Fernando Gabeira
Fernando Gabeira: Um novo ato em fevereiro
Moro vai comer o pão que o diabo amassou para aprovar a sua agenda no Congresso
A relação de Bolsonaro com o Congresso é um enigma dentro do enigma. Ele promete romper com o velho esquema de governo de coalizão.
Esse já é um dos grandes desafios. Toda vez que se tentou, a percepção era de que formar um governo técnico seria possível, porém discriminar os políticos o levaria à ruína, uma vez que entre os políticos existe gente capacitada e ainda sem grandes problemas. A própria expressão discriminar é impensável num governo amplo.
Bolsonaro decidiu substituir os partidos pelas bancadas temáticas. Nada garante que elas não tenham os mesmos vícios, ou que possam oferecer fidelidade em temas que escapam ao seu campo de ação.
Houve renovação no Congresso. E foi superior às nossas previsões pessimistas, baseadas no fato de que os velhos caciques concentraram a grana para financiar a campanha.
Mas não foi possível, por falta de articulação ou mesmo perspectiva, unificar os novos com os mais experientes, aqueles que sobraram do desastre e poderiam pôr seu conhecimento a serviço de uma transformação.
Sozinhos, os novos não elegem a Mesa. E se elegessem estariam em dificuldades. Costumo dizer que 512 deputados estreantes e bem-intencionados seriam facilmente enrolados por uma só raposa regimental como Eduardo Cunha.
A saída que parece possível no momento é manter a velha direção; no caso da Câmara, Rodrigo Maia. Ele não sobrevive apenas por falta de alternativa. Sabe conciliar-se com as diferentes tendências políticas, enfim, traz um aprendizado que os novos não têm e os sobreviventes que por acaso o tenham não conseguiram capitalizar.
Dizem que Renan Calheiros é o favorito no Senado. Seria mais uma referência do passado, mostrando a limitação das mudanças. Não surgiu ainda no Senado, apesar da grande renovação, uma alternativa viável. O trunfo para evitar a vitória de Renan seria a conquista do voto aberto.
Sou favorável ao voto aberto e, dentro dos limites, lutei para que fosse ampliado o seu alcance na pauta de decisões. Mas o voto aberto numa eleição é sempre problemático.
A minoria pode se sentir constrangida em abrir um flanco para a vingança dos vencedores. Não falo de todos. Alguns são claros adversários de Renan e vão antagonizá-lo independentemente de voto aberto. E Renan saberá que votarão contra ele, mesmo na votação fechada.
O que os antigos dirigentes do Congresso podem oferecer a Bolsonaro, e parece que já indicaram isso, é rapidez e boa vontade nas reformas econômicas. Renan chegou a falar num processo rápido de votação, um fast track à moda do Congresso americano.
Se a aliança nas teses econômicas é fácil, em outro campo eles vão fazer corpo mole: as medidas contra a corrupção. Renan é a esperança que resta a alguns adversários da Lava Jato. Em vários momentos já demonstrou sua oposição a Sergio Moro.
Aí está o problema para Bolsonaro. Se, de um lado, será mais rápido aprovar medidas econômicas que não são assim tão populares, de outro, Moro vai comer o pão que o diabo amassou para aprovar sua agenda, que é muito mais popular.
É sempre tentador aprovar as reformas econômicas, com o apoio da imprensa e dos investidores. Talvez surja no governo a hipótese de investir nisso e deixar a agenda política para depois. Pode não funcionar.
Adiar a pauta de Moro não tem o mesmo efeito de adiar a pauta de costumes, que serve mais para animar a discussão nas redes sociais do que, realmente, mudar o País. Imagino a ministra de Direitos Humanos diante de três secretárias, alguns carros usados no pátio, batendo na mesa: “De agora por diante, menino veste azul e menina, rosa”. Dava o início de uma boa série da Netflix.
O combate ao crime organizado e à corrupção é tema urgente. Estou em Fortaleza, cobrindo a onda de ataques no Ceará. Mas nem precisava. Já estive antes, para mostrar como as facções criminosas dominaram as cadeias do Estado e se matavam pelo controle das ruas. Agora fizeram um pacto, uniram-se para a onda de terror.
No caso do crime organizado, não acredito tanto numa nova estrutura legal. É preciso inteligência e ação. Creio que a primeira faltou no Ceará quando anunciaram uma série de medidas repressivas sem estar preparados para ela. O golpe se dá de uma só vez, o bem é que se faz aos pouquinhos.
Na hipótese de aprovar as reformas econômicas, Bolsonaro pode se sentir forte. Mas as velhas lideranças também. Será muito difícil desatar o nó e abrir o caminho para a agenda de Moro. O ideal seria pensar todos esses temas no conjunto.
Mas no Brasil a campanha presidencial predomina. Em torno de um nome popular, as bancadas eleitas são uma espécie de arrastão. De fato, eles são novos, mas estão preparados para o longo combate? Os próprios presidentes, ocupados em garantir sua popularidade, esgrimindo frases de efeito, pavimentam sua vitória e deixam para depois a articulação dos grandes problemas.
Se é tudo tão nebuloso, por que escrever um artigo? Porque, apesar das confusões, existem algumas passíveis de ser previstas. Uma delas, inequívoca, é a de que a vitória de Renan e a relativa indiferença de Maia na defesa da Lava Jato podem levar, entre dezenas de pequenas barganhas, à grande e decisiva batalha em torno da corrupção.
Até que ponto isso foi apenas um tema de campanha? Até que ponto a corrupção é algo condenável apenas nos partidos de esquerda, ou é algo muito mais amplo e envolvente na História moderna do Brasil?
Essas previsões só serão mais bem desenvolvidas quando se fizer uma análise mais completa do novo Congresso. Por enquanto, temos nomes, biografias, mas só vamos conhecê-los mesmo diante dos grandes embates.
No meio do século passado as coisas eram mais previsíveis com as grandes bancadas da UDN e do PTB. Hoje é preciso esperar o começo e preparar-se para quatro anos de surpresas.
Fernando Gabeira: Salvação e salvadores
Política externa do PT foi desvio voluntarista. Ao delírio da esquerda, não se pode responder com o delírio da direita
Outro dia, li uma nota levemente crítica ao ministro Ernesto Araújo, das Relações Exteriores. Ele escrevera um artigo afirmando que Deus estava na diplomacia, na política, em todos os lugares.
Embora não seja propriamente um teólogo, considero bastante previsível a crença na onipresença divina. Algumas religiões estendem o dom da ubiquidade a todos os espíritos. Para dizer a verdade, alguns deuses, como o hindu Shiva, têm poderes muito mais ecléticos: dança, destrói, faz um carnaval.
Não temos o dom divino da onipresença porque somos humanos e não toleraríamos a presença na vastidão. No meu caso, dispensaria Bruxelas sob chuva e as noites de Codó, no Maranhão.
O que me intriga no pensamento do ministro Araújo é sua crença na salvação do Ocidente, liderado por Donald Trump. Essa história de salvação, creio que surgiu, pela primeira vez, com Zoroastro, perpassou o cristianismo, reaparece na religião laica que é o marxismo e sobrevive em alguns setores da ecologia que acreditam poder salvar o planeta.
Se a salvação para mim é um conceito duvidoso, o que diria do salvador? De que podemos ser salvos por alguém como Trump, que diz às crianças que Papai Noel não existe e contrata advogados para silenciar mulheres com quem transou?
Se pelo menos Trump usasse o que se diz sempre — errar é humano, a carne é fraca, atire a primeira pedra —, os valores ocidentais estariam em melhores mãos. O problema central é a relação com os Estados Unidos. Ela precisa de equilíbrio, e há quem trabalhe nesse tema desde o século passado.
