Fernando Gabeira

Fernando Gabeira: Alto risco de tragédia

Para viabilizar sua trajetória política, Moro precisará se distinguir de Bolsonaro

Num momento em que todos reprisam, o governo é pródigo em lançar novelas inéditas. Mal acabou a novela Mandetta, entrou no ar a Sergio Moro, e começaram as filmagens da Paulo Guedes. O que está acontecendo na cabeça do presidente Bolsonaro? Ela foi sacudida pelo impacto do coronavírus.

Muitas mudanças estão sendo determinadas, no fundo, pela política escolhida por Bolsonaro para enfrentar este que é o maior acontecimento trágico no mundo moderno. Onde governos conservadores ou progressistas triunfaram, como é o caso da Austrália e da Nova Zelândia, Bolsonaro afundou.

Desde o princípio, tenho apontado a causa. Bolsonaro aderiu à camada de gordura que cerca o vírus e seus fluidos ideológicos e o transformou num tema da guerra cultural. Exatamente o oposto do que fizeram Scott Morrison, na Austrália, e Jacinda Ardern, na Nova Zelândia: despolitizaram o vírus.

Ainda esta semana, o chanceler Ernesto Araújo escreveu um artigo contra o que chama de comunavírus. Ele ficou impressionado com um livro do pensador de esquerda Slavoj Zizek que previa enfim a chegada do comunismo. Depois de sonhar com a classe operária ou mesmo o lúmpen proletariado, alguns teóricos de esquerda concentram suas esperanças no vírus como agente transformador. E os bolsonaristas acreditam.

Desde o princípio, Bolsonaro viu a chegada do vírus como algo que ameaçava seu governo. A única forma de neutralizar sua importância era adotar uma tese que permitisse neutralizar os impactos econômicos. Esta tese foi a de imunização de rebanho: a maioria vai ser contaminada, é melhor que isso aconteça logo para que nos livremos do vírus.

Bolsonaro jamais considerou seriamente o fato de que, se muitos se contaminarem ao mesmo tempo, o sistema de saúde entraria em colapso, muitas pessoas morreriam na porta dos hospitais ou em casa. Um cenário que, de certa forma, se desenhou na Itália e mais tarde, de forma grotesca, em Guayaquil.

Foi por aí que caiu Mandetta. E indiretamente Moro. Bolsonaro sempre pensou em concentrar poderes. Mas a impossibilidade de determinar sozinho uma política contra o coronavírus condensou seu drama. Os governadores e prefeitos tiveram um papel decisivo. O Congresso os apoiou, o STF chancelou essa autonomia local.

A relação com Moro já sofria um desgaste. Mas Bolsonaro, na sua solidão, reclamou da ausência do ministro em sua cruzada contra o isolamento social. Moro, segundo alguns, não só era favorável à política de Mandetta, como pensou em decretar multas para quem rompesse com o isolamento social. O que, aliás, acontece em muitos países da Europa.

Sem o Congresso, STF, ministro da Saúde e da Justiça, Bolsonaro deu um passo decisivo participando de manifestação antidemocrática diante do QG do Exército. Isso resultou num inquérito que acabou se entrelaçando com outro: o das fake news. Os investigados são os mesmos: apoiadores do presidente e, possivelmente, até familiares de Bolsonaro.

Moro teve uma chance de sair depois daquela manifestação. Possivelmente estava incomodado com a posição temerária de Bolsonaro sobre o coronavírus. Mas agora estava diante de uma posição temerária contra a democracia.

Moro não se pronunciou. Num determinado momento de sua trajetória, a mulher de Moro escreveu numa rede social que ele e Bolsonaro eram a mesma coisa.

Ele pode ter sido salvo agora pela maneira como cai. A tentativa de interferir na autonomia da Polícia Federal é algo que não encontra apenas resistência na corporação, mas em muitos setores conscientes da sociedade. É inconstitucional.

Nesse sentido, Moro cai de pé. Mas, para que sua trajetória política tenha viabilidade, será necessário se distinguir de Bolsonaro, algo que não fez quando esteve no governo. O tom de seu discurso de saída é um indício de que compreendeu isto. Pelo menos se distanciou da visão atrasada de submeter o trabalho da PF aos desígnios de um presidente. O que é no fundo um crime de responsabilidade.

Mas Moro indicou claramente que Bolsonaro teme o inquérito no Supremo. Resta agora ao STF assumir seu papel institucional e não amarelar diante da pressão de Bolsonaro.

É um governo que se aproxima de uma situação limite, como foi o caso de Collor e Dilma. Mas num contexto de pandemia que jogou o planeta na maior crise econômica e social da história contemporânea. Alto risco de tragédia.


Fernando Gabeira: Adeus à normalidade

Seria o vírus o novo agente transformador? Os grandes lances do futuro são imprevisíveis

Os filósofos sempre interpretaram o mundo. Agora que ele está revirado e quase todos recolhidos na quarentena, a tendência é uma grande produção de cenários sobre o mundo de amanhã, o pós-coronavírus.

Alguns queimaram a largada considerando a pandemia um exagero da imprensa, uma fantasia tirânica. Temiam, à esquerda, uma sucessão de ditaduras e, no outro polo, temiam o desgaste de seus populistas no poder.

Uma ditadura oportunista acabou se instalando apenas na Hungria. Noutros países segue o debate democrático sobre controle da pandemia, liberdades individuais e privacidade.

Em muitos casos, a sensação que tenho é de que as previsões nada mais são do que nossas expectativas projetadas no futuro. Talvez essa sensação pessoal venha das inúmeras vezes na história em que li a frase: o capitalismo está em crise terminal e no seu lugar virá um regime social mais fraterno e humano. Como disse o intelectual sul-coreano Byung Chul Han, o vírus não é revolucionário. As mudanças certamente vão depender das pessoas.

De fato, as esperanças de transformação se apoiavam na classe operária, houve quem as deslocasse para o lúmpen proletariado. O vírus seria o novo agente transformador?

De fato, a crise em que o capitalismo se move no momento é a mais grave de sua história, muito mais ampla e profunda que a de 1929. No entanto, alguns de seus movimentos clássicos se repetem: transformar-se e aprofundar-se com a crise.

A passagem para a economia virtual foi precipitada. As grandes empresas telefônicas, provedoras de internet, estão em alta. A Amazon contratou centenas de novos empregados. O comércio eletrônico ampliou-se, possivelmente liquidando milhares de lojas físicas que já estavam em decadência. Os patrões descobriram o home office e suas vantagens econômicas, pois sem grande perda de produtividade economizam na montagem de pesadas estruturas. É preciso ver humildemente o que vai sair daí, reconhecer também que não prevíamos a extensão da catástrofe.

O papel do Estado se acentua com a clara necessidade de sistemas de saúde universais e frentes de trabalho estimuladas pelos recursos públicos. Mas daí a afirmar que todo o processo de liberalização da economia foi um erro, é difícil. Como enfrentaríamos a pandemia sem o nível de comunicações que existe hoje, sem os milhões de smartphones espalhados pelo País? As velhas telefônicas estatais entrariam em colapso.

