Fernando Gabeira
Fernando Gabeira: Anatomia da política de negação
Pode ser que a CPI da pandemia descubra fatos novos, que revolucionem nossa visão do problema. Caso isso não aconteça, e é provável que não aconteça, já é possível, pelo menos, escrever o argumento desse filme, abstraindo os lances e peripécias de um roteiro.
Na base de tudo está a negação da pandemia por Bolsonaro. Esse conceito de negação foi lançado por Freud em 1923. E numa carta de 1937, escrita para um colega, ele cita o rei Boabdil, que ao receber a notícia de que a capital de seu reino, Alhambra, estava sitiada mandou queimar a carta e decapitar o mensageiro.
Bolsonaro não poderia aceitar a pandemia com os problemas econômicos que trazia e, sobretudo, a ameaça de sua reeleição. De certa forma, ele queimou a carta enviada pelos cientistas e decapitou os ministros que insistiam no tema.
Sua tese era de que a economia precisava seguir seu curso. Para fundamentá-la era preciso buscar algo aparentemente científico. A tese da imunização de rebanho foi a tábua de salvação. Todos se contaminariam de um modo ou de outro, pensava Bolsonaro, então que se contaminassem logo para voltarmos à normalidade.
Ele abstraiu o número de mortes implícito nessa escolha. Na verdade, era preciso trazer também a esperança de cura, uma espécie de bala de prata contra a covid-19: a hidroxicloroquina. O remédio era uma resposta simples para um problema complexo. Todos se contaminam, todos se salvam pela hidroxicloroquina
Essa negação, que teve o momento máximo quando classificou a covid como apenas uma “gripezinha”, precisava ir adiante na negação. Se a covid-19 não tinha importância, por que gastar fortunas com vacinas? Numa de suas declarações mais claras sobre o tema, Bolsonaro disse preferir gastar dinheiro com remédio a comprar vacinas.
Mais tarde voltou ao tema, criticando a “vacina chinesa de Doria”, a Coronavac, e terminando por lançar suspeitas também sobre as vacinas que usam a técnica de mensageiro RNA, no caso da Pfizer: se quiser virar jacaré, ou ver mulher de barba ou homem falando fino, tome a vacina.
Ao longo desse tempo, o número de mortos aumentava e Bolsonaro mantinha sua frieza: não sou coveiro. Era algo previsível em sua tática.
Daí o desencontro entre seu comportamento e o que esperava a imprensa. Por que evitar aglomerações, se todos vão mesmo se contaminar? Por que usar essas opressivas máscaras? Se vamos chegar a uma situação de normalidade, é melhor todos se contaminarem rapidamente.
Olhando em torno, no universo particular de seu Palácio do Planalto, a teoria da contaminação de rebanho ia muito bem: 460 funcionários se contaminaram até abril.
A história pode ser contada assim, até mesmo no embate entre Bolsonaro e governadores. Ele quer a volta de todos ao trabalho e está disposto a fazer tudo para conquistar “essa liberdade”.
São duas concepções em jogo. Uma quer que as pessoas se vacinem, não se aglomerem, usem máscaras e lavem as mãos. A de Bolsonaro é a volta ao trabalho, o fluxo pleno da economia.
Quando for concluído o relatório da CPI, é possível fazer como se fez nos Estados Unidos: convidar um grupo de sanitaristas para examinar uma por uma essas decisões, ou mesmo hesitações. Aqui, como lá, também seria possível os especialistas calcularem o número de mortes que poderiam ter sido evitadas com as escolhas corretas.
Portanto, um minucioso trabalho de coleta de dados da CPI e um relatório que articule esses dados ainda serão insuficientes. Será necessário quantificar as suas consequências.
Nesse momento, Bolsonaro pelo menos terá uma defesa. Não têm razão aqueles que o acusam por todas as mortes pela covid-19 no Brasil. Ele teria de responder apenas por uma parte delas.
Quando a CPI encerrar seu trabalho, o número total de mortos no Brasil, segundo uma previsão da Universidade de Washington, será de 600 mil pessoas. Quantas podem ser atribuídas a uma escolha política de rasgar a carta e decapitar o mensageiro?
Ainda faltam detalhes à história. Até que ponto a vacinação no Brasil seguirá em ritmo lento? Até que ponto os atrasos na remessa de IFAs não são uma represália chinesa às declarações de Bolsonaro?
A Coronavac está no braço de 80% dos vacinados no Brasil. Bem ou mal, dependemos dela para uma vacinação em massa, até o momento. Da Índia dificilmente virá alguma coisa, pois a crise lá é profunda e o próprio Instituto Serum está sob forte pressão. A Pfizer fechou um negócio de 1,5 bilhão de doses com a Europa. Vai estar sobrecarregada.
Nesse contexto, provocar um rompimento com a China é apenas o lance final da estratégia de imunização de rebanho, que, na verdade, poderia ser chamada de extermínio de rebanho.
Isso coloca a CPI diante de outra tarefa, mais imediata do que compilar os dados e determinar responsabilidades. É preciso um núcleo de emergência, a busca de algumas medidas que possam salvar vidas enquanto o trabalho transcorre. E isso se vai dar no campo das vacinas, vencida, como parece ter sido, a batalha da hidroxicloroquina.
JORNALISTA
Fonte:
O Estado de S. Paulo
https://opiniao.estadao.com.br/noticias/espaco-aberto,anatomia-da-politica-de-negacao,70003714359
Fernando Gabeira: Morrendo pela boca
Pode ser que eu esteja maluco. Morreu há muitos anos o amigo Chico Nélson, que me socorria nesses momentos de dúvida e dizia: “Tranquilo, você está lúcido”.
Nada me impressiona mais na sequência de bobagens diárias de Bolsonaro do que esta pergunta: “Será que não estamos enfrentando uma nova guerra?”.
O presidente da República é, pela Constituição, o comandante das Forças Armadas. Se ele se volta para nós e pergunta se estamos enfrentando uma guerra, deixa-nos tão inseguros quanto os passageiros de um avião questionados por um piloto ao aterrissar: “Será que estamos com o trem de pouso acionado?”.
O contexto da pergunta é claro: o presidente duvida da origem do coronavírus. Essa é uma dúvida que circulou no ano passado, com inúmeras reportagens investigativas sobre o laboratório de Wuhan de onde o vírus poderia ter escapado.
Nenhuma delas foi convincente. A Austrália duvidou do papel da China e pediu oficialmente uma investigação. Você pode ou não concordar com a medida, mas é muito mais sério do que ficar reclamando pelos cantos, como faz a família Bolsonaro.
