Fernando Gabeira

Fernando Gabeira: Vai-se a segunda pomba

Existe uma vacina contra a raiva, mas não existe uma vacina combinada contra raiva e estupidez

Vai-se a primeira pomba despertada…/Vai-se outra mais…/ Mais outra…/ Enfim dezenas…

Quando menino, costumava declamar esse soneto de Raimundo Correia na escola. Éramos endiabrados e fazíamos piadas de duplo sentido quando a ingênua professora dizia para as meninas que liam os versos: mostrem a pomba.

Essa lembrança me veio à cabeça com a publicação do Anuário de Segurança Pública, revelando o fracasso da política de Bolsonaro para conter a violência no país. Vai-se a segunda pomba, pensei.

A primeira já se foi há algum tempo. Era a luta contra a corrupção. Bolsonaro demitiu Moro, Queiroz foi preso, surgiram inúmeros dados sobre rachadinhas e funcionários fantasmas na família do presidente. Rolou muito dinheiro vivo, compra de lojas, apartamentos , os Bolsonaros não confiam em banco. O dinheiro tanto rolou que terminou aparecendo na cueca do senador amigo, Chico Rodrigues.

Pobre lobo-guará. As notas com sua estampa estrearam nas nádegas de Chico. Conheço uma família de lobo-guará que come todas as noites no pátio do Colégio do Caraça. Os padres que alimentam os lobos precisam rezar por nós.

Apesar da pandemia, o número de mortes aumentou em 7% em 2020. Havia caído em 2019. Era resultado do governo Temer, que criou o Ministério da Segurança, o sistema integrado e fez a intervenção militar no Rio. Bolsonaro e Moro celebraram, faz parte do jogo. Mas o mérito estava lá atrás.

Um país que tem um estupro a cada oito minutos, com uma cidade como o Rio, que perdeu mais de 50% do território para as milícias, homenageadas no passado pelos Bolsonaros, é, no mínimo, inseguro, para não dizer falido.

Bolsonaro apenas aumentou o número de armas. Seu objetivo único é ganhar votos com policiais. Seu projeto: uma licença para matar que leva o pomposo nome de “excludente de ilicitude”.

No momento em que era preciso um olhar atento de um especialista em segurança, Bolsonaro não conseguiu ver as limitações do artigo que libertou André do Rap. Simplesmente, sancionou.

Não é apenas a segunda pomba que vai. Vai-se outra, mais outra. Ao ser acusado de estupro na Itália, o jogador Robinho disse que era como Bolsonaro, perseguido pelo demônio . Ele acha que basta citar Bolsonaro e um trecho de Bíblia para justificar crimes cruéis. Em breve, essa máscara de profunda religiosidade vai cair para mostrar a verdadeira face do oportunismo político. Eduardo Cunha era supercristão, elegia-se usando rádios religiosas. A deputada Flordelis, acusada de matar o marido, é pastora, e o pastor Everaldo, que batizou Bolsonaro, está na cadeia.

Numa dimensão mais profana, em breve voará a pomba dos devotos da Santa Margaret Thatcher. Ela sempre aparecia com a bolsa no pulso, sem mexer um músculo do braço. Seus discípulos tropicais rodam a bolsinha incessantemente em busca de recursos para garantir a reeleição de Bolsonaro.

Muitos eleitores não veem quais sonhos de campanha não voltam, como voltam as pombas ao entardecer. Ficam bravos, lembram que fui um perigoso terrorista ou que usava uma tanga de crochê, não importa. É importante, no entanto, continuar mostrando o voo das pombas e de suas ilusões.

Mesmo com parte do país em chamas, com o crescimento da fome, o aumento da violência e do jugo das milícias, é preciso argumentar com eles. Alguns seguirão fiéis ao líder, mas, no fim do caminho, o Brasil pode reencontrar sua chance de ser grande país.

Existe uma vacina contra a raiva, mas não existe uma vacina combinada contra raiva e estupidez. Bolsonaro não consegue ver um vírus tal como é, mas sempre como um vírus que tem partido: é chinês ou vota em Doria.

Ao cancelar a compra de vacinas formuladas na China, mas produzidas pelo Butantan, Bolsonaro não apenas desautorizou um general que deixou tudo para ajudá-lo, adotando uma política que ameaça inclusive a presunção de sensatez das Forças Armadas.

Da negação do coronavírus à apologia da cloroquina, Bolsonaro percorreu todas as etapas de uma política insana.

Foram-se todas as pombas, e só os bolsonaristas não viram.


Fernando Gabeira: Dinheiro nas nádegas, a pátria no coração

Subiu ao poder um novo e caseiro método de desviar dinheiro público

Convivi cordialmente com Chico Rodrigues na Câmara. Assim como convivi com Bolsonaro e o próprio Severino Cavalcanti, inclusive depois de sua derrubada.

Uso pouco a expressão “baixo clero” ou mesmo “vale dos caídos” para designar aquelas fileiras numa zona de sombra no final do plenário.

Aprendi na cadeia, como se não bastassem outras experiências, a conviver sob o mesmo teto com pessoas que não escolhi. E aprendi também que alguns deputados simples e discretos tinham muito a me ensinar, como era o caso do piauiense Mussa Demes, que sabia tudo sobre política fiscal.

Bolsonaro nunca foi genuinamente contra a corrupção. Ele integrava o partido em que Paulo Maluf era um dos expoentes. Sua luta era basicamente contra a esquerda, e a corrupção só se tornou interessante para ele quando a percebeu como o ponto fraco do governo petista.

Chico Rodrigues de uma certa forma sabia disso. Num encontro com Bolsonaro, ele declara que o presidente soube encarnar o espírito do tempo, preencher essa lacuna de liderança, defender a família, dar exemplos para a juventude.

Traduzindo o discurso de Chico, ele estava dizendo para Bolsonaro: “Vamos nessa, irmão, é por aí que devemos seguir”.

O resultado não custou a aparecer. Chico era um grande companheiro. Elogiava Bolsonaro, empregou em seu gabinete o primo e amigo de Carlos e ganhou o cargo de vice-líder.

Quando o condecorou, Bolsonaro teve a preocupação de lembrar que Chico estudou num colégio militar. Ambos sabem que existe uma aura de seriedade em torno dos militares e querem tirar todo o proveito dela.

Bolsonaro e Chico são o novo poder. No passado, havia dólares na cueca; agora, a moeda na roupa íntima é o real.

Não sei se seria correto invocar Freud para explicar tanto dinheiro nas nádegas. De fato, o sábio austríaco associava o dinheiro a pulsões anais, mas o fazia de uma forma sofisticada. Freud tentava explicar relações obscuras, apontar as bases essenciais de relações que as aparências escondiam.