Da mesma forma existe uma onda real de solidariedade que nos enche de orgulho. Mas o discurso de que as pessoas serão transformadas e ficarão mais humanas e fraternais por causa do vírus lembra um pouco aquela figura do “novo homem” das utopias passadas.

O homem tal como descreveu Shakespeare e sempre existiu, com sua coragem, suas fraquezas e misérias, continua de pé. Como explicar, ao lado de tantas bondades, que exista gente roubando testes de coronavírus, insultando profissionais de saúde porque entram com suas roupas de trabalho no transporte público? E a quantidade de aplicativos falsos para lesar os que necessitam da ajuda de R$ 600 do governo?

Tudo isso não é para negar as transformações que virão. Apenas para abordá-las de forma mais modesta, como já faziam alguns intelectuais com a realidade imediatamente anterior ao vírus.

Edgard Morin, que já esteve no Basil nos anos 60, fazendo conferências, é um caso de evolução com humildade diante da complexa realidade. Na Inglaterra, Ziauddin Sardar desenvolve os estudos de pós-normalidade, uma época em que, segundo ele, muito pouca coisa faz sentido, pois as velhas ortodoxias morreram e as novas ainda não nasceram. Se os tempos anteriores ao vírus nos pareciam normais e já eram, para muitos teóricos, pós-normais, o que diríamos agora, depois da passagem do corona?

Verdade que alguns políticos previram. Barack Obama fez um discurso sobre o perigo de uma gripe do tipo espanhola de 1918 e disse que era preciso montar uma estrutura global para fazer frente a ela. Mas disse isso num país onde a ciência, o saber acadêmico, a própria imprensa já entravam em declínio sob o impacto do populismo de direita.

Os laços horizontais de solidariedade diante de políticos que se apagam na crise, o intercâmbio planetário de cientistas em busca de saídas para a crise, a entrega cotidiana dos profissionais de saúde, tudo isso é legado benéfico para os tempos que virão. Mas o gatilho de novas crises não será completamente desarmado.

Antes da chegada do vírus já vivíamos uma sucessão de eventos extremos potencializados pelo aquecimento global, negado enfaticamente pelos mesmos que negam hoje a dimensão da tragédia. Antes de entrarmos neste século perigoso, em que um vírus pode ser um acidente de laboratório, pouco adiantava lembrar que estacionamos no século 19 com nosso déficit em saneamento básico. Quem sabe agora, com dinheiro público e força de trabalho, não damos pelo menos esse modesto passo?

Os grandes lances do futuro são imprevisíveis. Mas não há desculpa para protelar os passos óbvios do presente. Em nome não somente das pessoas, mas do próprio sistema de saúde, que hoje tanto agradecemos.


Fernando Gabeira: Cloroquina sem paixão

Na Aids ficou mais ou menos evidente que nenhum remédio era bala de prata. Os remédios eram combinados num coquetel

Não sou médico, nem cientista. É uma temeridade escrever sobre a cloroquina agora que sua composição química ganhou componentes ideológicos. Abordo o tema com minha experiência da campanha contra a Aids, que pude seguir ativamente, com mandato e sem estar preso em casa.

Desconfio também da experiência do general que vê na batalha de hoje uma repetição da batalha do ano passado, do político que vê na campanha atual uma réplica da campanha anterior.

Ainda assim, vou tateando. No combate à Aids ficou mais ou menos evidente que nenhum remédio em si era uma espécie de bala de prata contra o vírus. Os remédios eram combinados num coquetel.

Imagino que alguma coisa assim esteja acontecendo no combate ao coronavírus. Quando surgiram os rumores da pesquisa francesa liderada por Didier Raoult, Trump ainda não havia anunciado sua predileção pela cloroquina.

Os rumores na internet eram de que a hidroxicloroquina estava associada à azitromicina e que estava sendo usada no Hospital do Coração.

Liguei para confirmar, e o hospital desmentiu, dizendo que aquilo era fake news. Não noticiei nada, porque achava que, mesmo com desmentido, haveria corrida.

Nos EUA, Anthony Fauci, o homem que comanda a luta contra o coronavírus, fez também uma advertência sobre o perigo da notícia, pois os estoques poderiam ser esgotados.

Em seguida, li a história de um médico chinês de pouco mais de 30 anos, imigrante nos EUA. Ele foi contaminado pelo coronavírus e esteve entre a vida e a morte. A colônia chinesa estabeleceu os contatos com Wuhan, cujos médicos tinham já uma grande experiência. Recomendaram hidroxicloroquina com Kaletra, um remédio usado também contra a Aids. Isso fortaleceu para mim a ideia de que a cloroquina estava associada a um outro remédio, uma tática combinada como foi, guardadas as proporções, no caso da Aids.

Continuei atento ao movimento dos chineses, com os poucos recursos que tenho para segui-los. Li que a China pirateou outro remédio experimental contra o coronavírus, o Remdesivir.

A patente é da empresa americana Gilead, que deve faturar mais de US$ 2,5 bilhões com ele, apesar do avanço chinês sobre sua fórmula.

O Remdesivir é um antiviral mas não pode também ser considerado uma bala de prata. Seu uso foi aconselhado pela Agência Europeia de Medicina em casos muito graves, como um tratamento compassivo.

De novo, apesar de serem batalhas diferentes, a experiência da luta contra a Aids ilumina o caminho, até que uma outra luz mais forte e direta me conduza.

O Brasil resolveu inicialmente o problema da cloroquina comprando-a da Índia. Esse país vende remédios assim como a China vende equipamentos médicos. O Ocidente se aproveita dos preços baixos de ambos até que descobre sua dependência.

Mas em breve poderemos chegar à possibilidade de um coquetel ou uma simples associação de remédios. Nesse momento, veremos a possibilidade de distribuí-los gratuitamente.

Foi assim com o coquetel da Aids. Muita discussão com a equipe econômica por causa dos custos. O problema seguiu adiante mesmo depois da vitória da gratuidade.

Apareceu então, com intensidade, o problema das patentes. Até que ponto um respeito religioso pelos direitos dos laboratórios multinacionais não era um obstáculo para a salvação das vidas?

Felizmente, na época, tínhamos um ministro da Saúde, José Serra, que compreendeu bem o dilema e soube defender o que me parece uma posição correta no debate planetário sobre patentes.

A cloroquina, graças ao empenho de Trump e Bolsonaro, ganhou destaque na cena, mas o Remdesivir, a julgar pela apropriação chinesa, também merece um exame.

Na verdade, há pelo menos oito atores, remédios em teste, que foram ofuscados pela cloroquina e mereciam mais atenção. Nenhum deles é de direita ou de esquerda. São fórmulas químicas, e sinto-me meio acaciano a formular essa frase.