A OMS constatou em Wuhan que a hipótese de o vírus ter escapado do laboratório é improvável, fortalecendo a ideia de uma transmissão por animais.
A China é um país com grande crescimento material e uma visão estratégica de longo alcance. É um absurdo imaginar que disseminaria um vírus em sua própria população, correndo um risco gigantesco, apenas para atingir os outros.
Essa é uma tese de gente que acha que o Partido Democrata americano é composto de pedófilos que se reúnem no porão de uma pizzaria.
Apesar de admirar a riqueza e a cultura tradicional da China, não creio que possa ser qualificado de um maldito comunista. Pelo contrário. Quando deputado, participei de uma coalizão internacional pelo Tibete livre. Convidei o Dalai Lama para falar no Congresso brasileiro, briguei com o Itamaraty quando, sob pressão da China, hesitou em conceder o visto de entrada ao líder religioso.
É possível e necessário discordar da política de grandes potências, EUA ou China, desde que se parta de convicção profunda, assumindo as consequências dessa discordância.
É inadmissível um presidente da República difundir fake news e teorias da conspiração contra a China, sem nem assumir que está falando do país.
É possível que a Austrália sofra alguma retaliação comercial por se opor à China abertamente. No caso brasileiro, o elemento covardia talvez seja uma agravante porque Bolsonaro fala de um vírus, fala de um país que cresceu após a pandemia, mas não assume que se referia à China.
No momento em que está acossado pela CPI, essas referências ao coronavírus como se fosse um ato de guerra dos chineses mostram como Bolsonaro realiza profundamente aquilo que denuncia em seus opositores: a politização da pandemia.
É um movimento patético, porque Bolsonaro é acusado de um negacionismo que contribuiu com a morte de muita gente. Nesse caso, rigorosamente não importa se o vírus foi ou não difundido pelos chineses nessa fantástica guerra; o que importa é se ele mata ou não.
A ideia de ignorar o vírus e tocar a economia como se nada estivesse acontecendo é uma leitura bárbara da teoria de imunidade de rebanho. É um tipo de estratégia a ser realizada pela vacinação e por outras medidas de segurança, jamais pela exposição à morte de milhares de pessoas.
A política internacional tornou-se mais complexa com a ascensão da China e o relativo declínio dos Estados Unidos. Nossa vida cotidiana foi atropelada pela pandemia.
Nunca foi necessária tanta habilidade de um estadista para posicionar o Brasil no mundo e, simultaneamente, conduzir uma política interna de proteção da vida.
Bolsonaro jamais se interessou pela política internacional, jamais se interessou por salvar vidas, mas apenas por tocar a economia e salvar seu mandato.
Homem errado no lugar errado é a grande causa de nosso sofrimento.
Fonte:
O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/opiniao/post/morrendo-pela-boca.html
Fernando Gabeira: O general pulou a cerca
Tive um avô que comia doce escondido, fugindo das prescrições médicas. Lembrei-me dele quando o general Luiz Eduardo Ramos confessou que tomou vacina escondido, para respeitar a medicina e a ciência:
— Tomei e vou ser sincero. Como qualquer ser humano, quero viver, pô.
As coisas mudaram no Brasil de hoje. Um general do Exército toma vacina escondido porque sabe que, para o governo a que está ligado, isso é uma heresia.
O que o general esconde é para ele o impulso de qualquer ser humano. Se for um pouco mais longe, perceberá que está presente em todos os seres vivos.
O belo documentário sobre os ensinamentos de um polvo mostra suas estratégias de sobrevivência, ora caçando um camarão, ora escapando de um tubarão, ou mesmo colocando seus ovos em lugar seguro. Além de sobreviver, os seres vivos tendem a perpetuar sua espécie, general.
Na mesma gravação em que confessa sua escapada para a vida, o general Luiz Eduardo Ramos afirma que está na luta para convencer Bolsonaro a se vacinar também:
— Não podemos perder o presidente para um vírus desses.
Mas, de certa forma, o general e alguns eleitores de Bolsonaro já o perderam para o vírus desde o momento em que o presidente decidiu negá-lo. Bolsonaro não poderia combater o que não existe, o que não é mais do que uma gripezinha.
Um general sensato deveria parar para pensar um pouco na história. Num passado recente, os adversários eram postos na clandestinidade. Mas hoje é o próprio impulso vital que se torna clandestino no interior do governo.
Indo um pouco para trás, encontraremos presidente que se suicidou no auge de uma crise, mas nunca houve presidente que escolhesse o suicídio como um estilo de vida.
Depois de comandar o Ministério da Saúde, o general Pazuello, investigado por negligência nas mortes de Manaus, foi a um shopping center sem máscara.
Ele manteve um nível de obediência total a Bolsonaro, mostrando-se o aliado fiel, aquele que marcha com seu líder ainda que seja para a sepultura.
A travessura do general Ramos é apenas uma das pequenas brechas em que a vida consegue penetrar o fúnebre edifício do governo Bolsonaro. Mas sua própria confissão indica como está enterrado nesse pântano cadavérico.
Ele não tem vergonha de querer viver como os outros seres humanos. Mas também não se orgulha disso nem celebra o ato vital de se vacinar. É apenas uma contingência, pô.
Aliás a expressão “pô” é uma forma simplificada porque achamos na imprensa que, depois de tudo por que passaram os brasileiros, ainda não podem ler certas palavras cruas.
De modo geral, não me interessam generais que se enterram ou mesmo os que põem rapidamente a cabeça de fora.
Eles são apenas a guarnição militar de um projeto de morte que, desvelado para a maioria do país, certamente não sobrevive depois de 22.
O problema é que esse projeto domina hoje o país onde vivo e se espalha além dos mais de 400 mil túmulos que cavou com a pandemia. Ele nos retira o Censo para que não saibamos exatamente quantos somos e que problemas concretos temos de enfrentar. Ele nos impõe e aprova um Orçamento com verdadeiros cheques em branco para políticos.
Enfim, não basta conduzir um projeto de morte, mas é necessário também romper com os elementos de orientacão e planejamento coletivos.
É como se tivéssemos que marchar de olhos fechados para o nosso próprio cadafalso. É um plano meticuloso que se estende à escuridão, ao imposto sobre os livros, para que se feche também essa janela para o mundo.
Houve um pastor que levou seus fiéis ao abismo nas Guianas. Chamava-se Jim Jones. Mesmo para alguém como eu, que não acredita em reencarnacão, as coincidências são assustadoras.
