Fernando Gabeira
Fernando Gabeira: Só a luta amada evita a ditadura
Pena que os militares tenham embarcado nessa canoa. São potenciais interlocutores. Conhecem bem o Brasil
Meu texto sobre a urgência de uma resposta coletiva aos avanços autoritários de Bolsonaro alcançou muita gente de minha geração.
Felizes com a ideia, todos se preparam, sabendo que o bastão há muito foi passado para as novas gerações. Não importa a importância do papel, o que importa é estar presente.
Da minha parte, a situação é clara. No passado, deixei o país. Hoje, sinto que o país é que está me deixando, dissolvendo-se numa bruma viscosa, tornando-se irreconhecível.
Por isso, quando um grupo gaúcho sugeriu a ideia de uma luta amada, disse imediatamente que para mim caía como uma luva.
Durante muitos anos, ao lado de outros, construímos uma legislação ambiental para proteger nossos recursos naturais. Relatei, por exemplo, o projeto do Sistema Nacional de Unidades de Conservação, conhecido como Snuc. Parece um nome de cachorrinho, Snuc, mas encerra uma realidade de florestas, montanhas, rios e manguezais que visito com frequência.
Quando vejo que estão querendo desmontar a legislação, aproveitando-se do nosso foco na pandemia, quando ouço que querem fazer uma boiada passar sobre a tenra grama de nossa rede de proteção, sinto claramente que estão nos levando o Brasil.
Ao saber que Bolsonaro decapitou a direção do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, o Iphan, apenas para atender ao dono da Havan, sinto um calafrio. É um homem que vendia produtos chineses e tem uma cadeia de lojas com uma cafona Estátua da Liberdade na porta.
O Iphan foi dirigido por intelectuais como Rodrigo Melo Franco, Aloísio Magalhães, e Bolsonaro escolheu agora a esposa de um dos seus seguranças, para tomar conta de 1.300 bens materiais e 25 mil sítios arqueológicos. Foi barrado pela Justiça Federal.
Bolsonaro acha que nosso patrimônio se confunde com o que ele chama de cocô de índio cristalizado.
Das estátuas do Aleijadinho às pinturas rupestres da Serra da Capivara, é desse rico conjunto que extraímos o sentido de identidade nacional e também postos de trabalho para muita gente. Passam com uma boiada sobre os bens naturais e com um bando de javalis sobre nossos bens culturais.
Pena que os militares tenham embarcado nessa canoa. São potenciais interlocutores. Conhecem bem o Brasil. O escorregadão geográfico do general Pazuello foi apenas um acidente isolado.
Não sei se os militares estão usando Bolsonaro como um bode na sala, para depois se apresentarem como moderadores no pântano que ele criou. Ou se simplesmente se deliciam com o acúmulo de soldos e salários como os militares da Venezuela.
Em ambos os casos, estarão perdidos para sua tarefa maior, a defesa nacional. Não importa quantos aparatos de guerra possam comprar, se não têm mais o respeito do povo brasileiro.
De que adianta entrar para o Ministério da Saúde e empilhar cadáveres com a naturalidade com que pintam as árvores de branco?
Nossas populações indígenas estão sendo dizimadas pela Covid-19, nossa juventude negra massacrada pela opressão policial, nossas favelas organizam-se como podem para substituir um governo ausente na pandemia, ausente em todos os tempos.
Só não saímos às ruas porque o vírus tem sido implacável com os mais velhos. Por mais que Bolsonaro arme seus aliados e os filhos lutem para trazer do exterior novos brinquedos de morte, é preciso viver um pouco.
Na verdade, é preciso cautela nas ruas, pois todos precisam estar vivos. Cada um de nós que resiste é um pedaço do Brasil que pede socorro à humanidade, ao que resta de humano na humanidade.
Nem todos sabem como este país é grande, diverso, solidário, magnífico em sua beleza. Impedir que se dissolva nas mãos de vendedores de bugigangas, grileiros, racistas, incendiários é a grande tarefa de construir uma civilização tropical onde querem apenas pasto, fuzis, asfalto, carros e eletrodomésticos.
Como não suprimir o “r” das lutas passadas e chamar isto de uma luta amada? Como não compreender que todas as gerações pretéritas nos lembram de que o Brasil existe para todo o sempre, e que reinventá-lo depende de nós?
Fernando Gabeira: O capitão combate a verdade
Ao lado do armamento da população, esse é um passo decisivo rumo a um governo autoritário
“E conhecereis a verdade e a verdade vos libertará.” Bolsonaro venceu as eleições citando com frequência esse versículo de João. No entanto, não se conhece na História moderna do Brasil um governo que tenha combatido a verdade em todos os níveis.
Os números do desemprego, compilados pelo IBGE de acordo com métodos internacionalmente reconhecidos, foram negados por Bolsonaro. O indice de desmatamento na Amazônia obtido com ajuda de satélites foi contestado por Bolsonaro e o cientista Ricardo Galvão, demitido. Pesquisas da Fundação Oswaldo Cruz sobre consumo de drogas no Brasil foram engavetadas porque não atendiam às expectativas do governo.
A briga contra os dados não se limitou ao choque contra o trabalho científico. Ele se estendeu de forma perigosa contra a própria possibilidade de acesso às informações oficiais.
Com a anuência de Bolsonaro, o general Hamilton Mourão tentou fazer passar uma diretiva que permitia a funcionários de segundo escalão determinar o que era ou não passível de ser classifico como material secreto. A diretiva de Mourão caiu no Congresso.
Mal começou a pandemia, Bolsonaro, usando-a como pretexto, queria suspender parcialmente a Lei de Acesso à Informação. De novo foi derrotado, dessa vez no Supremo Tribunal Federal
A apoteose dessa medida obscurantista foi na semana que passou, com a decisão de censurar as informações sobre a pandemia de covid-19.
Inicialmente, um homem chamado Carlos Wizard, um bilionário que supõe entender de tudo, disse, em nome do governo, que os números de mortos estavam sendo inflacionados nos Estados e municípios porque os gestores queriam mais dinheiro.
Wizard foi para o espaço no momento em que se articulava na rede um boicote a suas atividades empresariais, incluídas ss de greenwashing, aquelas em que você ganha dinheiro fingindo que protege o meio ambiente. Mas foi Bolsonaro que, radicalizando sua política de negação da pandemia, ordenou que as notícias diárias sobre mortes e contaminações não poderiam ser divulgadas antes dos jornais noturnos de TV. E, mais ainda, ordenou que o número de mortos não poderia ultrapassar mil, sem explicar como combinaria com o vírus. Felizmente, as emissoras se deram conta e passaram a divulgar as notícias em plantões especiais, com audiência até maior que no início da noite.
O site do Ministério da Saúde saiu do ar. Voltou sem o número total de mortos. O governo queria baixar esse número e divulgar apenas a quantidade óbitos nas últimas 24 horas, sepultando o resultado do exame de outras mortes que não ficaram prontos no mesmo dia. Com esse expediente, o número de mortos iria baixar, pois nem todos os exames ficam prontos no mesmo dia.
Felizmente, todos perceberam. Uma onda de protesto percorreu o País, unindo Estados, Congresso, TCU, órgãos de informação, cientistas e opinião pública. A repercussão internacional também foi imediata. Jornais europeus criticaram, a própria OMS se pronunciou pela transparência.
O que aconteceu de forma escandalosa nesse momento é apenas resultado da luta de Bolsonaro contra a verdade, palavra que usou na campanha para enganar os eleitores, revestindo-a com um invólucro religioso.
A luta permanente contra a transparência é uma luta contra a democracia. Os militares, no período ditatorial, tentaram esconder um surto de meningite. Mas os tempos são outros.
A mais recente investida de Bolsonaro contra a realidade se deu na arena em que ele está apanhando muito dela: a do avanço da pandemia do coronavírus. Ele começou tachando-a de uma gripezinha. Não era. Questionou o isolamento social, o número de mortos, a existência de outras doenças entre os que foram levados pela covid-19. Um diretor da Polícia Rodoviária Federal caiu porque lamentou em nota a morte por covid-19 de um de seus comandados.