No entanto, o vírus já foi politizado, os remédios são politizados de uma forma equivocada. A questão que nos espera é testá-los adequadamente e garantir que cheguem às pessoas e discutir os direitos de patente num mundo devastado pela pandemia.


Fernando Gabeira: O risco de não entender

Imagino uma crise econômica braba e me lembro da experiência de viver com pouco

O trabalho corre silencioso na quarentena. No princípio da noite, ouço o bater de panelas, e uma vizinha roda uma gravação do Hino Nacional. É hora de um pequeno descanso, esquecer a contagem de mortos nos EUA, Inglaterra, Espanha, Itália, o horror dos corpos insepultos nas ruas de Guaiaquil.

No meio da tarde, costumo ouvir a voz do prefeito numa gravação voltada aos moradores do Pavão-Pavaozinho: “Olá pessoal, aqui é o prefeito Marcelo Crivella.” Ele pede que fiquem em casa e que Deus proteja a todos. Que cena, o Crivella pedindo que fique em casa; logo eu, que tinha tanto o que fazer nessa pandemia.

Mas sou do grupo de risco. Há um grande debate sobre o que fazer com os velhos. Uma escritora amiga me disse pelo telefone: antes os velhos tinham valor porque concentravam a experiência; agora, com o Google, podem se livrar da gente com facilidade.

Mas, para cada um nós, há uma experiência que não se acha no Google. No meu caso, por exemplo, a quarentena é suave. Em primeiro lugar, porque os mais pobres estão em espaços menores e mais escuros; os brasileiros no exterior, encurralados em pequenos quartos de hotel, hostilizados pelos nativos.

O isolamento não me é estranho. Alguns meses de cadeia me ensinaram muito. Por isso, sempre estou buscando uma pequena fresta para o banho de sol. Durante a clandestinidade, ficávamos em casa de simpatizantes. Os mais procurados pela polícia iam para a “geladeira”. Não só éramos proibidos de sair. Quando o dono da casa estava fora, não podíamos fazer barulho, espirrar, tomar banho. Isso poderia chamar a atenção dos vizinhos. Era um ensaio de petrificação silenciosa.

Diante do que está por vir, acredito mais na experiência pessoal do que no Google. Imagino uma crise econômica braba e me lembro da experiência de viver com pouco, comer não mais que o essencial.

Em Cuba tínhamos a comida exata. Lembro-me que no final de um longo dia de estudos, caminhávamos algumas quadras para comprar um pão por la libre. A expressão não significa comprar quantos pães quiser, mas sim que a compra era feita por fora da caderneta de racionamento.

Aprendi ali que as fantasias sobre comida às vezes mobilizam o imaginário das pessoas mais que as próprias fantasias eróticas. Nos grandes desastres, nas guerras, a falta de comida e o desespero solapam a dignidade humana, provocam regressões assustadoras.

Ser velho significou ter tido uma chance de testemunhar tudo e uma oportunidade de morrer que nunca sabemos antecipadamente se vamos aproveitar. Certamente o Google não responde a esta questão de Montaigne: aquele que ensinar as pessoas a morrer vai ensiná-las a viver.

Quando tinha pouco mais de 18 anos, fiz uma reportagem para a revista “Alterosa” sobre doença de Chagas, transmitida pelo barbeiro. Era num povoado do interior de Minas. Assunto tão sério que atraiu uma dupla de repórteres do “Saturday Evening Post”, na época uma revista importante. Chegaram de avião, o fotógrafo gostou de mim e me ensinou a fazer um establishing shot, uma imagem que descrevesse a história a ser contada. Ele subiu no pequeno cemitério, usou as cruzes como primeiro plano e mostrou o povoado no fundo.

Na doença de Chagas o coração é atingido, e as pessoas morrem de repente. Ao concluir meu texto na volta, o editor Roberto Drummond escreveu o título: “Aqui se morre como passarinho”.

Nessas ruminações de quarentena, não é que de certa forma tenho de reconhecer que a morte naquele tempo era mais suave que agora e o barbeiro, um inimigo melhor que o coronavírus? O tempos mudaram, poucos sentiram. Noventa por cento dos equipamentos de proteção aos médicos são feitos na China. Isso não é um tópico estratégico para quem pensa apenas na guerra entre os homens.

Só que há algum tempo, a principal guerra é dos homens contra a natureza. A estratégia não acompanhou os fatos. Alguém come um bicho na China e instala-se o caos.

Alguns velhinhos de hoje já avisavam sobre os efeitos dessa guerra, antes de o Google nascer.

É irônico ver agora como se discute com tanta sem-cerimônia sobre quantos por cento deles devem desaparecer. Para quê? Para seguir na marcha suicida que alguns chamam de progresso?


Fernando Gabeira: O vírus da guerra cultural

Se debatemos medidas sanitárias, alguém logo dirá: por que não combater o Bolsonaro?

De certa forma, uma epidemia como esta do coronavírus já estava prevista por estudiosos. O que não estava ainda no nosso radar era o impacto da ignorância humana em aceitá-la para realizar o combate frontal contra ela.

À pequena capa gordurosa do vírus foram acrescidos os fluidos da ideologia, tornando-o ainda mais perigoso e letal. Agora que aconteceu, constatamos que essa reação não era de todo imprevisível. Um movimento moderno de descrédito da ciência, do conhecimento, da imprensa facilmente desaguaria nesta oposição a uma ululante realidade sanitária.

A eleição de Donald Trump e a de Jair Bolsonaro são um marco destes tempos modernos. Ambos viram o surgimento do coronavírus como ameaça a seus governos e passaram aos seguidores a impressão de que todo o debate sobre o tema era manobra de oposição. A emergência do corona transformou-se, então, para eles numa guerra cultural contra os inimigos de sempre.

Ao transfigurar uma realidade sanitária num confronto político, usaram com naturalidade sua arma comum, fake news, para vencer a batalha. Nos Estados Unidos, por exemplo, a extrema direita travou uma luta direta contra a principal autoridade sanitária, Anthony S. Fauci, cobrindo-o de ofensas gratuitas.

Preocupado com sua reeleição, Trump tentou corrigir o rumo. Bolsonaro resistiu mais, de forma desagregadora. Seguidores usaram a mesma tática de fake news para desacreditar as mortes e classificar os mensageiros da realidade como uma torcida pelo vírus.

Os mais intelectualizados entre eles chegaram a afirmar que nos EUA morre mais gente engasgada por ano do que os primeiros milhares de mortos pelo coronavírus. Não se detiveram a analisar por que os norte-americanos não constroem, às pressas, hospitais de campanha para socorrer engasgados, muito menos por que não reduzem o ritmo da economia para evitar o contágio entre engasgados.

Bolsonaro liderou uma espécie de uma farsesca revolta da vacina. Em 1904 a população, que vivia em terríveis condições sanitárias, rebelou-se contra um governo que queria modernizar e higienizar a cidade e um cientista, Osvaldo Cruz, que queria vaciná-la. Agora um presidente se rebelou contra a orientação científica e grã-finos em carros importados desfilam pelas ruas afirmando que o povo precisa voltar a trabalhar.

