Fernando Gabeira

Fernando Gabeira: Afinal, desencantaram

De certa forma, a Copa está começando agora, e já estamos com a língua de fora

Nas corridas de cavalo, dizem que o vencedor desencabulou. Acho que no futebol é possível dizer que a seleção brasileira desencantou. Jogou para o ar toda a tensão e a expectativa da estreia prolongada pelo empate contra a Suíça.

No café da manhã, o hotel estava cheio de camisas vermelhas e amarelas. O dia amanheceu chuvoso em São Petersburgo, e o asfalto, molhado. Logo o sol abriu, e vi o bloco de camisas vermelhas saindo por um lado, e o bloco de amarelas, por outro.

Mesmo quem não está aqui com a missão de cobrir o futebol sabe que o interesse na Copa do Mundo depende da classificação do Brasil. Amanhã, por exemplo, há uma comemoração em homenagem à poeta Anna Akhmátova, um dos personagens mais interessantes da história cultural da Rússia. No sábado, há uma festa perto do Museu Hermitage que envolve barcos e milhares de jovens estudantes. Tudo isso só tem sentido se o Brasil continua na Rússia, se de alguma forma a história do nosso futebol e a do país sede da Copa continuam entrelaçadas.

Não analiso futebol, apesar de ser um torcedor entusiasta e de acompanhar ao máximo parte do Brasileirão e a Liga dos Campeões. Não me aventuro nesse campo, porque o futebol tem seus sábios e seus filósofos. Não creio que poderia dizer algo com tanta clareza como a frase do treinador Gentil Cardoso: quem se desloca recebe.

Se pudesse escrever um manual de jornalismo, creio que a colocaria como lema. Mas serve também para outras coisas, até para a solidão amorosa, embora tenha perdido sua força pedagógica com o advento da internet e das múltiplas trocas on-line.

Também não creio que encontraria com facilidade metáforas tão felizes como a de Neném Prancha: o pênalti é tão importante que deveria ser batido pelo presidente do clube.

Mas o primeiro jogo da seleção nos deixou um pouco travados. Depois daquele fracasso em 2014, sobretudo dos 7 a 1 no Mineirão, sempre nos assombra o fantasma que dá branco na equipe, que a torna irreconhecível.

A maioria dos torcedores brasileiros é confiante. Na quinta-feira, perto do Hermitage, onde fui encontrar a amiga que me orienta sobre o calendário cultural de São Petersburgo, vi alguns com perucas, bandeiras, sob uma chuva fria.

Ontem ficaram exultantes. Do meu posto aqui, vi os egípcios partindo tristemente. Ontem foi a vez de ver peruanos se despedindo.

Em toda Copa do Mundo deve ser assim. Mas não estamos acostumados a sair tão cedo. Na verdade, o mais frequente é ir até a final, quando todos já deram adeus ao título. O jogo pela terceira e quarta colocações é melancólico para grandes campeões, embora seja uma vitória para equipes medianas.

De uma certa forma, a Copa do Mundo está começando agora. Já estamos com a língua de fora, viajando por um país tão extenso, recebendo mais informação do que o nosso cérebro pode processar.

Mas a grande qualidade do nosso futebol é despertar nosso ânimo. Se eles podem com a bola, por que não podemos com outros instrumentos, menos redondos, mais ásperos e às vezes obscuros do cotidiano?


Fernando Gabeira: A corrida atrás da bola

Nem todos os brasileiros são malandros e nem todos os russos são preguiçosos

No meu plano de trabalho, só tocaria neste tema ao final da Copa. Acontece que ele acabou surgindo no Brasil. Miranda deveria ou não cair para que o gol da Suíça fosse anulado? Faltou malandragem?

O lendário personagem nacional Macunaíma reaparece e me dá chance de mostrar que essa figura, de alguma maneira, não é estranha aos russos. Eles têm seu Macunaíma. Não veio de lendas indígenas, mas de um romance escrito em 1859 por Ivan Gonchárov: “Oblómov”.

Na verdade, o personagem russo não tem a esperteza de Macunaíma. O traço que os une fortemente é a preguiça. Oblómov era um nobre que apenas se movia da cadeira para a cama e se recusava a fazer outra coisa, além de pensar. Seu símbolo era o roupão, assim como a rede era o de Macunaíma.

O oblomovismo chegou a ser descrito como um problema nacional. O próprio Lênin manifestava-se sobre ele em seus discursos, advertindo que era impossível construir um país com a preguiça de Oblómov. Traduzindo o discurso para um português mais coloquial, creio que estava pedindo apenas o que o saudoso Hugo Carvana dizia nos seus filmes: vai trabalhar, vagabundo.

Quando Mário de Andrade adaptou Macunaíma, creio que mirou também numa possível reflexão sobre a ambiguidade, a capacidade criativa, enfim, elementos positivos do “caráter nacional”.

Tolstoi, um grande escritor, considerado quase um santo, também julgava Oblómov um grande romance, digno de ser lido por todos. Talvez por sua inclinação mística ele visse no romance o grande dilema que atravessa a História: qual é o melhor caminho, a ação ou a meditação?

O fato de Macunaíma ser também esperto, e Oblómov, apenas preguiçoso não significa que os russos são sempre inocentes.

Houve muitos casos aqui de gente enganada por motoristas. O preço das corridas foi, várias vezes, multiplicado por dez. Eu mesmo tive problemas, pois, depois de acertar um preço, na hora de pagar o motorista alegou que não tinha troco para mil rublos.

Mas também houve motoristas maravilhosos. Um deles telefonou para um jornalista que se esqueceu de pegar o dinheiro de um depósito para que ele não o perdesse.

Numa das minhas viagens, com mais equipamento, quase esqueço a pequena câmera compacta no banco. Eu a comprei precisamente para o trabalho de rua. Sacha, o motorista, me segurou pelo braço e perguntou: vai deixar a câmera para o próximo passageiro?

Por essas coisas, acho que não devemos ficar tão deprimidos com os brasileiros que assediaram uma russa, fazendo-a cantar obscenidades em português.

Brasileiros simpáticos e solidários não faltam por aqui. O chamado “caráter nacional” é uma ficção, embora tanta gente graúda no Brasil queira nos convencer de que exageramos quando afirmamos que, no mundo político, a corrupção é uma cultura a ser demolida, e não acariciada com sucessivos habeas corpus.

