Fernando Gabeira

Fernando Gabeira: Bolsonaro e a construção do caos

Na semana em que as mortes pela pandemia atingem a marca de 255 mil, toda a atmosfera política parece sombria. Não é caso de desespero, apenas a constatação de que vivemos um momento especialmente difícil.

Enquanto sonhamos com a imunização do povo contra a Covid-19, quem recebe vacinas é Flávio Bolsonaro, filho do presidente, e os congressistas do Brasil. Flávio ganhou uma vacina contra a punição no caso das rachadinhas. Os congressistas foram mais longe e produziram um projeto que os vacina contra a prisão em flagrante.

Impressionante ver como o populismo de direita se associa aos políticos tradicionais para criar uma intransponível blindagem para toda sorte de crimes.

E logo eles, os populistas de direita, que afirmam a decadência de um mundo materialista, distante dos valores espirituais que pretendem restaurar.

Acabo de ler “Guerra pela eternidade”, um livro de Benjamin Teitelbaum. O livro fala do retorno do tradicionalismo e da ascensão da direita populista. Infelizmente, não posso fazer uma resenha aqui, senão meu espaço iria para o espaço, se me perdoam o jogo de palavras.

Teitelbaum é etnógrafo, e seu método de pesquisa consiste em observar e interagir com as pessoas que estuda. Dois personagens, entre outros, se destacam em seu livro: Steve Bannon e Olavo de Carvalho. A leitura do livro me ensinou alguma coisa sobre o pensamento da direita, embora a tese central não tenha me parecido muito sólida. Ele tenta enquadrar Steve Bannon e Olavo de Carvalho no figurino do tradicionalismo, mas algumas partes do corpo ficam do lado de fora, não cabem exatamente.

O tradicionalismo tem uma visão circular do tempo. As épocas se sucedem da Idade do Ouro, o tempo dos sacerdotes, passando pelos guerreiros e comerciantes, até o dos escravos, a decadência que se vive hoje no mundo material, globalizado, dominado por uma aliança entre o liberalismo e a China.

Steve Bannon e Olavo de Carvalho sonham com um novo mundo, em que os moradores das áreas rurais americanas e o povo religioso do Brasil (no caso de Olavo) aparecem como as forças novas que vão restaurá-lo.

É um pouco parecido, num outro plano, com a visão romântica dos comunistas, que viam a redenção na classe operária. O mais importante, no entanto, é que, assim como a velha extrema esquerda, Bannon quer implodir as instituições existentes.

Isso explica, no governo Trump, a escolha de uma secretária de Educação que distribuía vouchers para usarem em escolas particulares, anulando o ensino público. Ou mesmo a escolha de um diretor da agência ambiental cujo grande objetivo era acabar com seu ativismo.

Há correspondência dessas escolhas no Brasil. Ricardo Salles foi apontado para destruir o trabalho legal pelo meio ambiente. Ernesto Araújo, para realizar uma diplomacia que rompe com as práticas tradicionais.

Araújo não se importa que o Brasil se transforme num pária. Num mundo decadente, isso é um elogio: significa que há um papel na nova idade do ouro, em que os símbolos superam a razão.

Não tenho espaço para as contradições. Lembro apenas que Bannon se diz espiritualista, mas recebia um salário de US$ 1 milhão de um bilionário chinês e foi acusado de desviar dinheiro destinado a construir o muro na fronteira com o México.

O ponto central é que essas ideias influenciam o governo Bolsonaro. Ele mesmo é uma espécie de antipresidente, alguém destinado a explodir a instituição. O caos é algo promissor para quem julga antever a aurora de uma nova era.

É assim que entendo sua intervenção na Petrobrás e os decretos para armar o povo. Na verdade, foi assim que li as principais declaracões dos quadros da alt-right, a direita alternativa.A tática parece muito com as velhas teorias revolucionárias , só que com o sinal trocado.


Fernando Gabeira: Que país é este?

Festas clandestinas, variante do corona, vacina em falta, vacina de vento, às vezes acho que o Brasil se deixa devastar pelo vírus

É importante compreender não só pela pandemia, mas também pela sensação de que somos muito vulneráveis diante de obstáculos futuros. O governo tem uma grande culpa na tragédia. Um estudo divulgado pela “Lancet” afirma que os erros de Trump contribuíram para 40% das mortes nos EUA.

Estudo semelhante no Brasil, certamente, mostraria que a política de Bolsonaro matou muito mais. Trump pelo menos financiou a vacina, Bolsonaro foi o único estadista no mundo a contestá-la.

Quanto ao governo, resta apenas denunciar seus erros, juntar documentos e esperar que os tribunais o julguem.

Mas há algo na própria sociedade brasileira que precisa de uma análise. Tanta gente nas festas de fim de ano, tanta gente nos bailes de carnaval clandestinos, tanta gente sem máscara, é um movimento inevitável. Por que valorizamos tanto a liberdade individual em contraste com um certo descuido pelo coletivo, pela sensação de pertencimento?

Se minha hipótese é verdadeira, não vão adiantar muito lições de moral, campanhas educativas. Elas apenas patinam na superfície do problema. No Brasil, as pessoas sentem que a cidadania traz poucas vantagens; logo, não merece nenhum tipo de sacrifício.

Ali em 2013, o grande movimento espontâneo já parecia indicar uma insatisfação com os serviços públicos que pouco devolviam aos impostos pagos.

No princípio da pandemia, que demandava tanta solidariedade, surgiram notícias de corrupção em diferentes estados. Respiradores comprados em casas de vinho, hospitais de campanha superfaturados; a sensação de que esses fatos transmitiram era que entre os governantes reinava o lema de cada um por si.

Quando surgiu a quarentena, era evidente para todos a impossibilidade de realizá-la no exíguo espaço de algumas moradias. A orientação moral era esta: façam quarentena, inclusive para proteger os outros. Mas fomos incapazes de oferecer uma rede de hotéis, pousadas e abrigos que pudessem ser usados para isso. Da mesma maneira, dizíamos: “Lavem as mãos”. Mas fomos incapazes de pensar um esquema de abastecimento emergencial nas comunidades onde a água é rara, às vezes inexistente.

Não houve uma configuração especial no transporte público para oferecer alternativas para que circulasse mais vazio, com álcool disponível e até máscaras para quem não as tinha.