No caso de Chico Rodrigues, o exemplo é grosseiro e, por que não admitir?, até malcheiroso. Não se trata de uma substituição simbólica do dinheiro pelas fezes, mas sim de uma fusão concreta de uma equivalência metafórica.

O resultado é que Bolsonaro ficou com a retaguarda descoberta. Já estava após a prisão de Fabrício Queiroz. Fica cada vez mais evidente que subiu ao poder apenas um novo e caseiro método de desviar dinheiro público.

O episódio acontece uma semana depois que Bolsonaro afirmou que acabara com a Lava-Jato porque não há corrupção no seu governo. Na semana em que André do Rap foge para o Paraguai montado numa lei que Bolsonaro sancionou, apesar de, na campanha política, ter se declarado o único comprometido com a segurança pública.

A lei parte de boas intenções, mas foi elaborada pelos políticos, pensando apenas neles, sobretudo em ter um horizonte temporal de prisão preventiva para não caírem na tentação de delatar seus esquemas.

Disse que o André do Rap está no Paraguai porque é um lugar para refletir sobre o Brasil. Projetamos uma carga negativa sobre o Paraguai; uísque e cigarros falsificados, até os cavalos que disparam na largada e param subitamente chamamos de cavalos paraguaios.

Os deputados fizeram uma lei imprecisa, o presidente sancionou, um ministro do Supremo a aplicou cegamente, juízes deixaram de opinar, e a própria polícia, diante da libertação de um preso importante, não soube monitorar.

Esse episódio em si já bastaria para que se tivesse uma visão crítica do Brasil, a partir do Paraguai, que tanto subestimamos.

O que surgiu depois, para completar a semana, é chocante: um nobre senador, literalmente, enchendo o rabo de dinheiro.

Seria engraçado se o dinheiro não fosse destinado a atender às vítimas da Covid-19 e se este governo metido a sério não estivesse destruindo nossos recursos naturais num ritmo alucinante.

Isso só reforça o que escrevi há algum tempo: não há nada mais importante para todos do que combater Bolsonaro. Não estou propondo amar uns aos outros. Vamos sair dessa, depois conversamos, ou brigamos, se preferirem.


Fernando Gabeira: O Brasil não é uma ilha

Exceto se reduzirmos o País aos limites mentais de Bolsonaro e seus mais retrógrados apoiadores

Política externa não é um tema popular. Mas nas circunstâncias do mundo de hoje erros ou acertos nesse campo vão repercutir no cotidiano das pessoas comuns. É preciso acionar os sinais de alerta para uma configuração negativa no horizonte. Nela nos poderemos isolar, simultaneamente, da Europa e dos Estados Unidos.

No front europeu, são inúmeras as advertências de que o acordo comercial com o Mercosul subiu no telhado por causa da política ambiental do governo Bolsonaro. A recusa começa por Parlamentos nacionais, estende-se ao Parlamento Europeu e já aparece no discurso oficial da França. Angela Merkel tem sofrido forte pressão, embora reconheça, como estadista, a importância do acordo e a necessidade de salvá-lo dos desatinos bolsonaristas.

Nos EUA, além da China, o Brasil foi o único país a ocupar a agenda do debate na campanha presidencial: Joe Biden anunciou a possibilidade de reunir investimentos de US$ 20 bilhões para preservar a Amazônia e ameaçou com sérias consequências econômicas caso não se altere a política do governo brasileiro na região.

Além das divergências no campo ambiental, Biden discorda claramente da visão de Bolsonaro sobre a tortura no regime militar. Ele veio pessoalmente entregar a Dilma Rousseff documentos do governo americano que confirmam e até mesmo ampliam o conhecimento sobre a repressão no período. São textos de diplomatas americanos, baseados também na ampla equipe de informantes nacionais, militares incluídos.

Sou adversário da política destrutiva de Bolsonaro e lamento a visão das Forças Armadas sobre a Amazônia, que me parece uma estratégia de defesa ultrapassada e míope. No entanto, duvido que restrições econômicas sejam a melhor fórmula para resolver esse problema crucial para a humanidade. Baseio-me nas experiências históricas de bloqueio, que de modo geral fortaleceram governos despóticos e penalizaram seus povos. Barack Obama compreendeu isso ao inaugurar uma nova política sobre Cuba. Antes de o próprio Obama buscar acordo com o Irã, a habilidade do diplomata brasileiro Celso Amorim conseguiu desatar o nó, pela ONU, que estrangulava o povo iraniano e, em contrapartida, pouco incomodava os aiatolás.

Por isso acho que um amplo e cuidadoso diálogo com o Brasil seria muito mais adequado para tratar desse problema, que preocupa o mundo. Bolsonaro é irredutível e dificilmente deixará entrar um raio de luz nas trevas que o dominam.

O mesmo não se pode afirmar de dois outros atores decisivos: o agrobusiness e as Forças Armadas. Os produtores brasileiros até que compreendem as restrições no mercado externo. Mas é preciso convencê-los também de suas perdas com o aquecimento global e a destruição da Amazônia.

Pesquisas recentes já quantificam os prejuízos que as plantações brasileiras tiveram com a onda de calor: R$ 20 bilhões. A tendência é aumentar e não atingir apenas o que se planta, mas também os animais. Houve há poucos dias uma grande perda de aves no interior de São Paulo. Da mesma forma, é preciso convencê-los da importância da floresta em pé para o regime de chuvas, falar dos rios voadores, tão importantes para irrigar as plantações, apagar incêndios.

Quanto às Forças Armadas, é preciso discutir com elas, perguntando quem é o inimigo na Amazônia. A ideia de que as grandes potências querem levar o nosso minério não é defensável. Nenhum país suportaria a rejeição internacional por um punhado de ouro. A própria França não conseguiu levar adiante seus planos de abrir minas na Guiana.

A ocupação territorial da selva não é inteligente nem exequível. Resta um problema internacional que sempre tentamos equacionar: a biopirataria. Mas isso se resolve com leis que protejam o conhecimento nativo e uma fiscalização eficaz. Inúmeros projetos já foram elaborados, mas esse é um tema dinâmico e merece sempre atualizações.

Não pode ficar de fora no debate com os militares a questão indígena. A Constituição prevê o respeito a suas cultura e tradições. Dissolvê-los na sociedade abrangente não é o caminho escolhido. É possível pensar um projeto de defesa que implique simultaneamente proteção da diversidade biológica e da cultural, pois elas se entrelaçam.

Nesse longo processo de debate necessariamente surgirão acordos, mediações, ninguém é dono da verdade. Se houver um entendimento entre os brasileiros, estaremos em excelente posição para assumir nosso papel de potência ambiental e trazer o mundo para cooperar conosco.

Não somos uma ilha, exceto se quisermos reduzir o Brasil aos limites mentais de Bolsonaro e seus apoiadores mais retrógrados. As dimensões do Brasil encolheram. Éramos um interlocutor importante nos encontros internacionais. Antes mandávamos ideias, hoje enviamos agentes de inteligência para os grandes debates. Isso mostra não a estreiteza das novas posições, mas a paranoia que domina o governo.