Esse espetáculo patético drenou um pouco da nossa energia no combate ao coronavírus. Se nos detivermos no urgente debate das medidas sanitárias, há sempre alguém para dizer: por que não combater o Bolsonaro?

Sou dos que pensam que o combate ao vírus é uma prioridade planetária e que os adversários desse combate serão triturados pela História.

No mundo real, precisamos aprender com os países que já passaram por uma fase intensa da epidemia. Em todo lugar ficou evidente a necessidade de equipamentos de proteção individual para médicos e profissionais de saúde. É um ponto decisivo. Cerca de 20% dos nossos médicos estão numa faixa de idade que os põe no grupo de risco. Podem ser úteis na telemedicina, mas não vão ser escalados na linha de frente.

Os vídeos que mostram os profissionais da Coreia do Sul se vestindo para o trabalho revelam como o equipamento é necessariamente redundante para proteger contra o vírus. Os Estados Unidos já começam a ter problemas nesse campo. Eles vão surgir no Brasil, uma vez que o equipamento é disputado no mundo inteiro.

Uma das saídas é canalizar parte da solidariedade social para fortalecer os profissionais de saúde. Se não for possível complementar a deficiência de equipamentos, ao menos garantir uma infraestrutura de repouso. Muitos temem voltar para a casa e pôr a família em risco.

Nos primeiros artigos sobre o tema enfatizei a importância dos 220 milhões de smartphones. O governo vai usar os telefones para monitorar a população. Isso aumenta nossas chances. Existe uma possibilidade, que começa a ser usada também nos EUA, por meio de uma empresa que vende termômetros conectados à internet. Conseguem medir a temperatura de 160 mil pessoas, mas o potencial é muito maior.

Discutimos no início da pandemia sobre o alcance desses métodos. Pensadores como Yuval Harari temem uma avanço na quebra da privacidade, com o controle entrando pela nossa pele. Mas pelo que vi do método que o Brasil usará, a participação será voluntária. Da mesma forma, o controle de temperatura pode ser voluntário.

No fundo, o combate ao coronavírus, além da solidariedade humana, depende basicamente de conhecimento. Todo esse esforço de consultar o povo é indispensável. Seria mais facilmente vitorioso se complementado por testes em massa. Testes para detectar o vírus, testes para detectar anticorpos e potencial imunidade, testes para avaliar o potencial de evolução da doença em cada organismo.

Temos falado muito de ignorância, sobretudo a partir da atuação de Jair Bolsonaro. A frase de Barack Obama é repetida muitas vezes: a ignorância na política ou na vida não é uma virtude. Mais do que nunca, vencer não apenas a ignorância humana, mas também a ignorância específica sobre esse novo coronavírus, é a luta principal desse combate planetário.


Fernando Gabeira: Memórias do grupo de risco

Bolsonaro tornou-se uma espécie de Jim Jones, o pastor que levou seus seguidores ao suicídio coletivo

Nos últimos tempos, as coisas andam tão rápidas que todo dia escrevo um pouco. No final de semana, o epicentro da pandemia já havia se deslocado para os Estados Unidos, e Boris Johnson, primeiro-ministro inglês, foi contaminado pelo coronavírus.

Temo pelo Brasil. O vírus avança como em outros lugares. Somos mais vulneráveis pelas grandes concentrações urbanas, péssimas condições sanitárias. Os Estados Unidos eram o primeiro na lista de segurança sanitária no mundo: ricos e bem equipados.

Ao longo do caminho, não devemos nos concentrar apenas numa variável, o número de casos. Há outra muito importante: o índice de mortalidade.

Além de desvantagens historicamente acumuladas, temos outras de peso. O presidente da República, que deveria articular o esforço nacional, não acredita na importância da pandemia.

Bolsonaro se acha incólume porque um dia foi atleta. E estendeu essa blindagem aos brasileiros que, segundo ele, mergulham no esgoto e nada sofrem. No momento em que a Ciência tem um grande papel, Bolsonaro está cercado de terraplanistas, tornou-se uma espécie de Jim Jones, o pastor que levou seus seguidores ao suicídio coletivo.

A segunda desvantagem está no ministro da Economia, Paulo Guedes. Toda a sua história é a de luta para reduzir o papel econômico do Estado. Trabalhou no Chile de Pinochet e escreveu inúmeros artigos sobre o tema.

O dramático momento, de repente, exige uma intensa intervenção do Estado na economia. Guedes não se preparou para isso. É como se estivéssemos numa partida de futebol e resolvêssemos trocar o centroavante por um jogador de tênis.

Vera Magalhães sugeriu que escrevesse algo sobre o ano de 2020, um ano cancelado pela pandemia.

No mesmo dia, tinha conversado aqui em casa sobre uma viagem a Nova York. Quando minha mulher vai até NY, costumo vender minha câmera velha e comprar uma nova na Adorama. Rimos para não chorar: não haverá viagem, muito menos câmera, e Deus permita que haja Nova York no fim dessa estrada. O Flamengo seria campeão de tudo em 2020, mas não haverá campeões nesse tempo sinistro.

Mas vou voltar ao tema sugerido por Vera assim que a pandemia der uma trégua. No momento, tento refletir um pouco sobre ser velho em tempos de coronavírus. Aqui a dimensão transcende ao ano de 2020: o que será do resto de nossas vidas?

Toneladas de papel impresso falam da velhice. Mas a nossa é singular: acontece durante a pandemia, somos classificados como grupo de risco.

Leio notícias de que o velhinhos de comunidades serão levados para hotéis ou navios, que a polícia em São Paulo está detendo os rebeldes que saem às ruas. Tudo para o bem deles.

Passada a crise mais aguda, como será a vida dos velhos antes da chegada da vacina? Minhas leituras não estão concentradas na “Peste”, de Camus, ou no “Um diário do Ano da Peste”, de Daniel Defoe.

Nos momentos mais suaves da quarentena, volto-me para livros do tipo “Memórias de Adriano” e detenho-me em frases como esta: “Esta manhã, pela primeira vez ocorreu-me a ideia de que meu corpo, este fiel companheiro, esse amigo mais seguro e mais conhecido que a própria alma, não é senão um monstro derradeiro que acabará por devorar seu próprio dono.”

Isso é verdade para tempos normais. Como se aplica a tempos de coronavírus? Será que nossos corpos envelhecidos serão vistos como um perigo social?

Envelheci depois de muitas lutas contra preconceitos. Só me faltava essa. Quando passar a primeira onda, voltarei a sair por aí, explorando e transfigurando o mundo em imagens.

De novo, Adriano: “A impossibilidade de continuar a exprimir-se, modificar-se pela ação é talvez a única diferença entre os mortos e os vivos.”