A educação e a cultura passaram a depender do mundo virtual. Mas não foi feito um grande esforço para estender a conexão de qualidade para que as crianças tivessem algumas aulas, e os adultos, alguma diversão e arte.

É nesse quadro que nossas campanhas se movem. Teríamos muito mais eficácia se houvesse mais proximidade, se as pessoas sentissem que os conselheiros também buscam soluções para atenuar a aspereza de suas vidas.

Tudo isso não impediu ações de solidariedade nos morros do Rio e uma atividade assistencial intensa em Paraisópolis, uma região que foi sacudida antes da pandemia por uma violenta ação da PM.

Mas, de um modo geral, creio, a raiz da nossa vulnerabilidade está na distância entre os dirigentes e as pessoas. Não há partidos, organizações intermediárias; os indivíduos se sentem sós e aprofundam a ilusão de uma existência isolada. Acreditam que estão arriscando apenas sua vida, mas, na verdade, levam muitas consigo.

Enquanto não nos livrarmos de um tipo de governo e buscarmos uma correção de rumos, o Brasil poderá até escapar do coronavírus, mas será sempre um país vulnerável, quase indefeso.

Talvez essas reflexões sejam mais adequadas para depois da pandemia, mas sinceramente ninguém sabe quando acabará: melhor é aceitar que o próximo desastre já começou, sem que nos déssemos conta.


Fernando Gabeira: O precoce começo de 22

Algumas religiões desaconselham explicar muito sua fé. O zen-budismo, por exemplo, costuma alertar: quem sabe não fala, quem não sabe é quem fala.

O grande viajante inglês Richard Francis Burton converteu-se ao sufismo e adotou, simultaneamente, uma tática chamada taquia, que consiste em esconder sua fé. A política é uma esfera muito diferente, mas também nela é preciso cuidado para não falar muito ou dar a falsa impressão de que sabe mais que os outros.

Lembro-me de que, em Brasília, os que caíam nessa tentação eram discretamente rejeitados e, quase sempre, chamados de professor de Deus. Conheci vários professores de Deus e, confesso, que sabiam realmente muito menos do que imaginavam saber.

Dito isso, é com humildade que meto a colher nesse debate sobre a oposição a Bolsonaro e as alternativas para derrotá-lo em 2022. Talvez, no chamado centro democrático, seja necessário superar o clima de lamentos, acusações mútuas e desencanto.

Não há nada de extraordinário na adesão de quadros do DEM e do PSDB a Bolsonaro. Durante a ditadura, o MDB se dividiu, e os que faziam oposição eram chamados de autênticos.

Sempre sobra um pequeno núcleo com visão nacional, e sua tarefa é levar o trabalho adiante, tratando de unificar a partir das lutas cotidianas, das quais não se pode fugir. Coisas simples e decisivas, como vacinação em massa, ajuda emergencial.

No campo da esquerda, houve também uma certa surpresa, no meu entender exagerada, com o lançamento de um candidato do PT, Fernando Haddad. O partido ocupou o poder durante muito tempo, tem uma grande bancada no Congresso, disputou com Bolsonaro o segundo turno.

Todos sabem que lançará candidato próprio. Mesmo nas eleições municipais de São Paulo, com poucas chances segundo as pesquisas, disputou o primeiro turno.

Já defendi a ideia de que é indispensável uma grande frente. No entanto as próprias eleições municipais mostraram possibilidades diferentes.

O candidato de Bolsonaro perdeu tanta consistência em São Paulo que nem chegou ao segundo turno. No Rio, o aliado do presidente chegou ao segundo turno tão combalido que seria derrotado pelo próprio índice de rejeição.

Alguma dessas hipóteses pode acontecer com Bolsonaro, uma vez que ainda não foi metabolizado pela população seu fracasso ao tratar da pandemia, muito menos sua irresponsabilidade em defender e produzir remédios ineficazes contra o coronavírus. E nem foi revelado amplamente à juventude do país seu trabalho de destruição da natureza.

O caminho pela frente, de um lado, é de crise social; de outro, uma aliança entre Bolsonaro e o Centrão, que pode até esboçar algumas respostas, mas, ao longo da história, tem se mostrado um tipo de aliança que cava um abismo entre política e sociedade.

Os que defendem a frente falam também de um projeto nacional, uma visão de como e para onde conduzir o Brasil, sua inserção internacional. É inegável a importância do argumento. No entanto a experiência tem mostrado também que muitos eleitores se definem por algum tema que lhes interessa e avaliam também a trajetória e a personalidade do candidato.

Por isso, talvez, em vez de estarmos vendo apenas a fragmentação de uma potencial frente única, estejamos assistindo às cotoveladas e artimanhas que antecedem o lançamento das candidaturas.

É importante que se lancem e comecem a trabalhar seriamente. Não existe uma certeza de que a eleição que virá repetirá os protagonistas da eleição de 2018. Muito menos a certeza de que, repetindo os protagonistas, repita o resultado.

Tenho dúvidas se conseguiremos deter satisfatoriamente a pandemia antes de 2022. Isso torna o caminho mais complicado, mas não impede a existência de um caminho aberto, ainda não fatalisticamente desenhado; enfim, um que depende daqueles que vão desbravá-lo.


Fernando Gabeira: Roteiro para tempos difíceis

O Congresso caiu nas mãos de Bolsonaro. É o fato da semana.

Um bolsonarista escreveu no Instagram que me ver chorar na TV não tinha preço. Usava o termo chorar em sentido figurado. Certamente expressei tristeza com a vitória de Arthur Lira, coroada com uma festa para 300 pessoas, sem máscaras, numa mansão do Lago.

Mas se, como no poema, o bolsonarista nunca conheceu quem tivesse levado porrada, muito prazer, me apresento.

Situações difíceis não devem nos intimidar, embora seja assustador pensar na continuidade de um governo que mata as pessoas com seu obscurantismo e destrói vorazmente os recursos naturais de um dos mais belos países do mundo.

Muita gente acha que Bolsonaro tornou-se mais forte em 22, porque controla o Congresso. Temer controlava, mas jamais foi uma alternativa eleitoral viável.

As coisas não passam por aí. Pelo contrário, as relações de toma lá dá cá, as diárias afirmações de que é dando que se recebe, apenas reforçam a aura de decadência que envolve a política no Brasil.

A ideia de uma frente não se esvai porque alguns setores saltaram do barco. O que a fortalece, de fato, não são as letrinhas que designam partidos, nem necessariamente o número de deputados e senadores que a compõem.