O mundo contra o Brasil, isso não existe. Há apenas uma grande rejeição à política de Bolsonaro. O que o mundo tem são saudades do Brasil, um país orgulhoso de seus recursos naturais, aberto à cooperação planetária, atento à busca da paz. Sem a raiva que, de repente, o dominou.

*Jornalista


Fernando Gabeira: Tubaína, novo sabor de Brasília

O currículo do senhor K não bate com a realidade. Mas um currículo meio tubaína é tudo do que precisam no momento

Faz muito tempo que não vou a Brasília. Faz muito tempo que não vou a lugar nenhum.

Minha última viagem à capital foi para documentar a mudança da Corte após a vitória de Bolsonaro.

As Cortes marcam a cidade, pelo menos o plano piloto, onde circulam políticos, aspones e lobistas. Na chegada do PT, alguns restaurantes recendiam a fumaça de charuto cubano. Collor gostava de grandes carros modernos. FHC quis reviver saraus lítero-musicais.

Fui muito prematuramente buscar a marca de Bolsonaro. Se voltasse agora, movido pelo slogan da Coca-Cola, “sinta o sabor”, diria que o gosto da nova Corte é o de tubaína.

Honestamente: ninguém toma tubaína na Corte. É apenas um simbolo. Sua gênese está na escolha de um novo ministro do STF. No princípio, Bolsonaro dizia que o escolhido seria terrivelmente evangélico. Depois disse que o nome seria de alguém que tomasse cerveja com ele.

Houve uma inflexão. É difícil, não impossível, encontrar alguém terrivelmente evangélico chegado a uma cervejinha. Ao apontar o nome de Kassio Marques, Bolsonaro substituiu a cerveja por tubaína. O senhor K não é evangélico mas, por via das dúvidas, era preciso abolir o teor alcoólico da amizade. A tubaína se encaixava perfeitamente: popular, adocicada, meio fake.

Entrava em cena nosso Kassio, como é chamado em Brasília. Uma figura familiar, que tem o apoio do Centrão, de opositores e também a bênção de ministros do Supremo, como Gilmar Mendes e Dias Toffoli.

Quando Bolsonaro e K se reuniram na casa de Tofolli para comer uma pizza e assistir ao jogo Palmeiras X Ceará, o programa harmonizava com uma boa tubaína. Não foi o que beberam, mas isso é o de menos. A nova Corte se integrava a Brasília, de uma certa maneira reinava de novo a atmosfera familiar e promíscua da capital.

Era difícil prever que a tubaína se tornasse o símbolo do governo Bolsonaro quando visitei Brasília. Ainda não tinha acontecido um episódio decisivo: a prisão de Fabrício Queiroz. Fala-se tanto em novo normal, mas aquilo empurrou Bolsonaro para o velho normal: acordo com o Centrão, jantares e visitas às casas de ministros do STF.

O currículo do senhor K não bate com a realidade. Mas Bolsonaro jamais pensou em ministros que tivessem pós-graduação em Salamanca, La Coruña, Messina ou o cacete.

Um currículo meio tubaína é tudo do que precisam no momento. Os políticos vão entender as mentiras como um erro de tradução. Tradutor-traidor, devem até desenterrar a velha analogia.

Brasília respira o velho ar ressecado de sempre. Entramos na era da tubaína, the real thing, o líquido das nossas tramas, de abraços, mútuos elogios.

Há quem não goste. Mas, com uma boa renda social, uma renda cidadã, Santa Cruz, Vera Cruz, Brasil, não importa o nome, vencemos eleições e conquistamos o direito de seguir tomando nossa tubaína como os artistas tomavam seu absinto no Pós-Guerra.

Felizmente, isto aqui não é uma ilha. O mundo nos olha com atenção. A Europa já coloca o acordo comercial com o Mercosul no telhado. As relações com os Estados Unidos podem mudar com o resultado das eleições presidenciais.

O encontro de forças que resistem no Brasil com o empenho internacional por mudanças dentro do país pode representar uma esperança.

Já estamos calejados, vivemos o resultado daquelas promessas de tudo mudar, que acabam afogadas em tubaína. Mas, ainda assim, é preciso realisticamente sonhar com a preservação de nossos recursos naturais e a redução das grandes diferenças sociais.

Não sei se isto é um consolo, mas pelo menos a prisão de Queiroz nos levou de novo ao passado da redemocratização e nos afastou um pouco do temido tempo da ditadura.

Bolsonaro deve voltar à carga em algum momento. Antes precisa resolver a questão de Queiroz, que é, na verdade, a questão de seu filho, da família, dele próprio. Os convivas, políticos e juízes da Suprema Corte não percebem que bebem uma tubaína envenenada. Mas isso não é tão importante para eles, o jogo principal não é do Palmeiras, mas pelo poder. A dança típica da capital é sempre dançada diante do abismo.


Fernando Gabeira: De costas para o gol

Há quem não veja o futuro e prefira soltar uma boiada para pisotear sonhos realizáveis

Desde o célebre livro de Stefan Zweig, e mesmo antes dele, o Brasil é reconhecido como o país do futuro. Às vezes, parece que o futuro chegou, e revistas estampam na capa um Cristo Redentor em forma de foguete subindo aos céus. Às vezes, a ideia toma a forma de um gigante que desperta e caminha com decisão. Para onde, José?

Apesar de toda essa fantasia, sinceramente não conheço um momento da história em que a possibilidade real de encontro com o futuro seja tão concreta.

A base dessa presunção é o fato de que a teoria econômica evoluiu no planeta. Não se acredita mais que o progresso é indissociável da destruição ambiental. A própria natureza deixou de ser vista como uma externalidade, um elemento passivo, um simples insumo. Agora, é vista como o centro da produção.

Nesse contexto, o Brasil não só emerge como uma potência ambiental, mas como o território onde mais se produz vida no planeta. As concepções mudam, e nada parece mais fora do lugar hoje do que a tese de que a conservação da natureza é um entrave ao progresso econômico.

Acaba de ser publicado o livro “Brasil, paraíso restaurável”, de Jorge Caldeira, Julia Marisa Sekula e Luana Schabib. Caldeira não é um idealista alheio às engrenagens reais da economia. Escreveu o livro “Mauá: empresário do Império” e também uma “História da riqueza no Brasil”, ampla e inteligentemente pesquisada.

O livro sobre o Brasil como potência ambiental é amparado em gráficos e mapas destinados a mostrar que a natureza preservada é o centro de criação do valor econômico.

Um dos capítulos do livro tem este título: “Queimar florestas é queimar dinheiro”. Nele é possível saber que os créditos de carbono no mundo hoje superam o volume das exportações brasileiras. Os créditos são dinheiro disponível para manter florestas em pé, retendo o carbono no subsolo.