Diante da morte real, bolsonaristas começaram a contestar o conteúdo dos caixões. Houve vídeos afirmando que os caixões estavam cheios de tijolos. A deputada Zambelli chegou a insinuar que um caixão no Ceará estava vazio – é a mesma deputada intimada a depor sobre fake news e a mesma que aparece na internet, durante a campanha, dizendo que as lojas Havan pertenciam à filha de Dilma. Olha que audácia, refletia ela, usam o nome de Havan em homenagem a Cuba e erguem uma Estátua da Liberdade.
Mais tarde, ficou claro para o Brasil quem é dono da Havan. Aliás é impossivel ignorá-lo, com sua cabeça reluzente, vestido de verde e amarelo É desses seres que você não precisa perguntar quem é seu líder, pois sabe que ele o levará direto ao Palácio do Planalto.
Ao lado do armamento da população, essa luta contra a verdade é um passo decisivo rumo a um governo autoritário. Uma espontânea frente pela transparência se formou esta semana. Exatamente na semana em que as pessoas, apesar da pandemia, foram às ruas com a imensa faixa “todos pela democracia”.
Parece vago, dizem alguns políticos. Calma, digo eu. Daqui a pouco tudo fica mais claro. Na luta comum, aparecem as respostas.
*Jornalista
Fernando Gabeira: O fascismo eterno e o fascismo tabajara
Há obsessão com a conspiração, sobretudo a internacional. Esse talvez seja dos traços mais decisivos na política externa
Fascismo tabajara é uma feliz expressão criada pelo cientista político Luiz Werneck Vianna. Fascismo eterno é um conceito do intelectual italiano Umberto Eco e foi tema de uma de suas conferências nos EUA.
Como muita gente nova tem me perguntado o que é o fascismo, resolvi trabalhar um pouco o tema, partindo das características eternas do fascismo para suas manifestações tropicais. A conferência de Umberto Eco acabou resultando num livro de 64 páginas. Ele entende como fascismo esse regime nacionalista, autoritário, que vigorou na Itália e foi derrubado no final da Segunda Guerra.
Quando garoto, Umberto Eco participava de concursos de composições com esse tema: “Devemos morrer pelo glória de Mussolini e o destino imortal da Itália?” Como um garoto esperto, respondia que sim. Eco viu os americanos ocuparem a Itália, Mussolini ser executado e refletiu tantos anos sobre o fascismo que acabou extraindo do regime as suas características que sobrevivem aos tempos.
São 14 traços essenciais e, segundo Eco, não precisam estar todos presentes para definir um regime fascista. É temerário condensá-los num curto artigo e apontar sua manifestação tabajara.
Alguns, no entanto, são tão evidentes que não demandam profundas análises comparativas.
Eco acha que para o fascismo eterno não há luta pela vida, mas antes “vida para a luta”. “Logo, o pacifismo é conluio com o inimigo; o pacifismo é mau porque a vida é uma guerra permanente.”
Daqui salto para dois outros traços essenciais: a relação com a cultura e a relação com as armas. Para o fascista, a relação com a cultura também é uma guerra permanente. Daí a célebre expressão atribuída por Eco a Goebbels: “Toda vez que ouço falar de cultura tenho vontade de sacar minha arma.”
No campo das armas, também se desenha um traço essencial do fascismo eterno. O fascismo eterno transfere sua vontade de poder para questões sexuais. Esta é a origem de seu machismo, que implica desdém pelas mulheres e uma condenação intolerante de hábitos não conformistas, como o homossexualismo.
Para Eco, o herói do fascismo eterno, para quem o sexo é um jogo difícil de jogar, prefere jogar com as armas, um simbolo fálico, e seus jogos de inveja se devem a uma permanente inveja do pênis.
Para aqueles que se veem despojados de qualquer identidade social, o fascismo diz que o único privilégio comum a todos é terem nascido no mesmo país. É a base do nacionalismo extremado. O único elemento que pode conferir identidade é o inimigo.
No fascismo há uma obsessão com a conspiração, sobretudo a internacional. Esse talvez seja um dos traços mais decisivos na nossa política externa. A própria ONU parece ser uma sede de conspiração, assim como a OMS e outros organismos internacionais. O aquecimento global é uma invenção do marxismo globalizante, o corona é um vírus comunista, destinado a enfraquecer os países do Ocidente.
Entre os 14 traços essenciais do fascismo eterno, na concepção de Eco, está também a recusa da modernidade. Escrevi sobre ele, mostrando que a proposta de Bolsonaro na verdade é uma retropia, uma volta a um passado ideal, ordenado e tranquilo, desenhado por Damares, com meninos vestidos de azul, meninas, de rosa.
O fascismo tabajara também defende um tipo de tradição religiosa, na qual a verdade foi revelada e não há espaço para o avanço do saber.
Só que aqui a verdade foi revelada nas profecias evangélicas, segundo as quais Cristo deve retornar ao Oriente Médio, quando Israel recuperar suas terras. É essa profecia que move o governo Bolsonaro a querer mudar para Jerusalém a embaixada brasileira.
O interessante, para finalizar, sem finalizar de fato porque há muito o que comparar ao longo dos traços restantes, o fascismo vê diversidade como um sinal de desacordo. Ele busca o consenso exacerbando no natural medo pela diferença. Seu primeiro apelo é contra os intrusos, logo, por definição tende ao racismo.
Umberto Eco morreu recentemente. Não viu surgir de novo o movimento antifascista. Mas, sobretudo, não pôde incluir um traço ao fascismo eterno que surge aqui como nos Estados Unidos: o fascismo chama de terrorista quem se insurge contra ele.
O Estado de S. Paulo: ‘Generais viram que proposta de Bolsonaro é a guerra civil’, diz Gabeira
Para jornalista, presidente tornou-se fator de radicalização dos militares e pode recorrer a PMs para dar um golpe
Wilson Tosta, O Estado de S.Paulo
RIO – Um ano atrás, o jornalista Fernando Gabeira tinha críticas ao presidente Jair Bolsonaro, mas avaliava que as instituições eram suficientes para contê-lo, como expressou em junho de 2019 em entrevista ao Estadão, onde é colunista. Não pensa mais da mesma forma. A pregação em favor de armar a população, que o mandatário fez na reunião de 22 de abril com ministros, seus movimentos para atrair as Forças Armadas com verbas e cargos e sua aproximação das Polícias Militares foram decisivos para o jornalista mudar de ideia. Agora, Gabeira defende a mobilização dos brasileiros para neutralizar Bolsonaro até 2022 ou para afastá-lo do cargo definitivamente. Para ele, a ação do presidente sugere o espectro de uma guerra civil ou um golpe de Estado, sem, necessariamente, participação direta das Forças Armadas.
“Muito possivelmente ele pode estar articulando um golpe usando Polícias Militares e neutralizando as Forças Armadas”, diz Gabeira, em nova conversa com o Estadão, nesta quinta-feira, 4. “Ele pode estar até em um ponto em que não precise usar as Forças Armadas. Basta que elas fiquem neutras e deixem a Polícia Militar atuar.”
Gabeira critica a postura dos generais que ocupam cargos no ministério porque na reunião do dia 22 de abril ouviram calados o que considerou a defesa explícita da constituição de milícias com fins políticos. “Para mim é absolutamente novo na história do Brasil: os generais ouvindo a ideia de armamento, armar a população para a sua expressão política, sem terem algum tipo de reação”, afirma.
A seguir, os principais trechos da entrevista:
Há quase um ano, em entrevista ao Estadão, o senhor fez algumas críticas ao governo Bolsonaro, mas se mostrou confiante nas instituições para contê-lo. Recentemente, o senhor passou a defender que os brasileiros, no Brasil e no exterior, se mobilizem para barrar um possível golpe do presidente. O que aconteceu?
O primeiro aspecto da minha confiança eram os contrapesos democráticos, que estavam baseados no Congresso e no Supremo. Esses contrapesos não foram alterados, continuam tentando fazer frente a esse processo. Mas há sobre eles, hoje, uma carga muito intensa, a partir do bolsonarismo e dos seus aliados. As manifestações foram claramente dirigidas ao fechamento do Congresso e do Supremo. Então, o que alterou bastante é que o Bolsonaro não está aceitando muito bem a presença desses contrapesos, pelo contrário, está tentando neutralizar alguns deles. Esse é um fato. Outro é a relação com as Forças Armadas, que sempre (desde a redemocratização) tiveram, aparentemente, um papel democrático, e funcionaram, ao longo desses anos, recuperando a sua imagem. E as Forças Armadas foram muito envolvidas pelo Bolsonaro. Não só através do trabalho orçamentário, mas também pela visão da reforma da Previdência dos militares, pela entrada de 3 mil militares no governo, entende? E sobretudo agora pela aliança que fizeram na Saúde. Praticamente, (as Forças Armadas) estão atraindo, participando ou partilhando uma política que pode trazer para elas uma repercussão nefasta. Então, isso tudo alterou muito o quadro.