Afonso Arinos, em 1952, quando ainda esboçava suas ideias sobre uma política externa independente, defendeu o Acordo Militar Brasil-EUA. O governo Vargas queria isso, mas não teve coragem de dar as caras. Resultado, Arinos apanhou sozinho da esquerda.
Acontece que no acordo havia um só tópico que não interessava ao Brasil. Arinos ofereceu uma fórmula diplomática para contornar a dificuldade. Apanhou da direita.
Mesmo nos primórdios do que mais tarde seria uma política externa independente, a proximidade com os Estados Unidos representava um fato decisivo. Mas também era bastante claro que a proximidade não significava uma adesão acrítica a todas as propostas americanas.
No momento, esta questão vai aparecer com muita delicadeza, entre outras, nas relações com a China. Trump espera apoio na sua guerra comercial. Mas tem negociado intensamente com Xi Jiping.
Não está muito claro o papel que teremos nesse triângulo. Por enquanto, estamos ainda em discussões teológicas, ave-maria em tupi, José de Alencar e arroubos nacionalistas.
Tudo isso, para mim, anima um pouco o morno universo político brasileiro. Mas existem algumas contradições. Um forte tom nacionalista quando se trata de organismo multilateral. Uma duvidosa escolha do salvador, quando se trata das ameaças ao Ocidente.
Não imagino que o olhar severo do ministro Araújo esteja voltado contra os jogadores de I Ching ou leitores do Tao. Ele se preocupa com o marxismo chinês, com os grupos islâmicos, com a desaparição de traços culturais do país num mundo globalizado.
Mas é um exagero supor que nossa política externa seja uma medíocre omissão baseada em interesses comerciais. O desejo de defender a paz e solução negociada para os conflitos é um dado da cultura brasileira.
No século passado, o Peru inaugurou uma avenida com o nome de Afrânio Mello Franco, pai de Afonso Arinos. Os peruanos acham que o velho contribuiu para evitar uma guerra com a Colômbia.
Se isso não basta, lancemos um olhar para o próprio governo Bolsonaro. Dois dos seus ministros são generais destacados na manutenção da paz no mundo: Augusto Heleno, no Haiti; Carlos Alberto dos Santos Cruz, no Congo.
O Brasil não é uma invenção intelectual. A política externa do PT foi um desvio voluntarista. Ao delírio da esquerda, não se pode responder com o delírio da direita.
Política externa é fruto de um consenso nacional. Não adianta forçar a barra. Sofremos com isso, e o preço político que os vencedores do momento pagarão é bem maior que os equívocos domésticos, num país em que nem todos os meninos se vestem de azul, nem todas as meninas de rosa.
Fernando Gabeira: Políticos para se falar bem
Arinos e Nabuco, no meu entender, têm muito em comum. Longas passagens pela Europa, famílias de políticos ilustres
Hoje gostaria de elogiar dois políticos brasileiros. Não se assustem: estão mortos. Um deles é Afonso Arinos, cujas memórias, “A alma do tempo”, acabam de ser publicadas na íntegra pela Top Books, um feito editorial, pois constam de 1.779 páginas, incluídas as notas. Nos últimos dez dias, consegui ler 400. Não posso falar ainda sobre o livro no conjunto. Mas o que li até agora é o bastante para lamentar ter perdido, por alguns anos, a chance de conviver com Arinos no Congresso. Quando cheguei, já não estava mais.
Essa hipótese de convivência nem existiu com Joaquim Nabuco, autor de “Minha formação”. Só mesmo na fantasia poderia estar ao seu lado, fazendo perguntas, ouvindo e anotando seus discursos.
Arinos e Nabuco, no meu entender, têm muito em comum. Longas passagens pela Europa, famílias de políticos ilustres. Nabuco e Arinos escreveram sobre seus pais. Nabuco, “Um estadista do Império”, Arinos, “Um estadista da República”, dois livros já indicam uma certa continuidade histórica entre os dois.
Nabuco foi um dos líderes da campanha pela Abolição. Afonso Arinos é o autor da lei brasileira contra a discriminação racial. O que José Guilherme Merquior diz sobre Arinos, num dos prefácios de “A alma do tempo”, talvez seja válido também para Nabuco: “o sabor das elites que aprendem com a história e acabam por liderar as mudanças construtivas.”
A principal tentação é a de afirmar que existem políticos interessados no país, capazes de se bater por grandes ideias, algo bastante diferente do que se pensa hoje. Gilberto Freyre destaca essa qualidade em seu conterrâneo Nabuco, acentuando que é importante conhecê-lo num momento em que os políticos parecem mistificadores e o Congresso, uma inutilidade dispendiosa.
Minha vontade de estudar e escrever sobre as semelhanças entre Nabuco e Arinos não é tanto extrair uma lição de moral de sua experiência política e sua passagem brilhante pela vida pública.
No fundo, é mais a constatação de um tempo perdido, uma certeza de que essas estrelas não acontecem mais em nossa constelação dirigente. A hipótese é de que a política perde importância, e essa decadência está associada ao próprio declínio do Estado, que aos poucos vai perdendo suas clássicas funções.
De qualquer forma, num passe de realismo mágico, seria interessante reviver essas duas figuras e passear com elas no panorama desolador de Brasília.
Nabuco certamente ficaria mais assustado, pois morreu muito antes da mudança da capital. Arinos viu a cidade nascer, passou por ela dois meses após sua fundação. Suas observações na época coincidem com as minhas hoje.
Arinos critica a inadequação dos prédios de Niemeyer para os órgãos públicos. Acha que não têm a privacidade necessária. O mesmo tenho dito sobre o Congresso, com pouco espaço específico para articulações. Ele reclama de não ter visto um cavalo arriado, uma galinha viva nas ruas de Brasília. Vi algumas carroças, mas galinha, só nas mesas.
O mais interessante, no nascimento de Brasília, foi sua intuição de que havia algo errado nas relações humanas e que aquilo indicava um potencial de corrupção nos círculos superiores.
Outro dia, li um relato na revista “Crusoé” sobre o que se passava em alguns gabinetes da Câmara, deputados comendo pão com linguiça, pedaços de galinha e trocando imagens de mulheres nuas nas telas de seus telefones. O que diriam Nabuco e Arinos diante dessa paisagem? Possivelmente, buscariam refúgio na literatura.
No meu último mandato, o nome de Nabuco surgiu como um meteoro num debate na Câmara. Um deputado me perguntou: “Quem é esse cara? Deve ser do PFL de Pernambuco, suponho”. “Ah, bem”, disse ele, e continuou o bate-boca.
Ambos, Nabuco e Arinos, de uma certa forma foram acusados de distância do país, de serem intelectuais com os olhos na Europa. Ao falar de Nabuco, Arinos explica bem o que há por trás de uma falsa impressão:
“A personalidade nacional coexiste muito bem. Nenhum diplomata brasileiro mais universal e mais nacional que Joaquim Nabuco. Nabuco é como um parque brasileiro antigo, cheio de mangueiras, de jaqueiras, de bogaris e que, de longe, dá a impressão de ser um parque inglês. É como um dos velhos jardins da Rua São Clemente”.
Fernando Gabeira: Uma pequena dose de Jânio
Era mais confortável canalizar as atenções para o biquíni que para as finanças nacionais
O futuro ministro da Cidadania, Osmar Terra, falou em proibir o álcool em algumas circunstâncias e provocou polêmica. Creio que as pessoas entenderam que Terra queria proibir o álcool de forma geral.