Isso sem contar com produções sustentáveis, como as de açaí e castanha, e as incontáveis potencialidades das plantas.

É essa nova visão que faz com que empresas e fundos de pensão se interessem pela defesa do meio ambiente. De um modo geral, supõe-se que esse interesse é para agradar a consumidores, uma operação de marketing. Pode até ser isso também, mas hoje esse aspecto já se torna secundário.

O grande obstáculo para o Brasil ocupar esse espaço no mundo é o governo, que ainda associa progresso com destruição ambiental. A ideia de passar uma boiada sobre as normas de proteção é um eufemismo. Na verdade, querem passar bandos de javalis que devoram tudo pela frente.

No governo militar houve um encanto com esse tipo de progresso. Campanhas do tipo “bem-vinda poluição” circularam pelo mundo tentando atrair capitais já em declínio no Norte.

A destruição da Floresta Amazônica era vista como um triunfo da ação humana sobre a natureza. A mata era vista como um mito a derrubar para que se pudesse faturar.

Mas isso foi há meio século. É compreensível que a cabeça de Bolsonaro tenha se congelado na década dos 70, e ele sonhe com uma, duas, três, muitas Cancúns.

Mas os militares leem, viajam, frequentam cursos, seminários. Não poderiam respaldar essa política destrutiva, na esperança de nos tornarmos um país como os outros do século passado.

Não é só pelo processo destrutivo. Mas pelas evidências de um caminho econômico mais fértil, pela imensa possibilidade de o Brasil, finalmente, encontrar um futuro que não seja um efêmero foguete de capa de revista ou um sonolento gigante se pondo em marcha.

Desta vez, não seria um voo de galinha, mas sim a consciência de ser o país mais rico do mundo, em vida e energia, uma potência ambiental que explora racionalmente suas vantagens e reduz suas deformações como a disparidade de renda.

O futuro finalmente chegou. Há quem não o veja e prefira soltar uma boiada para pisotear sonhos realizáveis.

O Brasil talvez seja o único país hoje presente na agenda da eleição presidencial americana. Seria uma conspiração para derrubar nossas matas, esgotar nossos minérios e celebrar uma volta ao século XX? Ou um novo pacto para o futuro?


Fernando Gabeira: Memórias de um mau brasileiro

O discurso de Bolsonaro é tão mentiroso que talvez nem ele acredite

A tese da conspiração internacional contra o Brasil foi ressuscitada pelo discurso de Bolsonaro na ONU. Ela vem acompanhada de um lamento pela ajuda de maus brasileiros aos que conspiram contra o país.

Modestamente, tenho sido um desses maus brasileiros, ao longo de meio século. Relato algumas memórias, comemorando bodas de ouro.

Na década de 70, a conspiração contra o Brasil consistia em divulgar notícias sobre torturas e assassinatos sob o governo militar. Usávamos lembranças pessoais, relatos dos presídios e até documentos levados ao exterior por abnegados diplomatas.

Com esse material, construímos uma teia na qual a ditadura se enredou, caiu no isolamento e foi estigmatizada. O ponto alto desse trabalho foi o Tribunal Bertrand Russell, em Roma, onde foram denunciadas as agressões aos direitos humanos no Brasil.

Contamos com notáveis conspiradores sul-americanos: o colombiano Gabriel García Márquez e o argentino Julio Cortázar.

As atividades conspiratórias ressurgiram após o assassinato de Chico Mendes. Outros seringueiros morreram antes dele. Chico Mendes era um líder extraordinário, e sua morte coincidiu com uma crescente consciência ecológica mundial e, dentro dela, o reconhecimento do singular papel da Amazônia.

No embalo desse movimento, houve o encontro dos povos indígenas em Altamira. Inúmeros conspiradores internacionais presentes. Entre eles, Sting e Anita Roddick, dona da Body Shop.

O tema: construção da Usina de Belo Monte, mais tarde concluída por um governo de esquerda, sinal de que a conspiração não respeita os parâmetros ideológicos.

Semana passada, em Nova York, em campanha pela Amazônia, Harrison Ford lembrou que o primeiro grande concerto pela Amazônia foi de Sting, há 30 anos.

Ford não mencionou, mas de lá para cá a floresta perdeu 300 mil quilômetros quadrados de vegetação. Novas vozes surgiram espontaneamente: Brad Pitt visitou a Amazônia, Gisele Bündchen pediu pela floresta.

A novíssima geração é mais poderosa. Greta Thunberg, a jovem sueca, já foi recebida por Angela Merkel para falar do acordo econômico Mercosul-UE.

Apesar da má vontade com que é vista por alguns, é uma das favoritas ao Prêmio Nobel da Paz. Como assim, uma menina? As meninas de hoje vão muito além do que possam imaginar.

A conspiração ganhou ares mais solenes. Fundos de pensão falam na defesa da Amazônia e na proteção dos povos tradicionais. Empresas e bancos aproximam-se do conceito de exploração sustentável.

Não é preciso ser inocente quanto aos outros. Quando surgiu, no Canadá, a falsa notícia de que havia a doença da vaca louca no rebanho brasileiro, imediatamente reagi.

Apesar de vegetariano, integrei a comissão parlamentar destinada a revelar a verdade e defender a carne brasileira. Creio que fomos vitoriosos.

Adiante, discordamos. Era pelo rastreamento do rebanho, transparência na origem e condição do gado. Houve quem achasse isso caro, reduzia a competitividade. Hoje há muitos que compreendem e defendem o rastreamento. A melhor maneira de competir é ter qualidade.

Aí estão a trama da nossa conspiração e o conteúdo de nossa maldade. A ideia da preservação do meio ambiente pode ser também a garantia de nossos mercados — uma visão que abarca o futuro das gerações brasileiras.

O discurso de Bolsonaro é tão mentiroso que talvez nem ele acredite no que fala. As Forças Armadas têm compartilhado seu delírio. É assustador, pois indica uma distância da realidade incompatível com a tarefa de defesa nacional.

Cada vez mais o planeta depende de respostas globais, e é preciso manter a soberania num quadro de cooperação. O general Heleno cogitou boicote nacional aos produtos escandinavos, mas não conseguiu se lembrar de nenhum. Não houve uma alma caridosa para informar que São Paulo é o segundo centro industrial da Suécia. Na ausência de escandinavos, ele se volta para produtos alemães passíveis de boicote. Talvez o Fusca, general.

Será preciso que o mundo nos abandone para que se compreenda que somos governados por fantasmas do passado?


Fernando Gabeira: O dilema das redes sociais

Em sua bolha, o indivíduo tem a sensação de tudo entender pelas teorias conspiratórias

Acabo de assistir ao documentário sobre as redes “The Social Dilemma”. É assustador mesmo para mim, que tenho tratado do tema, sobretudo pelo ângulo das fake news e teorias conspiratórias que impulsionam o tecnopopulismo de direita.

