se tiver dúvidas, que o presidente se cale. Como na última semana

Tempos confusos os que temos vivido. A tal ponto que estranhamos o que aconteceu no meio da semana: chamou a atenção o fato de o governo não haver arranjado nenhuma confusão nova. Isso depois de, sem se dar ao luxo de explicar melhor ao País as razões, o presidente haver dispensado vários ministros nas pastas da Educação e da Saúde. Pelo menos até a última sexta-feira, quando escrevo este artigo, não demitiu ninguém ou ninguém se sentiu na obrigação de abandonar o Ministério. Nem mesmo se viu o presidente ou seus porta-vozes atribuírem à oposição ou a alguém mais notório o estar “conspirando”. Daí a calmaria.

É assim que vai andando o atual governo, meio de lado. Sem que os “inimigos” façam qualquer coisa de muito espetacular contra ele, é ele próprio que se embaraça com sua sombra. De repente, quando não há nenhum embaraço novo, nenhuma “crise”, o presidente não se contém: fala e cria uma confusão.

É verdade que o governo federal não teve sorte. Não foi ele que criou a pandemia que nos aflige nem a paralisação da economia, que já vinha de antes. Mas a confusão política, desta ele se pode apropriar: foi coisa inventada pelo próprio presidente e seus fanáticos.

Por certo ela se agrava com a crise econômica e a da saúde pública. Mas o mau gerenciamento das crises e da política é o que caracteriza os vaivéns do governo Bolsonaro. No Congresso Nacional e nos tribunais (apesar de tão malfalados nos comícios pelos adeptos presidenciais) tem havido resistências à inação governamental e a suas investidas contra as instituições.

Comecemos pelo que mais importa, a saúde pública e a de cada um de nós. O governo federal desconsiderou os riscos da situação epidêmica no início e, depois, passou o bastão às autoridades locais. Compreende-se que sejam estas, mais perto das populações, a gerenciar o dia a dia. Mas o papel simbólico é sempre, para o bem e para o mal, de quem exerce a Presidência da República, tenha ou não culpa no cartório. Além disso é o que prescreve a Constituição, no seu artigo 23, sobre as competências comuns, entre as quais está a de zelar pela saúde pública, como deixou claro o Supremo Tribunal Federal (STF) em sua decisão a esse respeito.

Da mesma maneira é inacreditável que em tão pouco tempo o governo haja substituído dois ministros na pasta da Educação e que o País ainda não saiba quem será o próximo ministro. Os anteriores o pouco que fizeram foi suficiente para darmos graças por se terem afastado. Mas quem virá? E logo numa área crucial para o País.

Governo que não tem rumo nas principais áreas sociais dificilmente encontrará a lanterna mágica para nos levar a bom porto. Não são apenas pessoas mal escolhidas. É a falta de projetos, de esperança, o que nos sufoca.

Talvez esteja aí a falta maior do presidente: ele fala como qualquer pessoa, o que pode parecer simpático. É um [ ]uomo qualunque[/ ]. Diz o que lhe vem à cabeça, como qualquer mortal. Mas esse é o engano: o papel atribuído pelas pessoas ao presidente, qualquer deles, exige que ele, ou ela, mesmo sendo simples (para não dizer simplório), não pareça ser tão comum na hora de decidir ou de falar ao povo sobre os destinos da Nação.

Em certos momentos muita gente no País pode até apreciar a semelhança entre si e o chefe de Estado. A maioria mesmo: pois não foi ele quem ganhou as eleições? Afinal o presidente, dirão, é uma pessoa como qualquer outra. Mas quando há crises é quando mais se precisa que haja comando, rumo. Talvez por isso os “homens comuns” no poder acabem por ser incomuns, singulares na sua incapacidade de definir um rumo. Quando têm personalidade autoritária, investem e esbravejam contra as instituições democráticas. No Brasil, elas têm respondido bem ao desafio.

Onde iremos parar? Não tenho bola de cristal, mas é melhor parar logo. Se pudesse eu lhe diria: presidente, não fale; ou melhor, pense nas consequências de suas falas, independentemente de suas intenções. Sei que é difícil, afinal eu estava em seu lugar quando houve o “apagão” e também durante algumas crises cambiais. Não adianta espernear: vão dizer que a “culpa” é sua, seja ou não. E, no fundo, é sua mesma. Não se trata de culpa individual, mas política. Quem forma o governo (sob circunstâncias, é claro) é o presidente. A boca também é dele. Logo, queiramos ou não, sempre haverá quem pense que o presidente é responsável. Vox populi, dir-se-á…

É assim em nosso sistema presidencialista. E talvez seja assim nas sociedades contemporâneas. Com a internet as pessoas formam redes, tribos, e saltam as instituições. Por isso é mais necessário do que nunca que haja lideranças. Em nossa cultura e em nosso regime, já de si personalistas, com mais forte razão os líderes exercem um papel simbólico, falam pela comunidade. O líder maior é sempre o presidente, pelo menos enquanto continuar lá. Por isso é tão importante: se não souber falar, se tiver dúvidas, que o presidente se cale. Como nesta última semana.

Melhor, contudo, é que se emende e fale coisas sensatas, que cheguem ao coração e façam sentido na cabeça das pessoas razoáveis.

*Sociólogo, foi presidente da República


Fernando Henrique Cardoso: Tempos incertos

O que nos tem faltado é quem inspire confiança em nós mesmos, em lugar de ódio e rancor

Os tempos modernos caracterizam-se pela racionalização crescente, dizem os cientistas sociais. Se é verdade que nas culturas mais simples as crenças ditavam o que se devia fazer, com a complexidade do mundo contemporâneo, sobretudo pós-industrialização, a ciência substituiu as crenças. Se isso não vale para o transcendental, devia valer como baliza para as decisões, em especial as que implicam responsabilidade pública.

A ciência serve de guia para recomendar o provado, não elimina a necessidade de juízo político e moral sobre decisões a tomar. Dilemas difíceis chegam em situações de grande incerteza, como agora, pois não só o futuro parece indefinido, mas o presente se mostra volátil. Nestas horas é que mais se requerem lideranças para responder a desafios que exigem soluções complexas. É tarefa de todos ajudar nos resultados a partir do que se alcançou com o conhecimento. Mas os rumos são de responsabilidade moral dos que lideram. Cabe a eles decidir com base no conhecimento, pensando no que é bom ou mau para as pessoas.

Comentaristas repetem que enfrentamos uma “tempestade perfeita”. Chove e venta copiosamente: o coronavírus é pandêmico, a economia mundial está capenga, para não dizer paralisada ou regredindo, e em muitos países os donos do poder creem em mitos – que não são como os dos primitivos, aos quais não havia saber que se contrapusesse.

