Fernando Gabeira

Fernando Gabeira: Vacina, o fator que importa

Este ano que passou foi terrível. Mas o que virá será muito difícil ainda

O fato do ano foi a pandemia, a esperança de superação é a vacina. Há muitas coisas além disso, mas esse é o dilema essencial. 

O processo de vacinação não significa apenas poupar vidas. É um imperativo econômico. A sorte do País vai depender de duas variáveis: o aumento do número de pessoas vacinadas e a queda do número das contaminadas.

O Brasil tem, segundo os especialistas, um bom sistema de imunização nacional, melhor do que muitos outros no mundo. Além disso, o País é um dos maiores fabricantes de vacinas do planeta, com dois centros de excelência, o Instituto Butantan e a Fundação Oswaldo Cruz.

Esses são os pontos positivos. Mas os negativos são muito fortes.

Bolsonaro não só negou a epidemia de covid-19, mas faz uma campanha de descrédito contra a vacina. Da mesma forma, seu ministro da Saúde, general Pazuello, acha que a expectativa em torno da imunização é exagerada. Se considerarmos que os dois principais responsáveis nacionais não estão na linha de frente – ao contrário, um deles, Bolsonaro, milita na retaguarda –, o processo poderá ser mais lento e acidentado.

Há muitas frentes abertas com esse cenário contraditório. Será preciso uma pressão dos setores produtivos que entendem a importância da vacina para a recuperação. Igualmente será preciso uma ação dos governadores no sentido de buscar a eficácia e preencher as lacunas abertas pela ausência de uma boa coordenação nacional.

Outra batalha se dará no campo das mentes e dos corações. Algumas das vacinas que já estão em uso, como a da Pfizer, são produto da medicina genética, trabalham com a técnica do RNA mensageiro. Essa novidade, que representa muito para o controle futuro de doenças, dá margem a inúmeras especulações sobre mudanças no sistema imunológico. Uma das mais bizarras é do próprio Bolsonaro, insinuando que a pessoa pode virar jacaré, homem falar fino e crescer barba em mulher. É apenas uma tentativa de afastar as pessoas da vacinação apelando para mitos, mas precisa ser combatida de forma inteligente e eficaz. A simples obrigatoriedade não funciona – o voto é obrigatório e houve mais de 30% de abstenção.

Nem tudo, entretanto, se vai decidir no front sanitário. O governo Bolsonaro, além de negar a pandemia, concentra-se na sua própria defesa, jogando todas as fichas no controle da Câmara dos Deputados. No início do ano, fracassaram as manifestações que pediam intervenção militar. Bolsonaro foi contido pelas instituições.

O Ministério Público do Rio desvendou a corrupção no gabinete do filho e, consequentemente, uma técnica usada por todo o clã Bolsonaro. Com a prisão de Fabrício Queiroz, o movimento de intervenção militar desapareceu, assim como menções a um artigo na Constituição que daria às Forças Armadas poder moderador. Bolsonaro procurou o Centrão e reinaugurou uma fase mais familiar e tradicional da política brasileira: o toma lá dá cá. Até nomeou um ministro para o Supremo Tribunal que alguns políticos do Centrão chamam de “o nosso Kassio”.

A disputa pelo controle da Câmara é vista pelo governo como fator decisivo para evitar processos de impeachment. O caso mais importante em investigação no momento são as chamadas rachadinhas no gabinete de Flávio Bolsonaro. Em tese, mesmo se elas tiverem existido no gabinete de Jair Bolsonaro, não deveriam atingi-lo no cargo, pois seria crime cometido antes da posse como presidente.

Acontece que, no empenho de blindar não só o filho, mas suas próprias atividades, Bolsonaro, segundo denúncia de Sergio Moro, tentou interferir na Polícia Federal do Rio. E, finalmente, foi descoberta uma articulação da Abin para proteger o filho do presidente e atacar a Receita Federal, de onde surgiram os dados que denunciaram Flávio Bolsonaro. Sobretudo este último caso, o de interferência da Abin, configura, se demonstrado, crime de responsabilidade.

São casos mais recentes, porque Rodrigo Maia, atual presidente da Câmara, reteve 24 pedidos de impeachment por achar que não havia condições políticas para tal.

No quesito condições políticas, a análise da situação da Câmara dos Deputados não é a única variável. Bolsonaro perdia apoio na sociedade quando o Congresso aprovou a ajuda emergencial na pandemia. Isso foi capitalizado por ele, que conseguiu crescer nos setores mais pobres. Acontece que a ajuda emergencial, que se tornou a renda única de muita gente no Brasil, vai ser cancelada em 2021.

A principal margem de manobra é o crescimento da economia, que, por sua vez, depende diretamente do sucesso do plano de vacinação. Por questões ideológicas, não apenas pelas reservas quanto à vacina chinesa, mas também por uma posição obscurantista em relação às vacinas em geral, Bolsonaro é um grande obstáculo em 2021.

Não há volta atrás, ao momento em que alguns aliados pediam intervenção militar. Mesmo se conquistar a Câmara, contra uma grande frente democrática que se formou contra ele, dificilmente o Centrão, que o apoia, resistiria a uma intensa pressão social.

Este ano que passou foi terrível. Mas o que virá será muito difícil ainda.


Fernando Gabeira: Aquele abraço

O general que confunde invernos e entraria em mais frias que Napoleão não se lembrou de comprar seringas

Quando William Shakespeare tomou sua vacina no histórico 8 de dezembro, confesso que o invejei. A primeira coisa que me veio à cabeça foi abraçar, depois de tantos meses, minha filha que vive longe daqui. Imaginei imediatamente quantos abraços e beijos estão congelados a 70 graus negativos, esperando o momento da vacina.

Mas aqui, caro Shakespeare, a vacina ainda é sonho de uma noite de verão. Gostaria também de voltar à estrada, passar longos dias no mato, voltar ao escurecer, com os curiangos voando diante do para-brisa, as primeiras luzes se acendendo na periferia da pequena cidade.

Aqui, William, somos reféns de um governo obscurantista, que não só negou a Covid-19, como o governo britânico no início, mas, ao contrário dele, nunca mudou de posição.

Não vou te cansar com detalhes biográficos. Para quem conheceu Hamlet, o nome Bolsonaro e seus dramas acabariam aborrecendo pela vulgaridade.

O fato é que ele acredita mais num remédio do que na vacina contra o coronavírus. Primeiro, importou da Índia insumos para hidroxicloroquina, e ela encalhou nos laboratórios do Exército. Depois, ao lado um astronauta, investiu milhões em pesquisa sobre um vermífugo chamado Anitta. Fracasso.

Ele escolheu um general para comandar essa guerra. É um especialista em logística que deixa milhões de testes contra Covid-19 adormecidos num galpão de São Paulo.

Esse general talvez fosse um personagem. Ele acha que o inverno brasileiro do Nordeste coincide com o europeu. E promete comprar vacinas se houver demanda, como se nenhum de nós sonhasse com o seu 8 de dezembro, William.