Uma das razões para ampliar minha abordagem do tema é contar com depoimentos de insiders, pessoas de dentro do universo tecnológico que trabalharam e ajudaram a construir plataformas como Twitter, Facebook, Instagram e YouTube.

A maior parte da crítica disponível até então era de observadores de fora desse universo. Outra limitação de meu enfoque era observar apenas as consequências negativas das redes sociais no universo político, gerando uma atmosfera de ódio e mentiras.

Ao ver o documentário, fica claro para mim que as consequências políticas foram apenas um subproduto diante da tarefa central: usar a insegurança e a ansiedade das pessoas para torná-las dependentes do uso das redes e, com o acúmulo dos seus dados, impulsionar vendas.

Isso não chega a ser uma descoberta. O interessante é ouvir de alguém que encontrou o Facebook nos seus primórdios e teve como tarefa descobrir uma forma de fazer dinheiro com aquilo.

Quase todos os talentos contratados no início viam nas redes sociais algumas de suas inegáveis qualidades: unir famílias, ampliar o conhecimento coletivo, facilitar a solidariedade.

O caminho para financiar era a publicidade. Ela seria mais eficaz quanto maior o tempo de permanência do usuário, e muito mais eficaz também, na medida em que, conhecendo sua personalidade, às vezes mais profundamente do que ele próprio, fosse possível ampliar seu consumo.

Essa é a matriz que acabou produzindo as aberrações político-sociais que vivemos hoje. A radicalização política é necessária para prender a atenção das pessoas. As fake news são atraentes diante de uma realidade tediosa.

Isolado em sua bolha, o indivíduo tem a sensação de tudo compreender pelas teorias conspiratórias. Se alguém diz que pedófilos se reúnem no porão de uma pizzaria, ele tenta invadi-la armado de um fuzil, apesar de a pizzaria nem ter porão.

Se alguém acredita que a Terra é plana, será alimentado com inúmeras interpretações que fortalecem essa ilusão. Na busca do Google, dependendo da região, o aquecimento global aparece como uma fraude ou uma tese científica.

O problema central é que, ao contrário da TV ou do cinema, a inteligência artificial tende a se modificar num ritmo cada vez mais alucinante. Alguns dos participantes do documentário preveem que o processo deve acentuar polarizações e produzir guerras civis. Mas é evidente que algo pode ser feito para atenuar esses imensos efeitos negativos do avanço tecnológico.

Certamente não é criando comissão da verdade, como queriam alguns parlamentares brasileiros. Apesar de assustador, ou por causa disso, o documentário nos estimula a buscar soluções.

Às vezes invejamos a intimidade das crianças com essas novas linguagens, um mundo fantástico se desenrolando com o simples toque de seus dedinhos. Mas nossa geração intermediária talvez possa contribuir com suas lembranças do mundo real. Outro dia, falando sobre o tema, lembrei-me de que muitos de nós foram influenciados pela filosofia do Pós-Guerra, o existencialismo. Uma de suas frases lapidares, de Jean-Paul Sartre, talvez fosse de utilidade para os jovens: o inferno são os outros.

Assim como é preciso estimular o estudo de ideias conflitantes, talvez compense retirar do armário o antigo conceito de autenticidade, que estimula a pessoa ser ela mesma, independente de likes, dislikes e ofensas grosseiras.

Voltando ao plano político, uma das questões básicas é achar o caminho para limitar o acúmulo de informações sobre as pessoas. Um dos entrevistados chegou a falar de impostos para reduzir o intenso consumo de dados pessoais pelas empresas. Não sei se é por aí.

Alguém no documentário lembrou que essas gigantes tecnológicas e a indústria das drogas são as únicas que chamam seus clientes de usuários. É um pouco exagerado, mas depois de ver “The Social Dilemma”, creio que todo mundo vai se perguntar até que ponto está viciado nas redes sociais e quais os caminhos da libertação.


Fernando Gabeira: As chamas da negação

As gargalhadas diante do fogo no Pantanal revelam a pobreza da mentalidade dominante

As chamas ardem na Costa Oeste dos Estados Unidos e em dois importantes biomas nacionais, Amazônia e Pantanal. Debates essenciais nascem desses incêndios. O primeiro deles subiu para o topo da agenda na campanha para a presidência dos EUA: o aquecimento global. Lá, como aqui, há os que aceitam as evidências científicas e os que as negam.

Um segundo debate decorre do próprio princípio de precaução. Se há realmente mudanças climáticas, os incêndios serão mais intensos a cada ano. Logo, é razoável nos preparamos melhor, em vez de sermos anualmente derrotados por eles.

No Pantanal já foram destruídos mais de 22 mil km2 de vegetação, uma área do tamanho de Israel. Serpentes e jacarés carbonizados estão por toda parte, o refúgio das araras azuis está ameaçado, chamas em Porto Jofre, onde se concentra uma centena de onças-pintadas.

O desastre neste ano é muitas vezes maior que o do ano passado, que tive a oportunidade de documentar. Muito possivelmente, a julgar pelas notícias, a maioria dos focos de incêndio foi provocada. Talvez por pessoas que sonham com um Pantanal transformado apenas em pastagens e campos plantados. Ignoram a riqueza que estão destruindo. São os mesmos que sonhavam em transformar a região em grandes canaviais. Não percebem que ao destruir a vegetação arruínam todo o ecossistema, os próprios peixes que se alimentam de pequenos frutos tendem a desaparecer.

Essa incompreensão básica está também no Palácio do Planalto. Bolsonaro sonha com campos de soja, muito gado, o que na cabeça dele significa aumento da produção. Deve ser por isso que todos riram no palácio quando uma jovem blogueira perguntou pelo incêndio no Pantanal.

Bolsonaro nega o aquecimento global. E pratica sua negação. As verbas para a prevenção de incêndios caíram sistematicamente de 2018 para cá. As destinadas a brigadas, que eram de R$ 23 milhões, foram reduzidas a R$ 9, 9 milhões.

Ele caminha decisivamente na contramão das tendências climáticas. Acha que seu voluntarismo pode afrontá-las com a mesma naturalidade com que muda as regras de trânsito. Em ambos os casos colheremos mortes e destruição.

Cessado o fogo, será difícil articular um projeto de replantio. Os bichos e a mata atrapalham a produção. A ajuda internacional será vista como ameaça à soberania nacional.

Apesar do negacionismo de Trump, o horizonte no Brasil é mais sombrio. Bolsonaro representa um tipo de pensamento que existe também em parte dos fazendeiros e amplamente nas Forças Armadas. Esse tipo de pensamento relaciona destruição ambiental com progresso. O próprio ministro Paulo Guedes disse que os americanos tinham destruído suas florestas e acabado com índios.