O importante para uma oposição é compreender essa nova relação de forças no Congresso e olhar mais para fora, buscar o apoio da sociedade, batendo em alguns pontos essenciais. Um deles é denunciar o estelionato eleitoral de Bolsonaro, separando-o das pessoas que acreditaram em seu discurso.

Os outros estão claros na própria conjuntura: apoio emergencial para milhões de necessitados, defesa da ciência na condução da política contra a pandemia e luta para que todos se vacinem de forma eficaz e segura.

Esse encontro com a sociedade poderá ser mais amplo ainda na medida em que a vacinação avance. Muitos discutem as eleições de 22, quem será candidato, quem vai vencer.

É um tema inescapável. No entanto, daqui até lá, há muita luta, muitas peripécias. Os nomes devem surgir desse processo. Não creio em candidaturas que ficam abrigadas da tempestade e aparecem apenas no momento eleitoral.

Bolsonaro, Witzel e outras figuras se elegeram num momento de decadência da política. Nas próximas eleições, possivelmente viveremos um clima em que não só a política, mas também as novidades radicais decaíram. Daí a importância do que sobrou de resistência, de como se mostrará no processo, sua habilidade para unir, coragem para encarar o governo de frente.

Grande parte dos analistas descarta o impeachment quando um governo passa a dominar o Congresso. É razoável. Mas não se pode ver o Congresso como um bloco impermeável à pressão popular.

É preciso trabalhar com todos os cenários, sabendo que são tempos quase tão difíceis como no período da ditadura. É verdade que agora existe liberdade de imprensa, mas, no entanto, desapareceu um clima mais fraterno entre os opositores.

E isso não apenas porque a história moderna do Brasil colocou em campos opostos os que lutaram pelas eleições diretas.

O debate político não é mais mediado exclusivamente pela imprensa profissional. Ele vive noutras plataformas, deformado por fake news e num clima de agressividade verbal sem precedentes.

Um agradável lugar-comum que sempre vale a pena repetir: a história não coloca problemas que as pessoas não possam resolver.

É urgente evitar mortes e, simultaneamente, desenvolver as lutas que possam fortalecer uma vontade de tirar o Brasil dessa condição de pária sanitário e ambiental, dominado pelo obscurantismo.

Perdemos o Congresso, é verdade. Mas algum o dia o tivemos? Por enquanto, a parte que nos toca é uma modesta minoria. Vamos com ela, com o que sobrar, pois resistir ainda é melhor do que tudo.


Fernando Gabeira: O estreito caminho pela frente

A democracia brasileira ficou mais vulnerável, o negacionismo tem agora uma base parlamentar

As eleições no Congresso nos remetem a uma situação relativamente familiar: o mecanismo do “toma lá da cá”, que muitos supunham estar esgotado na política, voltou ao centro da cena. E desta vez com poucos esforços para disfarçar. O governo destinou mais de R$ 3 bilhões de verbas aos parlamentares e Bolsonaro confessou que iria influenciar a escolha num Poder que deveria ser independente.

Para quem vive há muitos anos o processo político brasileiro, é como se um ciclo se encerrasse. As relações fisiológicas degradam a política nacional e criam condições para que surja alguém prometendo tudo mudar e trazer consigo uma “nova forma de fazer política”.

Ao cair de cabeça no velho fisiologismo, Bolsonaro não somente reconstrói uma cena política que estamos cansados de ver. Há diferenças agora. Como ele e outras figuras, como Wilson Witzel, eram os arautos de uma “nova política”, é possível esperar que a própria ideia de novidade radical entre em decadência, o que, aliás, de certa forma já foi revelado em algumas cidades nas eleições de 2020.

Um dos subprodutos da vitória de Bolsonaro no Congresso foi desmantelar o centro. Em política, talvez isso não signifique um mundo que desmorona, como no verso de Yeats – “the center will not hold”. Significa apenas que aumentam as possibilidades de polarização.

Afinal, o centro, que foi implodido por Bolsonaro, acabaria se rompendo de qualquer forma. Não há consistência nesses partidos e, estrategicamente, o melhor seria um racha, com o lado da oposição democrática tentando se viabilizar na própria sociedade.

Quando Bolsonaro se elegeu, as barreiras de contenção de suas tendências autoritárias seriam o Congresso e o STF. Agora seu candidato obteve 302 votos, seis a menos que o necessário para aprovar uma emenda constitucional. Por essa e muitas razões, a democracia brasileira ficou mais vulnerável. Dificilmente serão considerados os crimes de responsabilidade que se sucedem na condução da pandemia. O negacionismo de Bolsonaro tem agora uma base parlamentar.

Aliás, uma demonstração disso foi a festa para 300 pessoas na comemoração da vitória de Arthur Lira, em Brasília. Horas depois de dizer em discurso que era preciso vacinar, vacinar, vacinar, o novo presidente comemorava com grande número de pessoas sem máscara.

Isso não é um detalhe. A posição negacionista se estende também ao combate ao uso de máscaras, consideradas por alguns “mordaças ideológicas”. É algo tão característico de escolhas políticas que nos Estados Unidos Joe Biden decretou o uso obrigatório de máscara em propriedades federais.

É necessário concluir que a mudança no Congresso, apesar da retórica, pode fortalecer a política negacionista. Nesse caso, não se trata mais de ameaça à democracia, mas do avanço de uma política que mata.

É evidente, hoje, que dois tipos de contenção foram necessários. Um para evitar a ruptura democrática, que se tornou menos viável para Bolsonaro após a prisão de Fabrício Queiroz. Mas continua sendo necessária a contenção da política que contribui para a morte de milhares de pessoas.

O STF avançou nisso, sobretudo no momento em que definiu a responsabilidade conjunta de União, Estados e municípios. Tentou avançar em alguns outros pontos, como a exigência de uma política de proteção às populações indígenas, e solicitou também um plano nacional de vacinação. Onde foi necessário investigar diretamente a responsabilidade pelas mortes de Manaus, determinou uma investigação policial.

Mas o Congresso, disperso, agiu pouco. Aqui e ali entrou com denúncias no Supremo, mas não considerou uma tarefa coletiva deter a política de Bolsonaro e oferecer uma alternativa que pudesse salvar vidas, e não exterminá-las.