A única preocupação do homem que preside o país é que a vacina não seja obrigatória. Mas como poderia ser, se levaremos mais de um ano para vacinar todo mundo? Como tornar obrigatório algo que não está disponível. A liberdade será preservada.

Vejo nas redes sociais que seus seguidores temem que a vacina, sobretudo as que trabalham com RNA, possam mudar o código genético. Temem a vacina que você tomou, a da Pfizer, como se depois dela William Shakespeare deixasse de escrever e se tornasse lenhador na cidade de Warwick.

O Brasil talvez seja o único país onde as vacinas têm um peso ideológico. As chinesas são preteridas pelo governo porque são chinesas, têm o olho apertado e podem nos transformar numa multidão de fanáticos do comunismo invadindo as ruas com o livrinho vermelho na mão.

O general que confunde invernos e entraria em mais frias do que Napoleão não se lembrou ainda de comprar as seringas e agulhas, dessas que foram usadas aí, William, nessa terça-feira histórica.

Para não dizer que tudo aqui é cinzento e sem esperança, registro que podemos ver o terno e o vestido que o presidente e sua mulher usaram na posse, em 2019. Eles estão expostos, a entrada é grátis, e foram inaugurados com pompa, discursos sobre estilo e Jesus Cristo, ou como definir as medidas de um enviado dos céus.

Indiferente a tudo, o vírus avança. Nada mais fácil do que enlouquecer um país antes de destruí-lo.

O governo vai amarrar ao máximo o processo de vacinação, simplesmente porque não acredita nele. Em 1904 houve uma revolta contra a vacina. Será preciso uma outra revolta, desta vez para que as vacinas sejam usadas o mais rápido possível.

Será preciso lutar não só para a retomada econômica, mas para que nossas vidas sentimentais sejam reatadas como antes. Isso é até secundário, se consideramos o número de doentes e mortos que o atraso produz.

Contamos com alguns governadores, o Congresso e o Supremo Tribunal Federal. Não se pode dizer que sejam rápidos ou solícitos para entrar nessa luta. Mas são o que temos. Se for necessário, que se faça uma pressão sobre todos. Pode chegar o momento em que fique claro que não só o vírus, mas a elite burocrática e política brasileira, é um obstáculo de vida ou morte.

Se no combate contra um vírus há tanta hesitação, imagino em casos mais graves como numa guerra. O Exército, que na origem era aliado da ciência, produz um general obscurantista como Pazuello, o presidente que foi escolhido por milhões dedica-se a expor numa vitrine iluminada um terno escuro e o vestido que a mulher usou na posse.

Nem todos os que se sentem mumificados podem entrar num museu. Há critérios: é preciso tempo e história, até para um lugar no museu de horrores.


Fernando Gabeira: Um país fora de foco

Enfim, tornamo-nos reféns de um governo obscurantista. Mas isso tem um preço…

Desde o início da pandemia de covid-19 ficou evidente que a saída estratégica para o problema é a descoberta da vacina e imunização em massa. Qualquer governo mais informado certamente estaria se preparando para esse momento. Não foi o que fez Bolsonaro e pagaremos um preço por isso, não só na economia, mas em vidas humanas.

Infelizmente, na cabeça de Bolsonaro convergem dois movimentos fatais. O primeiro é a negação da covid como doença destruidora; o segundo, uma visão obscurantista da vacina manifestada na ênfase em seus perigos e efeitos colaterais, assim como no pavor da obrigatoriedade, uma discussão inútil.

Bolsonaro já declarou que achava melhor investir em remédios contra a covid-19 do que em vacinas. De fato, destinou pouco mais de R$ 1 milhão para a pesquisa e gastou 15 vezes mais do que isso comprando hidroxicloroquina da Índia ou financiando pesquisas com um vermífugo chamado Anitta.

O ministro da Ciência, o astronauta Marcos Pontes, afirmou que as possibilidades eram animadoras. Vive no espaço, assim como Bolsonaro vive numa realidade alternativa.

Antes de definir seus planos sobre a vacina, Bolsonaro levantou a questão da obrigatoriedade. Ninguém, exceto o cachorro Faísca, receberia a vacina contra a vontade.

O Brasil e quase todos os países talvez levem um ano para vacinar todo mundo. Como exigir obrigatoriedade de algo que ainda nem está disponível?

No campo das negociações, o governo teve uma posição rígida: concentrou sua compra numa só marca, a da Oxford/ AstraZeneca. Inicialmente, recusou a da Pfizer e quando instado a comprar a Coronavac também a rejeitou, por ser chinesa e “do Doria”, alegações absolutamente anticientíficas para analisar uma vacina.

A recusa inicial da vacina da Pfizer, que esta semana foi usada na Inglaterra, teve como argumento o fator logístico. A vacina precisa ser mantida a 70 graus negativos. A própria Pfizer já anunciou uma embalagem com gelo seco que conserva a temperatura da vacina.

Observando atentamente as manifestações de bolsonaristas na rede, creio que têm uma objeção singular à vacina da Pfizer. Uma deputada afirmou que certas vacinas podem alterar o DNA da pessoa. Um jornalista que apoia o governo afirmou que aceitaria as vacinas tradicionais que usam o vírus neutralizado, mas não recomendava a experiência com as outras. As outras, e aí está um argumento bolsonarista, são produto do avanço genético e usam a técnica de RNA mensageiro. Pode ter sido a objeção inicial à vacina da Pfizer.

Creio, entretanto, que Pazuello está negociando um pouco sem noção de detalhes, trabalhando com números. Ele mesmo disse na reunião com governadores que vai comprar todas as vacinas necessárias, se houver demanda. No universo bolsonarista, a demanda pela vacina ainda é uma dúvida, pois acham que os próprios preconceitos contra a ciência são generalizados.

O governo participou do consórcio mundial para garantir a vacina, poderia vacinar 50% da população, mas preferiu uma cota de 10%. Sempre calculando por baixo.

A única realidade com que se pode trabalhar hoje é a vacina comprada por São Paulo, que está pronta para distribuir. Nesse caso houve cálculo estratégico, preparação adequada. No entanto, o plano do governo de São Paulo esbarra na Anvisa, hoje um órgão dirigido por bolsonarista que frequenta manifestações antidemocráticas.

São Paulo marcou data, mas esta depende da Anvisa. O governo do Maranhão já percebeu o obstáculo e entrou no STF esperando dispensar a aprovação da Anvisa, desde, é claro, que a vacina seja aprovada por uma das quatro agências internacionais mencionadas numa lei específica. Ainda assim, se o governo der um cavalo de pau na sua visão obscurantista, talvez seja um pouco tarde para acompanhar o ritmo dos outros países.

Outros aspectos da logística também atrasaram. Seringas e agulhas não foram encomendadas a tempo e, segundo os produtores, não há como garantir a quantidade necessária de uma hora para outra.

Cedo ou tarde o Brasil conseguirá vencer o bloqueio mental de Bolsonaro e a consequente paralisia de seu ministro da Saúde. Mas alguns meses de pandemia significam vidas perdidas, casos de doença e internação. Significam paralisar projetos econômicos, bloqueio de avanços pessoais e congelamento de gestos de afeto, abraços e beijos, pela distância imposta pela pandemia.