A experiência no Brasil, no entanto, já mostrou que em certos momentos é possível controlar o consumo com êxito na redução da violência. Para isso é necessário um mapa preciso dos incidentes violentos, indicando hora e lugares onde acontecem.
Não concordo com a visão geral de Osmar Terra sobre política de drogas. Mas também não concordava com a visão proibicionista do velho e saudoso Elias Murad. Uniam-me a Murad, assim como a Osmar Terra, não só a amizade cotidiana, mas uma certa humildade diante desse complexo problema, para o qual ninguém pode dizer que tenha todas as únicas respostas certas.
Basta ver, no momento, a devastação humana que o consumo de opiáceos está provocando nos Estados Unidos. É um desafio para o governo Trump, mas suas raízes o antecedem.
Mas a democracia nos faz experimentar. No Brasil, com a vitória conservadora, é razoável que a política de Terra seja desenvolvida. No Canadá, por exemplo, o governo rumou noutro sentido, legalizando a maconha. Dizem os jornais que a Marlboro entrou no negócio e suas ações subiram mais que as da Bombardier, a correspondente canadense da Embraer.
Não sou ingênuo a ponto de apresentar uma única variável, o sucesso econômico, como critério para analisar uma política dessa envergadura. Apenas registro: a democracia abre o caminho para diferentes experimentos.
Esse pequeno debate em torno do anúncio de Osmar Terra me fez refletir sobre o passado, mais especificamente o período Jânio Quadros. Sem querer comparar governos, registro apenas que naquela época havia também uma combinação entre temas conservadores nos costumes e medidas amargas na economia.
Nos costumes, os temas são muito mais voláteis do que a constância insuperável do preceito econômico que nos proíbe de gastar mais do que produzimos, ao longo de muito tempo. Nenhum governo federal se importaria hoje em proibir brigas de galo, como Jânio fez. Mesmo temas mais amplos, como as vaquejadas e os rodeios, deslocam-se para o Congresso e o STF.
O que diria, então, da proibição do biquíni? Isso provocaria um movimento maior que a revolta das vacinas nos tempos de Osvaldo Cruz. Talvez nem isso, apenas uma explosão nacional bem-humorada.
O interessante em Jânio não era a coexistência dessas duas pautas, que, em outro nível, existem também no governo Bolsonaro. O interessante era como Jânio as combinava.
Sempre que era forçado a tomar medidas econômicas impopulares, Jânio lançava uma dessas proibições que eletrizam a opinião pública. Era muito mais confortável canalizar as atenções para o biquíni do que para as combalidas finanças nacionais.
Não creio que Bolsonaro siga o mesmo caminho. Nada neste período preparatório sugere o cinismo e a sofisticação de Jânio. Além do mais, parece-me que Bolsonaro realmente acredita nos temas de comportamento que defende e vai brigar por eles com o entusiasmo de quem se batizou no Rio Jordão.
Mais que semelhanças, vejo no governo Bolsonaro o fim de algo que surgiu no governo Jânio: a chamada política externa independente, que estabeleceu relações diplomáticas com países socialistas, Cuba incluída. Ainda sem julgar o mérito dessas políticas, tudo indica que o peso ideológico na gestão Ernesto Araújo vai revolucionar as bases do trabalho de Afonso Arinos. Portanto, as comparações entre os governos Jânio e Bolsonaro não podem ignorar essa descontinuidade.
Por falar em Afonso Arinos, recebi nas vésperas do Natal o monumental livro de memórias, intitulado A Alma do Tempo. Um verdadeiro ato de heroísmo do editor José Mario Pereira, da TopBooks. O livro tem 1.790 páginas. Ainda não cheguei à metade do caminho. Cuidarei dele em outros textos.
Os últimos anos foram muito focados na experiência do PT, no máximo, no governo tucano, que lhe antecedeu. Com a ajuda de Arinos e, certamente, de Joaquim Nabuco, ambos atores e intérpretes da saga política familiar, é possível olhar um pouco mais para trás, puxar fios mais longos da meada histórica.
A primeira tarefa, e nisso creio que as memórias de Arinos ajudam, será examinar a experiência de Jânio. Não cheguei no livro plenamente a ela. Mas já no início há referências à instabilidade de Jânio.
Collor foi também uma experiência conservadora. Mas parecia voltado para a economia, para um consumo cosmopolita, uma clássica defesa do meio ambiente.
Bolsonaro pertence aos tempos modernos, em que, segundo Umberto Eco, se desenha um populismo qualitativo de TV ou internet, no qual a resposta emocional de um grupo selecionado de cidadãos pode ser apresentada e aceita como a “voz do povo”. A diferença é que ele chegou ao poder não pela resposta emocional de um grupo selecionado, mas pela vontade da maioria do povo brasileiro. Em outras palavras, até aqui, tudo bem.
Até onde minha vista alcança, os primeiros sobressaltos estão ao norte. Maduro assume dia 10 e a Colômbia propõe que os outros países não reconheçam seu novo governo. Por sua vez, o próprio Maduro andou apreendendo um navio da Guiana, reavivando aquele velha querela em torno de Essequibo, problema que vem desde o século 19 e envolve uma região rica em minérios e um mar potencialmente com muito petróleo. E ainda por cima disse que o general Mourão tem cara de louco. Mourão serviu na Venezuela, conhece a gênese do bolivarianismo.
Vai ser preciso cabeça fria naquela fronteira, concentrar no trabalho humanitário. Provocações podem surgir. Maduro está precisando de inimigos para garantir a coesão interna.
O Brasil só precisa de paz para se reconstruir.
Fernando Gabeira: Gurus, charlatões e curandeiros
Relação entre guru e discípulos é uma espécie de deslocamento das estruturas sociais autoritárias para as relações pessoais, diz livro
Volto de Goiás, onde revisitei o centro de João de Deus, em Abadiânia, e o sítio de Sri Prem Baba, em Alto Paraíso. Duas cidadelas espirituais, atingidas em níveis diferentes por um dos tradicionais adversários do espírito: a carne.
Na década dos 80, visitei o ashram de Rajneesh em Poona, na Índia. Faz anos, portanto, que me interesso pelo tema. Não tenho uma opinião formada, como os autores Joel Kramer e Diana Alstad, que escreveram o livro “The Guru Papers”, cujo subtítulo é: “máscaras de um poder autoritário”.
Eles afirmam que a relação entre guru e discípulos é uma espécie de deslocamento das estruturas sociais autoritárias para o âmbito das relações pessoais. Há algo, no entanto, que minha experiência individual leva a uma concordância com eles: religiões milenares não conseguiram alterar a fragilidade da natureza humana.
Mas isso não é uma grande novidade. O avanço da ciência e da tecnologia também não significou necessariamente um avanço ético.
Kramer e Alstad tratam mais de gurus de origem oriental. No capítulo em que descrevem seu poder sexual sobre os discípulos, destacam duas condições que o favorecem: o celibato e a promiscuidade, no fundo uma ausência de vínculos que deixa o discípulo mais vulnerável.
Alguns gurus de origem oriental vêm de sociedades mais rígidas. No Ocidente, tentam aplicar algumas de suas técnicas e rituais sob o argumento da liberação de impulsos reprimidos.
Em muitos casos, a relação com a discípula é vista como uma espécie de uma graça que a distingue dos outros. Mas há também a tentação de formar haréns com as escolhidas.
No caso de Sri Prem Baba, esses elementos não estão presentes. Mesmo porque, apesar de formado na Índia, ele é brasileiro, oriundo de uma sociedade mais liberal.