É o tipo de argumento clássico do pensamento dominante no governo brasileiro, hoje uma estranha amálgama de generais do Exército e pastores evangélicos. Não há outro caminho senão tentar convencê-los, antes que consigam destruir o País na suposição de que fortalecem a soberania terrena e nos aproximam do reino dos céus.

A produtividade de agrofloresta é um exemplo na Amazônia. Os lucros da exploração sustentável de açaí e castanha são outro. O potencial turístico do Pantanal, a própria capacidade do bioma de atrair investimentos, tudo isso tem de ser repetido à exaustão.

As gargalhadas diante das chamas que devoram um bioma como o Pantanal revelam apenas a distância entre a pobreza da mentalidade dominante e a riqueza de nossos recursos naturais. A utopia de um mundo plantado de soja, subsolo revolvido em busca de minérios, gado pastando na relva – tudo guardado por um exército vigilante, que pinta de branco as poucas árvores que restam, é, na verdade, um pesadelo. Seríamos uma nação que construiu com tenacidade um imenso deserto, teríamos transformado o mundo no espelho do nosso universo mental.

Quem acompanha o desastre do Pantanal desejaria que Bolsonaro tivesse uma ideia mínima do que está acontecendo. Com um pouco de humildade, ele se arrependeria de chamar as ONGs de um câncer que gostaria de extirpar. São as ONGs que se põem em campo, salvando grande parte dos animais feridos, sem nenhuma estrutura ou base financeira além da cooperação voluntária.

Quando cobri um desastre na Galícia constatei que o próprio governo pôs à disposição um pequeno hospital para as aves marinhas atingidas. Comparadas com a fauna do Pantanal, as aves marinhas da Galícia são só um pequeno grupo.

Aqui, no Brasil, o trabalho é feito pela sociedade. Não importam os insultos vindos do mundo oficial, a esperança de reduzir o impacto destrutivo dessa passagem do fundamentalismo pelo poder ainda se baseia em solidariedade e trabalho voluntário. E tudo isso nos alcança num momento de pandemia, em que a capacidade de reação é limitada.

Ao intenso ataque do vírus soma-se a fumaça que atinge as grandes cidades da região. Restou-nos apenas a negação da dupla negação do governo: coronavírus e aquecimento global. Em ambos os casos, resistimos. Mas é impossível deixar de sonhar com um país em que governo e sociedade enfrentem juntos os desastres naturais e sanitários. A vida seria menos difícil.


Fernando Gabeira: Jabuti de Brasília e a fauna do Pantanal

São incapazes de perceber como o desmatamento influi no regime de chuvas

O jabuti foi adotado em Brasília com base nessa afirmação: jabuti não sobe em árvore, se está lá é porque alguém o colocou.

Jabuti numa lei é algo que não tem uma relação orgânica com o texto, é artificialmente introduzido para atender ao interesse de alguém. Em Brasília como na natureza, há jabutis vistosos e discretos. O que foi aprovado na Câmara é do tipo jabuti-piranga, que pode ser reconhecido de longe. O perdão de uma dívida de R$ 1 bilhão contraída por igrejas em suas transações comerciais foi aprovado pela maioria dos deputados.

Coube ao presidente rejeitar esse desafio de contrariar a Constituição para favorecer pastores que são também importantes cabos eleitorais.

Na mesma semana em que o imenso jabuti-piranga passeava pelo Congresso, houve uma estranha reunião no Palácio do Planalto com o presidente e ministros. Uma jovem, também estranha, perguntou se o Pantanal estava queimando. A resposta foi uma gargalhada geral. Em meio aos risos, alguém respondeu também sorrindo: sim, o Pantanal está queimando, mas o presidente já mandou dez aviões para combater o fogo.

Àquela altura, o Pantanal já havia perdido 12% de sua cobertura vegetal. Não só raríssimas araras-azuis estavam ameaçadas, mas no norte, perto de Poconé, a maior concentração de onças-pintadas corria alto risco de ser atingida pelo fogo.

Isso sem mencionar a destruição do entorno do Parque da Chapada dos Guimarães, da intensa fumaça em torno de Cuiabá, ampliando o perigo de doenças respiratórias.

No Parque do Xingu, já na Amazônia, uma pequena brigada indígena tentava conter um fogo de nove quilômetros. Quanta tragédia para a região. Há poucos dias morreu uma de suas mais importantes vozes: Aritana , o líder yawalapiti. O próprio Raoni, o mais conhecido entre os caiapós, perdeu a mulher. Foi contaminado por Covid-19 e duas vezes internado.

De que riem nos palácios de Brasília? A perda de 12% do Pantanal nos empobrece. O fogo no Xingu é uma prova de que Bolsonaro mente quando diz que não há incêndios na Amazônia.

Muito bicho morrendo, árvores carbonizadas. Até a Operação Lava-Jato parece ter dado seu último tiro ao desfechar uma investigação que se aproximou perigosamente da Justiça, o território intocado no suspeito universo institucional brasileiro.

Muitas pessoas sensatas advertem o governo e o agribusiness de que o capital pode nos deserdar, os consumidores podem nos punir. É preciso acenar com essa dimensão da realidade para comovê-los. São incapazes de perceber como o desmatamento influi no regime de chuvas, e isso vai afetar nossa produtividade, pode produzir mais fome no futuro.

Provavelmente, devem dizer entre si: Israel produz no deserto, logo isso não nos intimida. Acontece que Israel já é um deserto, não o escolheu. Ninguém seria estúpido a ponto de optar por se transformar num deserto.

Exceto, talvez, nos países onde abundam os jabutis. Um simples jabuti-tinga pode garantir na lei uma passagem gratuita de toda essa gente para Miami.

O problema é que, abraçados com os trogloditas tipo Trump no norte, vão descobrir muito rapidamente a impossibilidade do jabuti decisivo: não existe planeta B. E vão nos deixar aqui com a terra calcinada, o pesado silêncio da ausência dos pássaros e o gosto amargo de ter compartilhado o país com gente que ri da própria destruição.

Também há limites para o lamento. Ainda se discute no Pantanal se vai ou não ser usado o retardante químico, uma outra forma de combater as chamas. Assim que passar esta fase, será preciso um plano de recuperação. No incêndio anterior à pandemia, já era evidente que os recursos para combater o fogo são limitados.

O Pantanal tem expressão internacional para atrair um grande projeto de recuperação. No passado, cheguei a propor que se separasse dos dois estados de Mato Grosso, tornando-se uma região autônoma, regida por um comitê de bacia.

Mas isso dependia do voto nos dois estados, e perderíamos de lavada. No entanto era a forma de canalizar recursos diretamente e de criar as bases para conservá-lo.

A estação de queimadas, tanto aqui como lá fora, foi severa este ano. E as mudanças climáticas anunciam que, da próxima vez, virá mais fogo.