Enfim, tornamo-nos reféns de um governo obscurantista. Um fotógrafo foi visto com lágrimas nos olhos no Palácio do Planalto. Ele acabara de cobrir uma solenidade, cheia de sorridentes ministros, em que Bolsonaro e a mulher, Michelle, abriam uma exposição do terno e do vestido que usaram na posse, em janeiro de 2019. O fotógrafo chorou porque conhece a situação do Brasil e, simultaneamente, é testemunha ocular do cotidiano de um governo de outro mundo.

Não há de ser nada. O Brasil agitou-se em 1904 numa revolta contra a vacina. É possível que se agite de novo numa nova revolta, desta vez a favor da vacina. A negação da covid-19, os embates contra a ciência, a desconfiança diante de vacinas que nos podem libertar da quarentena, tudo isso tem um preço para o governo, embora ainda não se possa quantificá-lo com precisão nem determinar a data exata do pagamento.


Fernando Gabeira: Mensagem na garrafa

Quais as fontes de Bolsonaro para dizer que houve fraude na eleição nos EUA? A Abin descobriu fatos que escaparam ao FBI e à CIA?

 ‘Minha vida é uma desgraça. É problema o tempo todo, não tenho paz para absolutamente nada. Não posso mais tomar um caldo de cana na rua, comer um pastel.’

Quando Bolsonaro fez esse discurso, os acólitos aplaudiram. Entendi, no entanto, que estava pedindo socorro, de alguma maneira.

No mesmo discurso, disse que não podia tomar um guaraná, pois era assediado pelos urubus da imprensa. Era uma referência ao guaraná Jesus, que descreveu com uma piada machista ao tomá-lo no Maranhão.

Os sensíveis olhos e lentes da imprensa contam uma história cotidiana de Bolsonaro. E as fotos e relatos que saem de Brasília indicam que Bolsonaro está, no mínimo, descompensado.

Ultimamente, sai das solenidades correndo e olhando para o relógio. Às vezes, para para olhar o céu, cercado de segurança; outras, acena para o vazio da Esplanada. Foi visto falando no ouvido de um dragão da Independência e, quando há mulheres bonitas em solenidade, lança olhares sedutores.

Quando veio ao Rio, fez uma declaração importante: houve fraude nas eleições dos EUA, e ele sabia por fontes próprias.

Ninguém se incomodou com isso. A imprensa considerou apenas mais uma frase de Bolsonaro, o Congresso silenciou, os próprios americanos ignoraram.

Quais foram as fontes de Bolsonaro? A Abin do general Heleno descobriu fatos que escaparam ao FBI e à CIA? Ou as fontes seriam agentes do esquema pessoal de Bolsonaro: um sargento na Filadélfia, um delegado em Las Vegas?

Bolsonaro não responde por suas palavras. Isso lhe dá uma sensação de onipotência que atenua, de certa forma, a vida desgraçada de cada dia. Às vezes, ele usa um imenso helicóptero para viajar dois quilômetros do Alvorada ao Planalto. É irracional, mas um brinquedo compensatório.

Na relação com a vacina, o mundo de Bolsonaro é muito cinzento. No mesmo dia em que declarava que não se responsabiliza pelos eventuais danos de uma vacina, anunciava-se algo diferente nos EUA: três ex-presidentes, Obama, Clinton e Bush, vão se vacinar diante das câmeras para estimular os americanos.

São atitudes opostas não apenas sobre a ciência, mas sobre a vida. Preocupa-me também a amargura de Bolsonaro, que se expressa tanto na hostilidade à natureza, na sua compulsão de destruir toda a estrutura legal de proteção ao meio ambiente.

Escrevi artigos mostrando que a destruição da Amazônia, no ritmo de agora, significa queimar dinheiro, perder inúmeras oportunidades econômicas que se abrem num mundo ambientalmente mais atento.

Começam a surgir no exterior, em núcleos militares que estudam o aquecimento global, textos que mostram que, além do desastre econômico, a destruição da Amazônia torna-se ameaça também para a segurança nacional do Brasil.

A dupla negação da Covid-19 e do aquecimento global não pode ser considerada uma reação normal num governante. Alguém dirá que isso aconteceu nos EUA com a passagem de Trump. Mas lá morreram mais de 3 mil pessoas num só dia, e há 100 mil internados. Os resultados são tenebrosos como são no Brasil, em menor escala.

Assim como a epidemia me fez reler “A peste”, de Camus, a vida desgraçada de Bolsonaro me arrasta para a peça “Calígula”, do mesmo autor.

Não há espaço nem tempo para analisar as duas trajetórias. Mas o “Calígula” de Camus, longe de fabulações vulgares, é uma excelente reflexão sobre o absurdo e o poder.

“E de que me serve ter as rédeas na mão, de que me serve meu espantoso poder, se não posso alterar a ordem das coisas, se não posso fazer com o que o Sol se ponha ao nascente, com que o sofrimento diminua, e os homens não morram?”

Bolsonaro é mais prosaico, não quer que o Sol se ponha ao nascente, apenas tomar um caldo de cana e comer um pastel na rua. Estamos longe do tempo dos imperadores romanos, isso não quer dizer que, numa democracia, a delicada relação entre equilíbrio mental e poder tenha sido superada.

Escrevo isso como se lançasse uma garrafa ao mar, gostaria muito que fosse apenas uma mensagem vazia, e que as suspeitas da loucura se voltassem contra mim nessa etapa crepuscular. Certamente, os estragos seriam menores.


Fernando Gabeira: A tempestade passa

Se superarmos a barreira mental de Bolsonaro, a vacina pode representar o fim da pandemia

Coragem, o fim da tempestade está próximo. Tenho vontade de escrever isso, sem hesitações. Mas temo parecer muito otimista. No passado, velhos como eu muito otimistas me davam uma ligeira aflição.

Mas vamos aos fatos. Historicamente, costuma haver uma espécie de renascimento depois das grandes epidemias. A vacina está no horizonte. Podemos esperar alguma euforia e otimismo, caso seja eficaz e distribuída adequadamente.

O principal obstáculo é o governo negacionista, que minimiza a Covid-19 e duvida de vacinas. Tradicionalmente, o Brasil tem capacidade de produzir vacinas e realizar grandes campanhas de imunização.

O governo federal falhou nos testes, deixando 6,8 milhões deles esquecidos num galpão em São Paulo. O general Pazuello é considerado um especialista em logística. Fez um bom trabalho em Roraima, na Operação Acolhida, que recebeu os venezuelanos.

Ele vem sofrendo alguns desgastes. Contraiu Covid-19 e foi obrigado a se curvar diante de Bolsonaro. Não sei se o corpo mole é resultado da influência do próprio Bolsonaro, que, aliás, duvida de vacinas e acha melhor encontrar um remédio para o coronavírus.

Se conseguirmos ultrapassar a barreira mental de Bolsonaro e de seus subordinados, a vacina pode, sim, representar o fim da pandemia.