Durante muito tempo se pensou em suicídio coletivo, mas o que prevaleceu foi a tese do assassinato em massa.
Fonte:
O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/opiniao/post/o-general-pulou-cerca.html
Fernando Gabeira: O general pulou a cerca
Tive um avô que comia doce escondido, fugindo das prescrições médicas. Lembrei-me dele quando o general Luiz Eduardo Ramos confessou que tomou vacina escondido, para respeitar a medicina e a ciência:
— Tomei e vou ser sincero. Como qualquer ser humano, quero viver, pô.
As coisas mudaram no Brasil de hoje. Um general do Exército toma vacina escondido porque sabe que, para o governo a que está ligado, isso é uma heresia.
O que o general esconde é para ele o impulso de qualquer ser humano. Se for um pouco mais longe, perceberá que está presente em todos os seres vivos.
O belo documentário sobre os ensinamentos de um polvo mostra suas estratégias de sobrevivência, ora caçando um camarão, ora escapando de um tubarão, ou mesmo colocando seus ovos em lugar seguro. Além de sobreviver, os seres vivos tendem a perpetuar sua espécie, general.
Na mesma gravação em que confessa sua escapada para a vida, o general Luiz Eduardo Ramos afirma que está na luta para convencer Bolsonaro a se vacinar também:
— Não podemos perder o presidente para um vírus desses.
Mas, de certa forma, o general e alguns eleitores de Bolsonaro já o perderam para o vírus desde o momento em que o presidente decidiu negá-lo. Bolsonaro não poderia combater o que não existe, o que não é mais do que uma gripezinha.
Um general sensato deveria parar para pensar um pouco na história. Num passado recente, os adversários eram postos na clandestinidade. Mas hoje é o próprio impulso vital que se torna clandestino no interior do governo.
Indo um pouco para trás, encontraremos presidente que se suicidou no auge de uma crise, mas nunca houve presidente que escolhesse o suicídio como um estilo de vida.
Depois de comandar o Ministério da Saúde, o general Pazuello, investigado por negligência nas mortes de Manaus, foi a um shopping center sem máscara.
Ele manteve um nível de obediência total a Bolsonaro, mostrando-se o aliado fiel, aquele que marcha com seu líder ainda que seja para a sepultura.
A travessura do general Ramos é apenas uma das pequenas brechas em que a vida consegue penetrar o fúnebre edifício do governo Bolsonaro. Mas sua própria confissão indica como está enterrado nesse pântano cadavérico.
Ele não tem vergonha de querer viver como os outros seres humanos. Mas também não se orgulha disso nem celebra o ato vital de se vacinar. É apenas uma contingência, pô.
Aliás a expressão “pô” é uma forma simplificada porque achamos na imprensa que, depois de tudo por que passaram os brasileiros, ainda não podem ler certas palavras cruas.
De modo geral, não me interessam generais que se enterram ou mesmo os que põem rapidamente a cabeça de fora.
Eles são apenas a guarnição militar de um projeto de morte que, desvelado para a maioria do país, certamente não sobrevive depois de 22.
O problema é que esse projeto domina hoje o país onde vivo e se espalha além dos mais de 400 mil túmulos que cavou com a pandemia. Ele nos retira o Censo para que não saibamos exatamente quantos somos e que problemas concretos temos de enfrentar. Ele nos impõe e aprova um Orçamento com verdadeiros cheques em branco para políticos.
Enfim, não basta conduzir um projeto de morte, mas é necessário também romper com os elementos de orientacão e planejamento coletivos.
É como se tivéssemos que marchar de olhos fechados para o nosso próprio cadafalso. É um plano meticuloso que se estende à escuridão, ao imposto sobre os livros, para que se feche também essa janela para o mundo.
Houve um pastor que levou seus fiéis ao abismo nas Guianas. Chamava-se Jim Jones. Mesmo para alguém como eu, que não acredita em reencarnacão, as coincidências são assustadoras.
Durante muito tempo se pensou em suicídio coletivo, mas o que prevaleceu foi a tese do assassinato em massa.
Fonte:
O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/opiniao/post/o-general-pulou-cerca.html
Fernando Gabeira: As voltas que a vida dá
Bolsonaro investiu contra a vida liderando a maior política de destruição ambiental do Brasil moderno. E investiu de novo contra a vida negando a pandemia do coronavírus.
A vida começa agora a cobrar de forma combinada os crimes de Bolsonaro. Numa só semana, convergiram a Cúpula de Líderes sobre o Clima e a CPI da Covid, eventos que lembram a Bolsonaro que sua própria vida ficará para sempre marcada por seu desprezo à vida das florestas e dos bichos e pelo sacrifício humano envolto na tese da imunização de rebanho.
Por mais que psicólogos mergulhem no labirinto da mente de Bolsonaro, nenhuma explicação atenua o dado objetivo de tantas árvores derrubadas, tantos animais carbonizados, tantas pessoas mortas pelo coronavírus.
A economia explica apenas parcialmente. Bolsonaro acha que é preciso tirar todos os recursos da natureza, independentemente do rastro de destruição. Da mesma forma, ele acha que a economia precisa funcionar, independentemente das pessoas que o vírus consome.
A verdade é que Bolsonaro não se importa tanto com a economia, não estuda o tema e, ao se eleger, designou um ministro para responder a todas as perguntas, a quem chamou de Posto Ipiranga. O que move o presidente não chega a ser, portanto, nem uma teoria econômica, por mais grosseira e obsoleta que possa parecer.
Tanto na destruição das florestas como na tragédia humana diante do vírus, o que move Bolsonaro é sua vontade de permanecer no poder.
A floresta interessa na medida em que garanta os votos dos seus predadores; as pessoas podem morrer para que uma suposta normalidade econômica garanta a reeleição.
É muito conhecida a literatura sobre essa obsessão com o poder, a necessidade de respeito e até admiração que os poderosos obtêm quando se revestem dessa condição que lhes parece mágica.
Mas o caso de Bolsonaro é singular. Existe uma coerência em todas as suas escolhas. A morte é a grande aliada desde a opção destrutiva no ambiente e na pandemia, passando pela difusão das armas, chegando até a detalhes como suprimir multas de quem se descuida da cadeirinha do bebê no carro.
Essa aliança com a morte pode ser também o resultado de uma grande frustração com a própria vida. Mas, de novo, deixo isso aos psicólogos ou àqueles que preferem combater Bolsonaro no plano da sanidade mental.