Recentemente, houve algum fato que acelerou a sua mudança de opinião sobre o governo Bolsonaro? Por exemplo, a saída do Sérgio Moro?
Não, a saída do Sérgio Moro, não. Mas aquela reunião do (dia) 22 (de abril), que foi divulgada (por vídeo, liberado por ordem do ministro Celso de Mello, do STF) apresentou alguns fatos alarmantes. O primeiro deles, o mais importante para mim, foi a defesa pelo Bolsonaro do uso de armas. Se você lembrar da campanha eleitoral, o Bolsonaro tinha como (base da) proposta de armamento da população a necessidade de se defender do caos urbano, da violência urbana. Cada pessoa poderia ter uma arma para se defender, eventualmente, de um assalto, de uma invasão da sua propriedade. Mas naquela reunião ficou evidente que ele tem uma visão de armas para a expressão da sua visão política. A pessoa armada teria condições de se expressar politicamente através das armas. Inclusive, sugeriu que isso fosse feito contra a quarentena. Quatro generais do Exército estavam presentes e não moveram uma palha, nem houve uma expressão de surpresa. Isso para mim é absolutamente novo na história do Brasil: os generais ouvindo a ideia de armamento, armar a população para a sua expressão política, sem terem algum tipo de reação.
Na campanha de 2018, muita gente dizia "Bolsonaro só fala essas coisas horríveis para ganhar voto, isso não é a sério". Ou então diziam: "Ele já pensou assim, não pensa mais." De certa forma, não ocorreu com ele o mesmo erro que houve com (Donald) Trump (presidente dos EUA), o de achar que ele tinha um discurso para campanha, mas governaria de outra forma?
Bolsonaro, na Câmara dos Deputados, tinha um tática de popularização. Ele utilizava vários temas, como direitos humanos, como a questão das mulheres, da homossexualidade… Ele usava isso para poder se popularizar. A tática dele era pegar algumas pessoas conhecidas, por exemplo Maria do Rosário, Jean Wyllys, e fazer diante das câmeras alguns debates que sustentariam o seu público. Mas ele não tinha muito ideia de uma proposta para o Brasil. Tinha um saudosismo do governo militar, mas que não tinha correspondência naquele momento com a própria situação das Forças Armadas.
Ao chegar ao governo, ele faz uma política de sedução das Forças Armadas. Com uma política de sedução que, em alguns aspectos, é muito certa. Em primeiro lugar, através do Orçamento, da reforma da Previdência, da inclusão de 3 mil militares no governo, da parceria em uma política temerária em relação à covid-19, na utilização do ministro da Defesa em manifestações propondo o fechamento do Congresso e o fechamento o STF… Ele está usando as Forças Armadas, de uma forma bem clara, como um elemento de intimidação. E as Forças Armadas, pura e simplesmente, estão se deixando usar. E isso não é o único perigo dele. Ele tem uma boa penetração nas Polícias Militares. Então, muito possivelmente, ele pode estar articulando um golpe usando Polícias Militares e neutralizando as Forças Armadas. Ele pode estar até em um ponto em que não precise usar as Forças Armadas. Basta que elas fiquem neutras e deixem a Polícia Militar atuar.
O senhor falou em projeto; quando era deputado, na sua opinião, Bolsonaro não tinha um projeto, era apenas uma coisa de agitação, digamos assim. Pode-se dizer que Bolsonaro tem um projeto hoje?
Ele não tinha um projeto, nunca teve. Mas ele andou se relacionando com pessoas que tentaram trazer um recheio teórico para o projeto dele. É o caso do Olavo de Carvalho, é o caso do ministro Ernesto Araújo, que tentam dar assim a visão de um projeto cristão, em primeiro lugar um projeto cristão. Em segundo lugar, um projeto nacionalista, contra organismos globais, quer dizer, contra o que eles chamam de marxismo global. Então, isso foi acontecendo. E mais ainda: foi dada a ele, através do Olavo de Carvalho, a necessidade de uma guerra cultural, contra todos os setores da cultura que eles consideram adversários e ligados de alguma forma à esquerda.
Voltando aos militares, quando começou o governo, havia uma expectativa de que seriam um fator moderador dos impulsos do Bolsonaro. Isso ficou para trás?
Olha, aconteceu o seguinte: ao invés de os militares se tornarem moderadores do Bolsonaro, ele se tornou um fator de radicalização dos militares. O general Augusto Heleno, por exemplo, tem se tornado um radical, cada vez maior, dentro do governo. É claro que, no caso do general Heleno, pesou também aquela prisão, lá na Espanha, de um oficial (na verdade, o sargento Manoel Silva Rodrigues) da Aeronáutica com grande quantidade de cocaína. E ele, como o homem do GSI, foi considerado responsável pelo furo de segurança pelo Carlos Bolsonaro. Depois disso ele ficou um pouco assustado e começou a tomar posições mais radicais e se unir a este chamado grupo ideológico.
Outros generais, por exemplo, o general Braga Netto (chefe da Casa Civil), que esteve no Rio de Janeiro, na intervenção (na Segurança do Estado em 2018), tem até uma capacidade de organização boa. Ele é um homem que entende de organização, gosta de organizar. Eu vi, ele me mostrou o trabalho dele de organização, mas ele não tem condições de segurar o Bolsonaro. Da mesma maneira, o (vice-presidente Hamilton) Mourão não tem esse papel. O Mourão sempre foi considerado pelos próximos ao Bolsonaro como um adversário em potencial. Então, ele se recolheu também. O general (Luiz Eduardo) Ramos (chefe da Secretaria de Governo), que deu entrevista dizendo que é um democrata, que são todos democratas e que é uma ofensa às Forças Armadas pensar que elas podem estar sendo cúmplices de um golpe, ele também é o cara que está fazendo a política do Bolsonaro.
Por exemplo, ele estava presente naquele dia em que Bolsonaro falou que ia armar todo mundo, que era necessário armar todo mundo. Então, esses generais viram que a proposta do Bolsonaro é a guerra civil. Eles sabem muito bem que Bolsonaro é um homem que ganha as eleições e denuncia as eleições como fraudadas. Então, com as armas na mão, o que vai querer fazer? Vai querer se rebelar. Eles sabem disso. Então, não adianta o general Ramos dizer é uma ofensa às Forças Armadas pensar que elas podem (dar um golpe). Mas diante desse silêncio de cumplicidade ali, o que você pode pensar? Se você não ofende as Forças Armadas pensando nisso, você ofende a sua própria inteligência tendo que escolher entre uma coisa e outra
O que explica a reação do Bolsonaro à pandemia, chamando de gripezinha, pregando contra o isolamento, saindo às ruas e provocando aglomerações?
Olha, Bolsonaro pensa muito curto. Ele pensou o seguinte: "O que isso pode fazer comigo? O que isso pode representar para o meu governo? Então, uma crise econômica, o desemprego, vão atrapalhar minha gestão. Então, vou negar essa epidemia." Ele negou a epidemia porque achava que era contrária a ele. O mesmo lance que o Trump fez nos Estados Unidos, até certo ponto. Eles intrepretaram a epidemia como uma coisa que era destinada a enfraquecer o governo deles. Eles não viram a neutralidade da epidemia. Tanto que aqui no Brasil o próprio ministro das Relações Exteriores chamou de vírus comunista. O vírus era um produto do comunismo, destinado a enfraquecer os governos democráticos ocidentais. Então, ele (Bolsonaro) pode ter tido essa visão, de que era um vírus comunista, destinado a enfraquecer o governo dele. Então, ele precisava negar o vírus. Qual foi o processo de negação? Primeiro, dizer que não era importante, que era apenas uma gripezinha. Quando começaram a surgir as mortes, eles disseram que o número de mortos era inflacionado, que estavam dizendo que morreu mais gente de coronavírus que de fato morreu — quando, na realidade, tudo indica que essas mortes são subnotificadas. Quando começaram a enterrar as pessoas, eles começaram a negar que os corpos estivessem dentro dos caixões, que eram pedras, que estavam enterrando caixão vazio…
É uma visão de política como guerra, não?