Um corpo envelhecido não representa perigo especial. Ele contrai e transmite o coronavírus como uma criança ou um jovem.

A grande responsabilidade é evitar adoecer em tempos de grande crise para não ocupar o lugar de um mais jovem nos escassos respiradores.

Infelizmente, temos mais fuzis do que respiradores. Um padre italiano compreendeu isto e cedeu seu lugar para um jovem que tinha chances de uma vida longa e saudável.

Viver é muito perigoso e, de uma certa forma, a própria humanidade é um grupo de risco.


Fernando Gabeira: Um vírus na era digital

Pensei num aplicativo que contivesse algumas variáveis, tais como febre, tosse, dificuldade respiratória

Depois de seis anos viajando, às vezes mais de mil quilômetros por semana, minha única aventura agora foi dar uma volta de bike pela Lagoa.

Ainda há poucas pessoas caminhando ou correndo. Um corredor usando máscara azul gritou para mim: “Cadê a máscara?” Tive vontade de voltar e mostrar para ele meu pequeno frasco de álcool gel. Mas evitei aproximações. Da Lagoa iria para o isolamento total.

No dia seguinte, vi a entrevista de vários membros do governo usando máscara. Lembrei-me do corredor da Lagoa. Ele a usava com naturalidade, parecia uma extensão natural do seu rosto.

Mas o governo, por seu lado, ao invés me dar a certeza de que estava brigando com o coronavírus, parecia estar brigando com a máscara. No centro da mesa, o grande timoneiro, irritado com o incômodo, acabou deixando a máscara pendurada na orelha, como um brinco. Quando falou que ainda não havia vacina, temi que acrescentasse um felizmente, porque terraplanistas acham vacina e rock and roll coisas do demônio.

Não vou me deter nos Bolsonaros. É perda de tempo. O Brasil não vai derrotar o vírus com panelaços. A família adora comprar briga para encobrir sua profunda incapacidade. Quando não a encontra aqui, não hesita em buscá-la na China.

Quando um ministro de máscara e tipoia anunciou que o governo iria ajudar o Nordeste, percebi que havia uma grande lacuna na mesa. Onde estava o homem encarregado da Ciência e Tecnologia? Na Lua?

Todas as esperanças de cura estão na Ciência. Mas a possibilidade de atenuar o impacto destrutivo do coronavírus está também na tecnologia. O Brasil tem 230 milhões de smartphones. Ao falar sobre isso na TV, fui contatado por uma empresa que trabalha no Porto Digital de Recife. Ela se chama Wololo e criou uma plataforma de rede verticalizada na qual algumas fontes passam informações úteis e necessárias e fazem de cada usuário um propagador. Isto deveria ser examinado pelo Ministério da Saúde, que vê aumentar em milhões as suas consultas.

Mas a ideia que mencionei na TV era outra. Pensei num aplicativo que contivesse algumas variáveis tais como a existência de febre, tosse, dificuldade respiratória, idade, doença crônica, através do qual fosse possível monitorar milhares de pessoas.

Na Coreia do Sul, quando se localiza um caso, através do GPS é possível monitorar também pessoas que estejam num raio de cem metros.

Soube que há discussões no Porto Digital sobre a produção de respiradores em 3D. Mas são propostas ainda muito ousadas. E sei também que os Estados Unidos estão deslocando todo o seu aparato de controle de terrorismo para buscar saídas tecnológicas de controle da pandemia.

Não tenho dúvida de que muitos problemas de privacidade vão surgir desse esforço. É preciso tratá-los com cuidado para não ameaçar as liberdades individuais.

As possibilidades de aumentar o controle da epidemia através dos smartphones são muito grandes. Imagine se for necessário determinar quarentena para pessoas que chegam do exterior. Como garantir que isso é realmente cumprido? O smartphone pode ser uma espécie de tornozeleira eletrônica do bem.

Sei que estou divagando meio solitariamente na minha reclusão voluntária. No entanto, os dois ministros que considero sensatos, Mandetta e o general Braga Netto, e tocam a crise poderiam estimular a sociedade a criar possibilidades de ajuda através de aplicativos e criar um núcleo no governo para receber propostas e fazer uma triagem.

Da mesma forma, Braga Netto poderia orientar o Itamaraty, perdido em batalhas ideológicas, a dar um informe sobre o que está sendo feito na Coreia do Sul, em Israel e nos Estados Unidos.

Ao lado do vetor científico, é preciso criar uma iniciativa tecnológica que não se esgota na telemedicina, que, por sinal, já deveria estar regulamentado há muito tempo.

Quando a Aids chegou ao Brasil, a ciência teve um papel decisivo e rumamos rapidamente para o coquetel antiviral e sua distribuição gratuita.

De novo, estamos diante de um grande desafio, mas, da Aids para cá, houve um grande salto tecnológico. Quando surgiu o primeiro paciente de Aids no Brasil, procurei o governo para dar o alarme. Fui tratado como um romântico sonhador. Não importa muito se o gato é maluco ou careta: o importante é que ele pegue o rato.


Fernando Gabeira: A visita da realidade

 Quando não for possível UTI, pelo menos aparelho respiratório. As pessoas não podem morrer como um peixe fora da água

Durante três semanas critiquei essa ideia de manifestação no domingo. Tanto o governo como a oposição pareciam para fora do mundo. Era contraditória a posição de Bolsonaro. Num dia, afirmava que o Brasil deveria seguir os especialistas no enfrentamento ao coronavírus; no outro, convocava manifestação de massas em todo o país. Ontem, ignorou o risco e cumprimentou manifestantes.

Houve quem protestasse: afinal, o povo tem direito de se manifestar nas ruas. Não era isto que estava em jogo, mas a saúde dos bolsonaristas e também dos opositores, uma vez que o vírus não tem ideologia.

Não faz sentido para mim usar este tipo de argumento “bem que avisei”. O Brasil tem um delay na absorção de algumas realidades evidentes no resto do mundo. Sabendo disso, é preciso sempre falar com calma, pois não vai ser o seu argumento que mudará as coisas. É algo que se resolve no curso dos fatos reais.

Não há que olhar para trás, criticar de novo. Bolsonaro nos EUA, depois de um jantar com Trump, disse que o coronavírus estava sendo ampliado pela mídia. Exatamente o que Trump costumava dizer.

Será preciso esquecê-los, se isso for possível, para pensar na estratégia real de combate ao vírus. Pelo que li sobre a Itália e a China, é evidente que precisamos preparar leitos e UTIs. Quando não for possível uma unidade intensiva, pelo menos aparelho respiratório. As pessoas não podem morrer como peixe fora da água.

Teremos de reduzir drasticamente nossos contatos físicos. Isso não é fácil. Uma campanha na Suécia, na década dos 80, me chamou a atenção: toquem uns nos outros, isso faz bem.

