Fernando Gabeira

Fernando Gabeira: O fim da picada

O Brasil é surpreendente, mas jamais pensei numa situação dessas: um presidente postar um vídeo pornográfico

Passei o carnaval entre Juazeiro, na Bahia, e Juazeiro do Norte, no Ceará. De Juazeiro a Juazeiro. Uma bela viagem, sugestão do fotógrafo Orlando Brito.

Apesar da intensidade do trabalho, tentei acompanhar o carnaval brasileiro. Confesso que, nessa época, pouco tenho a ler nos jornais. Não me levem a mal, mas falam de pessoas que não conheço, fazendo confissões que não me interessam. Sou um pouco fora do ar em certos temas do show business.

Sinto-me como se estivesse nos versos de Manuel Bandeira: “Lá a existência é uma aventura/ De tal modo inconsequente/ Que Joana a Louca de Espanha/ Rainha e falsa demente/ Vem a ser contraparente/ Da nora que nunca tive.”

Nas noites do sertão, foi possível ler a análise que Milan Kundera faz do romance “A montanha mágica”, de Thomas Mann.

Tem tudo a ver com uma certa decadência no ar; baixarias, memes sobre dependência química, falta de compaixão com avô que perde o neto.

O livro de Thomas Mann é sobre o confronto de ideias. Brilhantes intelectuais terminam querendo se matar. Os outros personagens também mergulham num clima de irritação e agressividade.

O que o autor parece revelar é que o confronto de ideias é apenas uma máscara que esconde as emoções irracionais e violentas.

Kundera afirma sobre “A montanha mágica”: “É um grande romance de ideias mas ao mesmo tempo uma terrível dúvida sobre as ideias, um grande adeus à época que acreditou nas ideias e na sua faculdade de dirigirem o mundo.”

O romance se passa nas vésperas da Primeira Guerra. Depois disso, vieram o fascismo, o nazismo e o comunismo, que, no fundo, afirmam a mensagem da “Montanha mágica”, que se desenrola em Davos, na Suíça.

Envolto nesse clima de desalento com o poder das forças obscuras e irracionais, chego ao Rio para seguir as notícias sobre o aumento da violência, um tema importante para nós e sempre muito destacado na imprensa internacional. Só aí soube do vídeo lançado na rede por Bolsonaro.

Foi um desastre para nossa imagem internacional. Felizmente, alguns jornalistas se solidarizaram com o povo brasileiro, a vítima principal desse gesto desvairado. Na verdade, o presidente usa a mesma tática da imprensa sensacionalista: isola um fato escabroso, mostra-o nos detalhes e tempera com uma lição de moral, para atenuar a culpa da curiosidade mórbida. Mas nem a imprensa sensacionalista mostraria o que Bolsonaro mostrou.

Nas reflexões que fiz aqui sobre jornalismo, afirmei que era falsa a afirmação que isto é mostrar a verdade. Na minha opinião, isto é mascarar a verdade. Estamos mais próximos dela quando avaliamos o todo, e não apenas as partes.

O Brasil é surpreendente, mas jamais pensei numa situação dessas: um presidente da República postar um vídeo pornográfico e perguntar por golden shower no tuíte seguinte.

Suponhamos que fosse um presidente conservador querendo combater pela moralidade. Que visão pedagógica é essa? Se é a visão de Bolsonaro, podemos esperar nas aulas de Moral Cívica um departamento de sadomasoquismo; outro, de sexo grupal. Seria preciso mostrar as cenas para dizer que as condena?

Tenho procurado fazer uma oposição construtiva. Tive uma boa convivência com Bolsonaro, nos últimos mandatos; respeito seus eleitores e quero que o Brasil saia dessa crise. Continuo querendo isso, mas o quadro fica mais claro para mim.

Existe um governo tomando conta do governo. Sua tarefa é evitar os desvarios, sobretudo na política externa. Li que cuidará também da família do presidente. Agora, terá de cuidar de Bolsonaro.

Não é confortável, numa democracia, que um núcleo militar tenha esse poder. Será preciso que o próprio Congresso perceba a importância do momento e procure estar à altura. Os militares não são atores únicos numa democracia. Isso é apenas outra bobagem de Bolsonaro.

Que se faça um trânsito seguro até 2022, quando então poderemos reequilibrar os poderes. Prever cenário no Brasil demanda coragem. Construí-lo, mais ainda.

Considero a divulgação do vídeo um marco na história do governo Bolsonaro. E na minha cabeça: nunca um presidente fez isso. É a transposição de um limite válido para todos na vida pública. Certamente, pagará um preço. No mínimo, a vigilância maior de uma força-tarefa destinada a evitar que tente de novo suicídios políticos.