O que será agora da ação do Congresso na pandemia, com o poder nas mãos de aliados de Bolsonaro? Uma das saídas é a oposição reconhecer suas dificuldades e tentar viver este novo momento com habilidade para unir e coragem para combater os erros do governo.

Neste momento em que o poder no Congresso se concentra nas mãos de aliados de Bolsonaro, um caminho é buscar o equilíbrio por meio do encontro com a sociedade. Há pelo menos três temas que podem fortalecer esse encontro: a luta contra a pandemia, um processo organizado de vacinação e uma renovada ajuda emergencial aos milhões que ainda precisam dela.

No caso da ajuda emergencial, pode até haver uma convergência com o governo, mas é possível deixar claro que a oposição pressionou. Da mesma forma, o governo pode se convencer a vacinar, sob intensa pressão. No tratamento da pandemia as diferenças são abissais, intransponíveis. O governo nega sua importância, investe em remédios ineficazes, subestima testes e deixa que se estraguem, não sequencia nem rastreia novas variantes. E quando são descobertas, como no caso de Manaus, não existe um esboço de plano nacional para conter seu impacto.

É preciso simultaneamente evitar o sacrifício produzido pelo negacionismo e coletar provas de sua ineficácia, para ser responsabilizado adiante. Se o Congresso o blindar, existe o Supremo, se o STF não o punir, há o Tribunal Internacional.

A perda de espaço num Congresso fisiológico é menos importante do que o encontro da política com o sofrimento humano. Basta olhar para fora.


Fernando Gabeira: A política que mata

Há muito tempo que gostaria de escrever sobre outra coisa: a dimensão do realismo fantástico num país em que o presidente acha que vacina nos transforma em jacaré, oferece hidroxicloroquina para a ema do palácio e manda os jornalistas enfiarem uma lata de leite condensado no rabo.

Mas a urgência do drama proíbe digressão. Não absorvemos bem o que aconteceu em Manaus. Não quero dizer apenas que era necessário avaliar os estoques de oxigênio, planejar, em termos estratégicos, a produção e o consumo desse elemento vital.

Pazuello foi a Manaus defender a cloroquina e não percebeu a gravidade da falta de oxigênio. Quando percebeu a gravidade da falta de oxigênio, tarde demais, não percebeu outro fato decisivo: a presença de uma nova variante do coronavírus.

Desde quando os japoneses sequenciaram o mapa dessa variante em turistas que chegaram da Amazônia, era preciso acionar o alarme.

A variante brasileira tem características, ao que parece, semelhantes às mutações encontradas na Inglaterra e na África do Sul.

Todos se adaptaram de tal forma que podem se propagar com mais facilidade. Boris Johnson imediatamente decretou um lockdown para conter a nova onda que estava a caminho.

No Brasil, confirmada a existência da variante, não houve um debate nacional sobre o que fazer diante desse novo perigo. Na verdade, a variante brasileira é mais destacada nos jornais estrangeiros do que nos nossos.

Parece que, no Brasil de Bolsonaro, adotamos aquele velho lema: desgraça pouca é bobagem. Pazuello decidiu transferir os doentes de Manaus sem cuidados especiais de segurança. O aeroporto de Manaus durante algum tempo foi muito usado pelas UTIs aéreas que saíam do estado com os doentes mais ricos.

Somente Roraima e Pará, dois estados limítrofes, tentaram erguer uma tímida barreira sanitária. A variante já apareceu em São Paulo e no Rio Grande do Sul, sem contar seus voos mais longos: Estados Unidos e Alemanha.

Os voos do Brasil para Portugal foram suspensos. Biden manteve as restrições à entrada de brasileiros.

Muitos já notaram que Pazuello errou ao receitar hidroxicloroquina. Está sendo questionado por isso. Errou ao ignorar o avanço da crise de oxigênio, algo que não acontece de um momento para outro.

Mas não estamos cobrando do governo um projeto para conter a variante amazônica no norte do país. Na verdade, nem se toca no assunto, como se o vírus mutante fosse brasileiro e já tivesse o direito de circular livremente pelo nosso território.

Muito menos nos espantamos com o fato de os japoneses terem sequenciado e anunciado a variante. Na Fundação Oswaldo Cruz em Manaus, já era conhecida. Mas a verdade é que rastreamos pouco, sequenciamos pouco, por falta de recursos.

O negacionismo da política de Bolsonaro não se limita a tiradas verbais. Ele tem uma tosca base teórica. Prefere gastar com remédios a gastar com vacina e não se preocupa com testes. Milhares deles foram abandonados num galpão de São Paulo. O que adianta conhecer e monitorar? O que adianta sequenciar mutações de vírus?

Pelo que li, o governo já sabe que uma nova onda virá, dobrando o número de mortos. Diz que vai correr atrás da vacina. Para milhares de vidas, será tarde demais.

Quando Bolsonaro pagará por isso? Quem quiser pesquisar desde o início as frases, decisões, atitudes, omissões vai recolher um acervo, mais amplo ainda do que o enviado ao Tribunal Internacional.

Quando vejo Pazuello respondendo ao TCU pela compra da cloroquina, à PF pela omissão em Manaus, a sensação que tenho é de que tudo é um único e indivisivel processo: a história da negação e as mortes que ela produz diariamente no Brasil.E ele é apenas o homem que obedece.


Fernando Gabeira: O Plano B somos nós

Vamos esperar que Bolsonaro se ilumine?

Para o Brasil escapar de tragédias maiores, precisa vacinar 150 milhões de pessoas no prazo mais rápido possível.

O governo é incapaz de realizar esse plano de vacinação. Faltam vontade, competência e habilidade diplomática. Qual é a saída?

Derrubar o governo não basta. É preciso também tentar, simultaneamente, salvar vidas, pois, cada vez mais, elas estão em jogo.

Se todos compreendessem a urgência dessa tarefa, veriam que, na realidade, podemos contar com o próprio esforço. Bolsonaro e Augusto Aras nos ameaçam com um golpe, é tudo que sabem fazer. São tão estúpidos que nem percebem o mundo que os envolve.

E é sobre o mundo que precisamos conversar. As relações internacionais não podem ser monopólio de um pequeno grupo de fanáticos. Precisamos, de todas maneiras, romper o isolamento do país e deixar dentro de suas linhas estreitas apenas o governo e seus seguidores.

Precisamos de vacina num momento em que não há abundância: grande parte já foi comprada pelos países ricos.