O melhor é seguir Tolstoi e Mário de Andrade e tentar descobrir, por trás da lenda de Macunaíma e do personagem Oblómov, as questões que nos fazem realmente refletir.

Se os russos fossem realmente preguiçosos, não teriam construído um império nem vencido uma guerra mundial, algo que no Ocidente às vezes é subestimado. Se os brasileiros vivessem de esperteza, como explicar os milhões que trabalham de sol a sol e perdem grande parte de sua existência no transporte coletivo?

No fundo, estamos todos correndo atrás da bola.


Fernando Gabeira: Na Chechênia, um mundo diferente

Comandada por um fiel aliado de Putin, a Chechênia vive uma pequena abertura

Escrevo num dos apertados assentos do avião da Aeroflot, rumo a São Petersburgo. Minha passagem pela Chechênia foi curta. Não sei se pelo cansaço, senti-me um pouco desorientado no princípio. Os franceses chamam isso de dépaysement, mas numa linguagem popular, é estar perdidão.

Você sai direto para o saguão do pequeno aeroporto. As portas se fecham atrás de você. Não há esteira de bagagem. E as portas não se abrem mais. Uma senhora me fez um sinal de que estariam ali dentro, mas só depois de algum tempo é possível recolhê-las. Ao sair do aeroporto, vê-se um prédio que parece uma mesquita. A entrar no hotel e passar diante da tevê, ela liga automaticamente e aparece um jovem lendo o Corão.

Cheguei no final do Ramadã. Há dois dias de festas. Perguntei por um restaurante chamado Esperanto. O “Trip Advisor” o recomenda. Mas todos os restaurantes estariam fechados. O jeito era comer no hotel, um prédio suntuoso com enormes pilastras e elevadores automáticos.

Dos 200 táxis de Grosny, apenas alguns funcionavam. Tive de passar por varias barreiras policiais e detetores de metal para chegar ao estádio e ao hotel The Local, suntuoso prédio construído com capital árabe para abrigar o time do Egito e o craque muçulmano Salah.

A Chechênia passou por duas guerras: uma de 1994 a 1996, outra de 1999 a 2004. Nos anos 1940, Stalin deportou quase todos os chechenos por suspeita de simpatia ao nazismo. Até hoje há dúvidas quanto à veracidade dessa acusação. Os grandes atentados terroristas na Rússia foram atribuídos a chechenos. Um deles foi num teatro de Moscou, outro numa escola do interior. Centenas de mortos.

O próprio herói nacional, Ahmad Kadyrov, foi morto num atentado. Seu filho Ranzam Kadyrov assumiu o governo. Combateu a Rússia no passado, mas agora se diz fiel a Putin, afirma que o obedece sem vacilar. Ele é uma garantia para os russos não terem de enfrentar uma terceira guerra na Chechênia.

A contrapartida russa é muita grana para a reconstrução do país. A Chechênia é uma interface com o mundo muçulmano. Kadyrov é amigo do príncipe herdeiro da Arábia Saudita.

De um modo geral, os chechenos são simpáticos e bem-humorados Mas há controle policial até na montanha. Tive que abrir a bolsa de equipamentos muitas vezes. Ser brasileiro ajudava.

Kadyrov detesta jornalistas estrangeiros. Eles denunciam a repressão contra opositores e gays. Um líder do movimento dos direitos humanos foi preso. O movimento se chama Memorial. O motivo da prisão: a polícia alega que estava com um pouco de maconha, algo nitidamente plantado para incriminá-lo.

Nas únicas entrevistas em que abordou o tema, Kadyrov afirmou que não há gays na Chechênia: seria um insulto às suas famílias. Ele admite que existem gays no Ocidente. É um avanço em relação ao embaixador da Coreia do Norte em Cuba nos anos 1970.

Perguntado por um militante americano sobre a questão gay, perguntou o que era isso. O militante explicou no estilo da canção de Tim Maia: homem com homem, mulher com mulher.

— Isso não existe — afirmou. — É uma hipótese absurda.

Como presente de Putin, Kadyrov ganhou uma participação secundária na Copa. Ficou com a parte mais próxima do mundo muçulmano. O estádio foi construído só pra isso. Um pouco como no Brasil, depois ficará às moscas. Mas Kadyrov não é apenas um enlace com o Oriente Médio. Ele protestou também contra a repressão a muçulmanos em Myamar. É um trunfo geopolítico de Moscou.

Grosny pretende ser uma segunda Dubai, com prédios suntuosos e lojas de grife internacionais. Mas além das lindas montanhas e das mesquitas que me pareceram o ponto alto da arquitetura na Chechênia, destacaria a música que ouvi em todos os táxis. É variada e tem um balanço interessante.

Num lugar com uma atmosfera tão policialesca, a música pelo menos relaxa. Gravei alguma coisa na câmera de vídeo. Quem sabe volto um dia?

A Chechênia que lemos na imprensa internacional dá medo. Não há pressão sobre jornalistas, por causa da Copa.

Quem sabe depois dela essa discreta abertura sobrevive?

 


Fernando Gabeira: Olhar brasileiro na Rússia de Putin

Momento em que ex-coronel da KGB surgiu na cena política do seu país é parecido com o do Brasil de agora, que busca estabilidade

Apesar das leituras, não me arrisco a analisar a política russa. Apenas comparar o que li com o que vejo e tentar, através da experiência, entender um pouco o Brasil.

O momento em que Vladimir Putin surgiu na cena política russa é parecido, por razões diferentes, com a atual situação do Brasil. Depois de uma década de transição para o capitalismo, os russos sentiam o país mergulhado no caos e ansiavam por algo que Putin oferece: estabilidade.

Tanto lá, naquele período, como no Brasil de agora, há uma sensação de perda de importância no cenário internacional de baixa autoestima e um desejo difuso por mais comando e autoridade.

Como um ex-coronel da KGB, que atuou em Dresden, na época Alemanha Oriental, Putin se aproveitou da ampla campanha positiva em torno da KGB, dirigida pelo seu mais ilustre dirigente: Yuri Andropov.

Um dos pontos altos da campanha foi uma série sobre um espião russo que se tornou herói nacional: Maxim Isaev. Sob o nome de Max Otto von Stierlitz, ele se se infiltrou no governo alemão e impediu com seu trabalho um acordo entre Estados Unidos e Alemanha, destinado a prejudicar a União Soviética.