Com ela, é possível também pensar numa recuperação econômica, numa retomada das relações presenciais. Sem desprezar os ganhos da imersão no virtual, novas energias vão aflorar.

A política ambiental do Brasil é absurda; a política externa, um disparate inédito em nossa história. Num dia, Bolsonaro ameaça usar pólvora contra Biden; no outro, o filho Eduardo acusa os chineses de potencial espionagem na tecnologia .

Além das duas potências mundiais, restaram poucos alvos para o insulto bolsonarista. O próprio Bolsonaro fez referências criticas à Alemanha e à Noruega, comentários machistas sobre a primeira-dama francesa e previsões catastróficas sobre o governo argentino.

Os ultrarrealistas dirão: nada disso importa, se houver um pequeno crescimento econômico. A verdade é que o Brasil precisa de um crescimento econômico sustentado, e essa tarefa é mais complexa do que um simples voo de galinha.

Quando passar a tempestade sanitária, as pessoas que compreendem este governo como a grande pedra no caminho terão mais mobilidade. Talvez possam ir para as ruas, sem a preocupação de atrair grandes massas no princípio.

A imprensa brasileira acostumou-se a julgar manifestações de forma apenas quantitativa. É um equívoco. Dentro dessa lógica, se recebesse a notícia de que houve algo com os 18 do Forte, não mandaria ninguém a Copacabana. Ou mesmo com o grupo de intelectuais que protestou contra a ditadura diante do Hotel Glória: eram só oito resistentes diante de um poderoso governo militar.

A multiplicidade de protestos, a fermentação, tudo isso acaba conduzindo a movimentos mais amplos, desses que encantam os contadores de gente na rua e impressionam os políticos míopes.

Num texto anterior, afirmei que Bolsonaro estava derretendo. Baseava-me numa análise que está se confirmando nas pesquisas. Não sou otimista o bastante para supor que Bolsonaro vá se derrotar sozinho. Não basta se sentar na poltrona e acompanhar seus movimentos autodestrutivos.

Será preciso muito movimento, troca de ideias e, em caso de avanço, sensatez política para evitar que, no desespero, ele envolva as Forças Armadas numa trágica aventura.

Essa ideia não se relaciona diretamente com eleições. É possível votar em candidatos diferentes mas, simultaneamente, compreender o conceito de adversário principal.

A esta altura do processo, é possível afirmar que qualquer um representa um perigo menor para o Brasil. Os ultrarrealistas que me perdoem: Bolsonaro nunca mais. Nunca houve na história recente do Brasil uma sucessão de erros tão graves, embora o processo de redemocratização tenha sido marcado por alguns equívocos e escândalos de dimensão continental.

Uma das características de um governo voltado para a destruição ambiental é que pode levar alguns biomas a um ponto de não retorno.

Embora iniba política vitais, a roubalheira desvia o trabalho morto, simbolizado no dinheiro público desviado.

A cegueira ambiental atinge a vida diretamente: Bolsonaro extermina o futuro.


Fernando Gabeira: Um momento decisivo no Rio

Um potencial de desenvolvimento limpo e grandes problemas sociais pela frente são um enorme desafio para o novo prefeito

As eleições de hoje são importantes em todas as 57 cidades em que há segundo turno. Mas, no Rio de Janeiro, parecem ser uma questão de vida ou morte porque a cidade vive um longo processo de decadência prestes a ultrapassar um ponto de não retorno.

Personalidades cariocas enfatizam que a cidade, bonita por natureza, ainda pode encontrar sua vocação no desenvolvimento sustentável, produção do conhecimento, turismo e cultura.

Segundo algumas pesquisas, mais da metade do território do Rio é controlado pelas milícias. Um entre quatro moradores do Rio vive em favelas, sem endereço legal, título de propriedade, serviços públicos, sobretudo saneamento básico.

Uma velha canção diz que quando derem vez ao morro, toda a cidade vai cantar. Um potencial de desenvolvimento limpo e grandes problemas sociais pela frente são um grande desafio para o novo prefeito.

As pesquisas indicam que Eduardo Paes tem 70 dos votos contra apenas 30 do atual prefeito Marcelo Crivella.

Tudo indica que as necessidades de uma metrópole cosmopolita chocaram-se com a estreita visão religiosa de Crivella que subestimou até o carnaval, ponto central do calendário turístico, ao lado de outros como o Rock in Rio.

Apesar da crise profunda, ou talvez por causa dela, a sociedade se move. Durante a pandemia, morros como o do Alemão criaram comitês de crise para angariar fundos e ajudar a população, algo semelhante ao que aconteceu em Paraisópolis, São Paulo, embora num nível menor.

Há mais de um ano, um grande grupo de profissionais e urbanistas foi constituído na internet: o Juntos somos +Rio.

No momento mais intenso da crise, os debates sobre o futuro da cidade abriram para ações, como por exemplo alugar hotéis para que funcionários da saúde descansassem sem colocar em risco suas famílias.

Eduardo Paes foi prefeito do Rio duas vezes. Parece sensível a todos os problemas. É um político, sobrevivente da era Cabral, e terá de provar que aprendeu com os erros e não apenas se adaptou ao novo momento para vencer as eleições.

As lagoas da Barra da Tijuca, bairro onde Paes vive, jamais foram recuperadas num projeto urbano que poderia reviver na área o movimento aquático de uma Veneza.

Da mesma forma, Paes contraiu covid-19 um pouco antes da campanha e teve sintomas leves. É importante que se organize para enfrentar a pandemia e preparar o caminho para uma vacinação em massa, o que pode viabilizar o carnaval remarcado para o meio do ano que vem.

Até o momento não se dedicou muito ao tema, sequer visitou a Fundação Oswaldo Cruz, onde a vacina será fabricada.

O final de campanha no Rio foi marcado pelo baixo nível. Crivella acusa Paes de ter o apoio o PSOL, que iria para o setor de educação promover a pedofilia. O padrinho de Crivella, Bolsonaro, fortalece essa acusação, revivendo a famosa mamadeira de piroca que foi uma das estrela de sua campanha de fake news.

Se conseguir realmente demonstrar maturidade, Paes pode mobilizar o potencial da sociedade assustada com o processo de decadência. Se quiser, por exemplo, além da qualidade de vida num território contido entre o mar e Mata Atlântica, poderá implementar os passos de uma cidade inteligente.

O conhecimento para esse passo revolucionário na administração já é desenvolvido na Universidade Federal do Rio e estaria à sua disposição.

Portanto, apesar de discretas, sob o impacto da pandemias, as eleições no Rio podem marcar o futuro, inclusive porque este ano está prevista uma revisão do Plano Diretor da cidade - decisões que envolvem praticamente tudo no cotidiano dos cariocas.


Fernando Gabeira: Gigante solitário

É preciso ocupar todos os espaços para se contrapor ao cercadinho de Bolsonaro

Ainda muito jovem, estagiário, lembro-me de uma tarefa jornalística no Itamaraty. Com a ajuda do poeta e empresário Augusto Frederico Schmidt, Juscelino acabara de lançar a Operação Pan-Americana. Era uma iniciativa regional, mas partia do Brasil e, de certa forma, expressava o otimismo dos anos 1950.