Os suecos tinham quase nenhum contato físico com estranhos. Ao contrário de nós, latinos. Essa diferença cultural às vezes constrangia, pois um simples toque, o braço envolvendo o ombro, tudo isso era sentido como invasão da privacidade.

Hoje, o que era nossa qualidade, desde que exercida com discrição, o contato físico passa a ser um problema para nós. Quase meio século depois, estou diante de uma campanha importante, exatamente oposta da sueca: não se toquem.

A loja de departamentos que fez a inscrição nas sacolas acrescentava uma conclusão: isso é importante para a saúde. Concordo com o autor da frase. É importante o toque físico para a saúde mental. Assim como é dispensável a figura pegajosa que não conhece limites.

Pelos lugares em que ando as pessoas ainda estão se cumprimentando normalmente, sobretudo no interior. Talvez por ter surgido na China superpovoada e crescido em grandes cidades, muitos pensam que é uma doença dos grandes centros.

Cedo ou tarde, entretanto, todos estarão cumprindo as orientações da OMS. Será difícil também se houver maior incidência em alguns lugares. O ministro da Saúde prevê isto para o Rio. Muitas cidades, às vezes uma província, ou mesmo um país inteiro, como a Itália, tiveram que ser isolados.
Seremos forçados e nos adaptar a uma nova e dura realidade. Alguns pensadores acham que o mundo mudará depois do coronavírus.

No momento, acho apenas que isto é o desejo deles, não vejo ainda as evidências de mudanças permanentes. Se aqui no Brasil começarmos a lavar as mãos com mais frequência, já se terá dado um passo importante em nossa vida.

Outras decisões pessoais importantes podem surgir daí. Se o corona atinge basicamente o pulmão, por que enfraquecê-lo com qualquer tipo de cigarro?

Se podemos percorrer um trecho determinado por terra, com pouca gente, por que fazê-lo de avião? É mais rápido e confortável, no entanto, mais perigoso porque no avião possivelmente circulem mais bactérias e vírus.

Nem todas as mudanças podem ser duradouras. Sobretudo as que são determinadas de cima para baixo. Os chineses estão proibidos de comercializar animais selvagens nos mercados. Mas será que essa lei vai pegar?

O Brasil enfrenta essa batalha num momento muito difícil. Polarização política, agressividade, falta de lideranças nacionais que se interessem pelo tema coronavírus, indiferentes ao que acontece no mundo.

Não escolhemos o momento, nem escolhemos o vírus. Quando surgiu a Aids, observei as mesmas dificuldades. E, no entanto, era uma batalha muito mais perigosa e letal, que acabou sendo vencida pelo Brasil.


Fernando Gabeira: Uma banana para o PIB

O que o governo busca com suas palhaçadas é tapar a visão do futuro. Ninguém sonha com as roubalheiras pretéritas

Na semana em que foi divulgado o PIB do primeiro ano de governo Bolsonaro as reações foram estranhas. Bolsonaro não quis responder sobre o tema. Passou a tarefa para um humorista oficial, que distribuía bananas para os repórteres.

Brasília se parece cada vez mais com cenários de realismo mágico, como a cidade de Macondo na obra de Gabriel García Márquez.

Se ouvi bem, Bolsonaro e o humorista perguntavam o que é PIB. Na verdade, houve e sempre haverá um debate sobre a precisão do PIB como instrumento de medida do crescimento do país.

Mas a forma de peguntar, com a banana na mão, indica que tanto Bolsonaro como o humorista chapa-branca não têm a mínima ideia do assunto.

Perguntem ao Posto Ipiranga. Paulo Guedes, que responde pela fantasia do Posto Ipiranga do governo, afirmou que o crescimento do PIB não era preocupante: o Brasil estava no rumo certo e iria crescer mais em 2020.

Mas e o coronavírus, a China? — alguém perguntou. Guedes minimizou os efeitos da epidemia: os chineses não vão deixar de comer, logo continuarão comprando.

As coisas não são bem assim. Quando apertam, não se deixa de comer, apenas come-se com moderação. E os efeitos do coronavírus na economia transcendem a um impacto na venda de alimentos: significam uma desaceleração global. Compreendo que é preciso combater o pânico e não dramatizar o impacto econômico do vírus. Mas é necessário reconhecê-lo, trabalhar com as evidências.

Se um ministro não reconhece isto, algumas pessoas podem entrar em pânico. Não sei se esta frase tem algum sentido num país em que Bolsonaro se apresenta ao lado de um humorista vestido com a faixa presidencial, distribuindo bananas.

Nos trópicos, a própria ideia do pânico precisa ser reavaliada. São necessários muitos acontecimentos bizarros para as pessoas acharem que algo está diferente. Um deles são as manifestações de governo e oposição marcadas para o fim de semana. O vírus apenas começou a se propagar no Brasil, ao que tudo indica. Ainda assim, convocar grandes manifestações é algo que parece absurdo aos países europeus que precisamente tentam evitar grandes concentrações humanas.

Bolsonaro tem sua história ligada à banana. Cresceu no Vale do Ribeira, onde se produz muita banana. Fazia solitários discursos contra a importação e parecia se importar muito com a causa dos bananeiros nacionais.

Num determinado momento, ele esqueceu a banana real e adotou a simbólica, acenando-a para jornalistas. Agora, decidiu unir a banana real à simbólica e terceirizar a tarefa de debochar dos repórteres. O sonho de Bolsonaro é ser presidente numa república de bananas. Ele se comporta como se quisesse conduzir o Brasil nesta direção. Na verdade, uma república de bananas não é só pitoresca, mas essencialmente autoritária.

Muitos apoiadores dizem: Bolsonaro faz tudo isso, mas não se rouba como antigamente. Dificilmente se roubará como antes, depois da Lava-Jato. Isto não é mérito dele.

Outros dizem: apesar de tudo, o país está crescendo. Mas esta semana vimos que, a julgar pelo PIB, que não é um modelo de exatidão, o Brasil não cresce como propagam os defensores do governo.

Tudo o que resta, no momento, é nos assombrar com o passado. O passado é cheio de fantasmas, mas não há evidências de que queremos voltar a ele.

O que o governo está buscando com suas palhaçadas é tapar a visão do futuro. Ninguém sonha com as roubalheiras pretéritas, poucos acreditam em implantar um socialismo no Brasil.

As aspirações são apenas de um governo decente, que cumpra suas tarefas e tenha uma relação séria com a imprensa ao comunicar suas ideias ou pretensões. É ilusório o esforço de nos convencer de que as alternativas são a roubalheira do governo anterior ou a incompetência e o deboche do atual.

As circunstâncias da globalização e a própria decadência dos estados nacionais não nos permitem sonhar com um governo que realize tudo o que promete. Ele simplesmente não tem poder para isso. No entanto, a habilidade de usar os poucos recursos que existem para atenuar problemas, resolver outros menores — tudo isso está ao alcance de um governo nacional.

As bananas na porta do Palácio são apenas um ato de desespero de quem não está entendendo nada e supõe equacionar a realidade com piadas de mau gosto.