Assustados com a tempestade, os que, além de crer neles, pensam encarnar mitos, assumem ares de valentia. Na verdade, receiam que sua força se esvaia no confronto com a realidade, que não compreendem. Buscam culpados e inimigos, em vez de diálogo e convergência para atravessar o temporal com o menor dano possível para a economia e as pessoas, sobretudo as do andar de baixo.

Os que mandam nem sempre entendem os sinais de outros setores da sociedade. Desde que inventaram o “nós” contra “eles”, o adversário virou inimigo. E com inimigo não se conversa, se destrói. A menos que se renda e, ajoelhado, repudie suas ideias “subversivas”, que corroem a “ordem”. Não foi o atual governo que nos enredou e se amarrou nessa disjuntiva sinistra, mas a responsabilidade por sua solução é também de quem nos governa.

Em nosso país, com uma tempestade perfeita, o “nós” contra “eles” é criminoso. A vítima é a estabilidade da democracia, conquista civilizatória que nos tem permitido resolver os conflitos políticos de modo pacífico. Quem a põe em xeque ou silencia ante vozes autoritárias não é conservador, é atrasado, tem teias de aranha na alma. É promotor da instabilidade e conivente com o retrocesso civilizatório. Alguns são cultores da violência, do fanatismo e da ignorância. Subversivos são os que assim procedem, não quem ergue a voz para preservar o patrimônio comum de todos os brasileiros: a democracia que construímos.

Esta consideração alcança todos, mulheres e homens, civis e militares, conservadores, liberais ou progressistas. Só os reacionários, que têm no atraso sua bússola, não veem a distinção entre inimigos e adversários. Estes podem ter visões e objetivos diferentes dos que prevalecem nos que mandam, mas, se respeitadas as decisões da maioria, as leis e a Constituição, a diversidade, a diferença, fazem parte do jogo da democracia. Quando se substitui esta noção pela distinção entre “bons” e “maus” como se houvesse uma guerra permanente, começa-se por querer eliminar os “inimigos” e se termina por matar a democracia.

São tempos incertos os que vivemos. Neles a liderança deve apelar à racionalidade, ao bom senso, ao sentimento de solidariedade e de unidade nacional, admitir que não há caminhos fáceis nem soluções mágicas, e o País deve buscá-los de braços dados. O Brasil tem vulnerabilidades, como os grandes aglomerados urbanos onde milhões vivem do trabalho informal em moradias precárias. Sem falar dos desempregados e dos que perderam condições de se empregar. Tem limitações fiscais, que podem e devem ser flexibilizadas num momento de emergência social e econômica, mas não podem ser desconsideradas. E tem ativos como o SUS, instituições de pesquisa científica como a Fiocruz, universidades como a USP e outras, epidemiologistas de categoria internacional, militares e funcionários devotados ao serviço público, uma sociedade civil ativa, governadores e prefeitos que arregaçaram as mangas para enfrentar o desafio, uma imprensa atenta e instituições públicas de controle a zelar pelo bem comum, etc.

O que nos tem faltado é quem inspire, em vez de ódio e rancor, confiança em nós mesmos. Esta requer serenidade de quem busca despertá-la nos compatriotas; exige compostura, capacidade de convencer pelas ideias, e não pela ameaça.

O Brasil já contou com políticas e políticos que despertavam confiança. Convivi com Tancredo Neves, homem de fala mansa, mas de valores firmes. Foi um político de diálogo, atento à necessidade de buscar denominadores comuns em momentos críticos. E com Ulysses Guimarães, que sabia aliar ao diálogo a firmeza, quando necessário. E assim outros.

Que sua lembrança nos inspire a fazer frente aos arreganhos autoritários com firmeza e serenidade. E novos líderes encarnem o espírito enérgico e conciliador que marcou boa parte de nossa liderança, para em 2022 não se repetir a escolha trágica de quatro anos atrás.

*Sociólogo, foi presidente da República


O Estado de S. Paulo: FHC teme que Forças Armadas possam tomar ‘gosto pelo poder’

Ex-presidente também disse que Sérgio Moro não deveria ter deixado a magistratura e assumido a pasta da Justiça no governo Bolsonaro

O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso mostra preocupação com a possibilidade de que as Forças Armadas possam se apegar ao poder em um governo com cada vez mais militares e enxerga no país um cenário político com o Legislativo e Judiciário tentando preencher vazios deixados por um Executivo que, de acordo com ele, está “cambaleante” e “sem rumo definido”.

“Há muitos (militares no poder) e cada vez mais. E isso é uma fragilidade política do governo”, afirmou FHC, de 88 anos, em entrevista à Agência Efe por videoconferência em sua residência, em São Paulo. “Não podemos permitir agressões contra a Suprema Corte, contra o Congresso, que vão contra a democracia”, acrescentou.

Na entrevista à Efe, o ex-presidente também opinou que Sergio Moro não deveria ter deixado a magistratura e assumido a pasta da Justiça no governo de Jair Bolsonaro. “Creio que ele se equivocou ao aceitar ser ministro. Não por ser ministro do Bolsonaro, mas porque trocou o âmbito da Justiça, no qual atuou a vida toda, pelo Executivo, e ficou em uma situação delicada, porque não era um homem predisposto a estas funções (políticas)”, comentou.

Leia abaixo a entrevista.

O senhor chegou a pedir nas redes sociais a renúncia de Bolsonaro. Mantém essa posição?

Na política interna, sou duro com ele. Não porque não gosto dele ou porque não é do meu estilo, mas porque ele exagera. Não podemos permitir agressões contra a Suprema Corte, contra o Congresso, que vão contra a democracia. E ter casos em que o presidente participe dessas agressões é grave. Os que têm força política têm que se expressar em defesa da democracia. Neste momento, quando se nota que o Executivo está cambaleante e não tem um rumo definido, o que acontece? Os demais órgãos constitucionais, a Suprema Corte, os Parlamentos, começam a ocupar o vazio de poder, e isso é perigoso.

Bolsonaro está mal assesorado, recebe influência negativa dos filhos? Qual é o problema com o governo?

Não estou lá, nem o conheço. Bolsonaro era deputado, eu era senador, ministro, presidente. Nunca o vi. Ele queria me matar uma vez, (disse que) queria atirar em mim (em referência a uma declaração de Bolsonaro no final dos anos 90), porque me acusou de ser neoliberal. Eu não o conheço, nem conheço seus familiares. Para os presidentes, há sempre o risco de que a família comece a opinar demais. O povo escolheu o presidente, não sua família. Que a família fique em silêncio.
No caso dele (Bolsonaro), é mais complicado, porque os três filhos mais velhos têm mandato político próprio (Flávio é senador, Carlos é vereador no Rio de Janeiro, e Eduardo, deputado federal).