Por meio de grandes episódios como a Cúpula do Clima e a CPI da Covid, entretanto, é possível compreender o antagonismo de Bolsonaro com todos todos os tipos de vida no planeta.
E refletir sobre isso. Não importa a Bolsonaro se o país se tornar um deserto, muito menos se os que ele considera mais fracos forem tombando pelo caminho.
Nunca na história moderna do país a indiferença diante da realidade política poderá ter consequências tão devastadoras para nosso futuro.
A Cúpula do Clima serve para mostrar a importância da luta da Humanidade para a sobrevivência das novas gerações e a contradição de Bolsonaro com essa gigantesca reação vital.
Ali, ele apenas mentiu, supondo que possa enganar o mundo. Seu objetivo sempre foi desmontar a fiscalização, acabar com a “indústria da multa”, liberar o garimpo e enfraquecer os povos indígenas.
A CPI da Covid servirá para revelar aquilo que muitos de nós já sabemos. Mas pode fazê-lo de uma forma séria e pedagógica para que todos compreendam a responsabilidade de Bolsonaro.
Essas duas vertentes, a ambiental e a sanitária, sempre estiveram aí enquanto, de uma certa maneira, Bolsonaro gritava “Viva la muerte”, como o oficial do Exército de Franco.
É estranho que esse grito tenha dominado um país mundialmente conhecido pela vitalidade. Imperdoável, no entanto, que ele possa ecoar em 22, o prazo final para o encerramento dessa fúnebre passagem da História do Brasil.
Fernando Gabeira: Bem-vindos à Neverlândia
A França cortou os voos com o Brasil, e o primeiro-ministro Jean Castex provocou risos no Parlamento ao falar do uso da hidroxicloroquina por aqui.
Isso que chamam de Brasil soa cada vez mais distante para mim. Guardo um país no escaninho da memória, mas o lugar onde vivo hoje costumo chamar de Neverlândia.
É um lugar realmente estapafúrdio, onde um Bolsonaro presidente troca ideias ao telefone com um senador Kajuru e ameaça dar porradas num quadro da oposição.
No final de tudo, o senador Kajuru está sendo processado por uma apresentadora de TV que ele ofendeu em entrevista, após a conversa com o presidente. Tudo na verdade parece um enredo televisivo, filmado com a luz de padaria e um cenário com cores berrantes.
Em Neverlândia, o presidente incorpora um personagem do programa “Casseta & Planeta”, chamado Maçaranduba, obcecado por dar porradas.
Em Neverlândia , o ministro do Meio Ambiente é acusado pela polícia de se associar a desmatadores para protegê-los da investigação e processo criminal. Isso jamais aconteceu no país chamado Brasil, agora envolto em névoa, pairando sobre meus cansados neurônios.
Em Neverlândia, políticos ainda hesitam em apurar o que acontece, apesar de mais de 370 mil mortos, de a maioria da população ter fome e de alguns doentes amarrados na cama, por falta de sedativos e relaxantes musculares.
Em Neverlândia, um vereador mata um menino a pancadas, e a mãe marca hora com a manicure.
Aquele país chamado Brasil nunca foi perfeito. Seus orçamentos eram irreais. Mas, depois que se transformou, surgem ideias como mandar o líder da Neverlândia para o exterior, para que não o punam pelos crimes fiscais.
A ideia não vingou, não porque era absurda, mas pelo fato de não ter para onde ir: as portas do mundo estão fechadas. Não há saída para quem vive na Neverlândia. A única possibilidade real é buscar de novo aquele país chamado Brasil, que escapou entre os dedos até se tornar isso que está aí.
Será um reencontro difícil. Há muitos Maçarandubas por aí, querendo dar pancadas. Apenas pelos músculos, não são assim tão perigosos. O problema é o crescimento do número de armas, um dos pontos básicos na transição para a Neverlândia.
Para reencontrar o Brasil, é preciso admitir que a Neverlândia sempre esteve por aqui, como uma espécie de mais um estado, não um espaço físico da Federação, mas um estado de espírito.
Nunca conseguiremos mandá-lo integralmente para as terras do nunca mais. O que não é possível é deixar que substitua o Brasil.
Éramos um país feliz, lembram? Havia energia, criatividade no ar. Era o que sentiam os que nos visitavam nos tempos de Brasil. A felicidade era, indiretamente, uma atração turística.
A pandemia revelou o que sabíamos, mas jamais encaramos de frente, que são nossas desigualdades. Ao explodir num momento de trevas num governo de obtusos negacionistas, ela provocou uma tempestade perfeita.
A sobrevivência de países em momentos históricos excepcionais depende da capacidade de unir forças, conjugar talentos e vontades.
Quando se trata de um inimigo externo e visível com o estrago de suas bombas, o trabalho de unir é mais fácil.
Estamos diante de um inimigo invisível, o vírus, e de um adversário interno: a extrema-direita, que sempre existirá, mas jamais nos representará, pois a soma dos seus erros e iniquidades nos transfigurou em Neverlândia.
Diante de tudo isso, a tarefa essencial é recuperar o país chamado Brasil, com o menor número de mortos. Os lideres de Neverlândia eleitoralmente se desmancham com sua própria incompetência.
Mas e os mortos? Na Neverlândia morre mais gente do que nasce. Como estancar a mortandade e chegar vivo a 2022? É uma pergunta que deveria ofuscar todas as pequenas questões políticas, ciúmes e rancores que acabam sendo também uma forma de interiorizar a morte.
Fernando Gabeira: O som e a fúria em Brasília
Com um governo negacionista como o de Bolsonaro despontamos para o atraso
Não é fácil entender a política brasileira, mas quem se detiver, esta semana, nos dois mais intrincados nós a serem desatados em Brasília talvez chegue a algumas conclusões interessantes. Os dois nós são a CPI da pandemia e a inadequação do Orçamento da União.
No primeiro, o governo é acusado de omissão no processo de combate ao vírus que já nos custou mais de 360 mil vidas e poderá custar 600 mil até julho, segundo prognósticos da Universidade de Washington. Acusações e mesmo investigações sobre a atuação de Bolsonaro na pandemia não são novas. Há processos no Tribunal Internacional de Haia e inquéritos como o das mortes em Manaus, em que Eduardo Pazuello é o principal investigado.
Bolsonaro é acusado de negacionismo e, realmente, tem negado a importância da pandemia desde o início. Era previsível que surgisse uma CPI sobre o tema no Congresso, uma vez que os parlamentares estavam de quarentena, mas não mortos.