Stierlitz foi tema de uma série de extraordinário sucesso, intitulada “17 Momentos da Primavera”. Virou tema popular, jogos infantis de guerra. Segundo Arkady Ostrovsky, no livro “A invenção da Rússia”, Putin fez uma bela apariçao em cena, emulando o herói Stierlitz. No programa de TV em que foi apresentado, a música de fundo era a mesma da série, ele dirigia o mesmo carro Volga, enfim, era o homem certo para salvar a Rússia, nessa nova dificuldade.

Deu certo. A Rússia esperava alguém que a arrancasse da insegurança. E Putin passou a representar isto. Tanto que os jovens no período de seu governo são chamados de os filhos da estabilidade.

Putin é criticado pela oposição por falta de liberdades políticas. No entanto, certamente usando a máquina, consegue se reeleger com facilidade e também ao seu sucessor de plantão: Dimitri Medvedev.

O Brasil não passou por uma década de capitalização selvagem. Pelo contrário, o último período foi marcado por uma experiência estatizante, focada em aspirações socialistas.

A ascensão de Michel Temer não só não trouxe estabilidade, como transmitiu a certeza de que a corrupção continuava instalada no poder: eram todos do mesmo bloco predatório.

A greve dos caminhoneiros acentuou a sensação de desamparo dos brasileiros.

Fernando Henrique, numa entrevista, considerou a situação pré-revolucionária.

Discordo. Não vivemos um momento pré-Lenin. Estamos mais próximos de um momento pré-Putin.

Felizmente não temos nenhum herói nacional para ser emulado. Mas a televisão é um grande instrumento.

Influenciados pelo marxismo, analistas costumam culpar os asiáticos pelos traços autoritários na Rússia. Diziam que o czar Nicolau era o Gengis Khan com telégrafo e Stalin o Gengis Khan com o telefone.

Os tempos passam, podem surgir Gengis Khan com televisão ou talvez até com internet.

Nessa plataforma, no entanto, será difícil prosperar, porque pelo menos teoricamente é um espaço democrático, uma Atenas digital.


Fernando Gabeira: Nem de longe parece normal

Uma corda serve para escalar a montanha ou para se enforcar. Daí a minha angústia

Estou em Moscou. Às vezes, de longe temos a ilusão de ver melhor o Brasil. Mas não há garantia de que essa situação complexa seja desvendada de fora.

Um dos temas que às vezes nos aproximam do mundo é esta sensação de que o centro político está em declínio. Mesmo assim, corremos o risco de estar falando de centros políticos diferentes, de declínios impulsionados também por forças distintas.

No Brasil, o principal estímulo para tratar do assunto são as pesquisas eleitorais. Nos Estados Unidos, é um exame mais prolongado da retirada de cena de políticos democratas e republicanos mais próximos do centro, mais propensos ao diálogo e a soluções negociadas. Ao longo das eleições, seu número vem caindo.

Na Europa, sucessivas derrotas da social-democracia acionaram o alarme para o crescimento das forças demagógicas, centradas na repulsa aos imigrantes e nas consequências da globalização. O Brexit pode ser atribuído a essa tendência, assim como a eleição de Trump nos EUA.

O centro difere da esquerda na medida em que não se baseia no conflito para crescer. E difere da direita ao afirmar que é necessário atenuar as distorções sociais que o capitalismo produz no seu curso triunfante.

Se for realmente isso, o centro parece ter perdido substância ao acreditar que as mudanças sociais e culturais na globalização seriam resolvidas, naturalmente, pelo crescimento econômico. E errou mais ainda ao subestimar a temática nacional, supondo que a mística em torno da terra e da cultura fosse apenas nostalgia.

Uma das incaraterísticas do centro é apostar numa crescente liberdade, envolvendo todos os grupos minoritários. Nesse ponto, a esquerda que dominou o Brasil foi um alento para muitas lutas identitárias, também contempladas por Barack Obama.

O problema é que, à medida que essas lutas cresceram, declinou a energia necessária para uma coesão nacional. Muitas lutas identitárias se veem em confronto com a sociedade abrangente. Fixam-se no que chamam de seu território e seus valores próprios.

Como recuperar a ideia de um projeto nacional, algo que envolva a todos, apesar de suas diferenças?

Ainda assim, esses elementos típicos da globalização me parecem ter um peso relativo diante do fator corrupção. Centro, direita e esquerda naufragaram no combate direto à roubalheira.

Nem todas as forças foram colhidas com a mesma intensidade. E nenhuma delas foi capaz de encarnar as aspirações sociais de transparência e condenação dessa prática.

Se alguma o fizesse, comeria o pão que o diabo amassou, pois bateria de frente com uma cultura enraizada no meio político. Pagaria com o isolamento e a hostilidade na convivência cotidiana. Mas de certa forma sobreviveria não só para contar a história, mas para juntar os cacos e prosseguir o seu curso.

A situação do Brasil, ao que me parece, não é apenas a do declínio do centro, mas de todas as forças organizadas que passaram pelo furacão investigativo. As intenções originais de votos em Lula, nos níveis do fim do século passado, sobreviveram, ao que indicam as pesquisas. Mas quando transplantadas para nomes do seu partido caem vertiginosamente.

Os instrumentos tecnológicos à disposição revelam, no entanto, um avanço na consciência e na participação popular. Apontam para mais democracia, quem sabe uma complexa Atenas digitalizada.

No entanto, não aparecem os sinais de encontro entre esse mundo horizontal e uma ideia de governo. Os últimos foram marcados também por uma desconfiança na distribuição de renda, pelo alto preço que seus promotores cobraram da sociedade em desvios de verba pública e assalto às empresas estatais.

E nas últimas semanas Michel Temer enfraqueceu a ideia de democracia, usando-a para descrever a essência de sua reação à greve, titubeante e inepta.

Florescem no mundo, hoje, muitos governos autoritários, sobretudo em grandes países, como aqui, precisamente porque as pessoas associam a democracia liberal a um estado de bagunça e sonham em se tornar um “país normal”, isto é, que não se desintegre por falta de autoridade. Parecem preferir abrir mão de ampla liberdade pela sensação de viver num país estável.