No mundo de hoje vejo muito movimento. Os Estados Unidos derrotaram Trump e se preparam para voltar às alianças globais e ao Acordo de Paris. A Europa movimenta-se e 15 países da Ásia e da Oceania, um terço do PIB mundial, acabam de celebrar importante acordo sob a liderança da China.

No meio de todo esse movimento, apesar da pandemia, é razoável perguntar pelo Brasil. Jogamos todas as fichas numa relação com Trump, sempre desfavorável ao País. E agora Trump foi para o espaço. Ficamos sós e espetacularmente desarmados, como diria o poeta.

Um projeto especial como o desenvolvido com a Noruega e a Alemanha na Amazônia foi bombardeado por Bolsonaro e Salles. Perdemos investimentos, até para nos protegerem de incêndios na floresta e no Pantanal. Recentemente, numa live sobre os incêndios no Pantanal, autoridades de Mato Grosso lembraram que a modernização de sua estrutura de combate a incêndios dependia desse dinheiro. E não há nada no lugar, exceto o corre-corre do vice-presidente Mourão para seduzir os europeus e uma sensação vazia de nacionalismo no discurso de Bolsonaro. Nem Alemanha nem Noruega exigiam nada senão projetos sustentáveis.

Essa escaramuça amazônica serviu de ensaio para os tropeços posteriores, troca de farpas sobre incêndios e desmatamento – todo um processo que poria em risco o acordo União Europeia-Mercosul. Alguns estadistas, como Angela Merkel, são pragmáticos e têm grande boa vontade com o acordo. Mas a sucessão de erros e o próprio processo destrutivo na Amazônia acabaram repercutindo nos Parlamentos nacionais. E o acordo “subiu no telhado” enquanto Bolsonaro mantiver essa política desafiadora e agressiva com a Europa.

Num encontro do Brics, ele ameaçou denunciar países europeus que importam madeira ilegal. Países não importam madeira, e sim empresas. Ele recuou, mas o tiro no pé já estava dado, até porque ficou bastante evidente que as medidas que afrouxaram as regras de exportação partiram do seu governo.

O próprio Biden fez um aceno durante a campanha prometendo mobilizar US$ 20 bilhões para a Amazônia. Foi contestado por Bolsonaro, ironizado por Salles. Bolsonaro ameaçou usar pólvora quando a saliva faltasse. Todos sabemos que não há pólvora para isso no Brasil, os gastos maiores da Defesa são para manter o pessoal, aposentados incluídos. Mesmo que houvesse mamonas como pólvora alternativa, a verdade é que a ameaça foi ignorada diplomaticamente por Obama quando instado a falar no assunto.

Da mesma maneira, os chineses, nossos maiores parceiros comerciais, procuram navegar ao longo das provocações como se não existissem. Eles têm projetos de décadas, a julgar pelo que Kissinger descreve sobre a política chinesa. Devem considerar Bolsonaro apenas um rápido acidente na relação bilateral. Ainda assim, há temas que vão mobilizar.

No apagar das luzes, Bolsonaro assinou o documento Clean Network, que teoricamente deixa de fora os chinese na implantação da tecnologia 5G no Brasil. É o único tema que irrita os chineses, pela maneira como a família Bolsonaro o trata, classificando-os de espiões.

É uma decisão que representa custos e assusta alguns parceiros nacionais. Suponho que interesse também ao governo Biden. Mas Bolsonaro pensava em Trump quando assinou. E ainda nem reconheceu o presidente eleito americano.

Ninguém se assusta com isso porque, afinal, Bolsonaro nega a covid-19, a ciência, o racismo, a corrupção nos gabinetes familiares, os incêndios na floresta. Ele é um negacionista e de tanto negar acabará duvidando da sua própria existência. O problema é como se comportar nesse vácuo, que pode durar dois anos.

Os governadores da Amazônia uniram-se e podem representar uma alternativa de negociação não apenas com a Europa, mas com os EUA, que agora têm um representante específico para mudanças climáticas. Dificilmente deixará de pôr a Amazônia em sua agenda. Outras iniciativas são possíveis. Cidades como as capitais do Sudeste podem estabelecer também seus vínculos com o exterior, sobretudo num momento em que a articulação das metrópoles do planeta tem muito a contribuir para o combate ao aquecimento global.

É preciso ocupar todos os espaços para se contrapor ao cercadinho de Bolsonaro. Nele, por afinidades ideológicas, cabem apenas a Hungria e a Polônia. Muito distantes e até modestas para nossas pretensões internacionais. No momento em que se discute tanto o racismo estrutural no Brasil, uma revisão histórica em nossa relação com a África abriria novas e inexploradas possibilidades.

Nos anos 50 o otimismo nos abria para as Américas e para o mundo. Com o fim da pandemia e a chegada da vacina, creio que esse movimento será de novo irresistível e arrastará com ele os destroços do negacionismo, o rancor paranoico de quem só vê perigo no mundo.


Fernando Gabeira: Tudo que é estúpido se desmancha no ar

Alívio é anterior à derrota de Trump. Ele começa na prisão de Queiroz

No auge da quarentena, pensei que a última luta de minha vida seria contra um governo que destrói a natureza, a autoestima e a imagem internacional do Brasil. Confesso que dramatizei. Sinto-me aliviado agora e ouso fazer planos mais ambiciosos para depois da chegada da vacina.

O marco temporal dessa sensação de alívio é anterior à importante derrota de Donald Trump. Ele começa na prisão de Fabrício Queiroz. Ali emergiu com clareza o esquema de financiamento de Bolsonaro e seu clã. Ele não teria mais condições de pregar o fechamento do Congresso ou do STF. Os próprios militares, apesar de ambíguos até ali, não o seguiriam na aventura.

Bolsonaro não teve outro caminho além de buscar aliados no Congresso, precisamente aqueles para os quais o desvio de dinheiro público não é um pecado capital. E de se aproximar desse tipo de juiz brasileiro que não hesita em absolver quando há excesso de provas contra o acusado.

A eleição de Biden resultou de uma ampla compreensão de que era necessária uma frente para derrotar Donald Trump e o Partido Republicano. A própria esquerda dos democratas, que vive um momento de ascensão, decidiu conceder para que a vitória fosse possível.

Ao término das eleições municipais, comecei a duvidar se era mesmo necessária uma frente para derrotar Bolsonaro. A construção de um instrumento como esse dá muito trabalho. É preciso constantemente se livrar dos caçadores de hereges, como chamava Churchill os que dentro de uma frente ampla estreitam e intoxicam o espaço com uma permanente lavagem de roupa suja.

E se Bolsonaro se derreter com a rapidez com que se derrete Russomanno em suas campanhas? Ou mesmo se for resiliente como Crivella e chegar ao segundo turno com um índice de rejeição tão alto que perca para qualquer adversário?

Não consigo precisar o ritmo, mas acho que Bolsonaro toma decisões estúpidas diariamente e que ele vai se desmanchar no ar. Quando o vi selecionando uma lista de vereadores para apoiar, pensei: perdeu.