Fernando Gabeira: Dinheiro, não, um certo rumo

Salário mínimo não tem aumento. Debate é se militares podem passar o teto do funcionalismo

Neste momento se discute muito o Orçamento. É uma discussão tediosa se nos concentramos apenas nos números.

Na verdade, o que se discute agora é basicamente a ajuda emergencial até dezembro. Não dava para pagar os R$ 600. Caiu para R$ 300. Daqui a pouco surgirá a nova discussão, agora sobre o programa Renda Brasil, que pretende ser um serviço continuado, nos moldes do Bolsa Família.

Tudo isso é estimulado pela campanha à reeleição de Bolsonaro. Esses programas foram sempre necessários, mas no passado ele se opunha a eles, chamava-os de Bolsa Farinha e os via como uma forma de comprar votos. É sempre assim: no governo dos outros é suborno, no nosso é medida necessária para atenuar as duras condições de vida da população mais pobre.

Por causa do seu apelo eleitoral, só se discute mais intensamente a ajuda aos pobres. Mas sabemos que, apesar de garantir votos, o Brasil precisa de mais: de um projeto de retomada econômica com abertura de empregos.

Ainda assim, é pouco. Em cada momento histórico é preciso definir um rumo, sobretudo depois de uma tenebrosa pandemia, com todas as suas consequências.

Ter um rumo correto faz a diferença. Os europeus optaram por uma retomada verde e também por avançar no processo de modernização digital. Isso define investimentos e repercute até nas decisões tributárias, que estimulam as atividades de baixo carbono e penalizam as mais problemáticas numa época de aquecimento global.

Não se trata de afirmar que o Brasil precisa ter o mesmo rumo, embora esteja envolvido no mesmo contexto globalizado. É um dos raros países que são uma potência ambiental, não poderia perder esse bonde, uma vez que dificilmente passará outro tão promissor nas próximas décadas.

Uma das lacunas na chamada reforma tributária, em nosso país, é ser vista apenas sob um ângulo superficial da racionalização. O único objetivo parece ser a simplificação, que já é algo importantíssimo para o crescimento. Mas crescer para onde? E como crescer?

Tradicionalmente, as questões ambientais ficam um pouco à margem do debate tributário. Às vezes o simples princípio poluidor pagador já é visto como uma grande vitória.

No entanto, a questão das atividades de baixo carbono passa a ocupar um espaço novo. O aquecimento global transformou o carbono neutralizado numa espécie de moeda. Alfredo Sirkis, amigo morto recentemente, tinha o sonho de transformar o carbono numa referência monetária, como foi o ouro até a conferência de Bretton Woods.

Existe outro ponto em que o Orçamento se poderia transformar de discussão burocrática em debate vivo. Refiro-me também ao dinheiro destinado à defesa nacional. Ele foi ampliado por Bolsonaro, embora não a ponto de suplantar educação ou saúde, como o presidente queria.

Não custava nada um debate sobre as verbas da defesa não escorado apenas em cifras, mas em rumos. Que tipo de guerra esperamos, como nos preparamos para ela, os recursos são adequados? Parece uma heresia trazer esse debate da defesa para a sociedade.

Sabemos que os militares se preocupam com a defesa da Amazônia, num momento em que o mundo está muito interessado no destino da região.

Até que ponto vão investir na Amazônia? Que concepção de defesa têm para a área?

Teoricamente, fica mais fácil tomar conta de uma região sem a floresta em pé. Mais simples ainda seria essa tarefa se os povos indígenas fossem fundidos num só povo, o brasileiro.

Mas o problema central é que a floresta terá de ser explorada sem destruição e os povos indígenas são considerados hoje também uma riqueza da humanidade. Aliás, essa já é uma visão mais antiga. Durante a conferência de 1992 no Rio, houve o encontro dos líderes mundiais e um encontro paralelo, no Aterro do Flamengo, reunindo organizações e personalidades. Neste encontro foi definido que a diversidade cultural é tão importante para o futuro comum como a biodiversidade.

É esse quadro complexo de biossociodiversidade que a defesa da Amazônia nos apresenta. Nada mais interessante antes de abordar cifras do que conhecer exatamente o tipo de escolha que o Brasil fará. Mesmo porque as notícias que surgem são muito inquietantes. Fala-se na compra de um satélite de R$ 145 milhões, quando sabemos que o Inpe monitora adequadamente a região. Por que essa redundância? No passado fizemos um investimento gigantesco para a época no Sivam, o Sistema de Vigilância da Amazônia. Fala-se muito pouco dele, mas seria um instrumento até mesmo de nossa diplomacia amazônica, por sua possibilidade de coletar e compartilhar dados.

Enfim, todas essas dúvidas são pertinentes para quem se interessa em examinar como o País gasta o seu dinheiro. Vimos que a economia é bastante severa quando se trata de salário mínimo: não há aumento real. No entanto, o debate é se os militares podem ou não ultrapassar o teto do funcionalismo público. Isso é tão desapontador que prefiro acreditar que um verdadeiro debate sobre Orçamento ainda virá, ou já existe e minhas antenas ainda não o captaram.


Fernando Gabeira: Reflexões sobre o naufrágio

Aqui não há pianistas para nos distrair enquanto afundamos

‘O naufrágio das civilizações’. Quando esse livro chegou a mim, resolvi que ia lê-lo antes de outros que estão sobre a mesa. Interessam-me o título e o autor, Amin Maalouf.

Ele usa a imagem marítima, como a de grande barco afundando. Costumo usá-la como a perda do horizonte, uma outra forma de ver o naufrágio.

Maalouf começa se interrogando sobre o fracasso da modernização árabe, tão rica culturalmente na sua infância no Levante, um arquipélago de cidades comerciais, e na juventude em Beirute. Como foi que tudo se perdeu, que caminhos, que encruzilhadas transformaram o mundo árabe num lugar inseguro, desesperado a ponto de produzir legiões de suicidas?

Ele analisa o papel da grande figura de Nasser, sua vitória na luta anticolonial, mas constata que, de certa forma, Nasser jogou fora o bebê com a água de banho, perseguindo estrangeiros e limitando a liberdade de expressão. Sua trajetória se esgota na humilhante derrota da chamada Guerra dos Seis Dias, um desastre irreversível.

Maalouf avança para outros momentos da história e para outras regiões do mundo onde o naufrágio já aconteceu, como o Império Soviético, ou parece muito próximo, como o Ocidente.

Ele destaca uma data, 1979. E duas revoluções: a islâmica, no Irã, e a chegada ao poder de Margaret Thatcher na Inglaterra. A primeira pelo potencial de ódio que iria trazer para a tensão entre xiitas e sunitas. A segunda, pela consagração da ideia de que os interesses pessoais são o motor do progresso, que se realiza pela soma de todos eles, pela invisível mão do mercado.