Ainda assim, ao me referir de passagem ao caso que teve com uma discípula, afirmei que era relativamente consensual. Isso porque o poder do guru é muito grande. Ao seguir um guru, somos convidados a nos render. Como lembram os autores, paixão significa abandono, deixar rolar: render-se, de uma certa forma, é um caminho para a paixão.
O caso de João de Deus é diferente. Ele é famoso por curar. Quando o entrevistei, percebi alguns traços do rude garimpeiro e uma certa ignorância sobre as forças ou entidades que lhe comunicavam o poder de curar.
Muito possivelmente, a relação entre um paciente e o curandeiro não tem as características de rendição emocional entre guru e discípulo.
Ora é uma necessidade de sobrevivência, ora a superação de um doença que impossibilita a vida plena, ou mesmo uma tentativa de contornar a condenação à morte pela medicina tradicional.
Ironicamente, no caminho para Abadiânia, soube que na cidade próxima, Alexânia, um padre foi condenado por abuso sexual. O mesmo aconteceu em Anápolis, onde João de Deus mora.
O mais irônico ainda é constatar que a concentração de poder nas mãos do guru ou do curandeiro os deixa espetacularmente fragilizados diante da vida.
No mundo político, as delações premiadas são validadas por provas. No universo espiritual, entretanto, basta a palavra do outro para desfechar uma onda de condenação. E isso vale inclusive para os campos onde o poder masculino se impõe: basta ver a comoção que o movimento feminista provocou no universo das artes nos EUA.
As religiões podem melhorar nossa vida porque ajudam a carregar o fardo da mortalidade. Mas os seres humanos, pelo menos foi meu aprendizado de vida, continuam frágeis e limitados como sempre foram.
Por isso, com o olhar de hoje, vejo como charlatanismo a proposta de Che Guevara de criar um novo homem. Na verdade, somos e seremos muito menos importantes do que julgamos ser. Creio que morreria de tédio num mundo perfeito. Por isso, dispenso a crença na vida eterna e procuro me ajeitar com minha condição de simples mortal.
O roteiro da minha viagem era o cinturão espiritual em torno de Brasília, uma espécie de contraponto à permissividade do universo político, onde a carne não chega ser um adversário considerável, no máximo uma distração na longa ordem do dia.
Fernando Gabeira: Notas de um velho marinheiro
Aspereza de 2019 nos levará a preocupações mais concretas que as do período transitório
Este é o meu último artigo do período de transição. No ano que vem a coisa começa. É hora de a onça beber água, a cobra fumar, o tatu sair da toca. Termina uma longa experiência em que predominaram ideias de esquerda, começa uma experiência liberal conservadora, de certa forma inédita, pois sempre se definiu assim, sem subterfúgios.
Um dos truísmos mais presentes na política é afirmar que nem sempre as coisas acontecem como planejado por seus atores. Em alguns casos podem até se transformar no oposto do desejado.
O projeto político iniciado em princípio de 2003, com a vitória de Lula, pretendia levar o Brasil a um novo patamar de liberdade e justiça social. Terminou em crise econômica, milhões de desempregados e alguns atores, o principal incluído, atrás das grades.
Durante muitos anos estudei o marxismo e constatei, na prática, a inadequação de suas teses. Talvez por temperamento, desde a juventude sempre tive um pé atrás com a ideia de que a História é regida por leis inflexíveis e obedece a um script inevitável.
Quando ouvia as pessoas repetirem o slogan cubano “até a vitória sempre”, costumava responder: sempre que possível.
Era uma abertura para o inesperado, no fundo uma rebeldia contra um mundo pré-desenhado, um cemitério da criatividade humana. Minhas críticas e revisões das ideias de esquerda me valeram algumas antipatias. Nada de grave. Foi possível continuar pensando e escrevendo num clima quase razoável.
Possivelmente, em alguns momentos, vou desagradar aos liberais conservadores. Mas o que fazer? A alternativa seria concordar com uma euforia que a longa experiência não autoriza.
De modo geral, faço perguntas, não acusações. Uma das perguntas-chave que faço aos conservadores que chegam ao poder com a esperança de propagar sua fé cristã é: não estão chegando tarde demais a um mundo secularizado, onde a tradição e a cultura não podem ser apoiadas numa fé transcendental compartilhada?
Uma das referências que tenho é a passagem de Margaret Thatcher pelo governo inglês. Além de sua firme decisão de enfrentar corporativismos, ela manifestou muita simpatia pela moral vitoriana, tempos mais íntegros e felizes, segundo ela. Ao deixar o poder, Thatcher deixou também uma Inglaterra bem mais permissiva do que encontrou.
Aos conservadores brasileiros, para quem o bolo dos costumes desandou, deverá ficar claro que é difícil cozinhá-lo de novo, restando apenas cuidar do que existe, olhando para o futuro. Dito assim, parece complicado. Mas, na prática, é o que está acontecendo. A ministra de Direitos Humanos, Damares Alves, parece ter adotado esse caminho ao afirmar que a união civil gay é um direito adquirido e não vai questioná-la.
Depois de passar muitos anos criticando a miopia marxista diante das questões ambientais, terei a irônica tarefa de demonstrar aos conservadores que a preservação é uma ideia deles que foi introduzida de contrabando no marxismo. Karl Marx sempre partilhou com alguns pensadores burgueses a ideia de um progresso infinito, sem limites objetivos. Se saímos do árido campo das ideias e vamos de novo à prática, basta observar a catástrofe ambiental que foi o socialismo no Leste Europeu, a degradação da atmosfera nas cidades chinesas.
O PT em 2002 ainda acreditava, como os partidos comunistas da esfera soviética, que o principal problema era crescer, dar empregos, melhorar o padrão de vida dos trabalhadores. Estava aí, ainda que incipiente, a raiz das nossas principais divergências.
Compreendo que forças emergentes tenham uma linguagem de sonho, que no fundo almejem a felicidade de seus governados. Mas a História tem mostrado, exceto pelo idealismo do rei do Butão, que dificilmente a felicidade se conquista pela ação de governos.
Tudo o que se pode fazer é minorar suas dificuldades, ajudá-los a conviver, como diz o poema de Yeats, com a desolação da realidade.
Quando jovem de esquerda, alguns me irritavam por sua dose de realismo: Raymond Aron, Isaiah Berlin, George Steiner. Eles despiam a revolução de seus figurinos românticos e me deixavam só e desesperançado.
Neste momento em que o Brasil se prepara para viver uma experiência em que a religião tem grande peso, é necessário em primeiro lugar reconhecer a importância dos cristãos em nossa vida e cultura. Mas, ao mesmo tempo, questionar suas certezas políticas, como fazia com os slogans marxistas.
De novo um exemplo para atenuar a aridez. Por que mudar a Embaixada do Brasil em Israel para Jerusalém? O quase consenso internacional reconhece que ainda é uma cidade dividida.
Não foram grandes formulações de política externa que levaram Bolsonaro a essa saída. Há uma pressão evangélica, natural, válida, mas inadequada para comandar uma decisão nacional nesse campo. Para os evangélicos americanos e brasileiros, a extrema direita em Israel tem grande importância.
Os evangélicos não leem a Bíblia apenas como um documento sobre o passado. Confiam também em suas profecias, no seu roteiro para o futuro. E essas profecias dizem que uma das condições para a volta de Cristo é a recuperação pelos judeus da Terra Sagrada.
Não se trata de afirmar que isso seja um delírio, mesmo porque não tenho preconceitos contra delírios. Muitas de nossas políticas são um delírio. No entanto, quando se trata de política externa, é necessário, pelo menos, um delírio consensual.
A ideia de conformar o mundo à nossa fé cristã é de natureza diferente da criação de internacionais socialistas, Ursais e o escambau. Mas pode sofrer o mesmo destino melancólico das religiões laicas num mundo - até certo ponto, irreversivelmente - desencantado.