Não adianta conferir na urna se Wal do Açaí foi ou não eleita. Um presidente que se dedica a isso de certa forma está apenas dizendo que é pequeno demais para o cargo. Na verdade, essa é sua mensagem cotidiana.

A constatação, no entanto, não pode desmobilizar. Bolsonaro continua à frente de uma política anticientífica que pode nos custar mais vidas no combate ao coronavírus.

A inexistência de uma frente ampla não significa que ela não possa ser erguida em cada momento em que a democracia for claramente ameaçada.

Da mesma maneira, o fracasso de Bolsonaro não significa que possa ser subestimado. A extrema-direita vai ocupar um espaço, embora muito menor do que ocupou nas eleições de 2018. Assim como na França, ela pode também trocar de líder para se modernizar.

O quadro eleitoral na maior cidade do país — Covas/Boulos — nos remeteu à clássica polarização do período democrático. Ilusório também pensar que tudo será como antes.

O primeiro e grande tema de reflexão é este: Bolsonaro dissolve-se no ar, mas as condições que o fizeram ascender ao governo continuam vivas.

Este período dominado pelo discurso e prática da estupidez deveria ser usado para uma profunda crítica do processo de redemocratização. Mesmo sem a construção de uma frente ampla, a proximidade do abismo nos revelou como somos vulneráveis e semelhantes no ocaso da democracia.

Os Estados Unidos abriram o caminho livrando-se do grande pesadelo. Trilhar esse terreno minado será também de grande utilidade para o Brasil.

Afinal, são fenômenos políticos em realidades diferentes, mas partem de alguns pontos convergentes, como a aversão às iniciativas multilaterais.

Imitado por Bolsonaro, o isolamento americano abriu um imenso espaço. Biden representa uma correção de rumos, mas seria bom lembrar o tempo perdido: 15 nações asiáticas e da Oceania, representando um terço do PIB mundial, acabam de celebrar um acordo comercial de grande envergadura.

Aqui Bolsonaro briga com a Europa para defender grileiros, incendiários e contrabandistas de madeira. Aqui a Terra é plana, a hidroxicloroquina fabricada pelo Exército é remédio contra a Covid-19. Até quando não sei. Não passa de 2022, estou seguro.


Fernando Gabeira: O discreto poder das eleições

O prefeito que canalizar energia positiva que há no Rio poderá conduzir a cidade ao seu papel no planeta

Outrora tão animadas, as eleições municipais, coitadinhas, foram bombardeadas, este ano, por vários mísseis adversos: pandemia, as próprias eleições americanas e o crescente desencanto com a política.

Estávamos certos, no passado, quando dávamos a elas uma atenção maior que à escolha por cargos federais. Reuniões diárias, comícios domésticos, sabíamos que, mais do que todas, elas podem transformar nosso cotidiano.

É hábito usar as eleições municipais para checar a força dos líderes nacionais. Bolsonaro mostrou-se um cinturão de chumbo, mas seus candidatos nas duas grandes cidades são náufragos vocacionados: Russomanno populista pelo consumidor e Crivella tentando estrangular uma metrópole cosmopolita, com sua mediocridade administrativa e rígidos princípios religiosos.

A cidade onde vivo por amor passa por um perigoso momento de decadência. Algumas pessoas talentosas já a deixaram ou se preparam para isso. A pandemia nos atingiu em cheio.

Tenho o hábito de documentar os moradores de rua do meu bairro, na esperança de reter com as imagens os únicos rastros de sua passagem pelo mundo. Muitos desapareceram e, no seu lugar, veio uma multidão: famílias inteiras com seus animais domésticos e alguns trapos para cobrir a cama de papelão.

Nesta eleição, em vez de discutir candidatos, conversei sobre programas com pessoas que gostam e entendem do Rio. Minha expectativa inicial foi plenamente satisfeita por eles: não é hora de partir, temos uma grande chance de encontrar a vocação da cidade e de transformá-la numa das mais atraentes para viver no planeta.

Bonita e situada entre o mar e a Mata Atlântica, o Rio pode ser um lugar onde a qualidade de vida e o respeito ao meio ambiente impulsionam a economia. Quem diz isso é Arminio Fraga, que conhece o mundo, o Rio e a economia.

Empresários do turismo estão prontos para oferecer um calendário de eventos que ocupe o ano, no pós-pandemia. De um carnaval mais bem explorado ao Rock in Rio, a cidade pode fervilhar durante um ano inteiro. Quem diz isso é Roberto Medina, que realizou, depois do carnaval, nosso maior espetáculo.

O Rio é uma cidade de gente que estuda e pesquisa. Tem tudo para ser, além de bonita, uma cidade inteligente. A Coppe/UFRJ já está avançando na busca das ferramentas que permitam à cidade ser administrada com uma racionalidade jamais vista, articulando políticas urbanas, sabendo o que pensam moradores das áreas de intervenção.

Ser dermos voz ao morro, toda a cidade vai cantar. Bastou uma conversa com Celso Athayde para compreender que o quarto da população que vive nos morros já tem seu próprio impulso. Ele seria multiplicado se as pessoas tivessem um endereço, título de propriedade, orientação arquitetônica nas suas reformas, serviços públicos e, sobretudo, saneamento.

Sei que a esquerda condena o Novo Marco do Saneamento. Mas é a única esperança no horizonte para vencer um atraso secular.

Aprendi com Claudia Costin que a educação pode dar grandes passos porque já viveu momentos melhores no Rio. E com a Dra. Margareth Dalcolmo que o próprio drama da saúde pública, agravado pela pandemia, revelou inúmeros aspectos positivos da cidade, na articulação público-privada, nas iniciativas nos morros, campanhas humanitárias na classe média.

O Rio tem gente pensando seriamente no uso racional e democrático do solo. Gente sonhando não só em transformar a cidade num centro de esportes aquáticos, mas em abrir, com isso, oportunidades para milhares de crianças pobres.

O fim de pandemias pode resultar em renascimento. A chegada de uma vacina eficaz e segura nos trará uma chance de recomeçar em novas bases, explorar o potencial que sempre esteve diante de nós e sistematicamente o destruímos nos últimos anos.

E teremos diante de nós um novo Plano Diretor.

Não sei quem será o prefeito. Eduardo Paes foi o mais votado no primeiro turno. Ele é sensível a todos os temas de reconstrução do Rio.

Fomos adversários em 2008, jamais inimigos. Alguns colaboradores de nossa campanha foram ajudá-lo em temas vitais para seu governo. Discordo dos rumos de seu governo, da natureza de suas alianças, das concessões. Mas isso é outra história.

Qualquer prefeito que se disponha a canalizar essa imensa energia positiva que ainda existe no Rio, sobretudo na euforia do pós-coronavírus, poderá conduzir a cidade ao seu papel real no planeta.

As eleições municipais talvez tenham sido uma das mais discretas da história e, paradoxalmente, as que mais importância terão na história do Rio.