Presidente do Congresso, Davi Alcolumbre, preside sessão que analisa veto sobre orçamento impositivo | Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

Fernando Gabeira: O psicodrama na divisão do bolo

A discussão sobre o Orçamento acabou revelando mais uma vez os limites do populismo

Não creio que seja demagógico dizer que o momento no Brasil deveria reunir os Poderes para um debate sobre a economia de recursos. Mas a crise surgida nos últimos dias gira em torno de R$ 30 bilhões. O Congresso garantiu para si este naco do Orçamento. O governo vetou. Possivelmente vão rachar esse bolo.

Houve muita hesitação, mas desfecho previsível. Começou com a frase do general Heleno, concluída com um sonoro “f...-se!”. Durante a semana sites nas redes sociais anunciavam a manifestação do “f...-se” para 15 março. Essa batalha pode não acontecer, como a de Itararé. Estão marcadas manifestações da oposição e do governo para dias 14 e 15. Elas podem até ser grandes, mas o sentido original, a disputa pelo dinheiro do Orçamento, é um pouco confuso neste momento histórico.

O Orçamento mesmo está se distanciando da realidade. Primeiro, porque surgem gastos imprevisíveis, como os do combate ao coronavírus, e os militares, com o motim de policiais no Ceará. No caso do coronavírus, não se trata apenas do que se vai gastar, estimado em R$ 350 milhões, suficiente se a situação permanecer num estágio relativamente favorável: não há evidência de transmissão do vírus no território nacional.

O problema econômico do coronavírus é o que se deixa de ganhar. As dificuldades vividas pela China, a semiparalisação na Itália são só alguns indícios de que o crescimento global será reduzido pela disseminação do vírus. Aliás, de passagem, é bom lembrar que o Brasil é um país singular: marca grandes demonstrações de massa num período de coronavírus. Nesta mesma época, a Suíça está proibindo reunião de mais de mil pessoas e a própria Olimpíada de Tóquio pode ser adiada.

No universo paralelo da política, um momento necessário de solidariedade diante do inimigo comum, o vírus, é suplantado pela discussão sobre dinheiro, importante para os deputados que dependem das eleições de 2020. Muitos dependem de vereadores e prefeitos para se reeleger.

A frase do general Heleno foi um rompante. O palavrão, no sentido que usou, significa romper os laços, dinamitar as pontes. O governo teria de sair de seu isolamento encarnando o espírito de Chávez. Mas ele foi até o fim, até o controle do Congresso. Isso no Brasil é difícil. Bolsonaro tem uma frágil base de apoio no Congresso. É duro de cintura.

Dificilmente manifestações populares vão mudar radicalmente a correlação de forças. Ao dar as costas para a política, acabou sendo, de certa forma, engolido por ela. Assim, o que pode acontecer é continuar perdendo e achar uma forma de cantar vitória para seus seguidores.

Entre os muitos caminhos que levam o populismo à tentação autoritária está o próprio processo eleitoral. Líderes carismáticos são eleitos por sua personalidade e arrastam uma bancada heterogênea e incapaz. A história da base de apoio parlamentar de Bolsonaro é constrangedora. Não há um conjunto de ideias coerente. Quando surgem os conflitos, eles se personalizam e descambam rapidamente para a baixaria. Não dá para dobrar o Congresso apenas com manifestações. Mesmo porque os deputados também foram eleitos e se sentem legítimos.

Quando alguém repete o termo do general Heleno no cotidiano, de modo geral temos a tendência a dizer: “Calma, pense bem”. No caso do governo, não tem saída senão continuar negociando. A única atenuante possível é transformar as concessões em aparente vitória.

Além disso, existem alguns temas convergentes entre governo e maioria no Congresso, como foi a reforma da Previdência. Mesmo aí foi necessário fazer concessões às demandas parlamentares. É muito possível, no futuro, que o próprio Congresso evolua e novos presidentes levem consigo bancadas mais sólidas e capazes. Mas o único caminho é o processo eleitoral, o amadurecimento democrático.

Bolsonaro passou 28 anos na Câmara, mas quase não participou de negociações políticas, era um cavaleiro solitário. Inegável que existem muitas coisas repulsivas ou simplesmente condenáveis em acordos políticos. Mas é inegável, também, que a atividade parlamentar ensina muito, descobrem-se alguns atalhos, conquistam-se vitórias parciais.

Agora, ele tem o poder, mas não sabe como se relacionar com o universo que habitou por quase três décadas, como explorar algumas de suas qualidades, atenuar os grandes defeitos. Bolsonaro não apenas abriu esse flanco. Ele não foi capaz de trazer uma equipe da sociedade e teve de recorrer a um número excessivo de militares.

Não dá para ligar o “f...-se”. É preciso aprender alguns passos no caminho ou, então, arriscar-se a ver o termo voltando-se contra ele mesmo.

No front da saúde o governo sai-se bem, mas o coronavírus não se restringe a um campo. Tem repercussão na economia, aciona o aparato científico do País e pode até estimular grandes programas sanitários que não estão diretamente ligados a ele, como o saneamento básico. A única referência que o vi fazendo sobre tema foi a expressão “este vírus aí”. Este país aí, o Brasil num mundo complicado, está precisando cada vez mais de elos e pontes e cada vez menos da tática do general Heleno.

Discussões sobre orçamento costumam ser monótonas, mas esta, com todo o psicodrama, acabou revelando mais uma vez os limites do populismo.


Fernando Gabeira: Olha o corona aí

Num campo político em que sobrevivem grupos antivacina, a orientação baseada na ciência é avanço

Passei o carnaval com um olho no crescimento do coronavírus na Itália. Não me tomem por um velho agourento. Especialistas indicavam que o vírus tinha uma grande possibilidade de expansão no planeta. E a Itália é mais próxima do Brasil que a China.

Busquei contato com brasileiros em Milão. Muitos queriam sair, mas os voos estavam lotados. Descobriram que viajar para o exterior hoje não só aumenta o risco de contágio, mas também o de ficar preso numa quarentena.

Li sobre as primeiras oito vítimas letais na Itália. A sensação é de que a maioria já estava doente: diabete, infarto, câncer.

Até o momento, as evidências são de um baixo índice de mortalidade. Isso indica que a propagação pode matar os mais vulneráveis, como a própria gripe o faz, mas as chances de sobrevivências são altas, mesmo sem existirem ainda um antiviral específico ou vacina contra o novo coronavírus.

Isso confirma as pesquisas com 36 mil pessoas atingidas na China: 80% dos casos foram brandos. Se, de um lado, o índice mortal é baixo, o de propagação pode ser alto.

Outro fator importante é a temperatura. O novo coronavírus surgiu em lugares frios, em pleno inverno. Há indícios de que o vírus sobrevive menos tempo no calor.