É importante observar o que está acontecendo nos Estados Unidos. Trump incentiva a posição “America First” (“EUA primeiro”), e isso leva a uma atitude isolacionista. Se o Brasil tem uma grande vantagem neste mundo confuso, é por estar longe da China e dos EUA. Podemos exportar para ambos. A China é o cliente número 1, e os EUA são o número 2, e não há por que o Brasil se alinhar a um dos dois polos, se é que são polos.

Sobre a ideologia que é propagada por (o ex-estrategista de campanha de Trump, Steve) Bannon nos EUA, aqui (no Brasil) há um senhor de quem nunca ouvi falar (o filósofo Olavo de Carvalho) e que está sendo muito propagado, e não é importante culturalmente falando, mas politicamente sim, porque inspira ações da família presidencial. Então há um movimento nessa direção, o que eu acho perigoso.

Alguém mencionou que o Brasil se pareceria com a Itália entre guerras de Mussolini. Mas Mussolini era uma pessoa muito culta se comparada ao atual aqui (Bolsonaro). Não tem nada a ver com Mussolini, o que acontece aqui é que não há uma visão ideológica organizada, aqui há um impulso instintivo que considera algumas coisas como mundo ‘globalista’, que há um ‘marxismo globalista’. Não tenho idéia do que seja, e as pessoas entendem como verdade. A situação é verdadeiramente preocupante, mas ele tem legitimidade, porque foi eleito pelo voto popular.

Qual leitura o senhor faz da ala militar do governo?

Os militares aprenderam com o que aconteceu no passado. Eles sabem que devem respeitar a Constituição e, pelo que sei, essa é a posição oficial das Forças Armadas. Agora, todo governo que começa a ser fraco, a não ter força, nomeia militares. Lembro-me de (Salvador) Allende, no Chile, quando começou a nomear militares. Aqui também, quando os governos não são fortes, eles dependem das Forças Armadas, e acho que isso é um risco para as Forças Armadas, porque elas passam a ter gosto pelo poder.

Entretanto, isso ainda não aconteceu aqui, mas pode, porque há muitos (militares no poder) e cada vez mais. E isso é uma fragilidade política do governo, não uma força. Sob a condição de que a força regular permaneça em uma posição pró-Constituição, nada acontece. Mas se as Forças Armadas, independentemente do que possa acontecer, se colocarem na posição de apoiar incondicionalmente o presidente, isso é grave, e a unidade democrática morre. Não acho que estejamos nesse processo e não acho que essa seja a opinião das pessoas ativas nas Forças Armadas.

Meu pai era general, e meu avô, marechal. Tenho um certo conhecimento quase empático dos militares. No passado, eles eram mais políticos, depois se profissionalizaram. Há uma questão que qualquer militar, depois de um certo ponto, não aceita: a desordem. Então eles tentam trazer ordem, e isso é perigoso. Pode acontecer? A pandemia está servindo como uma vacina para demonstrações de rua. Acredito que políticos, profissionais e jornalistas têm a responsabilidade de alertar o país para que não cheguemos a um ponto de desordem, porque depois chegam os militares, e eu não quero isso. É ruim para o país e para eles, que serão responsabilizados pelo que acontecer.

Como o senhor analisa as saídas de Sergio Moro (ex-ministro da Justiça) e Luiz Henrique Mandetta (ex-ministro da Saúde) do governo?

Vi Sergio Moro duas vezes na minha vida. Creio que ele se equivocou ao aceitar ser ministro. Não por ser ministro do Bolsonaro, mas porque trocou o âmbito da Justiça, no qual atuou a vida toda, pelo Executivo, e ficou em uma situação delicada, porque não era um homem predisposto a estas funções (políticas).

E qual foi a consequência imediata de uma saída como a do ministro da Saúde (Mandetta)? Na minha opinião, uma saída doida, irracional. O prestígio do presidente está diminuindo. Muitos o apóiam, mas não são a maioria. (A saída de) Mandetta não teve tanto efeito, mas Moro era um pilar.

E o outro pilar, que é o ministro da Economia (Paulo Guedes), muito bem visto pelos empresários, tem um projeto que não pode mais ser aplicado. Ele tem uma visão que certamente estava certa no passado (ajuste dos gastos públicos), necessária, mas com a pandemia a visão é de gastar mais e aumentar a dívida pública.

Como o senhor avalia o combate à Covid-19 no Brasil, onde o presidente não segue à risca as recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS)?

O pior é que atingiu as áreas mais populares. Para mim, nada muda, mas quando uma pessoa vive na periferia de São Paulo, na miséria, em uma favela, com muitas pessoas em casa, sem conforto… as pessoas têm que ir às ruas (…) Mesmo que haja recomendações da OMS para que fiquem em casa, para as pessoas mais pobres é um castigo, porque é impossível. Além disso, há uma falta de liderança. Às vezes, o presidente (Bolsonaro) está com outras pessoas na rua sem usar máscara, como se nada tivesse acontecido (…) É perceptível que a falta de coordenação é prejudicial, ainda que o Brasil tenha a vantagem de um sistema de saúde gratuito e universal.

Alguns políticos, inclusive juristas, consideram que Bolsonaro pode ser processado na Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) por não seguir as recomendações da OMS. O senhor considera plausível?

Não vejo que tenha muito o que fazer (a CIDH), outras oportunidades foram perdidas quando houve violência, tortura… O atual presidente tem essa visão de amigos e inimigos, o que não ajuda para o que é necessário agora, que há mais coesão para combater um inimigo comum (coronavírus). É um sério fracasso político, mas não acho que será resolvido com impeachment, por enquanto. Dependerá de como o presidente agir. Estou muito preocupado com o que virá depois da pandemia (…) Haverá muita gente desempregada.

Por outro lado, meu sentimento é de que não há pressão militar para a queda do presidente. Os militares, felizmente, há muito tempo respeitam a Constituição. Não podemos nos distanciar do quadro constitucional, pois isso seria muito perigoso para as instituições e para a liberdade. Não há inimigos da liberdade, a imprensa é livre, a Justiça funciona e não existe tal sentimento como vivi em outros tempos (alusão à ditadura).


Fernando Henrique Cardoso: Não esquecer

Passada a tormenta, vê-se que o barco tem bons motores, apesar de maus navegantes

O tema é repetitivo e desafiador: o coronavírus. Procuro me afastar dele dia e noite, mas ele nos envolve. O vírus está por toda parte, principalmente em nossa alma. Meus pais tinham na memória a “gripe espanhola”. Quiseram de novo tachar o coronavírus como “vírus chinês”. Não pegou, e ainda bem. A propagação do vírus pelo mundo faz-me recordar a advertência do Antigo Testamento: “Pulvis est et in pulvis reverteris” - somos pó e a ele voltaremos. Diante da morte, somos todos iguais. O vírus não distingue gênero, idade, riqueza ou o que seja. Mata muitos e se não nos cuidarmos... Às vezes até mesmo nos cuidando.