Fernando Gabeira: Uma ponte com o mundo

Vitória de Trump representaria a perda de esperança na sobrevivência da própria humanidade

Na noite das eleições pensei em ver um jogo da Copa do Brasil para não passar a noite em claro, sofrendo com algo que não posso influenciar. Trump ou Biden, Botafogo ou Goiás? Este último duelo tinha funcionado para embalar meu sono na semana anterior.

No entanto passei mais uma noite em claro. Afinal, há tanta coisa em jogo. Minha ideia dos Estados Unidos não se alterou. Como nunca fui lá, conecto-me pela cultura, e alguns pontos importantes do mapa são Nova York e a Califórnia. Nesses lugares, Trump foi derrotado de forma acachapante. Continuam, de certa maneira, familiares para mim.

O problema são as decisões tomadas em Washington. No dia anterior, os EUA formalizaram sua saída do Acordo de Paris, deixando os outros países com a enorme tarefa de adaptação ao aquecimento global.

Para os estrategistas, uma solução pró-Trump seria interessante para a China, pois acentuaria a decadência americana no mundo. Para mim, ela representaria a perda de esperança na sobrevivência da própria humanidade, deixando-nos com a alternativa de apenas lutar para que isso seja mais lento.

No meu país, seria um estímulo para que Bolsonaro e Salles acelerem a destruição dos recursos naturais e reduzam as chances de encontrarmos nossa moderna vocação econômica: a exploração sustentável da Amazônia, das fontes renováveis de energia, a abertura de milhares de empregos num projeto de recuperação verde.

Alguma coisa não funcionou na primeira noite. As pesquisas se equivocaram, e Biden não conquistou uma vitória esmagadora. Aconteceu o que todos anunciavam; Trump tumultuaria o processo e buscaria uma saída no tapetão. Ele, como todo mundo, sabia que a maioria dos democratas votou pelo correio e que esses votos demoraram a ser contados.

Independentemente do resultado, tudo isso me faz pensar no Brasil. Lá como aqui, a polarização domina o país. Lá como aqui, o populismo é muito mais resiliente do que pode parecer quando nos referimos apenas aos círculos intelectuais.

Antes de criticar as pesquisas que falharam, é importante registrar que algumas pessoas têm medo de revelar seu voto; outras o escamoteiam porque veem nos institutos de pesquisa um braço do sistema e de dominação, denunciado pelos populistas.

E, antes de criticar os democratas por terem esperado uma onda azul que não arrebentou na praia, é preciso estudar se existem alternativas para certas tendências humanas.

Como não se importar com os imigrantes ilegais, inclusive centenas de crianças separadas dos pais? Nem sempre os latinos legalizados são solidários com os ilegais. Nem sempre os negros se compadecem dos seus irmãos asfixiados até a morte pela polícia.

Na medida em que a vitória de Biden se anunciava de forma mais lenta que o esperado, Trump optou por entrar na Justiça e, de certa forma, tumultuar o processo. Isso preocupa não só pelos Estados Unidos. Trump é uma inspiração para Bolsonaro, que tem uma tendência a questionar resultado das eleições, até mesmo quando as vence.

Ha tantas lições a tirar deste momento que ele nos deixa uma tarefa para muito tempo. Mas é claro que o populismo de direita é enraizado na visão de mundo de seus seguidores, e não podemos subestimá-lo, mesmo diante da derrota eleitoral.

Aliás, a vitória nesse caso lembra-me a fala de um oficial no filme “A Guerra da Argélia”: “É muito difícil chegar ao governo, mas as dificuldades começam de verdade quando se chega lá”.

Biden é um homem com recursos oratórios modestos, mas realizou a tarefa de ser o candidato mais votado da história americana. O panorama que encontra diante de si é minado não só pela pandemia, crise econômica, mas também pelo legado do populismo. Desconfiança nas instituições, notícias falsas, teorias conspiratórias, divisão profunda na sociedade, tudo isso modela um caminho muito difícil de transpor.

Muito mais que a paciência e a unidade necessárias para derrotar o populismo de direita, será necessário construir pontes, apesar dos sabotadores que as explodem com frequência.

A primeira e grande ponte será com o próprio mundo, voltar ao esforço multilateral, reconhecer a importância do trabalho conjunto para enfrentar o grande desafio planetário. A volta ao Acordo de Paris e a reconstrução verde da economia americana seriam um grande começo.


Fernando Gabeira: O perigoso esporte de humilhar general

A humilhação repercute no respeito que as pessoas têm pelas Forças Armadas

Com a redemocratização, conheci alguns generais. Um deles visitava nossa casa para alegria das crianças. Era o bisavô das meninas, já nos últimos anos de vida. Serviu no Brasil profundo, tinha memórias de índios e do mato.

Um dia ele me contou que o médico íntimo dele, antes de operá-lo, aplicou a anestesia e perguntou: “Quer dizer que o senhor é o general da banda?” Ele tentou responder, mas dormiu com um sorriso nos lábios.

“General da banda” é uma canção antiga, regravada por Astrud Gilberto, que dizia: “Chegou o general da banda, eh eh/ Chegou o general da banda eh ah”. Era possível brincar com um velho general. Mas seria impensável desrespeitá-lo.

Quando leio nos jornais que há um plano para humilhar generais, minha reação inicial é esta: um general não se deixa humilhar.

Mas, ao longo destes anos compreendi também que, assim como nos outros ofícios, há diferenças entre as pessoas. Nem todas se comportam da mesma maneira. Há generais que entraram no governo pensando num trabalho sério. Santos Cruz foi golpeado por intrigas. Saiu e hoje é um crítico sensato dos descaminhos de Bolsonaro.

Rêgo Barros foi um dos generais que conheci, como jornalista. Era a interface com o Exército, coordenava a comunicação. Fui visitá-lo algumas vezes no Forte Apache, na tarefa de preparar programas de TV sobre algumas ações militares que me interessavam.

Ele se tornou porta-voz de Bolsonaro, foi destituído e vejo que estava certo ao manter meu interesse por ele. Percebeu a vulgaridade e o delírio de poder de Bolsonaro e segue seu caminho.

Infelizmente, nem todos se comportam assim. Tive poucos contatos com o general Heleno. O primeiro foi no Haiti, quando ele comandava a força da ONU. O segundo, na Amazônia; chegamos a viajar juntos para as terras ianomâmi. Heleno teve uma curta passagem como comentarista de TV, na Band, analisava segurança pública.

Sua trajetória é de adesão total ao projeto Bolsonaro. Ao colocar Abin e GSI na busca de uma defesa para as trapalhadas de Flávio, ele se revelou um samurai da família Bolsonaro.

Mergulhou tão rancorosamente no passado que manda espiões para encontros internacionais que tratam do tema essencial para o futuro do Brasil: o meio ambiente.

Trajetória estranha também é a do general Pazuello, a quem não conheci pessoalmente, apesar de ter visitado as instalações da Operação Acolhida em Roraima. Pazuello foi desautorizado publicamente por Bolsonaro, em seguida posou ao lado do presidente e disse simplesmente: “Um manda, e o outro obedece”.