De qualquer forma, a aspereza do ano que vem vai nos levar a preocupações mais concretas do que as do período transitório, fluido por definição.
*Fernando Gabeira é jornalista
Fernando Gabeira: Um cão no supermercado
Percorrer o Brasil atenua o impacto das más notícias. A imprensa não pode deixar de divulgá-las: são parte da realidade
Florianópolis. De novo na estrada. Glória a Deus. Digo isso porque no período eleitoral entrevistei o Cabo Daciolo. No final da entrevista, me convidou para ser ministro de seu governo. Daciolo esperava vencer, no primeiro turno, com 51%. Aceitei o convite mas lembrei: “Olha, Daciolo, Deus costuma escrever certo por linhas tortas.” Tínhamos que estar preparados para a derrota.
Portanto, glória a Deus: de novo peregrinando pelo Brasil, constato o valor dessa escolha.
No meio da semana, telefonei para casa e soube de uma notícia triste: um cachorro foi morto a golpes de barra de ferro, no supermercado Carrefour. Logo na semana em que o cachorro do velho Bush comoveu o mundo deitado defronte ao caixão de seu dono.
Estava no meio de um trabalho com cachorros. Não podia fugir desse tema. Passei a tarde seguindo um cão-guia e seu dono pelas ruas de Camboriú, Itajaí e Navegantes.
É uma história sobre a escola de cães-guia Helen Keller, em Camboriú. A cadela se chama Alegria e é tão importante para o seu dono que ele tatuou no braço o nome e a pata de sua amiga. Impressionante segui-los, pois ela é muito concentrada, ignora latidos, paqueras e segue no caminho de casa perto do hospital de Navegantes.
Esta semana, conheci também Atobá, um labrador de cara grande. Ele é chamado de Doutor Atobá no Hospital Joana de Gusmão, onde faz um trabalho. Brinca com crianças com câncer e às vezes as acompanha nos seus dias finais.
Além disso, Atobá ajuda na terapia de crianças que sofreram paralisia cerebral ao nascer e ajuda os que têm problema de mobilidade.
Atobá vive na casa do cirurgião plastico Luís Augusto. É essencial para seu filho, que sofreu uma doença grave. Ele acredita que uma das qualidades terapêuticas do cão é despertar amor e lembra que na simbologia chinesa coração e cachorro se equivalem.
Foi uma longa conversa. Tenho espaço apenas para lembrar um detalhe essencial. Como cirurgião plástico num hospital infantil, ele conhece duas faces do cachorro, o amor da vida de seu filho, mas também as inúmeras reparações que teve de fazer em vítimas de mordidas de cão feroz.
Percorrer o Brasil atenua o impacto das más notícias. A imprensa não pode deixar de divulgá-las: são parte da realidade. Mas é animador ver experiências como a formação dos cães-guia, ainda tão poucos para a grande demanda nacional. É bom ver o país com seus lados diferentes, como o doutor Luís Augusto vê os cães. E continuar gostando muito.
Finalmente, numa semana dedicada a eles, não posso me esquecer dos cães farejadores de maconha no Colorado: foram aposentados com a legalização da cannabis. Espero, pelo menos, que tenham boas lembranças de seu longo período do labor olfativo.
De uma certa forma, voltarão à realidade assim como o Brasil no princípio do ano, quando o governo começa de fato. Por enquanto, as notícias dos bastidores são um pouco complicadas. Rusgas no partido do governo, intrigas entre generais e políticos. E as pautas-bomba no Congresso, ministro do STF prendendo gente em avião.
Uma nota sobre as atividades financeiras de um assessor do então deputado Flávio Bolsonaro: movimentou R$ 1,2 milhão em 12 meses e vive de salário.
Para os mais velhos, é uma cantiga que assombra, e esperamos que seja apenas uma alucinação de cães farejadores aposentados. O ano que vem trará as respostas. A cadela Alegria tem um método de trabalho que me encanta. É toda atenção quando é necessário. No momento de poupar energia, não vacila: encosta a cabeça no chão e olha demoradamente para o vazio, fecha os olhos, abre de novo.
Em termos políticos, pode ser um bom programa para as festas de fim de ano. Uma semana de trégua, se tanto, já bastaria.
A transição de governo foi um processo um pouco confuso. Os índios devem estar mareados com os balanços do barco da Funai. A nova ministra de Direitos Humanos declara que índio é gente. Pensei que isso estava resolvido há séculos, quando os religiosos perguntavam se índio tinha alma.
O ano que vem será quente mesmo para quem acha que o aquecimento global é uma invenção marxista.
Fernando Gabeira: Cuidado com dezembro
Agora é juntar os cacos, abastecer o motor econômico do Rio com o petróleo que restou, e subir de novo a montanha
O indulto de Temer e Pezão na cadeia são dois temas já batidos nesta manhã de segunda. Vejo um elo entre esses dois fatos, próximo de uma teoria conspiratória, mas não há razão para ocultá-lo. Tanto Temer quanto Pezão já trabalham de alguma forma com a ideia de uma passagem pela cadeia. É como se ja estivessem pensando numa próxima eleição, xerife da cela, quem sabe.
Temer sabe muito bem que incluir corruptos no seu indulto de Natal vai abrir um abismo maior ainda entre ele e a sociedade, que condenou pelo voto as velhas práticas da política brasileira. Mas, por outro lado, vai aumentar seu crédito junto aos presos, não só os que participavam da aliança no governo, mas também os do seu próprio partido: ex-ministros e parceiros.
Pezão declarou que tinha saudades de Sérgio Cabral e gostaria de abraçá-lo na cadeia. Disse também que gostaria de encontrar Lula. Nunca se sabe para onde vão te levar após a prisão.
Não é correta, se essa ideia for verdadeira, a tese de que os políticos brasileiros não veem um palmo diante do nariz. Quando houver tempo, poderemos até investigar os reflexos da passagem de tantos dirigentes pelas cadeias que alguns até ignoravam como funcionam.
Por enquanto, ainda temos que lidar com os seus rastros em liberdade. O indulto é um deles. É possível indultar presos por corrupção? A maioria dos ministros disse sim, afirmando que não há restrições a esse crime. Tratam de um presidente abstrato. Temer é investigado, duas vezes a Câmara lhe forneceu uma blindagem. Ele vai libertar presos da Lava-Jato, a mesma operação que desmantelou toda a quadrilha da qual é um dos principais remanescentes em liberdade.
Nessas circunstâncias, só resta o protesto nas ruas. Mas, ainda assim, o tema nos colhe num mês ingrato para protestos. Há 50 anos, o regime militar lançou o AI-5, endurecendo sua política e realizando a censura nos jornais com a presença de seus agentes no interior das redações.
O aniversário de meio século do AI-5 será no dia 13. Uma das lembranças mais nítidas que tenho do período foi, precisamente, a dificuldade de protestar. Não nos prendiam por isso, mas era um período de Natal: o “blim blão” dos sinos, o farfalhar de papéis enrolando presentes, o panetone em promoção. Ninguém queria saber de AI-5. Ainda bem que dezembro de 68 está longe, tanto o país quanto o Natal devem ter mudado nesse período. De qualquer forma, cuidado com dezembro.
Mais próximo de minha memória está a aventura de ter feito política no Rio de Janeiro e tentar, de alguma, forma derrubar a máfia bilionária que acabou arruinando o estado.