Fernando Gabeira: Venezuela inspira cuidados

Articular a pressão interna e externa parece-me no momento a melhor saída

Fui quatro vezes à fronteira com a Venezuela. A última jornada, entrega de caminhões com comida e remédio, acompanhei de longe. A sensação que tenho é de que algumas pessoas superestimaram a possibilidade da queda imediata de Maduro. Esperam um nocaute numa luta que só poderia ser ganha por pontos. E de certa forma a luta foi ganha. A violência contra os manifestantes e o incêndio dos caminhões contribuíram para isolar um pouco mais o ditador bolivariano.

Numa luta ganha por pontos, o vencedor também sofre alguns golpes. O grupo de países que apoiou Juan Guaidó utilizou um grande símbolo, que é a ajuda humanitária, mas parece ter-se esquecido de que outras crises surgem constantemente no mundo. E um dos princípios da ajuda humanitária é exatamente não usá-la para proselitismo político.

Se entendi bem os informes acerca da reunião sobre a Venezuela na Colômbia, havia uma divergência latente entre a posição brasileira e a norte-americana. Creio que essa divergência pode ser encontrada numa frase que os americanos usam com frequência: todas as opções para derrubar Maduro estão sobre a mesa. A julgar pelo general Hamilton Mourão, que representou o Brasil, há pelo menos uma opção que não nos interessa: a intervenção militar.

Há muitas razões para o Brasil descartar essa hipótese. Uma delas é o fato de termos uma fronteira comum e uma série de questões que precisam ser resolvidas bilateralmente. Um clima de guerra poderia atrair milhares de novos refugiados. Apesar do indiscutível poderio militar dos EUA e das forças bem equipadas da Colômbia, a vitória rápida na Venezuela não é tão previsível.

O centro de todas as táticas, no momento, é tentar descolar as Forças Armadas venezuelanas da ditadura de Maduro. Daí a insistência nas promessas de anistia e o apelo aos oficiais para que pensem no futuro. No entanto, a resistência a uma intervenção militar não surgiria apenas nas Forças Armadas. Há os paramilitares organizados por Maduro e possivelmente orientados pelos cubanos. E há uma polícia política que só teria a perder com a queda do regime.

Mesmo entre os militares há os que parecem imunes a qualquer proposta de anistia. São os generais que ocupam postos no governo e obtêm neles grandes vantagens financeiras. Podem até achar interessante a ideia de uma velhice tranquila. Mas dificilmente se disporão a perder os ganhos materiais que recebem de Maduro em troca de apoio.

É um caminho complicado. Guaidó definiu-o bem, afirmando que a ditadura não cairá por si própria. Não só Maduro pode refugiar-se no seu bunker em Miraflores, como existem centenas de pessoas dispostas a se imolar pelo socialismo do século 21.

O general Mourão também disse algo que me parece correto: a Venezuela não consegue sozinha se livrar desse esquema de dominação. Se Maduro não renuncia, a intervenção militar é inviável e a Venezuela não pode resolver a parada sozinha, o que nos resta como alternativa?

Guaidó marcou nova manifestação para amanhã. Ele, que parece ter capturado a simpatia de grande parte do povo, seguirá nesse caminho. Mas sabemos que nem sempre as manifestações se mantêm quando não conseguem resultados práticos. Elas tendem a refluir com o tempo, para reaparecer adiante, às vezes com mais força.

Articular a pressão interna e externa parece-me no momento a melhor saída, ainda que tome mais tempo. O sofrimento do povo venezuelano é um dado que leva muitos ao desejo de rapidez e nocaute.

Nem sempre soluções fulminantes são as menos dolorosas. Há outras ditaduras no mundo. Algumas são tratadas pela comunidade internacional com certa tolerância. Não só a Arábia Saudita, como a Coreia do Norte são objeto de táticas diferentes dos EUA. Há nisso tudo outra questão delicada: combinar com os russos. E os chineses. Ambos financiam a Venezuela e possivelmente têm sua dívida paga com petróleo. Assim como é necessário tranquilizar os militares com anistia, seria preciso convencer os russos e chineses de que não terão perdas econômicas com a mudança.

Não sei qual é a posição de Guaidó sobre isso. Mas como seu objetivo é conduzir a transição para a democracia, realizar eleições, não só ele, como outros atores da oposição vão precisar se manifestar sobre isso. Naturalmente, Maduro e a cúpula do governo podem também ser alcançados por uma política de anistia e retirada segura da Venezuela.

Imagino como algumas pessoas podem torcer o nariz para essas hipóteses. Combinar com os russos? Deixar Maduro escapar do país? São as contingências de uma vitória por pontos, diferente de simples nocaute.

Supor um caminho mais radical e de curta duração pode trazer sérias consequências, e não só as sangrentas de uma guerra no continente. São também as constantes decepções das pessoas que acreditam que um regime comunista, apoiado pelos cubanos, vai deixar a cena, refugiando-se numa embaixada ou pura e simplesmente partindo num avião de carreira.