Percebo que os governadores se movem mas encontram dificuldades. Para um só estado, se colocar no mercado internacional é difícil. Mas talvez não seja tanto para um consórcio de estados. A Bahia e outros estados do Nordeste poderiam tentar fechar negócio com a Sputnik V. Não há autorização da Anvisa? Ela é muito parecida com a de Oxford, que já foi analisada. E já foi aprovada em muitos países.

A Argentina está capacitada a produzir a vacina Oxford-AstraZeneca. Vai exportar para a América do Sul, menos para o Brasil. Mas o Rio Grande do Sul não poderia estabelecer uma relação com o governo argentino e abrir uma exceção? Nesse movimento, poderia carregar também Santa Catarina.

O governo brasileiro proibiu empresas de comprar vacinas. Isso é inconstitucional. A obrigação do governo é fornecer vacinas gratuitas para todos e não se meter em iniciativas particulares.

Um pool de empresas poderia negociar com a Pfizer, a Moderna e a Janssen, que está por vir, e, além de vacinar seus funcionários, doar grandes partidas para a sociedade.

Naturalmente que um plano nacional de vacinação é mais eficaz. Mas o governo não consegue comprar tudo. A iniciativa passa para quem tiver as vacinas nas mãos; ninguém conseguirá evitar que os trabalhadores da saúde a apliquem, ainda que sejam vistos pelos burocratas como desobedientes.

É possível dizer que talvez seja tarde demais. A ineficácia do governo e seus preconceitos contra a China foram longe.

Mas, ainda assim, é possível estabelecer um diálogo com a China fora do âmbito do governo.

O problema é que ficamos dependentes de China e Índia. Juntas elas têm quase 3 bilhões de habitantes. Só na primeira fase, a Índia quer vacinar 300 milhões. A China pretende vacinar 50 milhões até o Ano Novo Lunar, que cai em 14 de fevereiro. É muita demanda interna.

Um movimento nacional pela vacina não seria mais apenas para pressionar Bolsonaro. Ele já é uma carta fora do baralho, na medida em que fracassou parcialmente na mais importante tarefa nacional.

A campanha publicitária pela vacinação já está sendo feita por artistas independentes. Se logramos, de alguma forma, negociar a vacina, talvez possamos romper com esse impasse doloroso.

É possível argumentar que talvez seja tarde. O ideal era ter compreendido isso antes, mas seria difícil nos convencer quando o fracasso do governo ainda não era nítido.

O vírus não vai embora. Pelo contrario, ele se adapta à realidade num ritmo mais rápido do que muitas cabeças humanas. Enquanto tivermos a pandemia, a vacina sera a única saída estratégica. Não há escolha.

Vamos esperar que Bolsonaro se ilumine? Ou que Ernesto Araújo torne-se simpático ao governo chinês ou mesmo ao americano?

Tanto na sua política internacional quanto nos conselhos cotidianos para romper o isolamento, ignorar máscaras, tomar hidroxicloroquina, eles nos levam à autodestruição.

Diante da grande tarefa, o governo é incapaz. Somos o plano B, se a sociedade não ocupar também esse espaço, travaremos uma estéril batalha verbal.


Fernando Gabeira: A realidade depois da festa

Chegada simbólica da vacina é uma esperança num país onde se morre afogado no seco

Às vezes é preciso tomar uma certa distância para entender o que se passa no Brasil. Não por esnobismo, mas pelo esforço se aproximar da realidade.

Não creio que se tenha festejado tanto a chegada da vacina em outros países do mundo. Certamente, nenhuma outra agência reguladora transmitiu sua análise das vacinas ao vivo. E em nenhum país o presidente da República se sentiu derrotado e, num ato falho, no dia seguinte disse: “Apesar da vacina”…

Tudo indica que foi vencida uma etapa do negacionismo. Mas em que contexto? Os casos de coronavírus continuam crescendo no País. Mais cidades podem ter dificuldade de suprir hospitais com oxigênio. Algumas nem têm hospitais, só pacientes com falta de ar.

A celebração da chegada das vacinas precisa ser confrontada com a necessidade mais ampla do País. Foram apenas 6 milhões de doses. Talvez possam ser ampliadas para pouco mais de 10 milhões, acrescidas das que serão envasadas pelo Butantan. Mas um programa de vacinação com o nível de eficácia das vacinas que temos terá de alcançar, no mínimo, 150 milhões de pessoas, o que significaria 300 milhões de doses. Como as conseguiremos, em que prazos?

Parece-me que no início o Estado de São Paulo negociou vacinas para a sua população. A ideia de alcançar o País inteiro surgiu depois, com a própria luta política e a falta de alternativas do governo negacionista.

Dependemos hoje da China e da Índia para os insumos necessários chegarem ao País e serem manejados por Butantan e Fiocruz. Um processo de vacinação de grande amplitude depende de planejamento, disciplina e continuidade, não se esgota nas fotos.

China e Índia têm, juntas, quase 3 bilhões de habitantes. Ambas iniciaram o processo de vacinação interno. A Índia quer começar com 300 milhões de vacinados, logo, vai precisar de 600 milhões de doses. Como esperar um fluxo permanente e seguro desses dois países?

O Brasil acha que comprou da Índia 2 milhões de doses da Oxford-AstraZeneca. Mas o nível de informação sobre o País é baixo, assim como precária é a atual habilidade diplomática brasileira. Adesivar um avião para buscar as vacinas é algo tão fora do ar que possivelmente ele seria apreendido no aeroporto de Mumbai.

Há pressão para que a demanda interna indiana seja atendida prioritariamente. Além disso, as exportações obedecem também a critérios geopolíticos. O discurso de China e Índia é o de contribuir para a humanidade. Mas disputam espaço na Ásia e certamente farão da vacina um instrumento desse jogo diplomático.

No caso da China, onde se produzem insumos para a Coronavac e AstraZeneca, além de suas prioridades geopolíticas, há ainda a hostilidade do governo Bolsonaro, manifestada às vezes de forma preconceituosa. Assim como o ministro Ernesto Araújo é a última pessoa que deveríamos escolher para negociar com Biden, também o é para negociar com a China.

De modo geral, não estaríamos tão despreparados para uma conversa com a China se a questão ideológica não tivesse prevalecido também no campo da telefonia 5G. Ao optar pela chamada rede limpa, influenciado por Trump, o governo brasileiro não só ameaça excluir os chineses, como adotar uma saída tecnológica mais cara para o consumidor brasileiro.