Ao associar seus erros e trapalhadas à democracia, e não à sua condição de remanescente de uma grande quadrilha, Temer contribui para aumentar o desencanto com essa forma de governo.

Não parece acidental que a polarização atual caminhe para duas personalidades fortes, que assustam o mercado. Mas o mercado, creio, é menos vulnerável a impulsos autoritários. Ele se adapta muito melhor do que os livres-pensadores, os que batalham pela liberdade de expressão e sonham com um modelo de democracia ocidental num conjunto de países emergentes onde ela não é a preferida.

Pesquisas eleitorais revelam apenas um instante. O inquietante nelas não é exatamente a posição dos atores em disputa. O inquietante é o que revelam da situação de fundo, bastante mais difícil de se transformar. Não só porque é complexa, mas também porque, num momento eleitoral, a tarefa dos candidatos não é entendê-la, mas explorá-la.

É um tipo de contradição, mais nova no Brasil: um grande avanço tecnológico que expandiu a consciência coletiva e a decadência assustadora do universo político, que poderia potencializá-la para grandes saltos de qualidade.

Essa intensa troca de ideias num plano horizontal é uma espécie de antídoto contra o autoritarismo. Mas a decomposição do mundo político é um grande convite à sua chegada.

Não tenho fé religiosa na tecnologia. É uma ilusão avaliar as redes apenas pelo que têm de melhor. Uma corda serve para escalar a montanha ou para se enforcar. Daí, minha angústia.


Fernando Gabeira: Os russos não dão bandeira

A Rússia vai se concentrar no verdadeiro problema de segurança, que é o terrorismo

De repente, chegou por aqui uma notícia: quatro brasileiros foram presos por exibir uma bandeira do país na rua. Era fake news.

Talvez tenha nascido da cartilha da Embaixada do Brasil que aconselhava a não ostentar bandeiras nem carícias entre gente do mesmo sexo nas ruas da Rússia.

A Embaixada não fez mais do que seu dever. Informar as leis do país para defender os brasileiros que o visitam. Num país onde, por exemplo, as mulheres têm de usar véu, a obrigação consular é avisá-las. No entanto, apesar das precauções, é evidente que essa história da bandeira é uma regra que não pega na Copa do Mundo.

Saí pelas ruas e documentei, no domingo, como as imediações do Kremlin estavam cheias de gente com bandeira. Todos sul-americanos, e um russo.

Ouvi gente que vive aqui. Um diplomata contou que um dia usou uma bandeira no estádio e muita gente se aproximou, pedindo-a de presente. Já um jornalista que mora aqui alguns anos teve uma experiência diferente. Enrolado na do Brasil, atraiu a hostilidade de alguns transeuntes porque pensavam que era de algum movimento separatista.

Durante o conflito com a Ucrânia, muito possivelmente as pessoas que andassem com a bandeira do país nas ruas de Moscou seriam hostilizadas. Os russos têm uma palavra para isso. Soa mais ou menos assim: “provocacia”. Quer dizer provocação.

É improvável que o governo russo reprima latino-americanos cantando nas ruas com a bandeira de seu país. Num só trecho ao lado do Kremlin, encontrei bandeiras da Colômbia, México e Peru. O interessante é que apareceu um torcedor russo com a bandeira de seu país e se juntou ao alegre grupo mexicano que cantavam “Cielito Lindo”, origem provável do nosso “Está chegando a hora”.

Talvez a mesma tolerância exista para a bandeira do arco-íris, caso apareça nas ruas. Eu não a vi. O problema é que os russos sabem que o mundo está de olho na Copa e, com décadas de experiência de “provocacia”, vão se concentrar no verdadeiro problema de segurança, que é o terrorismo.

Além do terror, outro problema central são os hooligans, nome, por sinal, de origem russa. Eles estão sendo monitorados no país, e nove agentes especiais britânicos vieram para acompanhar os ingleses.

Ao que tudo indica, podem ser neutralizados nesta Copa. Numa entrevista concedida a um youtuber, um hooligan russo afirmou que a polícia estava vigiando de perto, e que a chance de haver conflito na Copa era menor. Isto porque já houve um grande confronto em Marseille, em 2016, entre os hooligans russos e ingleses:

— Estamos satisfeitos com aquilo. Foi o grande momento na nossa história. Daqui para diante, um outro confronto seria uma espécie de anticlímax.

O confronto de Marseille foi considerado o mais grave da história. Mais aguerridos e organizados, os russos deixaram muitos feridos no lado inglês. A polícia francesa, pega um pouco de surpresa, perdeu o controle da situação.

Embora não seja um especialista nesse região do mundo, a análise politica mais elementar indica que os russos farão tudo para que a Copa dê certo e a tendência é a de poucos incidentes.

Isso não significa um estímulo a sair com as bandeiras pelas ruas porque, como dizia Afonso Arinos, não se deve confiar apenas na cúpula: o problema está quase sempre no guarda da esquina.

 


Fernando Gabeira: Expectativas e realidades

Nos ciclos das sedes, tanto o Brasil quanto a Russia viveram os descaminhos da Historia

A Rússia entra na semana decisiva: início da Copa do Mundo. Há quatro anos, era o Brasil. Ambos se candidataram com a esperança de projetar seus poderes particulares no mundo.

É um tipo de escolha arriscada, porque ninguém domina o futuro. Ao ser escolhido, o Brasil prosperava; durante a Copa de 2014, porém, já estava quase arruinado.

Da mesma forma, a Rússia tinha melhor relação com o Ocidente. Depois da anexação da Crimeia, ela perdeu seu lugar no chamado G-8 e sofreu sanções econômicas que podem dificultar o avanço tecnológico em alguns setores.

O Brasil, ao receber a Copa, procurou fortalecer como trunfo a felicidade e o sorriso dos brasileiros, enfim, um modo de vida. É o chamado “soft power". A Rússia, embora procure ser perfeita na hospitalidade, não trabalha tanto com os recursos do “soft power".

Para começar, quase todos os cursos de russo para quem vem ao país aconselham a não sorrir para estranhos, pois os russos reservam o sorriso para a família e os íntimos.

Na primavera, Putin anunciou os foguetes russos movidos a energia nuclear. O anúncio mostrava também a recuperação militar do país, depois das perdas sofridas com o colapso da União Soviética.