Eleito com apoio de Bolsonaro, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, bloqueou a instalação da CPI. Quando, numa entrevista, perguntei a razão do bloqueio, ele respondeu com os argumentos usais de que é preciso união, foco no combate à doença. Na verdade, usou o argumento da própria pandemia para negar direitos legais, algo que muitos governos autoritários tentam fazer no mundo.
A reação de Bolsonaro à CPI foi uma nova forma de demonstrar seu negacionismo. Ele sabe que CPI, além do número legal de assinaturas, precisa de fato determinado. Na conversa gravada com o senador Kajuru, ele pede que a investigação seja estendida aos prefeitos e governadores. É preciso investigar tudo, diz ele. E nós sabemos que essa é a senha para não investigar nada.
A proposta é quase tão absurda quanto chamar a covid-19 de gripezinha ou insinuar que a vacina transforma gente em jacaré. O Senado teria de usar seus recursos limitados para investigar todo o Brasil, sabendo que 11 Estados já fazem essa investigação e em dois, Rio de Janeiro e Santa Catarina, os governadores investigados já foram afastados do cargo.
Isso tudo sem contar o fato de que a Polícia Federal trabalha no tema em nove Estados e já recuperou em torno de R$ 7 milhões desviados, até com incursões em gabinetes de governador, como no caso de Helder Barbalho, no Pará.
Bolsonaro convidou o Senado à dispersão de esforços para se proteger. E não satisfeito em lançar mão de Estados e municípios como escudo, quer que se abram processos contra ministros do Supremo.
São duas lições importantes sobre a política no Brasil. Acusados tentam sempre ampliar as investigações para desaparecerem nela, e quase sempre alegam que todos estão errados. No caso, a ideia é pôr a limitada estrutura do Senado a investigar todo o Brasil e, simultaneamente, tentar cassar membros do Poder Judiciário.
Em outras palavras, a melhor maneira de investigar a omissão criminosa de Bolsonaro é uma ofuscante e laboriosa atividade cujo resultado pode ser nulo. É uma nova pirueta do negacionismo. Não houve pandemia, muito menos responsáveis pela mortandade. A CPI seria apenas, como em Macbeth, uma história, contada por idiotas, cheia de som e fúria, significando nada.
O nó do Orçamento também é interessante, por mostrar que se tornou um instrumento tão precário que não serve nem para um desgoverno como esse que existe hoje no Brasil. Negociações medíocres entre governo e Congresso acabaram fazendo a balança pender para alguns ministérios e, sobretudo, para o lado dos parlamentares.
Não se sabe onde vai parar parte do dinheiro da Previdência, do seguro-desemprego, do financiamento da agricultura familiar. O próprio Paulo Guedes afirma que com esse Orçamento é impossível prosseguir e teme até o impeachment de Bolsonaro. Como sempre, a conta está um pouco mais alta: R$ 33 bilhões.
O que é esclarecedor sobre o Brasil são as soluções discutidas nos bastidores. Aí, sim, o observador conhecerá um pouco da nossa cultura, seguindo o debate. Uma das propostas para livrar Bolsonaro de processo é uma viagem ao exterior. O Orçamento seria assinado por Arthur Lira, que já está queimado mesmo e serviria de escudo para o presidente.
Também muito didática é a troca de ideias entre Guedes e os parlamentares. O ministro propõe que sejam cortados os R$ 33 bilhões e se façam ajustes lá na frente. Os parlamentares propõem que sejam mantidos e se façam ajustes lá na frente. Uma ausência tão completa de planejamento é também uma espécie de negação do governo. O Orçamento é apenas para tocar os assuntos correntes.
O problema é que essa ausência de governo real assusta até o mercado. Hoje apenas por ser uma dispendiosa ausência. Logo o próprio mercado sentirá falta de um governo com projetos de renovação pós-pandemia.
Nos Estados Unidos discute-se uma nova relação entre governo e forças produtivas, trabalha-se com a consciência de um desastre climático, aprofunda-se a experiência digital. O Brasil costuma levar alguns anos para se sintonizar com o mundo. Quase sempre foi assim, mas com um governo negacionista certamente despontamos para o atraso.
*Jornalista
Fernando Gabeira: Do paraíso ao inferno tropical
Não consigo deixar de quebrar a cabeça para explicar nosso fracasso diante da pandemia. Pareço aquele personagem do romance de Vargas Llosa “Conversa na catedral”. Ele se debate com a pergunta: “Em que momento o Peru se fodeu?”.
Cada semana enveredo por uma trilha nova, sem saber direito onde dará essa patética aventura.
Alguns textos estimulam minha busca. Um deles é da economista Mariana Mazzucato, que, ao falar da importância de uma ação nacional coordenada, usa como exemplo o esforço americano para colocar o homem na Lua.
O livro dela chama-se “Missão economia” e pretende ser um guia para mudar o capitalismo. No prefácio, ela comenta a experiência vitoriosa do Vietnã contra a Covid-19, baseada na capacidade de unir todas as energias nacionais numa só direção.
Por minha conta, dei um balanço também em alguns momentos de êxito dos britânicos na pandemia. Um deles foi a capacidade de articular a energia e a criatividade no processo de conseguir vacinas e realizar a vacinação em massa. Outro foi o êxito em evitar, no auge da crise sanitária, que houvesse um colapso no sistema hospitalar.
Ambos os processos de vacinação e gestão de hospitais no Reino Unido foram capitaneados por mulheres. Mas envolveram um esforço mais amplo. Daí minha interrogação: sera que tanto o Vietnã como o Reino Unido não se aproveitaram da memória das guerras que viveram e encontraram mais facilidade para um esforço nacional?
Por meio de outro texto, tentei fazer o caminho oposto: examinar o fracasso de alguns países, como os Estados Unidos e o Brasil, que perderam muito mais gente na pandemia.
Refiro-me a um artigo publicado no ultimo número da “Foreign Affairs”, com o título de “O poder partido, como superar o tribalismo”, de Reuben E. Brigety. De forma simplificada, uma das características do tribalismo é o patrulhamento constante entre os membros de uma tribo, o que evita a possibilidade de cooperar com um adversário para o bem comum.
A superação do tribalismo pode se encontrar na coragem dos líderes, como nos processos da África do Sul e da Irlanda. Ou então na ajuda de entidades mediadoras. Mas tanto Trump quanto Bolsonaro jamais levariam em conta esse aspecto, precisamente porque sobrevivem na divisão.