Nada disso era para ser tão grave se desde o meio do ano passado o governo tivesse compreendido o papel estratégico das vacinas. Preconceitos anticientíficos pesaram nas relações com a Pfizer, que, ao lado da Moderna, trabalha com uma técnica geneticamente avançada. Foi pensando nesse tipo de vacina que Bolsonaro lançou a célebre dúvida sobre seus efeitos, virar ou não jacaré.

Segundo as notas da própria Pfizer, poderíamos ter comprado, no mínimo, 30 milhões de doses, que já resolveriam 10% de nossas necessidades. E havia, evidentemente, a possibilidade de comprar mais. A questão tão problemática de conservar a vacina a menos 70 graus Celsius foi parcialmente resolvida pela própria Pfizer com a embalagem de gelo seco.

Não negociamos com a Moderna talvez pelo preço de suas doses. Mas nestas circunstâncias o preço tem de ser visto com realismo, considerando nível de eficácia, necessidade de mover a economia, alívio no sistema de saúde.

Essas duas vacinas têm uma desvantagem em relação às que foram contratadas pelo Brasil: não transferem tecnologia para serem produzidas aqui. Isso não derruba o fato de que eram necessários mais contratos, um leque maior de alternativas para enfrentar a situação, algo impossível para o universo mental de Bolsonaro. Seus preconceitos são muito mais variados que as alternativas: a vacina com RNA mensageiro transfigura a pessoa em jacaré, a vacina mais tradicional é chinesa e foi comprada por Doria.

A segunda onda da pandemia bate forte no Brasil. Com ela, variantes do coronavírus com mais capacidade de propagação. Infelizmente, o vírus se adapta mais rápido à realidade que o cérebro dos dirigentes.

A chegada simbólica da vacina é sempre uma esperança. Com ressalvas, ela chega a um país sufocado pela pandemia e pelo negacionismo. Falta oxigênio, morre-se afogado no seco.


Fernando Gabeira: Quando falta oxigênio

É preciso lembrar que o colapso em Manaus não está assim tão longe de outras regiões do Brasil. No Rio, chegamos ao limite

Escrevi um artigo sobre vários temas, sobretudo vacina, e sobre as pessoas morrendo por falta de oxigênio em Manaus.

Aos poucos, as pessoas morrendo por falta de oxigênio em Manaus foram deslocando os outros tópicos para o canto da página e ocuparam todo o espaço. Impossível falar de outra coisa quando há pessoas morrendo por falta de oxigênio nos hospitais.

Desde a semana passada, estava de olho em Manaus. Minha intuição indicava que a descoberta pelos japoneses de uma variante do coronavírus em turistas vindos da Amazônia merecia atenção.

Essas mutações do vírus, de um modo geral, se dão na proteína “spike” e facilitam a propagação. Os ingleses, que vivem um problema semelhante, perceberam e logo proibiram voos do Brasil.

Mas, ao mesmo tempo que perseguia as notícias sobre as mutações do vírus, acompanhava a crise nos hospitais de Manaus. Primeiro foi o alerta de que faltaria oxigênio. Depois vi uma entrevista do presidente do Sindicato dos Médicos do Amazonas, Mario Vianna, descrevendo o caos e dizendo que os doentes mais ricos estavam fugindo para o aeroporto em busca de salvação.

Cheguei a pensar na hipótese de que iriam isolar Manaus. Roraima fez uma barreira na Manaus-Boa Vista, e o Pará decidiu bloquear os viajantes pelos rios.

Pazuello estava em Manaus. Sua tarefa era encontrar uma saída para a crise emergencial. Vi imagens de cilindros de oxigênio sendo transportados pela Força Aérea. Mas Pazuello não conseguiu dimensionar a crise ou não soube reunir os recursos para evitar a tragédia. É um incapaz.

Mais uma vez, o governo trata a morte com indiferença. E não é uma atitude isolada. A Justiça decidiu cancelar o Enem em Manaus, e Bolsonaro recorreu dessa decisão sensata.

Na raiz dessa crise, está a tentativa do governo local de colocar restrições ao comércio num momento agudo da pandemia. Houve protesto de várias entidades, manifestações de rua, bandeiras, Hino Nacional.

Os bolsonaristas aplaudiram, assim como aplaudiram a revolta em Búzios. Segundo eles, o povo estava em luta pela liberdade contra decisões autoritárias. Esse discurso de Bolsonaro apela para a liberdade individual, num momento em que é necessária a cooperação.

O êxito de um discurso desse tipo se alimenta também do cansaço com as medidas de isolamento social e de algo, no meu entender mais estrutural. Jorge Luis Borges, falando dos argentinos, disse que eles são indivíduos e não cidadãos. Creio que algo parecido acontece aqui.

Isso torna mais fácil empurrar as pessoas para a morte, o que Bolsonaro e toda essa corrente de opinião têm feito com competência, negando não apenas a orientação científica, mas também a necessária disciplina social num tempo tão difícil.

Os americanos decretaram o impeachment de Trump porque ele insuflou uma ação violenta contra a democracia. Bolsonaro se recusa a aceitar a gravidade da pandemia e empurra as pessoas para a morte.

Estamos no limiar de uma campanha de vacinação. Ou, pelo menos, próximos de um ato de propaganda iniciando essa campanha. Mas as pessoas morrendo por falta de oxigênio em Manaus não nos deixam outro caminho, exceto lembrar: a política da morte está em curso, a cada minuto que nos atrasamos em nossa união para contê-la corremos o risco de estar matando também.

É preciso lembrar que o colapso em Manaus não está assim tão longe de outras regiões do Brasil. Já temos um índice de mais de mil mortos por dia. O crescimento dos casos em São Paulo é grande, e o próprio Hospital Albert Einstein cancelou a admissão das UTIs aéreas, aviões que trazem doentes de outros lugares do país. No Rio, chegamos ao limite.

A campanha de vacinação revela um planejamento precário e vacinas com um baixo nível de eficácia. Isso significa que teremos de vacinar muita gente para reduzir o número de casos e estancar o crescimento das mortes.

É muito difícil superar uma etapa dessa grandeza com um governo negacionista, incapaz e sem um traço de empatia com o sofrimento do povo brasileiro. Ele nos rouba oxigênio não só como indivíduos, mas como sociedade.