O governo brasileiro faz bem em pesquisar o efeito do coronavírus nos trópicos. No entanto, se ele for pouco resistente ao calor, isso não significa que estamos todos salvos. Indica apenas que teremos um fôlego, pois ele pode reaparecer no princípio do inverno, quando, aliás, aplicamos as vacinas contra gripe.

O governo tem tomado todas as medidas aconselhadas pela OMS. O problema é que uma crise desse gênero transcende à competência do setor de saúde.

Já existem tensões, por exemplo, entre o ritmo da economia e as medidas de segurança sanitária. No norte da Itália, alguns industriais acharam um exagero o fechamento temporário de algumas fábricas.

O próprio Donald Trump condenou a imprensa, afirmando que ela se limita a dar más notícias sobre o coronavírus. Alguns dos seus seguidores dizem que se trata apenas de uma gripe, e os exageros servem para enfraquecer Trump.

Ao designar o vice-presidente dos EUA, Mike Pence, para coordenar a resposta ao coronavírus, quer parecer ter reconhecido a importância do tema.

O ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, disse uma coisa importante num tipo de governo como o de Bolsonaro: vamos apostar nossas fichas na ciência.

Não creio que haja outro caminho além da coleta dos dados, análises e pesquisas científicas. Num campo político em que ainda sobrevivem grupos antivacina, a orientação baseada na ciência é um avanço.

O vírus chegou num momento difícil. O país está, de uma certa forma, dividido. A mais recente crise foi criada pelo próprio Bolsonaro, para variar.

Ele usou sua conta pessoal para divulgar manifestação a seu favor no confronto com o Congresso. Não creio que isto resulte em nada, exceto aprofundar a divisão nacional.

No artigo da semana passada, lembrei como o governo estava isolado. Sua única saída parece ser encarnar o espírito de Hugo Chávez e usar seus adeptos contra Congresso e STF.

Aliás, Congresso e STF que muitos criticamos, mas não abrimos mão de sua existência como instituições independentes.
Toda essa argumentação política parece-me simples. O difícil é constatar que o coronavírus pede uma resposta nacional e solidária.

Certamente, o debate político precisa continuar. Como encontrar nessas ásperas circunstâncias um denominador diante do coronavírus?

O vírus, como temíamos, chegou. Por mais que as pessoas se confrontem, é essencial que percebam a existência do inimigo comum.

Que tipo de acordo pode existir num país politicamente polarizado diante de uma pandemia? A esquerda é focada na distribuição de renda, ainda não chegou a considerar a distribuição de riscos. As multidões que usam transporte coletivo estarão mais vulneráveis.

Diante de novo problema, será preciso evitar o pânico e congelar o vírus da hostilidade para melhor combater o coronavírus.


Fernando Gabeira: O governo Bolsonaro escolheu o isolamento

Hoje dá bananas, amanhã põe a língua de fora, não importa, o curso geral é este

Às vezes temos a ilusão de que numa longa existência é possível ver tudo na vida. Uma das grandes lições do acúmulo dos fatos é sua incerteza e imprevisibilidade.

Vivo num país em que o presidente dá banana para a imprensa, faz piadas de teor sexual sobre uma jornalista e se envolve em polêmica sobre a morte de um miliciano acusado de dirigir o Escritório do Crime.

É uma situação inédita, parece saída de novelas. Aliás, em novelas há piores situações, como acordar transformado num inseto. Cada observador, diante do inédito inquietante, tem sua análise do que está acontecendo e como superar esses tempos sombrios.

Nesse caso, a experiência tem alguma utilidade. Bolsonaro subiu ao poder e desenvolveu seus piores defeitos. Seu movimento básico é o de isolamento, de buscar confrontos e agradar apenas aos seus eleitores mais fiéis, que relevam ou se identificam com seus preconceitos.

Historicamente, governos isolados abrem caminho para grandes frentes de oposição, com um acordo básico em torno da democracia. O discurso nazista de Roberto Alvim foi um momento especial em que essa possibilidade se mostrou.

Uma tática que me parece adequada diante de governos agressivos que tendem ao isolamento é a inspiração oriental: aproveitar o desequilíbrio de quem se lança ao ataque usando o seu próprio impulso.

Bolsonaro, ao dar banana para a imprensa, acredita que a enfraquece. O mesmo vale quando se refere grosseiramente à repórter Patrícia Campos Mello.

Na verdade, ele se isola mais. Entra aqui um outro elemento tático que é preciso discutir: os eleitores de Bolsonaro não podem ser confundidos com ele.

Os próprios evangélicos, como nos Estados Unidos, podem estar se convencendo aos poucos de que Trump não os representa.

Hoje dá bananas, amanhã põe a língua de fora, não importa, o curso geral é este: o governo escolheu o isolamento e está ensinando o caminho para combatê-lo. Só uma ampla frente social pode responder a este momento. Hoje, o governo Bolsonaro expandiu a presença dos militares no centro das decisões.

É mais um ângulo do seu isolamento. Foi incapaz de construir uma equipe na sociedade. Optou pelos seus guerreiros ideológicos, no caso de Weintraub, um guerreiro contra o português.

Restam ministros como Moro e Guedes, que são uma face do governo Bolsonaro mas não têm conseguido neutralizar o impulso para se isolar.

Guedes falou o que não devia sobre servidores, comprometeu a reforma administrativa. Referiu-se às empregadas não como um liberal o faria, mas como um aristocrata.

No caso de Moro, li uma notícia de que a mulher Rosângela escreveu que ele e Bolsonaro são uma coisa só. Não sabia. Vivendo e aprendendo.

Ainda dentro do quadro de isolamento do governo coloco a frase do general Heleno sobre a chantagem do Congresso. Não exatamente a frase, mas a última palavra gravada: foda-se.

A frase se refere a uma luta surda por um naco de R$30 bilhões do Orçamento. Na medida em que Bolsonaro se isola, o Congresso impõe uma nova divisão. O tema tem sido pouco discutido, inclusive a forma como os congressistas arrancam bilhões do Ministério do Desenvolvimento, às vezes para obras eleitoreiras.
Mas a última palavra do general Heleno revela um esgotamento nas relações com o Congresso. Mas ir para onde? Governar num regime democrático implica tarefas complexas, criar maiorias, relacionar-se de uma forma civilizada com a imprensa.

Esse não foi o caminho escolhido. Ele é impossível para Bolsonaro, que vê inimigos em toda parte. Provoca compulsivamente, como se esperasse uma punição.

Resta saber se o castigo virá antes ou nas eleições de 2022. O ideal é que viesse com elas. Processos de impeachment são traumáticos. Uma parte dos eleitores descrê da democracia. Mas há sempre uma negociação entre o trauma e o pesadelo. Às vezes, pesadelos tornam-se insuportáveis.

Bolsonaro deveria pensar nisso. Mas o que falar com uma pessoa que dá bananas? Esperar apenas que não coloque a língua de fora ou decida se expressar com outras partes do corpo. Os dedos já estão ocupados simulando uma arma de fogo.