Nem um nem outro jamais pensou em saída nacional e solidária, simplesmente porque isso implica dissolver diferenças secundárias em nome da tarefa de salvar vidas.
Já havia mencionado em alguns artigos como essa polarização intensa nos torna incapazes de certas conquistas. No caso americano, além de reduzir seu potencial, abre um flanco para a exploração dos inimigos externos.
No exemplo brasileiro, esse fator inimigo externo não tem tanto peso. São tantas as agressões entre nós, tantos insultos à razão e à lógica elementar, que um inimigo externo descansaria na certeza de que fatalmente nos autodestruiremos.
Uma das mais delicadas tarefas de Joe Biden é superar o tribalismo na política americana. E creio que a experiência de nosso fracasso na luta contra a pandemia aponta para a mesma direção no futuro: recriar as condições para que, em determinados momentos, possamos agir como um só país, com energia concentrada para derrotar um inimigo comum, seja ele um vírus, um desastre ambiental ou um grande sofrimento popular.
Quando o radicalismo de Bolsonaro e seus adeptos for superado, creio que, de todos os temas com que trabalho, a proteção ao meio ambiente e a sustentabilidade, ao lado da luta por melhorias reais da condição de vida, podem ser a base de um novo pacto. Ecologia e responsabilidade social.
Não creio que isso nos levaria a um mundo totalmente pacificado, muito menos ao paraíso.
Creio apenas que aqui fomos muito longe em nossa experiência infernal. Não me pergunto apenas quando é que o Brasil se fodeu, mas também por que se fodeu tanto.
Fernando Gabeira: Para dizer nunca mais
Tanto falamos numa frente para combater Bolsonaro, centro, centro-direita, centro-esquerda, empurra para lá, empurra um pouco para cá, tentamos encher com nossos desejos e preconceitos o ônibus que nos levaria para longe dessa grotesca versão de governo.
Olhando o cotidiano, observo que essa frente até mais ampla e generosa do que projetamos acabou se formando em torno do tema crucial: a rejeição ao papel de Bolsonaro na pandemia.
Mesmo os presidentes do Senado e da Câmara, eleitos com o apoio de Bolsonaro, tentam se distanciar dele quando o tema é a Covid-19.
De certa maneira, a maioria compreendeu Bolsonaro: 56% dos entrevistados na pesquisa do Datafolha o consideram incapaz para dirigir o país.
Isso pode ser uma boa notícia para as eleições. Mas seria um erro monumental pensar em eleições quando temos diante de nós um caminho complexo e tortuoso como o combate à pandemia.
O líder do governo disse, no auge dos recordes letais da pandemia no Brasil, que a situação do país é “até confortável”. É uma declaração estapafúrdia, que os fatos esmagam. Noto, entretanto, que mencionou na mesma fala a existência da oposição a Bolsonaro.
Ocorreu-me pensar que o líder considera que a oposição verbal a Bolsonaro é também algo que está dentro da zona de conforto.
A existência de uma pandemia devastadora e de uma frente ampla contra Bolsonaro pede mais que uma oposição verbal. Ele se incomoda quando o chamam de “genocida” ou mesmo de “pequi roído”.
Certamente, vai se incomodar mais quando essa frente ampla multiplicar suas ações em todos os níveis do combate à pandemia.
Quando escrevi que os governadores e a sociedade deveriam avançar no caso das vacinas, alguns acharam que não havia salvação fora do poder federal. Felizmente, a realidade mostrou que é possível agir. Governadores do Nordeste conseguiram fechar negócio para comprar 37 milhões de doses da Sputnik V. Na verdade, a realidade já mostrara antes disso que foi a iniciativa de São Paulo que garantiu afinal a maior parte das vacinas que imunizam neste momento cerca de 5% da população.
Ficou evidente também que o governo não tem o monopólio das relações externas. Na verdade, seria um absurdo colocá-las nas mãos de um chanceler extremista como Ernesto Araújo.
O caminho diplomático não se resume a comprar vacinas. Os governadores tentam convencer a OMS da urgência da remessa da compra de três milhões de doses, já efetuada junto ao Covax, consórcio que busca democratizar a venda de vacinas.
Lula propôs que Biden se encontre com outros líderes mundiais e discuta esse ponto central das vacinas no mundo. Aliás, Biden já participou de um encontro para garantir vacinas a alguns países asiáticos.
Os Estados Unidos têm 30 milhões de doses da vacina de Oxford estocadas em Ohio. Ela ainda não foi aprovada pelas autoridades sanitárias de lá. Parte será doada ao México.
A vacina de Oxford seria útil aqui. Poderíamos comprá-la, se for o caso, ou mesmo pagar com as doses que a Fiocruz produzirá no segundo semestre. Essas manobras diplomáticas não são simples. Mas os governadores poderiam tentar.
Tudo o que fizermos agora, seja no nível diplomático, seja no da própria sociedade, é um ato dessa frente ampla que se formou não apenas contra a Covid-19, mas contra seu principal aliado objetivo: Jair Bolsonaro.
Não importa o que aconteça lá na frente. Quando tivermos eleições, certamente a frente ampla terá amadurecido não só a ponto de ajustar as contas com Bolsonaro na Justiça, mas também para redefini-lo como o adversário comum.
A realidade nos trouxe uma tragédia que pode nos custar meio milhão de mortos. Mas, depois dela, saberemos dizer: nunca mais.
Fernando Gabeira: Sombrio panorama na terra do sol
São os preconceitos e o obscurantismo de um obtuso que definem a política contra a covid
Quando desistiu do cargo de ministro da Saúde, a dra. Ludhmila Hajjar afirmou que o panorama no Brasil é sombrio. Diria que é singularmente sombrio, por algumas razões. O Brasil é o único país que teve quatro ministro diferentes durante a pandemia. E desponta como o segundo colocado no mundo em número de mortos, que deve chegar próximo dos 300 mil neste fim de semana.
Para completar o quadro, uma nova variante do coronavírus não só tem contribuído para expandir o vírus, esgotando os leitos de hospital, mas também vai devastando uma parte da juventude, setor da população que estava mais protegido na primeira onda da pandemia.
Apesar de toda a gravidade do momento, a dra. Ludhmila tinha esperanças. Afinal, fora chamada para conversar sobre o cargo pelo presidente Bolsonaro. Isso significava, aparentemente, que o próprio governo queria mudar. Convocava uma especialista para quem a política do governo contra a covid-19 é um conjunto de erros.