Exatamente. "Não existe vírus, existem eles contra mim. Se eles estão do lado que acha que o vírus é importante, é porque é alguma coisa contra mim…"
Inicialmente, o governo avaliou que a divulgação do vídeo do dia 22 foi boa, porque reforçou o entusiasmo do bolsonarismo, fortaleceu a narrativa do governo nas redes. Mas depois o presidente viu sua rejeição aumentar nas pesquisas, com redução na proporção dos que consideravam o seu governo regular. A exibição do Bolsonaro raiz em horário nobre assustou as pessoas?
O que aconteceu foi o seguinte: a divulgação do vídeo mostrou que Bolsonaro não tem condição de ser presidente da República. Mostrou que ele é um presidente incensado por aquelas pessoas que veem nele um mito. Acho que o Bolsonaro está cada vez mais reduzido àquela fração de pessoas despolitizadas ou os polititizados que estão muito agrupados na extrema direita. Isso é um processo que está avançando e não terminou, o isolamento dele não terminou.
Como explicar o apoio de neofascistas? De onde veio essa turma?
Olha, essa crise mundial, que repercutiu, que acabou avançando na eleição de presidentes como Trump, como Bolsonaro, só se agrava. Então, nesses momentos de crise, esses movimentos surgem, tanto à direita como à esquerda. Neste momento, os mais visíveis estão à direita. Então, eles encontaram no Bolsonaro uma espécie de possibilidade de projeção política. As manifestações estão cada vez mais claramente demonstrando os símbolos. Aquela manifestação feita diante do Supremo Tribunal Federal, você vendo a imagem, diz: é a Ku Klux Klan. Ou é uma imagem do nazismo, daquele momento, quer dizer, tem todas as características simbólicas. E tem outros símbolos de supremacia branca, os caras tomando copo de leite, curiosamente, para passar mensagem subliminar (em uma live nas redes sociais em 1º de junho Bolsonaro aparece tomando um copo de leite puro; naquele dia era comemorado o Dia Internacional do Leite, porém, nas redes sociais, o gesto foi associado com um costume dos supremacistas brancos dos Estados Unidos de usar leite como um símbolo). Essas coisas que a gente está vendo.
Uma hora é um secretário que se fantasia de Goebbels para praticamente lhe repetir as palavras. Outra são apoiadores de tocha e máscaras na porta do STF, lembrando caminhadas nazistas. O próprio presidente citou uma frase que foi usada por Mussolini. É tudo coincidência?
Eles negam, mas se você olhar… O livro do Umberto Eco, O Fascismo Eterno, lista as 14 características essenciais, que ele considera do fascismo eterno. E quase todas estão presentes no Brasil. O ultracionalismo, a admiração pelas armas… Quer dizer, todas as características principais do fascismo estão presentes, o pavor da modernidade… Isso está presente, são características do fascismo eterno. O machismo, o culto das armas, o namoro com a morte, tudo isso é caracteristica do fascismo. Está lá no livro do Umberto Eco, que acho uma pessoa insuspeita para falar disso. Escrevia composições, pariticipava de concursos de composições, sob o fascismo, viu chegarem os americanos, estudou a vida inteira isso. Agora, estamos caminhando para o fascismo tabajara, com características próprias, não tem a consistência teórica necessária para isso, mas tem caracteristicas.
Como o senhor avalia a participação de Bolsonaro nas manifestações que pedem o fechamento do Supremo e do Congresso?
Evidentemente, qualquer democrata, diante de uma manifestação desse tipo, passa longe. Ele (Bolsonaro) vai lá saudar os manifestantes. Meio que demonstra, com isso, que tem uma simpatia pela causa deles. Ele tem alguma simpatia pela causa do fechamento do Congresso e do fechamento do Supremo. Agora, no último domingo, ele agravou isso mais. Trouxe com ele no mesmo helicóptero, para participar ou para descer na manifestação, o ministro da Defesa (Fernando Azevedo e Silva). Deu um passo além, simbolicamente. Não significa que trouxe as Forças Armadas para o lado dele. Então, simbolicamente, o ministro da Defesa desceu com ele em uma manifestação. Agora, o ministro da Defesa, depois, foi pedir desculpas, pedir desculpas não, foi se justificar junto à Camara dos Deputados, depois foi se justificar ao Alexandre de Moraes, dizer que não foi bem assim, que pegou uma carona, que não sabia… Afinal, o ministro da Defesa não é o ministro da Defesa da Suécia. Ele sabe que todo domingo tem manifestação ali. Por que ia pegar uma carona? Se ele é tão inocente, não pode ser ministro da Defesa.
Bolsonaro pode ser apaziguado, pode ser levado a respeitar as leis?
Acho que é evidente agora, depois de tudo que ele mostrou, quem viu aquela reunião, que Bolsonaro está querendo armar o povo para uma expressão política, para que o povo tome uma posição política que eles querem. Está querendo criar milícias armadas. Aquilo ele falou com toda a sinceridade. E não voltou atrás nisso, pelo contrário. Continuou disposto a isso. E um homem que quer armar uma parte da população está preparando uma guerra civil. Naquele momento, ficou bastante claro para mim qual é o desígnio dele, qual é a posição. Então, acho que tem que trabalhar para ou neutralizá-lo visando ir até 2022, ou afastá-lo antes disso.
Fernando Gabeira: Acabou, acabamos
Ao aceitarem que caiam no seu colo milhares de mortes, Forças Armadas mostram que topam tudo por seu capitão
Acabou, porra! Esta frase de Bolsonaro, dita na porta do Palácio da Alvorada, me lembrou uma outra frase de um personagem de “Esperando Godot, peça de Samuel Beckett: “Acabou, acabamos.”
Esta lembrança surgiu porque há alguns dias fizemos uma live, eu e o querido embaixador Marcos Azambuja, cujo título era: “Esperando Godot, a tempestade perfeita.” Nesse encontro, promovido pelo Centro Brasileiro de Relações Internacionais, defendi a tese de que a tempestade perfeita no Brasil era produzida pela associação da pandemia com a presença de Bolsonaro no poder. Há outras combinações no mundo: nos EUA, por exemplo, coronavírus e racismo.
Bolsonaro disse esta frase porque não quer respeitar as decisões do STF, onde, no momento, tem duas preocupações: um inquérito sobre sua interferência na Polícia Federal e outro sobre a máquina de fake news montada por gente muito próxima a ele.
Filho de Bolsonaro, Eduardo entra no nosso ônibus e diz: eu poderia estar fritando hambúrguer nos Estados Unidos, mas vim avisar que haverá uma ruptura, não é questão de se, mas de quando acontecerá.
Juristas ultraconservadores acham o artigo 142 como saída. Se Bolsonaro não aceita as decisões do Supremo, as Forças Armadas têm de funcionar como Força Moderadora, obrigando o Supremo a aceitar tudo o que faz Bolsonaro.
As Forças Armadas já mostraram até onde podem ir. Em primeiro lugar, ocuparam o governo. Isso era previsível, pois o espírito salvacionista que vem desde a Proclamação da República não morreu: só os militares conseguem dirigir este país caótico, pensam.
O mais grave é que as Forças Armadas, através de um general da ativa, ocuparam o Ministério da Saúde, encamparam a errática política de Bolsonaro e querem nos entupir de cloroquina. Ao aceitarem que caiam no seu colo milhares de mortes, mostram que topam tudo por seu capitão.
Como assim, nossas Forças Armadas? Outras forças também poderosas foram seduzidas por um simples cabo. A hora não é tanto de reflexões sociológicas, mas de organizar a resistência.
Simplesmente não há tempo a perder. O tempo que perdemos esperando o coronavírus chegar representou muitas mortes.
É hora de avisar a todos os brasileiros no exterior para que reúnam e discutam a necessidade de falar com partidos, organizações, imprensa, organizar núcleos de apoio na sociedade europeia e americana, entre outras.
As Forças Armadas não só encamparam a política da morte de Bolsonaro. Elas tiraram de centro da cena o Ibama e outros organismos que fazem cumprir nossa legislação ambiental, conquistada ao longo de anos de democracia.