Não só na defesa como no campo espacial, a Rússia tem um papel de destaque. É um trunfo na sua política externa. Ela coopera com os Estados Unidos, tem projetos com o Brasil e, agora, na crise com o Ocidente, nas vésperas da Copa, anunciou uma parceria com a China.

A crise econômica no Brasil acabou resultando em manifestações populares contra a Copa e revelou as fragilidades do país, inclusive no campo ambiental.

A Rússia, segundo o “Moscow Times”, iniciou novos exercícios militares na Crimeia, com cem aviões. É um recado direto à Otan, que pretende criar uma força unificada diante do crescente poderio militar russo. Há uma outra diferença de expectativas. O Brasil pensava em mostrar ao mundo o poderio de seu futebol. A Rússia não tem ilusões nesse setor. A expectativa popular na seleção nacional é mínima.

Enquanto no Brasil que exporta craques para o mundo os jogadores são ídolos, na Rússia parece que esse lugar é ocupado por outras atividades, inclusive a de escrever. Num episódio recente, os jornalistas brasileiros registraram que havia pouca gente num evento sobre a Copa do Mundo. Ao mesmo tempo, uma pequena multidão se concentrava numa homenagem ao escritor Maksim Górki, morto em 1936.

Cada um tira da Copa do Mundo o que quer, e o único problema de quem é escolhido (e o próximo pode ser o Marrocos) são os oito anos de diferença: a História é cheia de armadilhas.


Foto: Beto Barata\PR

Fernando Gabeira: Onde canta o sabiá

Sem humor é difícil se aventurar em outra língua. E até achar uma saída nos descaminhos em que os dirigentes meteram o Brasil

Esta semana fui pegar uma credencial no Estádio Luzhniki, em Moscou, e ouvi vozes de turistas brasileiros. Em cada momento, ouvir nossas vozes tem um significado. No exílio, ou mesmo agora, quando o Brasil entra em parafuso, o impulso é sempre de salvá-lo dentro de nós, garantir sua continuidade através da teia de emoções.

Mesmo no período em que pesquisava a Rússia, o Brasil apareceu aqui e ali, de forma meio engraçada. Tenho dúvidas se as coisas aconteceram assim, não tive tempo de confirmá-las com os atores diretos.

No livro “Todos os homens do Kremlin”, Mikhail Zygar conta uma história de Putin que envolveu Dilma Rousseff. Foi numa reunião do Grupo dos 20, em Brisbaine, Australia, em 2015.

Segundo ele, os australianos e o Ocidente estavam querendo isolar Putin, depois da anexação da Crimeia. Os anfitriões australianos fizeram tudo para constranger o líder russo. O primeiro passo foi obrigá-lo a ficar na extremidade da foto, algo que jamais tinha acontecido com ele, e que deve tê-lo enfurecido, mas dificilmente um homem da antiga KGB expressaria emoções negativas.

À noite, segundo o autor, Putin foi afastado da mesa principal no jantar e ficou praticamente só na mesa com Dilma Rousseff. Duvido desse último lance. Dilma representava o Brasil, e a situação internacional do país era tranquila.

A outra história é mais pitoresca, ainda. Segundo dizem os autores do artigo, o presidente da Chechênia, Ramzam Kadyrov, organizou um jogo de futebol e um time chamado Brazil II. Kadyrov é fiel discípulo de Putin, gosta de esportes radicais, odeia opositores e gays.

Conta a lenda urbana que o jogo foi organizado pelo alemão Lothar Matthäus. O líder checheno entrou em campo e fez dois gols contra o Brasil, embora seu time tenha perdido de seis a quatro. O time brasileiro tinha Romário, Bebeto, Dunga e Cafu. Será que jogaram mesmo na Chechênia? Não me lembro de ter lido algo.

Quando lhe perguntaram sobre o cachê dos craques brasileiros, Kadyrov disse que eles jogaram de graça, pelo prazer do encontro. Afinal, admitiu que gastou algum dinheiro, mas que foi destinado às vítimas das enchentes no Brasil.

O nome dos craques coincide, e sempre temos algumas enchentes no verão. Mas isso tem todo o jeito de lenda urbana.

Estou na Rússia e vou à Chechênia, quem sabe, descubro algo por lá. O grande problema da viagem foi dedicar tanto tempo à leitura e pouco ao difícil idioma russo.

É possível aprender algo tão complexo na minha idade? Os especialistas acham que sim. Ao examinar o que pensam, acabei descobrindo que a regra de ouro para aprender um idioma é se divertir com ele.

Nesse particular, o mestre nacional é Rubem Braga. Sua crônica sobre o aprendizado de inglês é um texto inesquecível de nossa literatura.

“Is this an elephant?” Braga hesita diante da pergunta da professora, temendo ser precipitado. Não era um elefante, e a aula prossegue com várias perguntas desse gênero.

A crônica termina com o escritor diante de uma loja apreciando cachimbos e desejando que passasse por ali o embaixador britânico, a quem ele, erguendo o cachimbo, diria com a mesma ênfase com que respondeu às perguntas da professora: “This is not an ashtray”. O embaixador sairia feliz por ver um cidadão estrangeiro falando inglês, concluía Braga.

Sem humor é difícil se aventurar em outra língua. E até achar uma saída nos descaminhos em que os dirigentes meteram o Brasil.


Fernando Gabeira: O bloqueio das ideias

É tempo também de reorganizar a cabeça, depois desse movimento dos caminhoneiros que parou o País

Aos poucos volta a gasolina aos postos e os alimentos às prateleiras. É tempo também de reorganizar a cabeça, depois desse movimento dos caminhoneiros que parou o País.

Sim, é preciso reorganizar a cabeça. Não vai nisso nenhuma subestimação da inteligência. É que os fatos nos obrigam a uma constante revisão.

Esta semana, por exemplo, lembrei-me duma viagem a Santa Maria, no Rio Grande do Sul. Isso foi na década dos 90. Rodávamos por estradas precárias e perguntei por que não as reparavam. Alguém me disse que as estradas ali estavam perto da fronteira com a Argentina. Eram tão ruins que desestimulavam uma invasão militar.

Achei bizarro. Afinal, estamos de bem com a Argentina, já havíamos resolvido a questão nuclear fraternalmente. Aquilo era uma desculpa esfarrapada.