A dra. Ludhmila foi massacrada pelos hostes bolsonaristas e o presidente recuou. Ela falava uma linguagem muito próxima do que dizem os médicos e a maioria esmagadora dos políticos. E, consequentemente, muito distante da família Bolsonaro e de seus dogmas diante da pandemia.
Embora não tenha sido escolhida para o ministério, a dra. Ludhmila, em curtas e fragmentadas declarações, acabou reafirmando uma série de pontos vitais no combate ao coronavírus, uma espécie de consenso nacional do qual só não participam a família Bolsonaro e seus seguidores.
Ponto decisivo no seu programa de trabalho era criar um comitê de crise que atendesse governadores e prefeitos 24 horas por dia. Uma resposta ao clamor de todos por uma coordenação nacional.
Outra indicação importante é a ideia de ser preciso adotar medidas de isolamento social, mesmo que se chegue necessariamente a um lockdown em todo o País, grande e complexo demais para ser abordado com uma única medida.
Admitir que não existem remédios eficazes contra a covid-19 não significa que se deva deixar de buscar contatos com todo o mundo científico, com abertura a todas as iniciativas que se mostrem eficazes e seguras. Mas tudo dentro de uma linha de raciocínio que privilegie a vacina.
Esse ponto de intensificar a vacinação como saída não só para poupar vidas, como retomar a economia, é tão consensual que o próprio governo Bolsonaro decidiu adotá-lo depois de meses de hesitação e sabotagem. O ex-ministro Mandetta calcula que era possível começar a vacinação nos últimos meses de 2020 se o governo tivesse aproveitado a oportunidade. Perdemos meses e continuamos perdendo tempo, apesar da contratação de 545 milhões de doses.
Ao falar do tratamento da covid, a dra. Ludhmila mencionou também a necessidade de protocolos e treinamento adequado. Há gente morrendo porque foi intubada de forma equivocada.
Acrescentaria a isso algo que ela não mencionou, mas circula nos meios especializados: a necessidade de contratar mais gente, no mínimo 50 mil novos funcionários. De fato, as equipes de trabalho estão esgotadas, física e psicologicamente.
Um ponto novo no debate foi incluído também nas declarações da dra Ludhmila: a necessidade de um esforço nacional para recuperar vítimas de covid-19, tratar as sequelas, propiciar que voltem ao trabalho. É uma tarefa também para o SUS, uma vez que milhares de pessoas não têm recursos para pagar um processo de reabilitação. Os preços são muito altos. Na briga de governo federal e Estados para que Brasília pagasse leitos de UTI, ficou claro que um único leito desses custa R$ 1.600 por dia. Sem o SUS os pobres morreriam nas enfermarias.
Um novo ministro da Saúde foi escolhido e esses temas foram varridos para debaixo do tapete, ao menos por enquanto. O ministro Marcelo Queiroga não tem projeto próprio. Já disse que executará uma política do governo. É uma versão mais palatável do general Pazuello: um manda, o outro obedece. No fundo, Queiroga está dizendo a mesma coisa, sem refletir como é limitada uma política de governo definida pelos preconceitos e pelo obscurantismo de Bolsonaro.
O presidente sempre subestimou a pandemia, sempre considerou um ato contra o seu governo restringir a circulação de pessoas, sempre acreditou em remédios milagrosos, em vez de investir na vacina, que bombardeou das trincheiras da ideologia e da pura superstição.
O fato de ter-se recusado a aceitar os seus erros e investir na mudança personificada pela dra. Ludhmila mostra também como Bolsonaro está isolado. Nem os presidentes da Câmara e do Senado, ambos eleitos com seu apoio, o acompanham em sua política contra a pandemia.
Ainda não se percebeu que a tão decantada frente ampla existe de uma forma que beira o consenso quando se trata da pandemia. Bolsonaro está só com sua família e a minoria de seguidores. A existência de um quase consenso dessa importância é animadora, mas o fato de instrumentos tão poderosos estarem nas mãos de um presidente obtuso torna o panorama sombrio.
Fernando Gabeira: Uma visita à mansão Bolsonaro
Flávio Bolsonaro comprou mansão de R$ 6 milhões em Brasília. Raramente me interesso por pessoas cujas casas têm banheiros com mármore de Carrara, espaço gourmet, iluminação LED na piscina, home theater e toda essa papagaiada.
No entanto os teóricos do bolsonarismo, entre eles Steve Bannon e o chanceler Ernesto Araújo, sempre afirmam que sua luta é contra o materialismo decadente, que dará lugar a uma sociedade dominada pelos símbolos e povoada por sacerdotes.
Uma das formas de combater essa posição é apontar a distância entre as palavras e a realidade. Bannon vive como um homem rico, e a mansão do primogênito de Bolsonaro é mais uma demonstração de que seu grande projeto na vida é enriquecer.
Existem, no entanto, outras formas de contestar os teóricos do bolsonarismo, embora quase ninguém se importe com isso, por achar que eles são autoconstestáveis.
Gosto dessas discussões, pois, afinal, são parte da minha vida. Nas poucas visitas a Londres, sempre dedicava meu tempo a passear na querida Charing Cross Road, rua famosa por suas livrarias, que talvez nem existam mais como antes.
Foi na Charing Cross que comprei cinco volumes de uma pesquisa realizada pela Fundação Europeia de Ciência, sob o título de “Crenças no governo”. O quarto deles foi o que mais me interessou. Chama-se “O impacto dos valores”.
Toda vez que vejo teóricos da “alt-right” afirmarem que vivemos numa sociedade materialista decadente, lembro-me desse livro.
Segundo ele, os pontos da decadência materialista que mais incomodam, o feminismo, a luta contra o racismo, a ecologia, são na verdade valores que surgiram precisamente no pós-materialismo, a partir dos anos 60.
A passagem dos valores materialistas para uma nova fase significa a superação dos anos de dificuldades econômicas e inseguranças, abrindo espaço para as necessidades de autoexpressão, pertencimento, satisfação estética, cuidados ambientais, nesse caso uma ética para com as novas gerações.
Tudo isso surgiu de mudanças profundas na sociedade. Não houve um processo de perda de valores, mas sim de câmbio de valores.
As feministas questionam valores patriarcais, os negros questionam a supremacia branca, tão cara à alt-right, os intelectuais pós-materialistas condenam uma ideia de felicidade que consiste na acumulação de riquezas.