O governo brasileiro vai se tornar uma grande ameaça ambiental e biológica simultaneamente. Lutar contra ele em todos os cantos do planeta é uma luta pela vida, pela própria sobrevivência. Esse será nosso argumento.
Internamente, será preciso uma frente pela democracia. Já temos uma frente informal pela vida, expressa no trabalho de milhares de médicos e profissionais de saúde, nos grupos de solidariedade que se formaram ao longo do Brasil.
O que a frente pela democracia tem a aprender com eles? Em primeiro lugar, ninguém perde tempo culpando o outro pela chegada do coronavírus. Em segundo lugar, a gravidade da morte onipresente não dá espaço para confronto de egos.
Uma frente pela democracia não é uma luta pelo poder, mas sim pelas regras do jogo. Quem estiver interessado no poder que espere as eleições. Foi assim no movimento pelas Diretas.
Hoje uma frente pela democracia transcende as possibilidades do movimento pelas Diretas. As redes sociais colocam na arena milhares de novos atores, alguns deles capazes de falar com mais gente do que todos os partidos juntos. O espaço para criatividade se ampliou. O papel de cada indivíduo é muito mais importante do que foi no passado.
Não tenho condições num artigo de falar de todas essas possibilidades. Mesmo porque eles não se limitam à cabeça de uma pessoa. A única coisa que posso dizer produtivamente agora é isto: não percam tempo. É urgente falar com amigos, estabelecer contatos, discutir como atuar adiante, como resistir ao golpe de Estado. Posso estar enganado, mas jamais me perdoaria, com a experiência que tenho, se deixasse de alertar a tempo e também não me preparasse para esta que talvez seja a última grande luta da minha vida.
Fernando Gabeira: Algumas notas para resistir
Depende de nós frear a marcha totalitária, deter o obscurantismo. É só querer
O poeta Carlos Drummond escreveu estes versos: Deus me deu um amor no tempo de madureza/ quando os frutos ou não são colhidos ou sabem a verme. Conversando com um político da minha geração, esta semana, lembrei-me do poeta quando ele disse: “Deus nos deu uma luta pela democracia, nos últimos anos de vida”.
Não esperávamos por essa. No entanto, não dá mais para ignorar que o sinal vermelho do regime autoritário está aceso no Brasil.
De um lado, vê-se um presidente falando em armar o povo, como Mussolini ou Chávez, e isso diante de uma plateia de generais indiferentes à gravidade desse discurso; de outro, um general falar em crise institucional porque um ministro do Supremo apenas cumpriu um artigo do regimento interno, despachando um pedido para o procurador-geral da República considerar: a perícia no telefone do presidente da República.
Nossa atenção estava toda concentrada na pandemia, o maior desafio depois da 2.ª Guerra Mundial. Mas um ministro diz na reunião do conselho que é preciso aproveitar nossa atenção no coronavírus para passar uma boiada de medidas que não suportam a luz do sol.
Pois muita coisa está se passando diante dos nossos olhos consternados com a sucessão de mortes e amedrontados com a síndrome respiratória aguda. Bolsonaro seduziu as Forças Armadas com verbas orçamentárias e uma suave reforma da Previdência. E mais ainda, fez um apelo ao salvacionismo que viaja no espírito deles desde a Proclamação da República e abarrotou o governo com militares.
Tudo indica que estão anestesiados. Generais reagem com sonolência a um projeto de milícias armadas. Sabem que Bolsonaro é homem de denunciar fraudes nas eleições que venceu, logo estará pronto para pegar em armas quando for derrotado adiante.
A origem positivista marcada pela aliança com a ciência foi jogada no lixo e um general se adianta para substituir médicos e inundar o Brasil com uma cloroquina que a OMS não aprova. Se as Forças Armadas resolveram encampar a política negacionista de Bolsonaro diante do vírus, se aceitam que milhares de mortes sejam debitadas na sua conta, é porque já decidiram mandar para o espaço o tipo de credibilidade que ganharam nos últimos anos.
Elas vêm pra cima com o mesmo ímpeto com que os militares venezuelanos defendem o seu governo autoritário. Por isso é preciso preparar a resistência.
A primeira lição é não ver essa luta, que para alguns se dá no final da vida, com os mesmos olhos da juventude. Mesmo porque só generais incompetentes veem uma nova batalha como se fosse a repetição da anterior.
Nada de armas. Num conflito moderno, a superioridade moral é decisiva. Eles vão se enrolar nas benesses do governo numa das crises mais profundas da História.
Olhar para o mundo. Não como no passado, exportando relatórios clandestinos e, com alguns contatos, denunciar desrespeito aos direitos humanos. Isso não é mais o principal. Agora existe a internet, uma infinidade de contatos possíveis com o planeta. Não precisamos comover apenas com corpos torturados, mas convencer os outros povos de que um governo cuja política destrói sistematicamente a Amazônia e favorece epidemias como a do coronavírus é ameaça também à existência deles.
Compreendo que ter o mundo a favor não basta para derrubar um regime autoritário. A Venezuela é um exemplo de que sem uma força coesa internamente não se chega a lugar nenhum. Aí está realmente o problema central: o instrumento. Ele precisa ser uma frente democrática ampla, madura, sem conflitos de egos, sem estúpidas lutas pela hegemonia, tão comuns na esquerda.
Chegamos perto disso no movimento pelas diretas. Candidatos a um mesmo posto conviviam harmonicamente no período de lutas e mais tarde buscavam caminho próprio nas eleições. Mas o próprio movimento das diretas é muito velho para o momento. Novas forças surgiram. Atores políticos menos experientes, mas com a capacidade de falar para milhões de pessoas, entraram em cena.
Na conversa que tive com o amigo disposto a lutar a última luta da vida, chegamos à conclusão de que é preciso apenas um núcleo que saiba contornar as bobagens dos que só pensam no poder e consiga estimular a criatividade social, diante dessa ideia de que a democracia não pode morrer no Brasil.
Não adianta ficar reclamando que o Congresso e o Supremo não conseguem frear a marcha totalitária. Isso depende de nós: é só querer. Na verdade, milhares hoje dão sua pequena contribuição, criticando, resistindo, às vezes até ridicularizando pelo humor.
Todo esse esforço molecular está, na verdade, ligado entre si. O que às vezes impede a consciência dessa união é o desprezo pela política, compreensível pelo que ela se tornou no Brasil.
Mas não se trata de aderir a um partido, militar no sentido clássico. A luta contra o coronavírus, por exemplo, é uma ampla frente pela vida que vai do carregador de maca ao cientista. As pessoas estão unidas pela urgência do presente, sem perguntar de quem é a culpa pelo vírus.
Da mesma forma, não interessa agora saber de quem é a culpa pela marcha do obscurantismo. É preciso detê-la.
- Fernando Gabeira é jornalista
Fernando Gabeira: Vídeo, mentiras e palavrões
A divulgação na íntegra, exceto referência aos chineses, deu uma boa ideia de como estamos sendo governados
É raro ver um filme, depois de ler seu argumento e roteiro. Você sabe o que vai acontecer. No entanto, desconhece como os atores vão representar o texto, como reagirão às falas, como se movimentam no espaço cênico.
O famoso vídeo da reunião do Conselho de Ministros já foi vazado a ponto de termos uma ideia de como transcorreu. Sim, havia dúvidas sobre os palavrões. Como foram ditos, com que expressão facial, em que contexto, que tipo de olhar suscitaram.
Tenho impressão de que o vídeo veio na íntegra. O corte da fala de Weintraub é tão óbvio que todo mundo percebe o que disse: não queria ser escravo do PC chinês. Talvez seja uma das frases mais inocentes de todo o texto.
Não foi uma reunião de Conselho de Ministros tal como a supomos. Foi mais parecido com uma pajelança, uma tentativa de Bolsonaro de animar seu Ministério. O debate mesmo era sobre o plano Pró-Brasil.
O trecho básico, que interessa ao processo nascido com a queda de Moro, é o que afirma que não vai deixar sua família se foder, nem seus amigos. Por isso, mudaria até o ministro se necessário. Mudou o superintendente da Polícia Federal, e Moro caiu em seguida.