Será que esta pandemia servirá para nos darmos conta disso? Sei bem que os humanos têm memória, mas também têm a capacidade de esquecer. Passada a crise, poucos se lembrarão dela. Mas suas marcas vão permanecer e delas devemos cuidar.

Na minha geração não se pode dizer: “Nunca vi tanto horror perante os céus”. Os terremotos matam indiscriminadamente. As guerras também. A bomba atômica dizimou centenas de milhares, e por aí vai. Isso não diminui o pavor diante do que está acontecendo e do que poderá acontecer. A situação obriga-nos a mais humildade e a reconhecer que a desigualdade faz os mais pobres pagarem o preço mais alto das tragédias pandêmicas.

O coronavírus chegou ao Brasil “de avião”. Pessoas das classes mais altas (quanto à renda) viajam mais. No começo foram as que se contaminaram. Agora se vê que é enorme a propagação do vírus nas periferias pobres, nos cortiços, nas comunidades urbanas que ontem chamávamos de favelas (desde a revolta de Canudos, quando os soldados regressavam das campanhas e se amontoavam no Morro da Favela, no Rio). O atendimento da saúde “não dá conta”.

É injusto cobrar só do SUS as falhas havidas. Não fosse ele, só os que podem pagar os serviços médicos e hospitalares seriam atendidos. Ele atende de modo universal. Mas é possível cobrar de quem decide o porquê de tanta “falta”: falta equipamento para os atendimentos, faltam luvas adequadas, faltam máquinas para ajudar a respirar, falta não sei o que mais. Contudo pelo menos há um sistema de saúde pública estruturado, mesmo carente. Na bonança é difícil prever as prioridades e haverá argumentos, até mesmo econômicos, para dizer: isso não é prioritário. E não é só no Brasil que se veem dificuldades no atendimento à saúde, basta olhar para Nova York. É preciso prever.

Que pelo menos a crise atual sirva de advertência para o futuro: há que olhar com mais carinho a saúde pública, a começar pela água tratada e pelo sistema de esgotamento sanitário. Reconhecer que alcançamos melhoria na saúde não quer dizer que conseguimos o necessário. Ao sair da atual pandemia, não nos esqueçamos: ela pode voltar. Quando? Ninguém sabe. Preparemo-nos.

E assumamos que, se é verdade que a crise atual de saúde alcança todo o mundo, também é verdade que ela é mais devastadora para os mais pobres. Por enquanto (sem que se saiba até quando) não dispomos de vacinas nem de medicamentos específicos. Só resta o “isolamento social”. O refrão “fiquem em casa” está por toda parte. Mas que casa? Para os que dispõem do aconchego familiar e dos meios necessários, trabalhar em casa é suportável. Mas quando as pessoas moram empilhadas, sem conforto mínimo, que fazer? Vão para a rua e nem sempre guardam a distância recomendável. E os que trabalham em situações que são essenciais para a sociedade continuar a funcionar, nas fábricas, nos hospitais, no transporte ou onde seja, também ficam em casa? Haverá dois pesos e duas medidas?

Não acho que o mote esteja errado. Ao contrário. Mas urge ampliar nosso senso de realidade. Espero que a gratidão seja concreta para alcançar os que, não tendo meios para ficar em casa, vão à luta. Nesta, que usem máscaras, tomem os cuidados necessários e façam o possível para derrotar o vírus. A luta é dos governos, mas também é de cada um de nós.

O que é descabido é a insensibilidade diante do que acontece, sem ver que estamos imersos num mau momento. Precisamos de coesão. Insistir em que se trata de uma “gripezinha”, ou que “eu fui atleta” e nada me acontecerá, é mais do que equivocado. É irresponsável.

Além de recursos financeiros, precisamos de coesão. Na crise viramos “keynesianos”, cremos que é necessário gastar, pois “o governo” tem de salvar as empresas e as pessoas. Mas nada substitui o carinho, o dar a mão aos que mais precisam e sofrem. Não apenas à moda antiga, dos bons samaritanos. Passada a tormenta, vê-se que foi possível ultrapassá-la porque o barco tem bons motores, apesar de maus navegantes.

Não basta escolher quem é “do contra”. Os governantes precisam saber decidir e entender que nas sociedades contemporâneas as redes de internet pesam na eleição, mas não dá para governar “contra”. Para fazer frente à situação de tantas crises, fazem falta o senso comum e o do universal. Só juntos se constrói uma nação. A escolha foi e, espero, será nossa, de cada um. Que o erro não se repita. Assim teremos aprendido com a crise.

*Sociólogo, foi presidente da República


Fernando Henrique Cardoso: Durante e depois da crise

Abra-se o Tesouro para garantir a sobrevivência das pessoas e empresas, depois se vê como pagar

Estamos atravessando tempos bicudos. Não só por causa do coronavírus, mas também porque há um vazio político no mundo. Quando não, há uma histeria direitista sem que se veja o “outro lado” do espectro. Ou sumiu, ou os tempos são outros e mesmo a antiga divisão, que persiste, entre esquerda e direita - com suas variantes ao redor de um centro abstrato - não dá mais conta das reais adversidades do mundo contemporâneo: aquecimento global, substituição de mão de obra por “máquinas inteligentes” e agora, como se fossem poucas as tormentas, as pandemias.

Estou, como bom cidadão - e idoso -, fazendo esforço para me isolar. Confesso que ando cansado de ouvir tanta gente, a toda hora, falando de doenças e mortes. Não me refiro aos especialistas, como o ministro da Saúde, que precisam mesmo falar. Ele tem sido competente, claro e sensível às necessidades do momento. Certos presidentes melhor que não falem, pois falam e “desfalam” ao sabor das circunstâncias, despreparados para entender o presente e, mais ainda, para projetar o futuro.

Sei que é difícil. Na última sexta-feira, assisti no Zoom (ah, quantos inventos de interlocução sem a presença das pessoas foram criados no mundo e como são úteis...) a uma discussão, organizada pela Fundação FHC, entre o ex-embaixador do Brasil na China Marcos Caramuru e um especialista americano em economia chinesa, Arthur Kroeber.

Além dos impactos econômicos da pandemia, discutiram o que poderá acontecer com a geopolítica mundial depois da crise. Kroeber afirmou que a crise reforça a posição dos setores mais duros da sociedade e do governo americano, que veem na China uma ameaça, um vírus a ser contido. O embaixador Caramuru acredita que, se essa visão prevalecer nos Estados Unidos, crescerá a influência chinesa no mundo. Para ele, só os Estados Unidos veem a China como adversária implacável da paz e da prosperidade. Os demais países - nós incluídos - deveriam aproveitar os espaços econômicos no futuro para aumentar nossas exportações e induzir os chineses a fazerem mais investimentos aqui.