Voltando atrás no tempo, sigo pensando que as estradas devem ser as melhores possíveis. Mas percebo, com a paralisação da semana, que num país como o nosso deveriam ser um tema dominante na defesa nacional.

Um país não pode ser tão vulnerável. As notícias de perdas se sucedem: portos, agricultura, comércio, indústria, quase todos os setores da economia nacional foram atingidos.

Isso não quer dizer que nunca mais haverá greve de caminhoneiros. Simplesmente não podem ser devastadoras como esta.

A segunda ideia: como as coisas acontecem sem que sejam detectadas no País. As manifestações de 2013 começaram por causa dos 20 centavos a mais no preços das passagens. E surpreendentemente evoluíram para um protesto geral.

Onde estávamos todos? Talvez mais concentrados no jogo político de Brasília do que propriamente nas tensões sociais. Onde estava o governo, que recebeu uma indicação clara da greve e a subestimou?

Se fosse um pouco mais franco e transparente, pelo menos avisaria à sociedade que algo de muito grave estava para acontecer. Se não quisesse nos defender, ao menos acionaria nossos instintos de autodefesa. Não são necessariamente negativos como uma corrida aos supermercados. Havia muito o que fazer para salvar vidas, garantindo oxigênio, material de hemodiálise, enfim, artigos decisivos para a saúde pública.

As refinarias foram bloqueadas. Como, assim, as refinarias podem ser bloqueadas simultaneamente? Os grevistas chegaram primeiro, embora tenham avisado que iriam desfechar o movimento.

Compreendo a revolta difusa contra políticos que vivem no mundo da lua. Creio que ela é inevitável no Brasil de hoje, em que a sociedade já esgotou sua cota de tolerância.

O governo Temer está preocupado em fugir da polícia e influenciar as eleições. Ele merece uma dose de caos para cair na real. Mas a sociedade, não. Ele já vem sofrendo ao longo desses anos de crise, corrupção, assalto às empresas públicas, como a Petrobrás.

Existe alguma fórmula para evitar que um governo fraco fique de joelhos sem que para isso o próprio País também tenha de se ajoelhar?

O que me ocorre, as ideias ainda não voltaram todas às prateleiras: é um instrumento de Estado, uma lei talvez, que defina que o País não pode parar, independentemente das hesitações do governo.

Ao governo caberia negociar, mas dentro de um quadro em que estradas e refinarias não poderiam ser bloqueadas. Isso subordinaria as próprias negociações.

Por mais rastejante que fosse o governo, por mais concessões que estivesse pronto a oferecer, não estaria ao seu alcance permitir que o País parasse.

Finalmente, uma ideia que me faz lembrar 2013: uma revolta política despojada de uma visão real do que fazer, para onde ir.

Não se deve ignorar a presença no movimento de grupos que defendem a intervenção militar. Mesmo ignorados, estão crescendo. É preciso encará-los. Eles estão vendo a mesma decadência política que nós. Só que propõem uma saída absurda, não só pelas condições internas, mas também pelo isolamento internacional que isso representaria para o Brasil.

Foi num precário processo democrático que chegamos até aqui. E por meio dele vamos encontrar uma saída.

Já vi caminhoneiros precipitarem a queda do governo de Salvador Allende, no Chile. Estava defronte ao Palácio de La Moneda quando os aviões o sobrevoavam, anunciando o golpe. Augusto Pinochet acabou como alguns políticos brasileiros, alquebrado, de bengala, sempre nos colocando o dilema: cadeia ou prisão domiciliar para morrer em casa?

Voltar ao passado não é uma solução. É uma espécie de morte viver a História como uma repetição mecânica.

Não deixa de ser estranho ver tanta gente usando a rede social, que ampliou o potencial humano de livre expressão, pedindo uma ditadura militar. É como usar uma boia para se afogar com ela. Já não é apenas viver a História como morte, mas como suicídio.

Estamos num ano eleitoral. O País em frangalhos, uma esfera política desmoralizada, é nessa aridez que teremos de plantar a flor da mudança.

Um poeta consegue plantá-la no asfalto. Nossa tarefa não é tão difícil: derrubar pelo voto a maioria dos picaretas, eleger gente nova e empurrá-la para uma aliança com alguns sobreviventes, para que a inexperiência não venha a pesar tanto nas suas decisões.

Conviver com este governo e com todo o universo político é bastante doloroso. Mas não há alternativa. Em outubro já haverá um novo presidente, um novo Parlamento. Podem não ser ideais. Mas a lição destes anos é de que as más escolhas podem levar o País à desintegração.

Os adeptos do voto nulo deveriam parar um minuto e refletir sobre isso. Não existe outro mundo. Você pode deixar os políticos de lado, mas eles têm o poder de arrasar seu cotidiano.

Por favor, nada de suicídios, como a intervenção, nem masoquismo, como o voto nulo. Pelo menos, vamos tentar sair dessa maré.


O Estado de S. Paulo: ‘É um movimento contra a corrupção e contra os políticos’, diz Gabeira sobre paralisação

Para o jornalista e ex-deputado federal, greve dos caminhoneiros abre chance de união dos brasileiros por retomada de ‘sentimento de Nação’

Por Marcelo Godoy, de O Estado de S.Paulo

O jornalista e ex-deputado federal Fernando Gabeira classifica o movimento dos caminhoneiros como uma “revolta difusa” contra “o que chamam de roubalheira” e “contra os políticos”. “Mas não tem uma visão do que colocar no lugar.” Para Gabeira, o movimento abre a chance de os brasileiros se unirem em torno da ideia de uma cultura, a retomada de um “sentimento de Nação”, sacudindo o “País de fantasia” na qual se encerraram políticos e elite burocrática. Em entrevista ao Estado, o jornalista aprofunda sua análise sobre o momento do País. Leia os principais trechos.

Em seu artigo A falta que um governo faz, em O Globo, o sr. diz que a retomada de um sentimento de Nação pode sacudir a “ilha da fantasia” de Brasília. Por quê?
Eu acredito que é uma oportunidade, pois é muito difícil ver o País se desmanchando. Ficou claro o processo de ausência de uma ação do governo de antecipação, de informação de negociação no princípio. Depois ficou clara a vulnerabilidade do País. Eles criaram uma situação que tornou difícil até a intervenção das Forças Armadas.