O nível das intervenções de Bolsonaro é bastante singular se cotejado com os documentos de reuniões presidenciais. Um dos momentos mais dramáticos foi afirmar que, se a esquerda vencesse, todos estariam cortando cana e ganhando 20 dólares por mês.
Como escritor, o que mais me impressionou foi a maneira como figurou a perda da liberdade: “Eles querem nossa hemorroida”, disse. Da primeira vez, hesitei. Seria isso mesmo? De onde tirou a hemorroida para expressar a perda da liberdade, não tenho a mínima ideia. Os analistas talvez nos ajudem.
A divulgação na íntegra, exceto referência aos chineses, deu uma boa ideia de como estamos sendo governados. Não apenas pelas palavras escolhidas, mas pela falta de conexão, de uma liderança que tivesse a agenda na cabeça e tentasse trabalhar o Ministério no conjunto como o maestro que rege uma orquestra afinada.
A perversidade ficou evidente na fala do ministro Ricardo Salles. Ele sabe que a Amazônia está sendo destruída num ritmo alucinante: de agosto de 2019 a abril de 2020 o desmatamento cresceu 94,4 % em relação ao período de agosto de 2018 a abril de 2019.
A tática explícita de Salles é aproveitar a grande preocupação com a pandemia e passar todas as agendas que significam enfraquecer a legislação ambiental e acelerar o processo destrutivo em curso.
Eu já intuía isso. O Human Rights Watch publicou um relatório semana passada, mostrando como as multas na Amazônia deixaram de ser devidamente cobradas desde outubro e como os funcionários sentem-se desamparados na execução da lei.
Consegui passar essa mensagem no meio de uma notícia sobre Covid. É preciso usar todas as brechas para neutralizar a tática perversa.
O general Heleno escreveu uma nota ameaçadora antes da divulgação do vídeo. Não entendeu que o ministro Celso de Mello apenas submeteu ao procurador-geral a hipótese de periciar o telefone de Bolsonaro e seu filho Carlos.
A ameaça é clara: intervenção militar. Heleno é um militar com experiência internacional. Creio que ele e as Forças Armadas sabem que existe uma pandemia e que ela é um tema decisivo para a Humanidade.
Creio também, caso leiam os jornais, que sabem o papel de Bolsonaro no imaginário internacional: o de um negacionista, cada vez mais perigoso na medida em que o Brasil torna-se o epicentro da pandemia mundial.
Um golpe militar no Brasil vai colocar o país em choque com o mundo. Dois temas vão se entrelaçar: a pandemia e a destruição da Amazônia.
Não creio que depois de tanta reflexão histórica, estudos, seminários, palestras, cursos no exterior, as Forças Armadas queiram participar dessa aventura. Já associaram sua imagem à cloroquina. Será que ouviriam o general Heleno e os defensores de uma intervenção militar?
Desta vez, não cairemos no erro de resistir com armas. Será uma luta longa e pacífica, alavancada pelo próprio mundo. Da primeira vez foi uma tragédia; agora, será uma farsa com consequências profundas. Se é possível dar um conselho, ai está: por favor, não tentem.
Fernando Gabeira: Gente em tempos sombrios
Tanto na guerra quanto na pandemia, escolhas erradas nos levam ao pior dos mundos
Dizem que vivemos a maior crise depois da Segunda Guerra. Não conheci a Segunda Guerra: ela é tão antiga que me colheu nos primeiros anos de vida.
Isso não me impede de comparar. Para o Brasil, creio, a Segunda Guerra foi menos devastadora que a pandemia do coronavírus. Perdemos 471 homens e tivemos 12 mil feridos. Nesta semana, a pandemia já alcança 200 mil casos e ultrapassa as 15 mil mortes.
Na Segunda Guerra, Vargas demorou mas acabou encontrando o rumo, e o Brasil se colocou do lado certo no conflito. Bolsonaro subestimou a importância do vírus e, infelizmente, não alterou sua posição diante dos fatos, recusando-se a desenvolver uma política nacional e solidária.
Isso configura uma tempestade perfeita. Tanto na guerra como na pandemia, escolhas erradas nos levam ao pior dos mundos.
Mas não adianta chorar. Sempre me interroguei sobre como sobreviver no pior dos mundos. Não tive respostas definitivas.
Lembro-me de que estava cobrindo a chegada dos refugiados albaneses numa praia italiana, no fim do regime. Na multidão que saía do navio, vi um casal vestido modestamente, mas com muita elegância. Pareciam tranquilos e felizes. Imaginei que eram ligados por um profundo laço amoroso, e isto os ajudou a atravessar o pesadelo do regime autoritário de Enver Hoxha.
Mais tarde li “Homens em tempos sombrios”, de Hannah Arendt. Ali era a coragem intelectual diante do stalinismo e do fascismo que despontava como elemento essencial na sobrevivência.
Finalmente, quando li os escritores cubanos dissidentes, muitos perseguidos e aniquilados, outros resistindo através de sua literatura, cheguei a uma nova conclusão.
Creio que a expressei numa introdução ao livro do poeta Raúl Rivero, cuja saída de Cuba para a Espanha acompanhei, tentando apoiá-lo também do Brasil. Nesse caso, a sensualidade inspirada no cotidiano do próprio povo pareceu-me um fator de sobrevivência e de recusa à mediocridade burocrática.
Apesar de tantas indicações na experiência de vida, a tempestade perfeita me colhe numa situação singular. Será necessário inventar porque, apesar das experiências terríveis dos outros, nenhuma das outras tempestades perfeitas apresenta os ventos, trovões e raios como a nossa. A água que aqui transborda, não transborda como lá.
Estamos diante de um inimigo invisível. Muitos de nós somos do grupo de risco. A energia popular está distante porque fomos confinados. No passado, ouvia bater de panelas. Agora, nem isso. De vez em quando, alguns gritos ao longe, ou mesmo a voz de crianças empinando pipas no sol de outono.
O governo é de extrema direita. Ainda há liberdade de criticá-lo, mas na solidão virtual. Nos anos 60, fervilhavam as assembleias, uma corrente fraternal eletrizava os opositores, amores brotavam no asfalto como as flores do poeta.
Na semana passada, preparando-me para uma live com o embaixador Marcos Azambuja, escrevi um artigo sobre as características gerais dessa tempestade: ecologia, política externa, experiências históricas de negação da realidade.
Ao concluir o artigo preparatório, cheguei à conclusão de que era preciso aos poucos responder para esta época a pergunta que me intrigava em outras épocas e lugares.
Não sou adepto da ideia do novo homem. Fico com Shakespeare e acho que a humanidade com suas misérias e grandezas não muda essencialmente através do tempo. No entanto, não há dúvida de que a pandemia nos coloca a questão da solidariedade. Por menos que seja nosso gesto, sentimos que a resposta específica para esse tempo sombrio passa por aí.
Da mesma forma, a luta pela democracia, o esforço para manter nossos valores culturais e espirituais diante do impulso destruidor da extrema direita e sua política de morte.
Só está faltando talvez a superação dos ressentimentos, a certeza de que é possível formar uma ampla unidade de diferentes, sem veleidades hegemônicas, algo que em outras épocas foi o instrumento decisivo para combater governos extremistas.
Evidentemente, não tenho a fórmula acabada para esta união. Parece-me apenas que discutir, neste momento, quem tem mais culpa na ascensão de Bolsonaro é continuar no pântano.
Marco Aurélio Nogueira: Fazendo o que o mestre mandar
Osmar Terra previu que o coronavírus seria leve no Brasil, com no máximo 800 óbitos. Agora, fala que o problema é sério. Mas continua a banalizar a situação: o que são 11 mil mortos perante a desgraça econômica que a quarentena produz?
O deputado Osmar Terra (MDB-RS) tem 70 anos, é médico, formado pela UFRJ. Na juventude, andou pelo PCdoB e pela ala esquerda do PMDB. Chegou a fazer campanha pela reforma sanitária e pelo SUS. Foi prefeito de Santa Rosa e secretário da Saúde no Rio Grande do Sul. Virou ministro do Desenvolvimento Social no governo de Michel Temer.
Apesar disso, não é propriamente um quadro brilhante. Mexe-se e articula bem, pelo que dizem. Foi ganhando projeção e se tornou estrela de primeira grandeza quando Bolsonaro assumiu. Tornou-se reacionário assumido, ampliando a pauta conservadora que foi modelando ao longo da carreira. Durante dois meses, passou pelo ministério da Cidadania do novo governo, terminando por ser substituído por Ônix Lorenzoni sem nem ter esquentado a cadeira.