Em 2010, por exemplo, Cabral já gastava fortuna com robôs na internet. Chegamos a reunir documentos para oferecer à imprensa. Os robôs não falavam inglês, mas tinham um forte sotaque, escreviam frases grosseiramente traduzidas. Ninguém se interessou. O tema era muito abstrato naquela época. Era o mesmo que falar do rombo na camada de ozônio: ninguém o notava a olho nu.
Apesar de tudo, não restou ressentimento. Sobretudo no caso de Pezão. Em muitos desastres, o encontrei trabalhando. Sérgio Cabral não visitava os locais de tragédia. Como jornalista, entretanto, não pude deixar de comentar um tema, naquela época do escândalo dos guardanapos. O apartamento de Pezão tinha sido assaltado no Leblon e, segundo a notícia, foram levadas muitas joias. Soou estranho para mim que um homem aparentemente simples tivesse muitas joias em casa. O tempo passou, eles foram sendo presos aos poucos, hoje quase todo o governo está na cadeia, inclusive sua base parlamentar.
O Rio quebrou, foi preciso uma intervenção federal na segurança pública, o estado elegeu um homem desconhecido do grande público até as vésperas da eleição. Às vezes tento esquecer todo esse período sinistro. Os principais atores estão presos. Isso conforta parcialmente a opinião pública. Mas o legado ainda vai nos assombrar durante muitos anos. Foi uma calamidade que passou em nossas vidas e algumas consciências se deixaram levar. Agora é juntar os cacos, abastecer o motor econômico do Rio com o petróleo que restou, e subir de novo a montanha. Pra cima, é preciso fôlego.
Pezão entrou, outros serão soltos por Temer, que um dia será preso também. Não é um caminho linear. Murilo Mendes tem um verso em que diz: “Ainda não estamos habituados com o mundo/ Nascer é muito comprido.”
No caso do Brasil, então, o parto é muito prolongado.
Fernando Gabeira: Entre a política e a religião
Bolsonaro fez a melhor escolha em termos de governar o Brasil nesta quadra complexa?
A forte presença religiosa no governo Bolsonaro estimula a abertura de um diálogo entre política e religião, na verdade, uma tentativa de examinar esse constante intercâmbio de duas dimensões diferentes de abordagem de nossos problemas. Durante a campanha, Bolsonaro usou muitas vezes o verso bíblico de João: “Conhecei a verdade e a verdade vos libertará”.
Aplicado às circunstâncias eleitorais, funcionou: conhecer a verdade sobre o sistema político, os erros do PT, e escolher um caminho alternativo pelo voto. Mas esse mesmo verso de João aplicado à complexidade do governo perde um pouco sua substância política. Creio que muitas vezes será preciso tomar decisões sem conhecer toda a verdade. E mesmo quando a alcançamos, é uma verdade provisória contestada.
A palavra salvação em política é ambígua e leva, de modo geral, a uma desconfiança. Ela se instalou como um contrabando na religião laica do marxismo, que definiu o sujeito da salvação: a classe operária. O problema é que a classe operária, na teoria revolucionária, precisava organizar seu exército para nos salvar. E nos colocava diante de um novo dilema: quem nos salvará dos salvadores?
A salvação pelo mercado, a exportação do livre-comércio e a democracia liberal provocaram alguns desastres. E isso é visto com resistência em muitos pontos do mundo, onde o nacionalismo ressurge.
Agora a presença religiosa é direta: esteve presente na escolha do novo ministro da Educação. Ao anunciar o nome de Ricardo Vélez Rodríguez, a opção de Bolsonaro foi interpretada por alguns articulistas como algo coerente, uma decorrência lógica de suas propostas de campanha. Não estou tão seguro de que tenha sido uma escolha tão linear. Bolsonaro visitou a Coreia do Sul e lá deve ter ouvido falar de outras experiências inovadoras de educação no mundo.
Durante algum tempo manteve diálogo com um setor mais técnico e, segundo a imprensa, chegou a considerar o nome do Instituto Ayrton Senna. Imagino que o diagnóstico que recebeu não ponha a questão dos valores como o problema principal de nossa educação, mas sim a baixa qualidade.
Claro que a existência de um viés ideológico nos fóruns que definem a política educacional e universidades é sempre mencionado como problema. Mas não conseguem explicar por que nos últimos 30 anos verbas e vagas foram fortemente ampliadas sem repercussão positiva no aumento da produtividade nacional.
Nesse contexto, uma aproximação maior com a ciência e a tecnologia seria indicação preciosa. O novo ministro afirmou que é necessário combater o cientificismo. Não elaborou sobre o conceito.
Há várias maneiras de interpretar o seu propósito. Uma, mais sofisticada, combate uma visão religiosa da ciência, uma nova ideia de salvação. Ou será que é uma referência à origem da vida humana como o resultado de alianças das bactérias e uma passagem pelos macacos?
Nesse caso, o debate lembrara um excelente filme americano do século passado, O Vento Será Tua Herança. É baseado na história verdadeira de um professor julgado por ensinar a teoria de Darwin nas escolas. O jovem professor é interpretado por Gene Kelly e o defensor do criacionismo, por Spencer Tracy. O debate é muito interessante. Tracy, como defensor das ideias tradicionais, é brilhante. Essa é uma das qualidades do filme, pois não ironiza nem transforma a visão religiosa numa caricatura. Aliás, essa seria uma tática desastrosa, como já foi na campanha. Se a política quiser dialogar com a religião, não precisa, em momento nenhum, desrespeitá-la.
Bolsonaro fez uma escolha fiel aos evangélicos, ele mesmo batizado no Rio Jordão. Mas fez a melhor escolha em termos de governar o Brasil nesta quadra complexa?
Existe uma tensão clara entre os apoiadores de Bolsonaro na abordagem do problema que considera principal: a predominância da esquerda na educação Os mais lúcidos consideram que isso é uma luta de ideias e deve ser travada nesse plano. Outros preferem um decreto, com a Escola sem Partido.
Deus está presente na política externa. Não é algo distante dos sentimentos do povo brasileiro. Mas uma política externa, ao tentar interpretar os sentimentos do povo, precisa escolher, entre muitos, os que queremos transmitir ao mundo. Até agora escolhemos a paz, o esforço pela solução política dos conflitos. Isso não tem um sentido missionário, não queremos transmitir outra crença além da necessidade de harmonia, cooperação.
Erramos na escolha? Não foi ela que enfraqueceu nosso papel no exterior, e sim as investidas missionárias do PT na sua visão da ampliar o domínio da esquerda na continente. E, pior ainda, ao lado da Odebrecht, com dólares na mão, golpeando os processos democráticos locais.
Antes de Bolsonaro não pensávamos tanto em oposição Ocidente-Oriente. Claro que não ignoramos o avanço da China, sua ascensão como potência mundial. Pra mim, o Oriente é maior que a China.
Por que levar nosso Deus ao Japão, à Índia, ao Paquistão, ou salvar um budista de si próprio?
O caso da China tem de ser visto com frieza. Oito presidentes americanos acreditaram que, entrando na rota do capitalismo, a China iria transformar-se numa democracia liberal. Foram eles, os americanos, os grandes parceiros do crescimento chinês. Seremos nós, agora, que vamos achar a saída para suas expectativas frustradas?
Mesmo com uma visão negativa de seu sistema político, a China não pode ser substituída completamente pelos americanos em nossas transações econômicas. Até porque, apesar dos acenos, a política de Trump, America First, é contraditória com essa expectativa.
De qualquer maneira, são apenas suposições. O ideal seria os ministros seguirem o caminho de Sergio Moro: entrevista coletiva. Isso nos liberaria de interpretar blogs, frases sem um contexto e do risco de deformar o pensamento do outro.