Por que o sr. acha que apesar dos acordos anunciados pelo governo o movimento não parou?
Não parou porque a imprensa não está vendo o movimento em sua amplitude. A imprensa vê nele um movimento econômico, mas na verdade ele é um movimento econômico e político. Muitos caminhoneiros e grupos que participam desse movimento esperavam uma mudança do próprio governo. Desejam uma mudança do governo. Existe um conteúdo político que foi esvaziado. Ninguém fala que, além de todas as reivindicações, eles querem um novo governo.

O que seria esse novo governo? Falou-se muito que alguns pretendem a volta de um regime de força, uma ditadura militar.
Eu acho que eles não têm noção do que seria o novo governo. Aqueles que articulam essa ideia veem na volta dos militares uma alternativa, mas ao mesmo tempo a gente ouve e sente uma revolta difusa contra o que chamam de roubalheira. É ao mesmo tempo um movimento contra a corrupção e contra os políticos, mas não tem uma visão do que colocar no lugar.

Existiria um certo moralismo autoritário difuso no movimento?
Existe uma visão potencialmente autoritária que coincide com uma noção apressada e falsa de que o processo democrático fracassou. Não que eu não dê razão a quem acha que o sistema partidário e político está na ruína, mas eu não acho que o sistema democrático fracassou.

O sr. acha que esse movimento pode evoluir como em 2013 para uma rejeição à política?
Até o momento quase todo apoio que ele recebeu foi difuso e mais ou menos voltado à condenação dos políticos. Há uma parte de gente que não está ligada ao preço do diesel e às condições de trabalho dos caminhoneiros que acha que vale a pena (protestar) porque o governo não presta. Essa é uma atitude comum e se manifesta na entrega de alimentos e material de infraestrutura para os caminhoneiros. E há o apoio dos motoristas de aplicativos, de táxis e de vans escolares que encaminharam uma espécie de apoio econômico e esperam se beneficiar com essas conquistas.

Quando o sr. diz que o preço da gasolina não precisava ser tão alto, aborda a questão sobre a quem o Estado serve. O sr. considera que as pessoas também estão questionando isso?
Eu acho que sim, embora não o façam de uma forma articulada, elas questionam os gastos e a roubalheira da política, mas, simultaneamente, o que reivindicam representará o aumento de gastos do Estado. A melhor maneira de tratar o assunto, além de ter um serviço de inteligência, coisa que andou longe nesse caso, é ter uma visão de como diminuir o preço por meio da redução de impostos. Houve uma ideia brilhante que surgiu que é ter uma espécie de gatilho que, aumentando o preço do petróleo, diminua o imposto para garantir o equilíbrio. Isso devia ser feito antes pelo governo.

Por que o sr. acha que a política não conseguiu vislumbrar essa crise que se avizinhava?
Primeiro porque os políticos criaram um universo distante do mundo real e frequentam muito pouco esse mundo real. Depois, mesmo se frequentassem, o objetivo deles está voltado para as suas respectivas eleições ou, no caso de um grupo pequeno, entre os quais incluo o presidente da República, à sobrevivência em relação à Lava Jato. Esse conjunto de preocupações com os interesses eleitorais e sobre como escapar da polícia dificulta muito ter uma visão da realidade brasileira.


Fernando Gabeira: A falta que um governo faz

O Brasil mostrou-se vulnerável. Um plano elementar de defesa garantiria com escolta armada a saída dos caminhões com combustível

A crise que paralisa o país neste ano eleitoral é um estímulo para que as pessoas compreendam a falta que um governo faz num país.

O governo tinha condições de prever a paralisação. Possui recursos para a inteligência e, sobretudo, tinha uma posição privilegiada para entender a evolução da crise: desde julho do ano passado estava negociando com os caminhoneiros.

Portanto, falhou nesse quesito. Sua saída seria ter um plano para permitir que, apesar da greve, o país funcionasse no essencial. Mas nunca se aprovou uma estratégia de defesa nacional, apesar de o projeto ter uma década de existência.

O Brasil foi pego de calças na mão. Mostrou-se um país vulnerável. Um plano elementar de defesa garantiria com escolta armada a saída dos caminhões com combustível. Isso aconteceu em Curitiba e, parcialmente, deu certo para manter o transporte urbano em ação, aliviando o peso dos que se deslocam para trabalhar.

O Brasil poderia estar menos dependente da gasolina. Mas congelou o projeto que impulsiona os biocombustíveis. Seduzidos pelas descobertas do pré-sal, acorrentamos nosso destino ao combustível fóssil.

Da mesma forma, o Brasil poderia ter mantido e desenvolvido suas ferrovias. Mas caiu na ilusão tão comum no Novo Mundo: uma nova opção tecnológica remete as outras para os museus.

O preço da gasolina não precisava ser tão alto. Cerca de 45% são impostos. A máquina dos governos em Brasília e nos estados não dispensa esse dinheiro porque jamais soube reduzir seus custos.

Os políticos e a elite burocrática ainda não caíram na realidade. A máquina administrativa é de um país ilusório, muito mais rico do que o país de concreto, que todos habitamos de carne e osso.

É esse país da fantasia que precisa desaparecer com a sua máquina do Estado catapultada para o mundo real. Vivemos um momento de avanços tecnológicos que poderia tornar o enxugamento dos gastos mais fácil que no passado.

Não creio que gastando mais com o país e menos com o seu governo arriscaríamos a competência ou mesmo a dignidade dos cargos.

No país real, a dignidade de uma elite governante também se mede pelo seu esforço em ser austera, pela decisão de compartilhar nossas limitações cotidianas. E não por construir um oásis particular no deserto de nossa desesperança. A ausência de um governo revela também a nossa fragilidade quando não dispomos desse instrumento. De repente, o Brasil parou, somem os alimentos, em alguns lugares também a água mineral.

É como se o país trocasse de mãos. Não só estradas, como refinarias foram bloqueadas. Uma coisa é fazer greve, outra intervir na vida dos outros e do próprio governo. Os lances ilegais não foram punidos, nem apurados os indícios da presença das grandes empresas na greve. Paradoxalmente, num momento de fragilidade como esse a sociedade encontra uma possibilidade de mostrar sua força.