É certo que é preciso pensar no depois. Os países e seus povos não vão acabar. A crise virótica, por mais difícil e custosa que seja em termos de vidas e de recursos, um dia vai passar. Mas, e antes disso, durante a pandemia? O óbvio já disse acima e a maioria das pessoas sabe e compartilha: nada, se possível, de ir à rua ou juntar-se com outras pessoas. Estamos todos (os que podemos...) como prisioneiros, não por ordem da Justiça ou pelo arbítrio dos poderosos, mas para tentarmos nos salvar e salvar os outros.

Aproveitemos para pensar no estilo de vida que vivemos. A solidariedade, no cotidiano da maioria das pessoas, transformou-se em mera frase, sem correspondência em atos. Por que não aproveitar a prisão voluntária para pensarmos um pouco mais sobre nós mesmos, nossa família, os amigos, os vizinhos e a sociedade mais ampla?

Sei que para alguns a adaptação em casa é mais fácil. Eu próprio aproveito para escrever e ler. Mas, e as pessoas que vivem nas favelas ou nas periferias sem verde algum, apinhadas sob um mesmo teto? E as que perderão o emprego como consequência indireta do coronavírus? Portanto, ao mesmo tempo que mergulharmos em nossa consciência para ver se ainda somos humanos, é hora de pensar também em como transformar em gesto a intenção de ser solidário. Não faltam boas iniciativas da sociedade civil para angariar e canalizar doações.

Sem diminuir a importância dessas iniciativas, a ação decisiva é dos governos. Os economistas não sabem qual será a profundidade da crise e em quanto tempo virá a recuperação. Mas num ponto a maioria concorda: às favas (por ora!) a ortodoxia e os ajustes fiscais. Voltamos aos tempos de Keynes e, quem sabe, os mais apressados deixarão de jogar os “social-democratas” na lata de lixo da História.

Os governos, e não só o daqui, começam a perceber que é melhor gastar já e salvar vidas do que manter a higidez fiscal e produzir cadáveres e depressão econômica. A dívida pública vai aumentar. Depois se verá como pagá-la. Este se é dúbio: em geral a maior parte da conta vai para o conjunto da população, e não para os que mais podem. Terá de haver mobilização política para que desta vez seja diferente.

Que o Tesouro se abra (e se já estiver vazio, que se endivide ainda mais). Com um porém: que os governos usem bem o dinheiro e não transformem gastos extraordinários em gastos permanentes. Melhor haver um “orçamento de guerra” do que criar bazucas permanentes contra o Tesouro.

É disto que se trata: reforçar estruturalmente a saúde pública e a ciência básica, fazer gastos extraordinários para garantir a sobrevivência das pessoas e das empresas mais vulneráveis e, mais à frente, distribuir com equidade a carga de impostos para reduzir o déficit e a dívida pública, que vão crescer inevitavelmente.

*Sociólogo, foi presidente da República


Fernando Henrique Cardoso: É hora de ação coordenada e de ter rumo

Não é hora de jogar pedras. Nem de fazer elogios descabidos. É hora de ação coordenada e de ter rumo. É este o papel principal de quem exerce a Presidência e demais posições governamentais. O coronavírus não é culpa de ninguém: aconteceu. Como outras tragédias já ocorreram com a humanidade.

Ainda bem que, apesar da tragédia das doenças, dispomos no Brasil de algumas vantagens: as informações fluem e o SUS existe. Além de existir uma indústria farmacêutica que pode rapidamente se adaptar às nossas necessidades. Poucos países (nenhum capitalista e com mais de 100 milhões de habitantes; nós temos mais de 200) possuem um sistema nacional de saúde capaz de atender, de modo universal e gratuito —só no ano de 2019 foram 12 milhões de internações hospitalares e mais de 1 bilhão de consultas ambulatoriais. Nós dispomos dele.

Antes do SUS, havia atendimento médico gratuito para as corporações e para o funcionalismo civil e militar. Os pobres tinham de recorrer às santas casas de misericórdia. Foi na Constituinte de 1988, com o empenho de deputados que eram médicos sanitaristas e de uns poucos que apoiaram as reivindicações deles que houve, finalmente, a decisão de criar o SUS, tomada pela maioria.

Sua posta em prática se deve a ministros como Adib Jatene, César Albuquerque e José Serra e a funcionários do calibre do então secretário-geral do ministério, Barjas Negri.

Mas deve-se, principalmente, à dedicação de médicos, enfermeiros, atendentes e funcionários, tanto do setor público quanto do privado, que foram capazes de dar vida a uma instituição que hoje é básica, o SUS. E às faculdades de medicina, assim como as de enfermagem, que formam profissionais competentes para trabalhar em hospitais que, na ponta, têm qualidade.

Cabe aos governos, diante da crise atual de saúde, atuar. Escrevo governo no plural, pois, além do governo federal, existem os estaduais e os locais. Estão tentando agir. Não é fácil: requer coragem, competência e coordenação. E não requer choques desnecessários com a mídia, mas deixá-la fazer seu papel, importantíssimo, de informar às pessoas o que fazer e aos governos o que ainda falta fazer.

Não cabe, como há pouco ocorreu, assistir a um ir e vir de opiniões sobre se convém ou não o isolamento total, se a prioridade é para garantir a produção e os empregos ou a saúde do povo. Não são metas incompatíveis, há que cuidar dos dois lados, da saúde e da produção. O que não cabe mais, diante de “tanto horror perante os céus”, é discutir se primeiro é isso, depois é aquilo. A mensagem de todos deve se dirigir a todos, sem dar sinais, mesmo que retóricos, de que ao cuidar de um lado vamos nos esquecer do outro.

Foi o que faltou ao presidente. Foi o que fez, corretamente, o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta. Com palavras simples e deixando transparecer sentimento, explicou o que acontece e o que é preciso fazer. Agora, cabe a cada um de nós, uma vez informados pela mídia e pelos agentes de saúde, fazer o que nos corresponde. Uma crise da magnitude da atual não se resolve só pelo governo. Nem sem ele. Mas requer, sobretudo, compreensão e ação de todos.

Não é fácil ficar parado. Teremos de inventar, por um tempo, o que fazer mesmo se estivermos isolados de nossos locais de trabalho, como ocorre muitas vezes. Ou, quando estamos neles, melhor estarmos mais distanciados fisicamente uns dos outros do que habitualmente fazemos.

Por quanto tempo? Ninguém sabe, de ciência certa. Vamos cumprir o devido e esperar que quarentenas e isolamentos não durem muito. Convém que os que mandam digam por quanto tempo e deem esperanças a quem cumpre o isolamento, mas nem eles sabem. Só sabem o que nós todos sabemos, principalmente os mais velhos: se não fizermos nada será pior, e talvez alguns de nós não tenhamos mais a oportunidade de fazer qualquer coisa.