Fernando Gabeira: Mais médicos, menos fantasia
Organizações humanitárias mostram que estar ao lado dos mais fracos não é, unicamente, consequência da visão socialista
Os cubanos foram embora. O Programa Mais Médicos não existe mais, tal como foi criado no governo Dilma. Sou otimista quanto ao futuro do programa. Talvez possa ser feito de uma forma melhor.
Breve, a discussão ideológica ficará para trás, e então poderemos nos concentrar no que realmente interessa: a saúde de milhões de brasileiros.
A grande oportunidade que está diante de nós é a ida de milhares de jovens médicos brasileiros para o interior. As condições salariais são atraentes. O dinheiro ficaria no Brasil. Mas não é esse o principal ganho. O encontro de milhares de jovens da classe média urbana com os rincões do Brasil pode representar para eles um grande aprendizado.
Já houve grandes momentos históricos em que esse encontro se deu. Na Rússia, no século XIX, quando milhares de estudantes foram compartilhar o cotidiano dos camponeses. Havia muito romantismo, ideias revolucionárias, uma visão idealizada dos pobres do campo. Embora o resultado tenha sido revoluções esmagadas, foi um período rico para a própria cultura russa.
Aqui, no Brasil, as idealizações não são as mesmas. Minha impressão é que os brasileiros vão encontrar no interior surpresas positivas sobre as pessoas que vivem lá. Os russos se decepcionaram porque esperavam ver nos camponeses um reflexo de suas fantasias urbanas.
A ida dos médicos brasileiros teria o mesmo valor pedagógico que a carreira oferece aos militares: percorrer diferentes pontos do país, sentir a diversidade, acreditar mais ainda no potencial do Brasil.
Não há contraindicação ideológica. Ouso dizer mesmo para uma juventude de esquerda dos grandes centros: o choque cultural seria benéfico. Certamente, sairia mais realista.
Meu primeiro trabalho na TV, creio em 2014, foi sobre uma cidade do Maranhão chamada Buriti Bravo. Já era uma aproximação com o Programa Mais Médicos. Uma visita às cidades mais desamparadas, no Maranhão e no Amapá.
Semana passada, procurei algumas pessoas como o escritor Antonio Lino, que fez uma dezena de viagens para escrever sobre o Mais Médicos. E também o sanitarista Hermano Castro, da Fiocruz.
Minhas primeiras conclusões: o programa é essencial para as cidades cobertas; ele pode ser feito majoritariamente por brasileiros, o que não significa que alguns estrangeiros não possam participar, dentro das regras do jogo. Constatei também que o gargalo é a formação desse tipo de médico. Isto estava previsto no programa de Dilma, mas não foi bem desenvolvido. É preciso ser realista. Apesar dos salários, ainda é muito difícil fixar um jovem médico no interior. A realidade me leva de novo ao mundo das ideias.
A única maneira de atenuar realmente o problema é uma valorização simbólica desse tipo de trabalho. Transmitir um pouco, por exemplo, a chama que ilumina um grupo como o Médicos Sem Fronteiras, que leva ajuda a pessoas em grandes dificuldades. No caso, o governo comprar essa ideia talvez não ajude tanto quanto se fosse aceita pelo mundo cultural. Não proponho heróis positivos, são pessoas de carne e osso que merecem um reconhecimento maior.
Tanto os cubanos quanto a esquerda encaram esse trabalho como o produto de uma visão socialista, e desafiamos a verem na medicina um mercado, e não adotarem suas teses.
Esquecem que a exportação de serviços médicos é um importante item no comércio exterior cubano. É um negócio de Estado. Não só o Médicos Sem Fronteiras, mas inúmeras organizações humanitárias no mundo demonstram que essa presença ao lado dos mais fracos não é, unicamente, uma consequência da visão socialista.
Para completar a semana, ouvi uma conferência do ministro alemão Cristoph Bundscherer num painel sobre indústria 4.0. Paradoxalmente, ele falava de um futuro tecnológico com diagnósticos à distância, portanto, com menos médicos.
Se combinarmos a formação dos novos médicos com uma abertura para o mundo tecnológico, é possível atenuar esse grande problema brasileiro.
No momento, temos um pepino. No futuro, talvez nos lembremos da passagem dos cubanos apenas como um doloroso aprendizado. É raro um contrato ser rompido assim, numa área tão sensível, sem que tenhamos salvaguardas. Isso faz parte do legado. Ideologias se interessam pelas ideias, não pelas pessoas.
Fernando Gabeira: Linha direta com Deus
Uma coisa é aproximar-se dos EUA. Outra coisa é clonar alguns elementos da política externa americana, como se fôssemos eles
Enfim, Bolsonaro anunciou o novo ministro das Relações Exteriores. Havia gente reclamando. As falas do governo eleito provocaram atritos para quase todo lado: países árabes, China, Cuba, Noruega e Holanda. A esperança é que um novo chanceler unifique o discurso e o cubra de um verniz diplomático para atenuar os choques.
Mas as ideias do novo chanceler, Ernesto Araújo, acabaram deslocando a inquietação para outro nível. Não as conhecemos no conjunto, apenas fragmentos de artigos teóricos e posts em sua rede social. Ele acha que Trump pode conduzir a salvação de um Ocidente apático, a partir da tradição cultural, principalmente a ânsia por Deus. Como ele, é cético em relação ao aquecimento global. Certamente, será combatido pela sua fé e sua descrença política em fatos em que a maioria dos cientistas acredita.
Isso não me surpreende tanto. Na verdade, a política, num século em que a religião regrediu, procura de todas as formas substituí-la no imaginário popular. Em muitas ocasiões, mencionei o caráter religioso do marxismo, com sua visão de paraíso e seu script determinista da história. Ela nos garante a vitória final, como os cristãos creem na subida aos céus, apesar da sucessão de derrotas cotidianas.
Além das notas sobre o marxismo, tenho mencionado a crítica de John Gray à nova direita inglesa, baseada também na denúncia dos elementos religiosos do Iluminismo, da expectativa de ocupar o mundo com o livre comércio e a democracia liberal.
Numa idade de fé minguante, tanto marxismo quanto liberalismo investem esperanças transcendentais no seu projeto de mudar o mundo. A julgar pelos fragmentos do texto do chanceler Ernesto Araújo, sua concepção é diretamente religiosa. As esperanças transcendentais não se se escondem nem se disfarçam como nas teorias modernas. Elas não substituem uma visão religiosa: são a própria visão religiosa.
Como todo idealismo, você pode discuti-lo por dentro, questionar sua lógica. O melhor, no entanto, é partir do mundo real, onde a política é uma humilde tentativa de acomodação mútua na busca de um modus vivendi. Tanto Bolsonaro quanto Hassan Rouhani, do Irã, têm de traduzir suas crenças em passos concretos e, neste momento, é que serão avaliados com mais rigor.
Tentei colocar a questão da política externa na campanha. Percebi que, em termos gerais, ela não interessava tanto ao público. Selecionei alguns temas: crise na Venezuela, relações com a China, Donald Trump.
Todos sabíamos que a vitória de Bolsonaro representaria uma aproximação maior com os EUA, o que, na minha opinião, é positivo. No entanto, uma coisa é aproximar-se dos EUA. Outra coisa é clonar alguns elementos da política externa americana, como se fôssemos eles. Daí minhas reservas à transferência da embaixada para Jerusalém, à tentativa de buscar um tom específico com a China e a um cuidado maior do que Trump com os acordos multilaterais.
Tudo isso vai ser discutido no seu tempo. Desde já, preocupa-me o embate entre o idealismo e a juventude do novo chanceler com os pragmáticos e calejados negociadores chineses. Kissinger os conhece bem e os retratou no seu livro sobre a China. Trabalham com a perspectiva de gerações, exercitam a paciência e a habilidade nos seus projetos de longo alcance.