Para muitos, o que se passa no universo político não interessa, o melhor é deixar de lado e cuidar da própria vida. Mas eis que uma paralisação como essa revela claramente que não existe vida própria, blindada contra os descaminhos da elite dirigente. Gasolina, alimentos, água de beber tudo isso invade a existência pessoal com seus vínculos familiares.

A greve foi um momento em que nos sentimos muito sós. Mas abre a chance de nos reunirmos em torno da ideia de um país, uma cultura, enfim, de retomar algum nível de sentimento nacional. Isso passa por uma grande sacudida no país da fantasia.


Fernando Gabeira: Um fio de esperança

Talvez o novo não surja com o frescor da pele de um bebê, mas se infiltre no que já existe

Sempre que examino o horizonte próximo das eleições presidenciais, não consigo dissociá-las dos rumos da Lava Jato num aspecto fundamental: a ruína dos maiores partidos brasileiros. O PT sofreu o maior impacto, com a prisão de Lula. PSDB e MDB arrastam-se em escaramuças jurídicas, sem perceber que também estão em decadência aos olhos dos eleitores.

Ambos tiveram seus operadores presos pela Lava Jato e soltos por Gilmar Mendes – Paulo Preto e Milton Lyra, respectivamente. No futebol costumamos dizer que o juiz quando apita uma falta de ataque inexistente na grande área, apita perigo de gol. Gilmar apita perigo de delação premiada, tentando evitar a derrocada total dos dois grandes partidos.

PSDB e MDB possivelmente respirem aliviados com operadores soltos ou mesmo, no caso de Geraldo Alckmin, com seu processo sendo retirado da competência direta da Lava Jato. Mas essa sensação de alívio momentâneo não leva em conta o fato de que tudo está sendo feito relativamente às claras, diante de uma opinião pública atenta. O desgaste é permanente e tende a crescer.

A ruína dos três grandes partidos revela também um paradoxo nas eleições deste ano. Ao mesmo tempo que estão em queda, são eles que devem deter a maior parte dos R$ 2,6 bilhões destinados a financiar a campanha eleitoral.

Em cada um desses três grandes partidos há candidatos mais ou menos capazes de atrair o voto popular. Mas as siglas foram marcadas pelo processo de corrupção. Dificilmente qualquer de seus candidatos conseguirá neutralizar esse estigma.

Esse raciocínio leva muitos analistas a considerarem a hipótese de um outsider nestas eleições. Alguns enfatizam o perigo de uma crise maior no caso da ascensão de alguém “de fora do sistema político-partidário”.

Duas potenciais candidaturas passaram pelo noticiário como cometas: as de Luciano Huck e de Joaquim Barbosa. A razão de sua escolha era precisamente oferecer um nome de fora, alguém que não se tivesse envolvido com os grandes partidos e pudesse captar o desejo de renovação.

Isso não é inédito na política brasileira. Dirigentes do atual DEM tentaram algumas vezes convencer Silvio Santos a disputar as eleições presidenciais. De modo geral, estamos acostumados aos quase candidatos, aos que se aproximam, flertam com a campanha, mas voltam logo para suas carreiras na iniciativa privada.

A perda de legitimidade dos grandes partidos, no entanto, nem sempre conduz a um candidato absolutamente estranho à cena política. Fala-se muito na campanha de Emmanuel Macron, mas sob muitos aspectos, inclusive experiência de governo, ele era um insider.

As pesquisas revelam, por seu lado, uma grande tendência à renovação, algo que todos sentimos nas conversas de rua. Quando essa tendência existe, pode haver resultados devastadores para os partidos. Mas ela pode também ser transferida para o interior do sistema político-partidário.

Uma das tarefas é dissecar o que define o novo na política. O processo não deixa dúvidas de que um elemento essencial é a promessa de combate à corrupção. Nesse sentido, os candidatos terão de reelaborar aquele projeto assinado por mais de 2 milhões de pessoas e que foi trucidado na Câmara. Não era um projeto perfeito, continha artigos potencialmente discutíveis à luz da Constituição.

Não creio que os 2 milhões de brasileiros que assinaram esperavam que fosse aprovado na íntegra. Se isso acontecesse, poderíamos revolucionar o Brasil com abaixo-assinados.

Mas o que ficou claro é que desejavam uma política contra a corrupção e apontavam suas linhas mestras. Sua pergunta continua no ar: que resposta política institucional será dada ao trabalho da Lava Jato, reconhecidamente incapaz de, por si só, equacionar o problema de forma satisfatória?

Outro aspecto que também pode preencher o desejo de novidade é a capacidade do candidato de se aproximar do País real. Um dos dramas dessa distância entre políticos e realidade nacional é a crise de segurança pública. Há muitos anos se tornou evidente a organização do crime em nível nacional no Brasil, até mesmo com ramificações na América do Sul.

No entanto, apesar de tentativas tímidas, presidentes sempre consideraram a segurança pública algo que deve ser resolvido no âmbito dos Estados. Ambas, corrupção e segurança, são temas atraentes para a demagogia, porque seduzem os que esperam soluções milagrosas.

Um terceiro ponto da renovação é realmente intrincado para mim. Ela demandaria um certo nível de unidade nacional para reconstruir um País arrasado.

Mas quando as pesquisas aparecem, e o nome de Lula nelas, torna-se evidente que, nesse ponto, as preferências pelos extremos são mais numerosas. Em outras palavras, o chamado centro do espectro político não é visto como a alternativa de uma transformação.

Há, entre outras, duas formas de encarar essa realidade. Uma delas é encontrar uma base real nas pesquisas e concluir que o centro é incapaz de encarnar essas aspirações. A outra é admitir que em outros países o centro perde substância, como na eleição de Trump, nos Estados Unidos, e no Brexit, na Inglaterra.

Esses fatores, a crise brasileira e o processo de globalização, não são idênticos, mas revelam uma dificuldade comum às forças moderadas. A tentação é concluir que nada de novo surgirá da campanha.

Porém aí seria também subestimar a capacidade de novas ideias políticas surgirem no cenário. Talvez o novo não apareça com o frescor da pele de um bebê, mas se infiltre no que já existe, produza composições e mudanças imperfeitas que possam representar algum avanço.

Diante desse quadro, as esperanças não podem focar apenas em candidatos, mas na capacidade social de produzir algumas direções de que eles não possam fugir, ainda que imprimam nelas suas marcas e seus defeitos pessoais.