Mas não deixemos de lado a esperança de que dias melhores virão. É boa a ideia de separar um orçamento, “de guerra”, para os dias que correm e manter a noção de que tanto reformas como tetos de gasto só não serão cumpridos pelas circunstâncias. Mas não nos iludamos: os bancos, especialmente os públicos, precisarão soltar dinheiro, o governo há que provê-lo, as contas não vão fechar. Juntos, porém, seremos capazes de ultrapassar os maus momentos que atravessamos.

*Fernando Henrique Cardoso, ex-presidente da República (1995-2002), é sociólogo e professor emérito da USP.


Celso Lafer: ‘Diários da Presidência, 2001-2002’

No errático momento atual do Brasil, a palavra e a sabedoria de FHC merecem atenção

A publicação deste quarto volume finaliza o disciplinado empenho de Fernando Henrique Cardoso em dar acesso ao registro que fez do dia a dia de suas atividades nos oito anos que presidiu o País. É empreitada de largo fôlego, cujo enredo esclarece como caminhou sem perder o rumo no “grande sertão” da política brasileira no democrático exercício das responsabilidades da Presidência.

É uma obra original na sua feitura. Não é um diário na acepção usual da literatura confessional da sensibilidade de estados de espírito. Nada tem que ver com uma burocrática agenda comentada do expediente do dia a dia. Não é uma autobiografia política, mesmo porque o registro feito no calor da hora não permite uma narrativa organizadora, decantada pela memória da experiência, no tempo mais longo da reflexão. Não é igualmente uma discussão elaborada com rigor acadêmico sobre como mesclar pensamento e ação. Essa mescla, no entanto, está presente nos Diários, pois com frequência FHC se posiciona como analista observador da ação, extraindo do cotidiano de sua experiência presidencial o alcance mais amplo dos movimentos das forças sociais e políticas, da lógica política das instituições e das pessoas com quem interagiu.

FHC tem os dotes da facilidade da narrativa. É o que dá sabor aos Diários, nos quais não falta o realismo político da objetividade nem, ocasionalmente, a acrimônia da irritação, sempre permeada pela educada civilidade que caracteriza o seu modo de ser.

Todos os ingredientes dos gêneros acima mencionados têm presença, mas não dão a identidade intelectual dos Diários da Presidência. Trata-se de uma obra singular, única na sua amplitude, no campo da ciência política sobre o que é o processo decisório no ápice do sistema político brasileiro. “Governar é escolher”, afirmou Mendès-France, e os Diários explicitam circunstanciadamente, com a disciplina da responsabilidade, “de dentro”, e não “de fora”, o desafio de conduzir a pauta decisória de um país grande e complexo.

Não são triviais os riscos desses desafios. Passam por não se afogar na avassaladora demanda dos pleitos da vida política, para não reduzir o governo à mera rotina da “politique politicienne” de que falam os franceses. Exige coragem e capacidade de enfrentar os graves riscos do inesperado, que tem o potencial de descarrilar um governo. Disso são exemplos as múltiplas crises financeiras que superou. Não prescinde da aptidão na lida com a resistência que a realidade impõe a uma ação inovadora.

Enfrentar esse desafio requer a qualificada competência de liderança dotada de visão do País baseada na experiência e no conhecimento e com antenas para o movimento das coisas, entrelaçada com o ânimo da “ideia a realizar” dos novos rumos a serem trilhados. Os componentes estratégicos do fim, do caminho e da vontade estão sempre presentes na impregnação dos rumos norteadores do processo decisório que permeia os Diários e no modo como FHC direcionou e acompanhou o trabalho dos seus ministros e colaboradores.

No explicar e compreender, fluem as razões das políticas públicas da gestão da economia e da sua consolidação institucional, da atenção dada às de educação e saúde e ao papel que tiveram no resgate da dívida social do País, das relacionadas à tutela dos direitos humanos e da sustentabilidade ambiental e de uma miríade de medidas voltadas para a melhoria das condições do País, como a elevação generalizada dos indicadores do desenvolvimento humano na sua gestão revela.

Também tem destaque a dedicação a um novo patamar de presença e de credibilidade do Brasil no globalizado mundo contemporâneo, voltado para assegurar a tradução de necessidades internas em possibilidades externas. Nessa matéria os Diários ilustram os méritos e o alcance de uma diplomacia presidencial, conduzida com pleno domínio das prioridades e das relevâncias de quem sabe se orientar no mundo.

É inequívoco o inventário do positivo legado da Presidência FHC. Criou condições de um futuro melhor para o Brasil, governando democraticamente e sem violência, com respeito pelo Estado de Direito, pelas instituições e pelas divergências de opinião.

Na sua pós-Presidência FHC se afastou da militância política diária. Criou com espírito universitário uma reconhecida instituição apartidária de estudo e reflexão e vem participando do debate público. Essa participação está norteada pelas preocupações com a agenda do presente na perspectiva do futuro, permeada pelo tema dos rumos e do sentido de direção que assinalou construtivamente o processo decisório de sua Presidência e que é parte de seu legado de homem público.

É esse lastro que confere autoridade à sua palavra. Autoridade, para me valer das indicações do politólogo Karl Deutsch, traduz-se na prioridade da transmissão de mensagens, na qualidade e na legitimidade do seu conteúdo e da sua relevância para a sociedade.

No errático e desestabilizador momento atual do Brasil, a palavra e a sabedoria acumulada de FHC merecem respeito e atenção.

* Professor emérito da Faculdade de Direito da USP, foi ministro de Relações Exteriores (1992 e 2001-2002)


Fernando Henrique Cardoso: Hora de convergir

Precisamos de grandeza para superar desafios. E de liderança: temos a que o povo escolheu. Mas o voto não é um cheque em branco

Nem parece semana de carnaval. Em lugar da modorra habitual no circuito político, muita agitação. O círculo próximo ao presidente não deu folga. Nem ele. Foi um chacoalhar o tempo todo. Agora, depois da quarta-feira de cinzas, é melhor acalmar e refletir.

Falar de impeachment (mesmo que haja nos meios jurídicos e nos tribunais superiores quem tenha considerado a hipótese cabível) seria, no mínimo, arriscado. O país viu dois presidentes diretamente eleitos serem atingidos por este mecanismo constitucional. Não é simples, ele desgasta os Poderes e deixa mágoas de difícil superação. Mais ainda: por trás da votação no Congresso e das alegações jurídicas, no impeachment existe sempre um movimento popular, que não se vê no momento. Melhor nem cogitar, prematuramente, de tal movimento.