O livro segue o rastro dessas duas revoluções para alertar para o perigo de naufrágio que nos ronda. Maalouf é consciente, como eu, de que as pessoas, no anoitecer da vida, tendem a olhar suas juventudes como uma época de ouro. E confundem o ocaso de seus mundos pessoais com o próprio fim do mundo.

Tudo isso me interessa muito, pois, nos últimos livros que escrevi, tentei entender as razões pelas quais o Brasil frustrou as expectativas grandiosas que tínhamos sobre ele. O título de um dos livros, inspirado em Marco Aurélio, exprime essa frustração: “Onde está tudo aquilo agora?”.

Todo esse trabalho antecede a eleição de Bolsonaro. Poderia voltar atrás, ao otimismo dos anos de Juscelino, à Bossa Nova, aos debates sobre os filmes de Glauber Rocha, aos romances de Guimarães Rosa, aos contos de Clarice Lispector.

Por economia, concentro-me em Bolsonaro. Algumas vezes, comparei seu projeto a uma tentativa de imitar Thatcher, inclusive num traço que Maalouf não mencionou nela: seu sonho de retorno da moral vitoriana.

No projeto brasileiro, Paulo Guedes representava o ultraliberalismo, hoje atropelado pela pandemia e pelo desejo de reeleição de seu chefe; Bolsonaro, por sua vez, desejava um retorno aos costumes mais antigos, algo que esbarra no Congresso e se realiza plenamente na política externa, campo em que o Brasil se tornou uma referência de fundamentalismo religioso.

Mas a grande afirmação de uma política baseada no egoísmo foi a defesa da economia a qualquer custo, independente do número de mortos que resultaria de uma política de imunização de rebanho, desejada por Bolsonaro.

Aumento de armas, supressão de medidas de segurança no trânsito. Tudo isso foi apenas o prenúncio de uma política ambiental destrutiva. A floresta em pé é mais difícil de defender. A supressão dos povos indígenas fundidos num só povo é também uma garantia contra a sedução estrangeira.

O resultado disso: morte e destruição que se estendem também às relações políticas no interior da democracia. De vez em quando, um “acabou, porra!”, uma vontade de encher a boca do outro com porrada.

A imagem do naufrágio no Brasil soa romântica como se estivéssemos no Titanic. Aqui não há pianistas para nos distrair enquanto afundamos. A linguagem do poder é áspera e suja como nas salas de tortura.

No inferno de Dante havia pelo menos uma inscrição: deixai toda a esperança, vós que entrais.

Aqui nos empurram a pontapés e palavrões. Uma forte razão para desobedecer, manter a esperança.


Fernando Gabeira: Uma versão musical do Orçamento

Um governo que é sócio dos militares e cria uma fiel base popular torna-se muito forte

No momento em que se discute um tema tão áspero como o Orçamento, lembrei-me de uma velha canção chamada “Matilda”, de um gênero antigo como o calipso, cantada por Harry Belafonte, hoje com 93 anos.

“Matilda, Matilda, Matilda, she take me money and run Venezuela” — dizia a letra. A idade atrai certas loucuras. Como essa de lembrar “Matilda” ao analisar os movimentos de Bolsonaro na articulação do Orçamento.

Bolsonaro previu uma destinação para as Forças Armadas maior do que para a Saúde e a Educação. O desejo de fazer dos militares sócios do governo é um traço comum entre o Brasil de hoje e a Venezuela bolivariana. Muita grana para a Defesa, militares em postos-chave, tudo isso revela que, ao se preparar para uma guerra imaginária, o governo tem em mente a verdadeira defesa que lhe interessa: a de si próprio contra uma eventual oposição popular.

Existe uma diferença, entretanto.

Os militares na Venezuela são acusados de corrupção por apoiar um governo do qual talvez discordem ideologicamente. No Brasil não há indícios de corrupção. O máximo que pode existir são algumas benesses que fundem salário e soldo.

Aqui há proximidade ideológica. Os militares, por uma bizarra concepção de Defesa, gostariam de ver o progresso clássico na Amazônia, como se a floresta em pé nos tornasse mais vulneráveis. E gostariam também de integrar os índios à sociedade abrangente: um só povo e um só Deus facilitam a Defesa nacional.

Bolsonaro prepara seu próprio Bolsa Família. Com a ajuda emergencial, percebeu o crescimento de sua popularidade. Pessoalmente, era contra a ajuda. No passado, acusava o PT de comprar votos com ela.

Em certos temas, esquerda e direita acham que escrevem a história e não percebem que são escritas por ela. O apoio de regiões mais carentes ao governo tem sido uma constante, uma vez que, em certa medida, dependem da ajuda oficial. Elas são as últimas a abandonar um governo decadente, mesmo no período da ditadura militar.

Se as pessoas desfavorecidas sentem que o governo alivia seu fardo, elas estão dispostas até a lutar por ele. Um governo que é sócio dos militares e cria uma fiel base popular torna-se muito forte.

Nesse sentido que canto: Bolsonaro pega a grana e foge para a Venezuela. Naturalmente, as pessoas vão dizer: não é sustentável destinar tanto dinheiro para a Defesa nem manter grandes programas assistenciais.

Não discuto isso. Por acaso a Venezuela é sustentável? No entanto, Maduro sobrevive. O que interessa a ele não é a sustentabilidade nacional, e sim a do governo.

Nem interessa às Forças armadas de lá o fato de o país, pelo crescimento da pobreza, tornar-se mais vulnerável. A sensação corporativa é a de um poder crescente.

É sempre possível argumentar que políticas como a Educação e a Saúde influem diretamente no bem-estar das pessoas mais pobres. Neste momento de pandemia, a Educação é uma resignada lacuna, e a Saúde usa um orçamento de guerra.

Meu problema não é cantar calipsos na quarentena. Mas simplesmente tentar entender alguns enigmas como o de um presidente que se torna mais popular num país que entra em recessão. Há várias saídas para a Venezuela, de avião a Caracas, por terra até Santa Elena. Não esperava encontrar uma na própria discussão do Orçamento.

Não creio que Bolsonaro tenha tomado essa decisão consciente. Apenas tento imaginar as possibilidades futuras. A sedução das Forças Armadas e uma base popular não bastam para nivelar as experiências com a Venezuela. O Congresso é conquistável por métodos historicamente consagrados. A tentativa de destruir ou simplesmente arruinar uma parte da imprensa é idêntica. Resta um Supremo que também muda, embora demande algum tempo para a reposição de ministros.

Aqueles que se deslumbram com uma pseudonormalidade deveriam, pelo menos, levar em conta o processo de reorganização da inteligência estatal voltada basicamente a julgar pelos primeiros passos, a monitorar opositores. O movimento não cessa, nós é que, às vezes, não o notamos.