Não creio que o melhor caminho seja discutir se Trump é a salvação do Ocidente, e sim analisar soluções práticas do cotidiano, como o rompimento com o Programa Mais Médicos, por exemplo. Bolsonaro expressou sua posição sobre os médicos cubanos durante a campanha. Como vencedor, tem legitimidade para colocar suas ideias em prática.
A única crítica possível, nesse caso, é sobre o timing do rompimento. O ideal teria sido preparar a retaguarda antes que o contrato fosse desfeito. Mas os cubanos sacaram mais rápido, para dramatizar a saída. Milhões de brasileiros ficarão, momentaneamente, desguarnecidos. São pobres, escapam ao radar da grande mídia, pouco influem nas redes sociais.
É difícil argumentar com princípios diante de um asmático em crise, uma forte intoxicação alimentar. Essa é a modulação da crítica ao marxismo, aos neoliberais e aos que atribuem a Deus o dinamismo da história. Todos são projetos políticos que esbarram na imperfeição humana, pouco sabem da tarefa modesta e cotidiana de sacrificar alguns bens para preservar outros.
Um ministro húngaro, após a queda do socialismo, dizia: antes eram uns fanáticos que diziam que o Estado resolve tudo; em seguida, vieram os que dizem que a salvação de tudo é o mercado. Nos Estados Unidos , e agora no Brasil, suprimem-se os intermediários: o assunto é direto com Deus.
Fernando Gabeira: Sobreviver ao ano que vem
Não sei se exagero, mas sinto-me como se fosse a luta pela sobrevivência de um país viável
É um momento de escolha de ministros, definição da estrutura do governo. Não importa o que saia daí, o que nos espera no ano que vem é inescapável: o Brasil pode quebrar. A reforma da Previdência não é só um momento de alívio para o governo Bolsonaro, mas também para 14 Estados em profunda crise financeira, entre eles Rio de Janeiro, Minas e Rio Grande do Sul.
Visitei Minas para ver melhor o que aconteceu nas eleições. Inédita na História, a vitória de Romeu Zema, do Partido Novo, contou com 71,8% dos votos. Foi um salto no escuro, preferível para os eleitores aos velhos partidos que dominaram o Estado: PSDB e PT.
A melhor forma de começar uma nova época é realizar a reforma da Previdência. Não resolve tudo, mas indica que o mais difícil foi feito. Paradoxalmente, a reforma é a maneira de seguir vivo até 2022, mas significa, no primeiro instante, uma perda de popularidade. Na Rússia, a reforma previdenciária roubou muitos pontos de aceitação do governo Putin. Sufocada pela Copa do Mundo, a resistência manifesta-se também numa desconfiança, uma sensação de perda.
Segundo o Moscou Times, essa reforma foi decidida por Putin, mas seu déficit talvez pudesse ser facilmente coberto pelos excedentes do petróleo. Mas e os investimentos, a defesa? O governo precisava se antecipar.
No caso grego, a reforma talvez não tenha desgastado tanto a esquerda no poder. Era claramente inevitável. E havia a pressão da União Europeia. O ressentimento acabou canalizado para Angela Merkel.
No caso brasileiro, a reforma da Previdência tem uma chance singular. Ela é claramente uma forma de neutralizar o processo de transferência de renda dos mais pobres para os mais ricos. Ela tem um quê de Robin Hood, mas esse encanto sozinho não basta para emplacá-la. Em primeiro lugar, será preciso convencer os pobres de que, no fundo, estão ganhando com as mudanças; em segundo lugar, e isso é colossal, vencer a resistência das corporações, algumas articuladas com partidos da esquerda.
O ajuste fiscal será a primeira grande prova tanto para Bolsonaro como para Zema.
O ano que vem marca o início de uma fase triunfante do liberalismo. Ele bateu o marxismo no terreno, mas também partilha com ele um certo idealismo. Um vê no Estado o caminho da salvação, o outro vê no mercado. Como observa John Gray na sua crítica à Nova Direita na Inglaterra, ambos ignoram que são construções humanas e, como tal, imperfeitas.
Uma conclusão de Gray é que essas correntes idealistas veem a vida política de uma forma que conduz a derrotas. Elas tendem a investir num projeto de esperanças transcendentais, numa época sem fé. O conselho realista de Gray é baixar a bola, aceitar a humilde tarefa de uma improvisação sem fim, em que um bem é comprometido para salvar outros, uma espécie de equilíbrio entre os males necessários da vida humana e a perspectiva sempre presente do desastre a ser despachada para outro dia.
Não chego a tanto. Ele teorizava sobre os liberais que concluíam sua passagem pelo governo. Aqui, os vencedores precisam pôr suas ideias em ação.
Mas não consigo esquecer a experiência vivida no Congresso. Vi muitos grandes projetos. E vi sua trajetória real. Alguns deles costumo comparar com o grande peixe pescado pelo velho Santiago no romance O Velho e o Mar, de Hemingway. Comido aos pedacinhos, chegou à praia apenas como um grande esqueleto.
Assim como foi com o marxismo, os liberais vitoriosos correm o risco do que se chama húbris ideológico. Húbris é uma palavra grega que traduzimos como excesso de autoconfiança. De modo geral, esse excesso de autoconfiança é inerente à nossa prática de perseguir princípios universais, esquecendo a política como uma humilde discussão racional, uma acomodação mutual, em busca de um modus vivendi.
De qualquer forma, o Estado brasileiro é uma carga pesada nas costas da sociedade.
Lembro-me de que há quase uma década já discutíamos isso, da ineficácia de algumas estatais aos gastos escandalosos da máquina. Numa das comissões temáticas, questionei os gastos anuais do governo com viagens: R$ 800 milhões. Naquela época já havia um leque de possibilidades tecnológicas, do Skype às teleconferências. Essa escolha liquidaria os gastos. Mas reduziria os ganhos do funcionalismo com diárias.
A relação dessa gigantesca máquina político-partidária com a sociedade precisa ser resolvida em favor das pessoas.
O aumento dos juízes do STF vai nos custar R$ 6 bilhões. É um preço alto, caro, em bens e serviços. Mas tem um lado pedagógico: ficou claro para todo mundo como a elite burocrática se apossa de uma parte maior do bolo, numa sociedade mergulhada na crise econômica.
Creio que muitas pessoas votaram contra isso. Se minha presunção é verdadeira, está em curso uma modesta revolução cultural. Muitas pessoas que viam no Estado um provedor, e de certa forma a Constituição o moldou assim, começam a vê-lo como um obstáculo, sanguessuga.
Isso é o caminho para que seja revisto, de acordo com as circunstâncias históricas e culturais do Brasil de hoje. Não será necessariamente mínimo, que é uma construção ideal. Ele será o que resultar desse que, para mim, é o grande embate de 2019.
No passado, quando terminavam as eleições as pessoas se voltavam para seus problemas, o que é saudável. A verdadeira força transformadora, no entanto, virá da sociedade, e não de esquemas ideais. É possível que, num quadro de crise, ela continue alerta, pois agora começa a viver as consequências de sua escolha.
Não será um ano fácil. Aos que podem, é recomendável ao menos uma semana de férias. Isso porque a economia é apenas uma variável. Além dos 12 milhões de desempregados, parte do território urbano é ocupada por grupos armados, as cadeias são um barril de pólvora, a corrupção se estende pelo interior.
Não sei se exagero, mas sinto-me como se fosse a luta pela sobrevivência de um país viável.