Espontaneamente, ele igualou suas funções à de um varredor da porta do quartel. E nos deu uma antevisão da situação calamitosa da saúde no Brasil: ele simplesmente obedece a Bolsonaro, uma das pessoas mais obtusas nesse campo, para não falar de vários outros.

Como se não bastasse tudo isso, o ministro Ricardo Salles chama o general Ramos de Maria Fofoca nas redes sociais, e nada acontece com ele.

Alguns analistas acham que Bolsonaro tem prazer em humilhar generais, para compensar seu fracasso no Exército. Não me interessa tanto o lado psicológico. O mais importante para mim é lembrar que a humilhação de generais repercute no respeito ou desprezo que as pessoas têm pelas Forças Armadas.

O desprezo pelas Forças Armadas, por sua vez, repercute na política de segurança nacional. Não é possível que, por um dinheirinho a mais os militares, ocupem um governo destruidor e incapaz e ameacem com isso sua função constitucional específica.

Não precisamos de Forças Armadas para derrubar essas aberrações momentâneas. Nos Estados Unidos, Trump pode ir para o espaço com as eleições. Derrotaremos Bolsonaro e quantos militares estiveram ao seu lado. Não é esse o problema.

O que faremos com a vitória se o sentimento elementar de honra abandonar nossas Forças Armadas?

Uma das consequências mais nefastas do governo Bolsonaro foi ter comprometido as Forças Armadas. Todo o trabalho de recomposição no período democrático pode estar se perdendo, de alguma forma.

Não há presos políticos nem tortura, é verdade. Mas os problemas são de outra natureza, as consciências despertas para novas realidades. Um pobre general abraçado à cloroquina, espionando encontros internacionais, sendo chamado de Maria Fofoca — tudo isso é demonstração de que a insanidade sentou praça.


Fernando Gabeira: Novas batalhas de Itararé

No Brasil, como nos EUA, pandemia e obscurantismo político andam de mãos dadas

O mundo ainda vive o impacto da pandemia. A segunda onda atinge a Europa, alguns países, como a Bélgica, estão com os hospitais sobrecarregados. Recordes planetários em número de casos foram batidos várias vezes em outubro. Só os Estados Unidos registraram 80 mil casos diários.

Com oito Estados tendendo para um aumento, o Brasil deveria estar preocupado. Deveríamos estar vacinados contra as bobagens de Bolsonaro e esse estéril duelo com Doria. No entanto, entramos numa estúpida guerra da vacina, como se estivéssemos ainda em 1904 nos bairros insalubres do Rio de Janeiro.

Bolsonaro recusa-se a comprar vacinas de origem chinesa e desautoriza seu general na Saúde. Ele ignora que neste mundo ninguém se importa tanto com a origem de uma vacina, mas apenas com sua segurança e eficácia. É um ébrio ideológico que não pode saber que os chineses inventaram a pólvora, senão vai interditar todos os paióis do País.

O programa brasileiro de imunização deve se basear apenas nos critérios técnicos e a exclusão de uma vacina aprovada pela Anvisa pode ser anulada pelo Supremo.

Bolsonaro prefere a hidroxicloroquina. Disse que talvez fosse melhor investir na cura do que na vacina contra o vírus. Ainda bem que é apenas uma opinião pessoal. O Brasil já investiu mais em vacina do que em hidroxicloroquina porque essa é a lógica científica. O que não significa que não devamos, como se faz lá fora, pesquisar antivirais eficazes.

No outro canto do ringue está o governador João Doria. Todos os políticos realmente vocacionados proporiam, antes de tudo, que a vacina fosse gratuita. Há um grande interesse em se vacinar, mas nem todos poderão comprar sua dose. Doria preferiu afirmar que a vacina seria obrigatória e isso acabou desfechando um debate que acabará no Supremo Tribunal, como a batalha final do ciclo Itararé.

Ainda não temos a vacina. Não sabemos qual será o seu nível de eficácia, algo que talvez seja possível conhecer no início do ano que vem. Não sabemos ainda em quanto tempo haverá vacina disponível para todo mundo. Talvez leve um ano. Qual o sentido de tornar obrigatório algo inalcançável num determinado espaço de tempo?

As vacinas podem ser apenas 50% eficazes. Já existem mais de 5 milhões de brasileiros com anticorpos, porque foram contaminados. E há doenças, como a do uruguaio José Mujica, que são incompatíveis com a vacina.

O Supremo será levado a determinar algo que talvez seja desnecessário. Há mais gente querendo a vacina do que vacina disponível. Se 80% da população se vacinar, tem sentido impor restrições aos restantes 20%? Não teríamos atingido, por esse caminho, a imunização de rebanho?

Se abstrairmos o episódio da Revolta da Vacina, no início do século 20, o tema parece absurdo. Acontece que Bolsonaro sabe que alguns bolsões da internet se encantam com os movimentos antivacina modernos. Uma teoria conspiratória as associa ao poder dos chineses, ou à forma como Bill Gates vai se apoderar do mundo.

São grupos minoritários e vivem, como Bolsonaro, numa espécie de bolha da teoria conspirativa que lhes dá a sensação de serem especiais, de entenderem o significado secreto de acontecimentos de que as pessoas comuns só captam a superfície.

É uma escolha política, como foi a de Trump de não denunciar o supremacismo branco quando chamado a opinar sobre isso. Ou de fingir que não conhece o grupo QAnon, que divulga a existência de uma associação de políticos pedófilos que se reúnem em porões de pizzaria.

Com a existência de pessoas isoladas em seus grupos de internet é possível alimentar a insanidade, até mesmo com a ajuda das grandes plataformas sociais. Os terraplanistas, por exemplo, encontram farto material para sustentar sua tese.

O fato de Trump e Bolsonaro terem triunfado nas eleições explorando ressentimentos, ou mesmo a ingenuidade das pessoas, é um dado real da conjuntura das duas Américas. No entanto, a maneira errática como governam, por meio de mensagens vulgares e sensacionalistas, vai mostrar que a vitória de ambos foi um acidente histórico, uma alerta.

Isto não significa que depois dessa vulgaridade virá o melhor dos mundos. Haverá tempo para corrigir alguns erros e avançar modestamente.

É possível que o resultado das eleições americanas seja a vitória de Joe Biden. Estaremos apenas acordando de um pesadelo, mas dentro das condições dramáticas que o tornaram possível.

De certa forma, Camus previu isso no romance sobre a peste, que pode ser vista como o ataque do vírus ou o assalto do obscurantismo autoritário. Essa ameaça nunca desaparece, ela está em toda parte, à espreita, pronta para reaparecer.

Com Trump e Bolsonaro tivemos uma combinação nefasta. No caso de Bolsonaro, não bastou o elogio da hidroxicloquina. Era preciso lançar dúvidas sobre a vacina, enfraquecer a busca nacional por esse recurso.

Em A Peste, o vírus é apenas uma alusão a regimes opressivos. No Brasil e nos Estados Unidos vivemos uma redundância: pandemia e obscurantismo político andam de mãos dadas.

*Jornalista