Para voltar a respirar, será preciso se desfazer do governo.


Fernando Gabeira: Um homem sentado no destino do país

Não há o que temer ao despachar figuras nefastas como Trump e Bolsonaro

Às vezes, é preciso escrever com simplicidade, sem o rigor das páginas editoriais ou a complexidade das teses dos cientistas políticos. Escrever apenas isto: há um homem sentado sobre o destino do Brasil, e suas pesadas e incômodas nádegas não permitem avanço e provocam mortes.

Nem sempre é fácil se livrar desse fardo. Nos Estados Unidos, finalmente, Trump será despachado, como um desses espíritos que se recusam a desencarnar.

Muitos viram na invasão do Capitólio apenas um problema para Biden. Não perceberam que se viviam ali os estertores de uma época, num dia cheio de boas-novas, como as eleições na Geórgia, que garantem aos democratas a maioria no Senado.

Manifestações às vezes enganam. Já participei de centenas na vida. Nem todas sobrevivem na balança da história. Sua fumaça confunde o que sobe e desce, o que nasce e morre no instante.

Não há o que temer no processo de despachar essas figuras nefastas, desde que, é claro, se façam previsões corretas e preparações adequadas.

Quando o coronavírus era uma realidade apenas em Wuhan, escrevi um artigo sobre ele. Previ que, em caso de chegada ao Brasil, a única resposta teria de ser nacional e solidária.

Bolsonaro sabotou essa resposta. Como se não bastasse, demitiu os ministros da Saúde que a aceitavam. Fomos reduzidos a reações atomizadas que, embora fiéis à orientação científica, não têm a mesma eficácia de uma coordenação central.

Ultrapassamos os 200 mil mortes. Não podemos dizer que Bolsonaro seja responsável por todas. Mas algumas, várias delas, devem-se a sua escolha e já bastariam para pesar eternamente na consciência de um homem do bem.

Desde o princípio da pandemia, a vacina apareceu como única saída estratégica, e o mundo científico se dedicou a ela. Bolsonaro preferiu remédios e desconfiou abertamente da vacina, inibindo uma planificação. O atraso que isso significa representa vidas perdidas e energia produtiva paralisada.

Bolsonaro diz que o país está quebrado e ele não pode fazer nada.

Há trilhões de dólares no mundo, de fundos de pensão, bancos, governos, prontos para ser investidos em projetos ambientais e socialmente responsáveis.

Mas todo esse dinheiro não pode vir para cá. Bolsonaro estimula a destruição das florestas e dos bichos com uma política do século passado. Ele e alguns apoiadores acham que americanos e europeus destruíram seu meio ambiente, agora é hora de destruir o nosso: dane-se.

Muitos políticos recusam o impeachment porque acham que podem fortalecer a quem se quer derrubar. Não foi assim nos EUA. Trump sobreviveu ao processo, mas acabou perdendo as eleições.

O problema agora é a existência da pandemia. Se Bolsonaro estivesse sentado apenas sobre o progresso econômico, o nível de gravidade seria menor.

No momento, estamos lutando desesperadamente para salvar vidas, num contexto social em que a fome ronda milhões.

Definido como o grande obstáculo, um homem sentado sobre o destino do país, a resposta simples seria removê-lo. Mas as circunstâncias exigem um esforço combinado, de tal forma que a luta pela vida seja também um passo para afastá-lo. Os dois fatores estão entrelaçados.

Um movimento pela vacina universal e gratuita não pode perder de vista a substância que imuniza, nem o responsável pela sua inexistência a esta altura da pandemia.

Estão dadas as condições para uma ampla articulação para salvar o país da morte. Assim como, guardadas as proporções, quando o Reino Unido se viu diante da ameaça de uma invasão hitlerista, todos os esforços do país convergiram num só sentido de proteção à ilha.

Escrevi: guardadas as proporções.

Muitos brasileiros acham que o país está no caminho certo, e não há o que defender. Nada como o bom debate numa atmosfera democrática. Muitos americanos achavam que Trump era o caminho.

No entanto lá se foi o Trump para o espaço sideral, amplo e aberto para receber terráqueos como ele.

Com trabalho e tolerância, poderemos construir nossa nave e também lançar aos ares o pesado corpo sentado sobre nosso destino.


Fernando Gabeira: Na marca do pênalti

No prontuário de Bolsonaro, não pesam só vidas humanas, mas todos os componentes da riqueza do Brasil

Bolsonaro fez parte de um seleto grupo de estadistas que negaram a pandemia. Em seguida, foi o único no mundo, ressalta o jornal “Le Figaro”, que se colocou negativamente diante da vacinação.

Ele foi escolhido como o pior corrupto do ano, pelo Organized Crime and Corruption Reporting Project. Coisa de comunistas? Os escolhidos anteriormente foram Putin, Maduro e Duterte.

Bolsonaro chegou ao fim de 2020 com 24 pedidos de impeachment acumulados na gaveta. Alguns comentaristas acham que ele zombou da tortura em Dilma Rousseff para desviar a atenção de seu fracasso diante da pandemia.

Mas é uma tática estúpida. Não se disfarça a morte com cheiro de morte, muito menos se esconde a desumanidade contra muitos, concentrando-a numa só pessoa.

O conjunto de declarações de Bolsonaro está registrado. Uma pandemia com quase 200 mil mortos não desaparece na história como um relâmpago no céu.

Ele contribuiu para que uma parte do povo brasileiro desafiasse o perigo da pandemia e colocasse em risco a própria vida e a dos outros.

Bolsonaro ignorou os apelos para que o Estado protegesse as populações indígenas. Por duas vezes, o STF devolveu ao governo a lição de casa que não consegue realizar: um plano eficaz para protegê-las.

No governo, Bolsonaro aumentou a destruição da Amazônia, queimou um terço do Pantanal, e o Cerrado perdeu 13 % de sua vegetação. No seu prontuário, não pesam apenas vidas humanas, mas espécies animais, plantas, enfim, todos os componentes da riqueza do Brasil.

Sua política arruína as chances de nos apresentarmos como uma potência ambiental, atraindo energias, capitais, poderosos governos, todos ansiosos por trabalhar conosco numa nova etapa da luta mundial pela sobrevivência das novas gerações.

Numa das suas últimas lives, Bolsonaro afirmou que não seria retirado da Presidência sem um motivo justo. Ninguém faria isso. Mas a situação muda de figura quando se consideram 200 mil mortes diante de um governo negacionista. Se isso não for um motivo justo para milhares de famílias que perderam seus entes queridos, o que será?