No sábado à noite, participou de um debate na GloboNews com o ex-ministro Mandetta e o senador Humberto Costa (PT-PE). Uma bancada de médicos, propícia a uma discussão de alto nível.
Acontece que Terra não é propriamente uma pessoa independente, ou particularmente responsável. Está no circuito para causar e reverberar as posições governamentais. Foi ao debate com uma única ideia fixa: denunciar o isolamento social, a quarentena, o combate firme ao coronavírus.
A defesa foi recheada de momentos patéticos. Chegou-se ao ápice quando o deputado enfatizou que tudo o que Bolsonaro fala e faz segue parâmetros científicos. E quando argumentou que a disseminação do vírus é tanto maior quanto mais as pessoas ficam em casa, pois é em casa que a infecção se generaliza. Esqueceu-se de dizer que o vírus só pode circular em um ambiente fechado se alguém levá-lo para lá, vindo da rua sem cuidados higiênicos rigorosos.
Osmar Terra é o mesmo que, em março do corrente ano, disse que o coronavírus passaria pelo Brasil sem deixar vestígios, prevendo que no máximo seriam 700 ou 800 óbitos, coisa pouca. Lembram?
Agora, ele admite que o problema é mais sério. Continua, porém, a banalizar a situação. O que são 11 mil mortos perante a desgraça econômica que a quarentena produz?
Com desfaçatez extravagante, contrariando médicos e pesquisadores do mundo todo, ele apresentou gráficos para mostrar que o curso do coronavírus não é diferente do curso de outros vírus, como o H1N1. Apresenta a mesma curva, a mesma evolução em 13 semanas (?), é só esperar com calma que tudo passará sem deixar maiores sequelas, além da perda triste de algumas vidas. Desnorteante.
Para ele, as mortes em série são causadas pela quarentena. Presas em casa as pessoas se contaminam com mais facilidade. Deveriam ser liberadas para ir à praia, às praças e – surpresa! – aos shoppings centers, que seriam tão higiênicos quanto farmácias e supermercados.
Os que com ele debateram longamente deram um baile. Não se cansaram de alertar para a ameaça pública inerente às posições de Terra, que são as mesmas de Bolsonaro. Ele nem corou. Seguiu impávido, pouco se importando em passar por farsante, sustentado por um ostensivo despreparo técnico-científico e por uma sabujice extrema.
Fernando Gabeira: Bolsonaro perde bonde do corona
Ele apenas falou contra o isolamento. Foi incapaz de apresentar um plano, mesmo um pobre esboço, como Trump
Confesso que não fiquei tão perplexo com a ida de Bolsonaro ao STF levando um grupo de empresários. Acredito que, tanto quanto eu, ele não esperava nenhuma solução para o problema que levantava: a volta às atividades econômicas.
O objetivo de Bolsonaro era mostrar que estava trabalhando pela economia. Para isso, levou uma equipe de TV e transmitiu o encontro ao vivo, para surpresa do próprio STF. Um golpe de propaganda, nada mais. Interessante como Bolsonaro consegue perder os bondes nessa luta contra o coronavírus.
Perdeu o primeiro, quando se isolou, negando a importância da pandemia, criticando o trabalho de governadores e prefeitos. Uma nova oportunidade de liderança e alinhamento se abriria para ele, no processo de volta às atividades. Compete ao presidente unir governadores e prefeitos em torno de um detalhado plano de retomada.
Dois dias antes de Bolsonaro ir ao Congresso, Angela Merkel reuniu as lideranças regionais para definir e modular um plano de volta.
Esses planos são complexos. Não adianta pedir ao Tofolli, porque ele não tem. Implicam a definição dos dados necessários, como número de casos, disponibilidade de hospitais, capacidade de testar.
Implicam também um redesenho das escolas, das fábricas, dos escritórios. Na Alemanha, técnicos foram às escolas para redefinir o espaço, inclusive determinar o novo lugar dos professores na sala.
Em alguns países, houve escalonamento de turmas escolares; em algumas regiões, normas para restaurantes ao ar livre.
Normas para o funcionamento de teatros e casas de espetáculo também estão sendo trabalhadas nos detalhes. Os intervalos, por exemplo, serão suprimidos para evitar aglomeração. O próprio futebol na Alemanha volta no dia 16, mas com portões fechados, sem plateia.
Bolsonaro até o momento apenas falou contra o isolamento. Foi incapaz de apresentar um plano, mesmo um pobre esboço, como Trump.
Essa pressa acaba se estendendo a outros setores. O governador de Brasília queria que a final do campeonato carioca fosse jogada no Estádio Mané Garrincha mesmo com um hospital de campanha instalado ali.
Não sei a que atribuir esta loucura. Nós temos uma singularidade cultural, que é a improvisação. É inegável que ela tem qualidades, no compositor que escreve seus versos num botequim, nos profissionais que driblam a falta de recursos para alcançar um certo resultado.
Na formulação de uma política nacional e solidária contra o coronavírus, é preciso liderança e capacidade de planejamento. Bolsonaro trabalha por espasmos, acorda pensando na briga nossa de cada dia, a quem vai combater e orientar sua galera a chamar de lixo.
O ministro da Saúde tem dito que o Brasil é um país diverso. Todos concordam. Mas é precisamente por ser diverso que necessita de um plano com modulações.
Basta olhar no mapa para ver quantas cidades brasileiras não tiveram casos de contaminação. Até elas precisam ser orientadas a rastrear com rigor caso apareça alguém contaminado por lá.
Na verdade, é um projeto que se enquadra nessa expressão muito usada de nova normalidade. Os Estados Unidos viveram algo parecido de longe com isso, depois do atentado de 11 de setembro.
As circunstâncias agora são diferentes. O redesenho da sociedade não se faz diante de inimigos humanos, mas ameaças biológicas que podem nos dizimar. A etapa final do planejamento seria concluída com a existência de uma vacina, acessível a toda a população.
Mas, no entanto, a existência de uma pandemia como essa abriu os olhos de muita gente para a possibilidade de outras. Algumas delas podem ser favorecidas pelo desmatamento.
Tive a oportunidade de sentir isso quando cobri a volta da febre amarela. Aparentemente, a destruição de algumas áreas de mata acabou expondo os trabalhadores agrícolas e algumas populações rurais.
Estamos trabalhando com algo muito sério para o futuro das crianças. Se não houver uma transformação cultural que nos faça pensar coletivamente e nos convença da necessidade de planos cientificamente adequados, vamos ser uma presa fácil.
Nos anos de política, lamentava que o Brasil era um país onde o principio de prevenção não pegou. Não esperava um governo que, além de imprevidente, desprezasse a ciência. Tudo do que o coronavírus gosta.
Fernando Gabeira: E daí? A pulsão da morte
No mesmo dia em que foi treinar tiro ao alvo, Bolsonaro disse sua frase histórica diante dos mortos na pandemia
‘Entre mortos e doentes/ No meio dessas bananas/ Os meus ódios e os meus medos? E daí?”
Essa poderia ser uma versão sinistra de Bolsonaro para a bela cancão de Milton Nascimento “E daí?”.
Sua reação diante dos mortos pelo coronavírus não me surpreende. Creio que posso entendê-la, pois, de certa forma, venho falando dela desde o princípio do governo. Eu a chamei nos meus artigos de namoro com a morte. Era uma forma de sistematizar minhas críticas.
Umberto Eco afirma com razão que por trás de um regime e sua ideologia há sempre um modo de pensar e de sentir, uma série de hábitos culturais, uma nebulosa de instintos obscuros e de pulsões insondáveis. É essa pulsão de morte que contesto na política de armas, na retirada dos radares das estradas, no afrouxamento das regras de transporte de crianças nos carros.
No mesmo dia em que foi treinar tiro ao alvo, Bolsonaro disse sua frase histórica diante dos mortos na pandemia. Creio que entendo o que há por trás disso. Ele acredita na tese da imunização do rebanho. Nela, a saída é a inevitável contaminação da maioria para que se resolva de uma vez o problema.