Pelo contrário, precisamos, como nação, de mais tranquilidade: temos pela frente dois enormes desafios. Um generalizado e de consequências ainda imprevisíveis, mas todas negativas, que é a ameaça de uma pandemia, o coronavírus. Outra, sentida por todos e mais diretamente pelos mais pobres, o arrastado crescimento da economia. O desemprego passou a ser considerado como “em diminuição” quando, na verdade, ainda há cerca de 12 milhões de desempregados, fora os desalentados que nem empregos buscam mais, e sem contar a baixa qualidade de muitos dos “empregos” disponíveis. O tempo de desemprego tem aumentado. Significa dizer que parte dos que perderam o emprego terá dificuldade de reinserção no mercado de trabalho, quando o investimento voltar e novas tecnologias forem incorporadas ao processo produtivo.

Um país que está inseguro — insegurança agravada pelo temor de uma eventual pandemia — e que tem desemprego tão alto e resistente à queda precisa urgentemente de sensatez e de coordenação. Elas são necessárias para reduzir a insegurança e criar clima favorável ao investimento, sem o qual o crescimento da economia seguirá anêmico.

Nesta hora, faz falta a liderança: o presidente e seu círculo têm sido desastrados no falar, quando não no agir. Acirram, em vez de desanuviar, as ondas que nascem no meio político. Não raro, são eles próprios a produzir turbulência a partir de um impulso de confronto incompatível com o bom funcionamento das instituições e potencialmente perturbador da ordem democrática.

Felizmente, os chefes dos outros poderes, especialmente o da Câmara, percebem a situação e não lançam mais lenha à fogueira. De quem tem responsabilidade com o país se espera, no mínimo, que não compartilhe da loucura, não cale diante das tropelias, ainda que retóricas, e que não apenas tenha juízo para não acelerar ainda mais o descalabro como também aja, com prudência, mas com clareza de propósito, para colocar freios à marcha da insensatez.

Sei que é difícil, dificílimo, pedir bom senso em momentos de polarização. Mas é o de que o povo e o país precisam. Assisti muitas vezes no decurso dos acontecimentos, no Brasil e em outros países, governos de competência restrita apelar para o que lhes resta, em geral para os militares. Estes, por formação e, no momento atual, cada vez mais por convicção, sabem que a ordem não consensual e imposta por coação vale menos, para os objetivos nacionais, do que a ordem que deriva do livre consentimento das pessoas. Sabem que a ordem autocrática é pior do que a ordem democrática em que o poder está submetido a limites e controles institucionais e à soberania popular. Em quaisquer circunstâncias, entretanto, para eles, a ordem é um valor a ser preservado.

Não é para “dar um golpe” que os militares aceitam participar do atual governo. Sentem sinceramente que cumprem uma missão, diante da dificuldade ou incapacidade do governo de recrutar maior número de bons quadros em outros setores da sociedade. O risco para a democracia e para as próprias FFAA como instituição permanente do Estado é de que se borre a fronteira entre os quartéis e a política.

Como se desdobrará a situação atual? Depende de como se comportarem líderes (não só políticos, mas da sociedade toda). É hora de convergir e assegurar o que mais necessitamos: coesão em torno de princípios e objetivos de proteção da democracia contra tentações populistas de índole autoritária. Sem sufocar as divergências naturais nas democracias, é urgente restabelecer o entendimento de que adversário político não é inimigo, de que política não é guerra, de que opositores eventuais do governo não são inimigos da pátria. É preciso ativar os anticorpos democráticos para neutralizar os impulsos de estigmatizar os políticos, como se difunde em parte das mídias sociais.

Precisamos de grandeza para superar nossos desafios. E de liderança: temos a que o povo escolheu. Mas o voto não é um cheque em branco e acima de qualquer mandatário está a Constituição. Termino citando de memória palavras de Ulysses Guimarães: divergir da Constituição, alterá-la por meio de emenda, sim; desrespeitá-la jamais.

*Fernando Henrique Cardoso, sociólogo, ex-presidente da República


Folha de S. Paulo: Brasil sofre vácuo de lideranças, e polarização é ameaça, diz FHC

Para tucano, ataque de Jair Bolsonaro a repórter da Folha é inaceitável e ele deveria se comportar como presidente

Igor Gielow, da Folha de S. Paulo

O Brasil precisa de liderança, e o posto hoje está vago. A opinião é do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB), que governou de 1995 a 2002.

Para ele, o comportamento de Jair Bolsonaro, que insultou a repórter da Folha Patrícia Campos Mello, foi "inaceitável". O atual titular do Planalto precisa se comportar como um presidente, avalia FHC.

Ele descarta risco institucional. Afirma, contudo, que "o alarme precisa ser dado" porque a polarização vigente no país ameaça a democracia —e aponta para a rejeição à corrupção e ao PT como ponto de partida do debate atual.

No seu campo político, de olho no Planalto em 2022, ele elogia o governador Eduardo Leite (PSDB-RS) pela gestão e pela juventude (34 anos).

Sobre um protegido político seu, Luciano Huck, ele disse que o apresentador da TV Globo precisa "se transformar num líder político", porque hoje "conhece o caldeirão" [referência ao nome de seu programa e ao contato com a população em quadros da atração]. Já o governador João Doria (PSDB-SP) "conhece o poder".

O tucano, 88, elogiou os presidentes da Câmara (Rodrigo Maia, DEM-RJ) e do Senado (Davi Alcolumbre, DEM-AP). Ele falou no fim da tarde de quarta (19), na Fundação FHC, no centro paulistano.

Como o sr. vê o clima político do país?
O risco é a polarização. Você não pode deixar que a polarização afete o jogo democrático, que supõe a diferença. É preciso que algumas pessoas que têm responsabilidade institucional, como foi o caso dos presidentes da Câmara e do Senado, manifestem sua estranheza.

Eu sou bastante cuidadoso, sobretudo no exterior, porque fui presidente e sei que as coisas são difíceis. Mas está chegando um momento em que os que são responsáveis pelas chefias do aparelho institucional se comportem institucionalmente. Quem tem função presidencial tem de se comportar como tal. Eu sei que às vezes você fala por falar.

No episódio da repórter da Folha, o limite foi ultrapassado, não?
Aí a coisa passou para outro plano. É inaceitável, não tem cabimento você fazer referências assim a qualquer mulher, pelo que apareceu na mídia. Não acho que haja risco institucional, não sou alarmista. Acho apenas que é preciso ter um certo cuidado. Vamos pegar uma pessoa que me deu muita dor de cabeça política, o Lula. Ele agiu institucionalmente no cargo —no que diz respeito às questões pelas quais ele foi preso.