O auxílio emergencial aprovado pelo Congresso atenuou o impacto da posição inicial na imagem de Bolsonaro. A má vontade com a vacina atualizou sua culpa.

O general Pazuello tem responsabilidade, mas obedece a Bolsonaro. Só é formalmente um Sancho Pança.

Sancho seguia Dom Quixote, um símbolo permanente da humanidade. Assim mesmo, era capaz de alertar: olha mestre, olha o que senhor está falando.

Juntos, capitão e general arrastaram as Forças Armadas para uma política que nega sua proximidade com a ciência, lança dúvida sobre sua capacidade e chega a nos fazer duvidar dos critérios que levam alguém ao generalato.

A aventura da hidroxicloroquina, justificada pelo Exército como um conforto à população assustada, é um argumento religioso. Remédios são feitos para curar.

A pandemia revelou o abismo da desigualdade social. Entramos em 2021 sem resposta para milhares de pessoas necessitadas. Não só estamos longe de um contrato social, mas sendo cada vez mais empurrados para a barbárie.

Bolsonaro é a barbárie de que o capitalismo escapou no século passado, com a ajuda da social-democracia e de políticas sociais. E de que a globalização procura escapar, no século XXI, com as diretivas de governança sustentável e socialmente responsável.

No seu governo, vigora a tese de que o homem é o lobo do homem, de que os fortes sobrevivem de armas na mão. Não há chances de construir um país com essas ideias. A esperança em 2021 passa por nos livrarmos desse pesadelo, em condições ainda difíceis de movimento e contato físico.

Quando os valores humanos são negados tão radicalmente por um líder e seus fiéis que riem da tortura, é fácil compreender que a luta não é apenas por um país, mas pela sobrevivência da espécie.

No Brasil, a humanidade está em jogo. Muitos já compreendem, mesmo vivendo fora daqui, o potencial destrutivo dessa ameaça.


Fernando Gabeira: Olhar para a frente, sem raiva

O que dirá se avançamos ou não em 2021 é a coexistência de duas variáveis: o aumento no número de pessoas vacinadas e decréscimo nas contaminações

Andei levando pancadas na rede. São os mesmos de sempre como dizia o personagem de “Esperando Godot”.

Durante muitos anos, quase que solitariamente apontei os erros que poderiam nos conduzir ao desastre.

A ausência de autocrítica os leva a buscar, compulsivamente, culpados, como se eu fosse responsável por Bolsonaro e não os seus erros cometidos aos longo dos anos. Aliás, já os enfrentei em eleições como aliados de Sérgio Cabral.

Jamais votaria num Bolsonaro, conheço-o bem. Ao longo dos anos, mantive-me fiel a Marina Silva, no passado, vítima de impiedosa campanha do PT.

Apenas afirmei, assim que eleito, esperar que as instituições brasileiras triunfassem sobre Bolsonaro. A pandemia não estava nos cálculos, e sim o golpe de estado.

Quando senti a ameaça próxima de golpe, a denunciei e dispus-me a lutar contra, como se fosse a última luta de minha vida.

As pancadas me ensinam o avesso da lição. Elas me aconselham abertura para quem confiava resiliência democrática, para quem combateu Bolsonaro de forma ineficaz, para quem se absteve, votou em branco e até os que o elegeram e recuam horrorizados, diante do resultado de sua escolha.

É um caminho mais produtivo do que distribuir culpas.

Num grupo que discutiu o livro “O discurso da estupidez”, de Mauro Mendes Dias, recebi esta mensagem:

— Reflexão muito bem-vinda. Quanto mais pessoas puderem reconhecer a necessidade de mudar de posição, já estamos avançando. Um dos efeitos do discurso da estupidez é, exatamente, o de não poder mudar, seja pela devoção a crenças deformantes da realidade, seja devido ao gosto que ele suscita pela destruição do patrimônio de valores que nos tornam humanos.”

Nos tempos de internet, sempre haverá esses ataques maciços. É uma cultura: basta tirar uma frase do contexto. O importante é olhar para frente, sem raiva.

Diante de nós surge a esperança da vacina. O Brasil tem um bom sistema de imunização, dois centros de excelência para fabricá-la: Instituto Butantan e Fundação Oswaldo Cruz.

Mas há um grande obstáculo: o próprio Bolsonaro. Sua tática de sabotar a vacina é espalhar mitos como o perigo de a pessoa virar jacaré.

Além de cobrar a eficácia do processo, será necessária uma batalha pelas mentes e corações.

O que dirá se avançamos ou não em 2021 é a coexistência de duas variáveis: o aumento no número de pessoas vacinadas e decréscimo nas contaminações.

Um outro front onde será preciso unidade: a eleição na Câmara, de um modo geral, distante, intangível.

Naturalmente é uma escolha interna dos deputados, mas desta vez significa muito. Se Bolsonaro conseguir capturar a Câmara e eleger seu candidato, não precisará responder pelas acusações acumuladas, muito menos pelas que pode suscitar no futuro.

Daí a importância de se apoiar a Frente Democrática formada para eleger um candidato independente do governo.

Ela é um instrumento de maturidade política na qual desaparecem, ainda que momentaneamente, todos os ressentimentos. Abre caminho para experiências mais amplas de unidade, que podem ser decisivas para acabar com o pesadelo.

Constituída por diversas correntes de um só partido, esta unidade foi criada nos Estados Unidos e teve êxito na tarefa de evitar a reeleição de Trump.

O interessante é que ao passar por uma experiência quase tão devastadora como estamos passando no Brasil, foi possível mobilizar a partir de um tema que parece abstrato e etéreo: a reconquista da alma do país. Para Biden, a alma representa os valores e instituições americanos.

Os países têm alma e ela pode ser reconquistada? É algo que daria uma longa discussão. Muitas pessoas que viram o show do Caetano Veloso, por exemplo, sentiram-se de volta ao seu país perdido. Outras manifestações artísticas podem ter o mesmo efeito num Brasil tão diverso. É apenas uma pista.

A outra, se me permitem a rápida menção ao período de festas, é que já fomos mais fraternos, apesar das divergências. No tempo da luta pelas diretas, por exemplo.

O que se perdeu com a política pode ser reconquistado através dela. Pelo menos, são os meus votos.