Muitos cientistas afirmam isso. Pode ser que tenham razão. No entanto, o isolamento social torna espaçada essa contaminação, permite que os sistemas de saúde não entrem em colapso: salva vidas.
Bolsonaro até que compreende essa tese. Mas responde com outra: necessidade do crescimento econômico.
A pandemia coloca hoje em discussão o crescimento pelo crescimento. Amsterdã prepara-se para buscar modelos sustentáveis, depois da crise, com o argumento de que o crescimento pelo crescimento é, na verdade, a filosofia da célula cancerosa.
Durante a pandemia, manifestantes contra o isolamento social fizeram buzinaços diante de hospitais em São Paulo. A mensagem que queriam passar era da volta ao trabalho. Assim como não importava o conforto dos doentes hospitalizados, também não importavam as mortes que viriam de uma suspensão prematura da quarentena.
Nesse clima nacional, uma influenciadora digital dá uma festa em plena quarentena e lança o grito: “foda-se a vida”, uma versão tupiniquim do “viva a morte”.
Trabalho com essas resistências no cotidiano. Outro dia, resenhei o artigo de um médico americano que falava do avanço silencioso da pneumonia em pessoas atacadas pelo vírus. Para evitar tantas mortes, ele sugeria que se usasse um oxímetro para medir constantemente o nível de oxigênio no organismo.
Uma leitora reagiu furiosa a esse texto. Nunca mais me leria pois, segundo ela, não compreendo como o Brasil é pobre e não tem condições de pensar nesses instrumentos.
O oxímetro custa em torno de R$ 100. O que ela queria dizer é que estamos condenados pelas circunstâncias a um grande número de mortes.
As pessoas que não se resignam diante das mortes com a pergunta “e daí?” são vistas como personagens trágicas que se rebelam contra o destino.
É nesse contexto de namoro com a morte que se dá também a petrificação do pensamento, a recusa à modernidade, a negação de fenômenos planetários que podem nos inviabilizar como espécie.
Insisto nesse ponto porque a história nunca estará completa se nos detemos apenas no aquecimento global e deixamos de lado os hábitos culturais e as pulsões que o nutrem.
Quando escrevermos a história da passagem dessa peste pelo Brasil, não poderemos esquecer que ela foi politizada, tratada como um vírus comunista, e uma nuvem de suspeição se ergueu contra os que queriam combatê-la de frente.
Com um tempo e alguma pesquisa, talvez possamos estabelecer um paralelo com a chegada dos colonizadores ao continente. Um conjunto de mitos impediu que fossem vistos na sua dimensão real. E isso precipitou a ruína das civilizações aqui existentes.
Ao longo do caminho, tenho enfatizado algumas ideias. Uma delas é a necessidade de uma ampla frente pela vida para se opor à política da morte.
A outra é a confiança de que as pessoas mudam, nem todas é verdade, mas mudam. Quantos não concluíram, depois de atingidos, que o coronavírus não é apenas uma gripe comum?
Outros, certamente, começarão a respeitar a ciência, podem chegar ao ponto de admitir que a Terra é redonda, que vacina garante a sobrevivência e que a humanidade está realmente ameaçada pela degradação ambiental.
Uma aliança pela vida pressupõe uma tática diferente da radicalização que produziu Bolsonaro.
Fernando Gabeira: Pergunte ao coronavírus
O Brasil politizou o vírus. O governo mergulhou na cegueira ideológica
Num momento de ansiedade e incertezas, multiplicam-se as previsões e os cenários sobre o mundo pós-pandemia. Mas todos esses cenários, creio, dependem da evolução da mesma variável que nos pôs nesta situação tão difícil: o coronavírus.
Uma das minhas referências nas previsões sobre o coronavírus é Bill Gates. Ele dedica parte de sua fortuna ao financiamento de projetos de saúde pública. Precisa ser bem informado, no mínimo, para não jogar dinheiro fora. Em curto artigo sobre as perspectivas, Gates acha que uma vacina eficaz contra o coronavírus estará pronta até 2021. Os caminhos da pesquisa indicam duas direções. Uma delas é a vacina tradicional, que utiliza um vírus desativado. A outra, aproveitando os avanços da genética, poderia informar as células para que bloqueiem o vírus.
Existe uma possibilidade mais rápida, anunciada pelos cientistas de Oxford no jornal The New York Times. Eles acham que conseguem lançar sua vacina ainda em setembro de 2020. Fizeram experiências com seis macacos e foram bem-sucedidos. Pretendem agora experimentá-la em 5 mil pessoas e obter a licença.
Nesse cenário, o mais otimista possível, até o final do ano já estaria em circulação uma vacina eficaz contra o coronavírus. Além de algumas centenas de milhares de mortes, apenas o ano de 2020 estaria perdido.
Outra variável que Gates aborda é a dos remédios. Ele considera ter havido um subinvestimento em pesquisas de remédios antivirais, comparadas com os antibacterianos. Acho que vai se mover nesse campo. Não existe hoje uma bala de prata. Como não existiu na luta contra o HIV-aids, para o qual, finalmente, se chegou a um coquetel de drogas.
Talvez as coisas sejam mais promissoras no campo dos testes. A tendência é que evoluam, possam ser vendidos com mais facilidade e ser usados em casa. Como já o são alguns outros testes, como o de gravidez.
Gates acha que, assim como depois de 1945 foi necessário criar uma instituição internacional para garantir a paz, será também necessária uma organização internacional para combater as pandemias, novos vírus que podem vir tanto de morcegos como de pássaros. Esse desdobramento internacional não é fácil. Uma declaração da ONU de cooperação em torno de vacinas, remédios e testes não foi apoiada por EUA, Brasil e mais 12 países.
Imagino que uma das razões da reserva norte-americana seja o direito de exploração conferido pelas patentes. Suas grandes empresas investem milhões de dólares em pesquisas e, naturalmente, querem receber esse investimento de volta, com os devidos lucros.
Esse foi um grande debate travado também no período da aids, quando se questionou o respeito às patentes numa situação excepcional. O Brasil tinha razões para questionar. Adotou uma lei que garantia o coquetel gratuito aos portadores de HIV e isso custava caro ao País. O ministro da Saúde na época era o hoje senador José Serra. Ele defendeu o que me parece ter sido a posição correta de acordo com o interesse nacional.
Hoje, em plena pandemia de coronavírus e diante de outras que podem vir, o Brasil se distancia da ideia de cooperação internacional para se alinhar com os EUA, que têm interesses bem específicos. A julgar pela posição do chanceler Ernesto Araújo, estamos diante de um “comunavírus”, que tende a acentuar a influência internacional sobre os países, reduzindo sua autonomia.
É um raciocínio que se assemelha às posições do Brasil sobre o esforço internacional para atenuar os efeitos do aquecimento planetário. Assim como é difícil, hoje, prever uma nova situação sem levar em conta a trajetória da covid-19, será muito difícil também excluir a variável ambiental de qualquer cenário futuro.
Ao contrário de países como a Nova Zelândia e a Austrália, o Brasil politizou o vírus. Eles foram bem-sucedidos, assim como, de certa forma, Portugal, onde governo e oposição se uniram diante do inimigo comum.
Num dos primeiros artigos que escrevi sobre o vírus, quando ele estava circunscrito a Wuhan, na China, afirmei que para combatê-lo seria necessária uma visão nacional e solidária. Não foi isso o que aconteceu. Assim como pesou para as civilizações antigas na América ter uma visão mítica sobre os invasores, ou deve pesar no Haiti encarar com o vodu os grandes desastres naturais, o Brasil mergulhou na cegueira ideológica.
Durante muito tempo, discutiu-se se era um vírus comunista destinado a enfraquecer o governo. Da mesma forma, discutiu-se se a cloroquina era ou não um remédio de direita.
O vírus é apenas uma proteína envolvida numa capa de gordura. E a cloroquina, uma substância química usada contra malária e outras doenças.
Portanto, quando se escrever a história dessa peste no Brasil, não se pode apenas culpá-la pelos estragos que fez. O governo digeriu mal a tese da imunização pelo amplo contágio e refugiou-se nela na esperança de tocar a economia.
Se continuar se comportando com o meio ambiente com a mesma cegueira ideológica com que encara o coronavírus, os cenários do futuro, não importa quão sofisticado for o seu desenho, terão de contar com o pano de fundo de uma terra arrasada.
*Jornalista