Nós sentimos o gostinho da liberdade. Só quem viveu com censura, como eu vivi, sabe. Isso acabou. Você não pode atacar todo dia a mídia. Eu sei que a mídia exagera também, talvez até seja sua função.
Quem tem poder político não pode utilizá-lo contra isso. Pode reclamar, mas não pode usar sua força para coibir. Não vai dar certo, vai abrir espaço para o regime que não se quer.

Mas o sr. vê risco disso?
A democracia é uma planta tenra, não pode dar de barato que não vai virar outra coisa. Temos de dizer: "Cuidado, hein? Não passe desse ponto, senão passa". O alerta tem de ser dado, sem alarmismo. Quem tem poder não pode exagerar. Você tem de se autocontrolar.

Como vê a renovada militarização do governo?
Eu não tenho nenhuma versão negativa das Forças Armadas, nem poderia ter. Meu pai era general, meu avô foi marechal.

Quando vejo os generais nomeados, tudo bem, é preciso ver como é a pessoa, se funciona ou não funciona. Agora, tem limite para tudo. Tem de haver um certo equilíbrio que, quando é rompido, as prejudicadas são as Forças Armadas. Você não pode confundi-las com o poder político.

Governadores escrevem carta contra o presidenteMaia bate-boca com o general Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucional), o Congresso toca a agenda mais positiva. Como o sr. vê isso?
Veja as reformas. O Parlamento assumiu a primazia, o que leva a crer que uma parte do Executivo não assumiu como tarefa sua fazer passar.

Isso é inegável. O Brasil não é uma República parlamentarista, o povo rejeitou isso. Num regime presidencialista, a iniciativa é do Executivo, o Parlamento não pode substituir, pode suprir lacunas.
E levar adiante as reformas não significa só mandar a reforma. Tem de falar com os parlamentares e tem de convencer a nação sobre a necessidade delas.

Como o sr. vê a atuação do Paulo Guedes? Em todo governo há um ministério cujo titular é mais capaz de liderar. Eu não conheço o Guedes, mas sou favorável à reforma da Previdência, tentei fazer uma também. Está faltando falar com o país. Quando o presidente não tem interesse ou qualidade, o ministro precisa falar.

Sim, mas aí o ministro falou que as domésticas não deveriam ir tanto à Disneylândia.
Ele não tem experiência política.

Isso não trai um espírito da certa elite brasileira?
É algo cultural. Nos Estados Unidos, eles conseguiram acreditar na Constituição, em que todos são iguais perante a lei. Aqui não é bem assim. As pessoas não se sentem iguais. Todos nós temos, em graus diferentes, impulsos que não são democráticos, que não são de igualdade.

Não deveria ser assim. Então, acho que essas expressões contra mulheres, contra pobres, vêm daí, de um desprezo de classe que é incompatível com a regra democrática.

Fala-se muito em uma extensão do mandato do Rodrigo Maia, por exemplo, vamos mudar a Constituição.
Não acho que seja solução, nem creio que ele aceite isso. Tem de respeitar as regras. Se você as desrespeita no Congresso, vai começar a desrespeitar no Executivo.

O sr. promoveu mudança em 1997, com a adoção da reeleição. Não é contraditório? É diferente agora?
Veja, eu sempre fui favorável a um mandato maior. Nós não discutimos na Constituinte, e quatro anos não é nada para alguém governar. É melhor ter uma reeleição. Mas você não pode ser favorável à permanência. Tem limite.

O tumulto político segue até a eleição de 2022?
Depois da eleição municipal de outubro, tudo vai girar em torno da expectativa de futuro. Apesar das instituições, elas não funcionam sem lideranças. É preciso ter pessoas. Você não leva o eleitorado a votar pelo que você fez, mas sim pelo que você pode fazer. Alguém vai encarnar esse futuro. Pode ser o próprio Bolsonaro, com a permanência da polarização. Eu não gostaria.

Quem é o tal centro? Huck, Doria e Eduardo Leite?
Eu vejo o Eduardo Leite positivamente porque ele faz um bom governo e é jovem. Eu vou fazer 90 anos no ano que vem, é preciso passar o bastão.
Veja os movimentos de renovação da política, eles não estão nos partidos. Mas não basta ser jovem. O que eu vejo, em renovação, está por aí, neles [o trio acima]. Quem vai ser, vai depender do que vai acontecer.

E o ar está sulfuroso, a polarização de 2018 ainda está presente.
Exatamente, ela vem de trás. A polarização vem da oposição ao PT, é isso. Corrupção e PT. Aí você vem imaginar que tem comunismo no mundo? Isso é ridículo, é anacrônico, para dizer o mínimo.

E o Huck? Ele se colocou, não?
Ele se colocou um pouco mais. Mas o Huck por enquanto é uma celebridade. Ele está se transformando num líder político. Vai ter que se transformar se quiser ser presidente, vai ter de passar por essa etapa. Pode? Pode.

E o Doria?
Ele tem, digamos, virtudes diferentes. O Huck conhece o caldeirão. O João conhece o poder. É difícil saber o que vamos precisar mais daqui a um ano e meio, o que vai sensibilizar mais o povo. Será a capacidade de conhecer o Estado e trabalhar com as forças organizadas ou será a erupção de um sentimento coletivo? Eu não sei. Idealmente, todos deveriam se unir.

Parece difícil.
É difícil. E é indiscutível que o presidente tem força, a hipótese de reeleição precisa sempre ser considerada. Ele já se elegeu e a polarização rende para quem está polarizando. Ela é ruim para o país e para a democracia, mas rende voto.

Em 1995, o sr. enfrentou aquela greve dos petroleiros. Eles estão parados de novo. O sr. faz algum paralelo de pressão, vê a possibilidade de outras agitações sociais?
Essa é a principal questão do mundo, a crise das instituições. A explosão moderna se dá não só nas relações formais de classes, há curtos-circuitos em qualquer coisa.

Eu me lembro que encontrei por acaso o ministro Eliseu Padilha [Casa Civil de Michel Temer] durante a greve dos caminhoneiros de 2018 e ele não tinha com quem conversar. Não havia líder, partido, sindicato. Isso obriga a liderança de pessoas, que falem com a nação. Pode acontecer de novo? Pode.

Os protestos de 2013 tiraram algo dessa pressão, não?
Sim, mas mostraram a possibilidade. Não sei quando vai estourar de novo ou em que setor. Há um mal-estar, insegurança, basta ver o desemprego. As pessoas se sentem inseguras, precisam de liderança. Não quero ser injusto com quem exerce a liderança, é difícil.

A liderança também se impõe pela situação, como ocorreu quando Winston Churchill virou premiê britânico no começo da Segunda Guerra Mundial. O posto de líder no Brasil está vago?
Acho que sim. Há alguns candidatos.

O Brasil é um país muito diverso, é difícil você exercer influência. Estamos em um momento em que é preciso construir pontes. É mais difícil do que saltar no vazio. E estamos construindo muralhas.