Os teóricos do bolsonarismo, ao se apegar a uma religiosidade popular, são apenas nostálgicos, pois não examinam as próprias mudanças no interior da religião, provocadas pelo avanço da racionalidade ocidental, aquilo que os sociólogos chamam de desencantamento do mundo.
Steve Bannon dá a impressão de que leu Heidegger. Duvido que tenha feito bom proveito. Segundo o filosofo alemão, somos um ser no mundo, impossível descuidar dele.
Trump e Bolsonaro destroem o meio ambiente em nome de um materialismo vulgar, que supõe que somos senhores do mundo e o controlamos de uma posição exterior.
Não quero dizer que as lutas modernas são perfeitas, nem negar que às vezes se excedem. Também não acredito que a questão identitária possa substituir uma consciência que envolva o problema de todos.
Quero apenas acentuar que os líderes espirituais da extrema-direita buscam reviver um passado que não existe mais e, mesmo quando essa ilusão leva a uma vitória eleitoral, é completamente incapaz de conduzir o presente. Por isso, volto à mansão do senador Flávio Bolsonaro e encontro nela um espaço mais adequado para traduzir os anseios de um grupo político que apenas se aproveita da religiosidade popular para atender aos anseios de acumular riquezas.
Não é por acaso que o grande líder mundial dessa corrente é Donald Trump. E seu correspondente tropical entope o país com armas, em confronto com a própria religião.
Fernando Gabeira: A vitória parcial do coronavírus
O desprezo pelo conhecimento fez do Brasil campo fértil para a devastação
Ainda não é hora do balanço final, mas já é possível afirmar que o Brasil foi devastado pelo coronavírus, com possibilidade de se tornar o país que mais sofreu com a pandemia. Sem mencionar as outras razões que nos isolam no mundo, o território brasileiro tornou-se um campo de observação para a humanidade, pois aqui surgiram perigosas mutações do vírus e nada garante que outras variantes não estejam em curso.
Com todo o respeito aos médicos e demais trabalhadores da saúde que batalham na linha de frente, comunicadores que tentam transmitir a dimensão do drama sanitário e grupos que se dedicam diuturnamente à solidariedade, todos combateram o bom combate, mas o saldo nacional é um grande fracasso.
Como é possível que um vírus triunfe sobre uma comunidade humana, neste momento de fácil comunicação e avanço da ciência? O que torna o Brasil tão vulnerável a um vírus mutante? Uma das razões é exatamente a nossa incapacidade de mudar com rapidez para enfrentar a nova situação.
Nenhum país teve um negacionista tão ativo na Presidência como o Brasil de Bolsonaro. Ele imaginou que o vírus seria uma grande ameaça ao seu governo, o impacto econômico poderia derrubá-lo. Daí seu esforço em negá-lo. E não apenas quanto à gravidade da contaminação, mas, sobretudo, no tocante às medidas necessárias para combatê-lo, como isolamento social e suspensão de algumas atividades.
Quando o novo coronavírus apareceu em Wuhan, na China, escrevi que ao chegar ao Brasil a única forma de combatê-lo seria uma resposta nacional e solidária. O comportamento de Bolsonaro mandou para o espaço a esperança de uma resposta nacional. Um passo importante nessa direção foi decapitar ministros da Saúde que reconheciam a importância do vírus e buscavam uma resposta articulada.
Graças ao STF, governadores e prefeitos tiveram reconhecido seu papel constitucional no combate ao vírus. Mas as constantes denúncias de corrupção enfraqueceram sua liderança em muitos Estados do País. No Rio, Witzel perdeu o cargo. A Polícia Federal fez incursões no Pará e no Amazonas. Respiradores foram comprados em lojas que vendem vinho. Em Santa Catarina o escândalo abalou o governo.
Esse processo na cúpula fortaleceu o ceticismo na base. O comportamento coletivo para atenuar os efeitos da pandemia não foi conseguido. Faltaram estímulos. Poucas foram as iniciativas de oferecer lugar para a quarentena, ou para levar água e facilitar a higiene. Poucas também para estabelecer conexão e facilitar aulas para as crianças, diversão para os adultos.
O negacionismo de Bolsonaro desarmou grande parte das iniciativas que a ciência aconselha. Testes foram esquecidos num depósito em Guarulhos. Para que testar? Não houve intenso esforço tanto para sequenciar o vírus quanto no caso das vacinas. Então o Brasil ocupou um lugar único: o presidente se opunha a elas, seja por ignorância científica ou por ignorância política, bloqueando os melhores produtos ocidentais e ironizando os do Oriente vermelho.
A luta contra o coronavírus numa população como a do Brasil é difícil. O vírus é invisível. Mesmo na Europa, os problemas radioativos provocados pelo desastre de Chernobyl encontraram muito ceticismo precisamente porque não eram visíveis.
Mas a ignorância de Bolsonaro não influencia apenas os 30% que o apoiam. Ela se estende por uma faixa da população que não se interessa por ele nem por nenhum outro político. Uma faixa que não vê benefícios em se ter um governo, muito menos em se sacrificar por um coletivo.
Quando Bolsonaro, na sua campanha obscurantista contra a vacina, insinuou que ela poderia transformar pessoas em jacarés, não estava pregando no vazio. Ele conta com a superstição popular. E não está totalmente equivocado. A ideia de pessoas se transformarem em bichos é presente no Brasil. A mula sem cabeça, por exemplo, é um mito que percorreu a nossa infância. Diziam que era uma linda mulher que virou animal porque transou com um padre. E quem se dedicar a estudar a religião tupi verá que os caraíbas, espécie de sacerdotes, difundiam suas crenças contra a religião colonial, mas se diziam capazes de transformar gente em bicho.
O Brasil perdeu a guerra contra o vírus porque ela dependia não só de disciplina, mas de conhecimento. Não somos disciplinados como os vietnamitas, por exemplo.
Mas, para além do individualismo, o desprezo pelo conhecimento fez do Brasil um campo fértil para a devastação. O governo subestimou remédios consagrados, como a vacinação em massa, e optou por falsas saídas, como a hidroxicloroquina.
Em todos os momentos o conhecimento foi espancado. Até mesmo na batida musical das festas clandestinas o Brasil celebrou a ignorância.
Pode ser que no balanço final alguns desses termos se alterem. Mas vista de agora, nossa derrota para o vírus foi a derrota de nossas lacunas educacionais, entendidas em sentido mais amplo, desde o estudo convencional, que nos faça acreditar no invisível, até o flagelo do obscurantismo oficial, a corrupção e uma incipiente cidadania que não acredita na ideia de um país.