Não creio que o Brasil deva temer uma posição moderada. Afinal, embora exista um esforço muito amplo para derrubar Maduro, as consequências do processo violento vão ser mais sentidas nos países vizinhos. Outro dia, em Pacaraima, segui uma ambulância militar venezuelana. Quando chegou a Boa Vista foi direto para o Hospital Geral e desembarcou um jovem soldado que precisava de ajuda.

Isso me fez pensar. Se até os militares cruzam a fronteira em busca de ajuda médica, qual o papel de Roraima num cenário de guerra? Volta e meia há apagões em Boa Vista. A energia vem da Venezuela. Estamos prontos para substituí-la?

O próprio Maduro, ao condenar a ajuda humanitária, de certa forma poupou o Brasil. Disse que tinha dinheiro para comprar nossa carne, nosso arroz e nosso leite em pó. Não é verdade, mas é uma nuance. E, em política, nuance conta. Ele não ignora que o Brasil quer derrubá-lo. Mas distingue o método dos adversários.


Fernando Gabeira: Ouviram do Ipiranga

Orgulho pelo país não nasce necessariamente das aulas de Moral e Cívica; desenvolve-se nas dores e alegrias do cotidiano

Conversa de segunda-feira de carnaval. Antes de vir para o Brasil, passei na velha livraria Bertrand, em Lisboa. Queria comprar um livro, apenas um para a estrada, a longa viagem de volta. Optei pelo de Milan Kundera “Os testamentos traídos”. Dei sorte. É um livro excelente. Num dos ensaios, intitulado “Em busca do presente perdido”, ele fala de Hemingway. Ressalta o esforço do escritor americano em ouvir e anotar diálogos, sua tentativa de capturar na forma e no som a realidade das conversas.

Kundera menciona a novela de Hemingway “Colinas como elefantes brancos”. É um diálogo entre um homem e uma mulher. Cheio de ambiguidades, aberto para a imaginação do leitor. Mas a interpretação de alguns críticos transformou a história numa lição de moral, heroína e vilão, bem contra o mal. As abstrações acabaram engolindo a realidade do momento vivido.

É um tipo de visão do mundo, segundo Kundera, que nos faz morrer sem saber o que vivemos. A realidade se esvai nas abstrações.

Podemos escrever um diário, lembra Kundera, anotar todos os acontecimentos e descobrir que não registramos nenhuma imagem concreta. O presente é um planeta desconhecido. Não conseguimos mais acessá-lo nem pela memória e nem pela imaginação.

Cheguei ao Brasil em meio à polêmica sobre o Hino Nacional nas escolas. O ministro da Educação queria que as crianças o cantassem e recitassem o slogan de Bolsonaro: “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”. Tudo isso já foi desfeito pelo recuo do governo na proposta. O ministro tinha a intenção de levar Moral e Cívica às escolas. Seus opositores respondem também com uma visão cívica, pois alegaram contra a proposta dispositivos constitucionais e algumas leis ordinárias.

E as crianças nisso tudo foram apenas objeto de um confronto entre diferentes visões cívicas.

O que representa um hino nacional para elas? Às vezes acho que, na infância, primeiro brincamos com o som das palavras para mais tarde entende-las. Meu neto aprende a cantar em alemão. Brinca com a sonoridade, mas não tem a mínima ideia do sentido das palavras. Eu mesmo, quando menino, cantava os hinos mais importantes tentando trazê-los para a realidade tangível. “Já podeis da pátria, filhos”, por exemplo, substituía por “Japonês tem quatro filhos”.

Com o tempo, as experiências coletivas, a vivência da história, passei a ouvir os hinos de forma diferente e, em certos momentos, cantá-los emocionado. Mas o que a criança pode fazer com um lábaro que ostentas estrelado? Que tipo de terra é mais garrida? Pode se guardar na mochila o penhor dessa igualdade?

Mesmo essa história do slogan de Bolsonaro, “Deus acima de todos”, pode não confundir as crianças, mas a mim confunde. Deus não está em toda parte? No meio e abaixo ele deveria estar também, creio; não apenas acima de tudo. Pode estar nas pequenas coisas, nos antros mais sórdidos do planeta.

Compreendo que é tudo um modo de dizer. Mas são essas grandes ideias abstratas que povoam a cabeça da direita e da esquerda. Ambas correm o risco de criar uma espécie de cortina que nos afasta da própria realidade.

Existe uma força permanente que visa não apenas ao jogo vital das crianças, seu divertimento, mas também a mascarar a própria face do real. Como diz Kundera: “para que nunca saibas o que vivestes”. Crianças uniformizadas cantando hinos e acenando bandeirinhas estão presentes em muitas situações. Na Coreia do Norte, por exemplo, parecem disciplinadas e endurecidas pelo patriotismo; no entanto, há uma certa tristeza nesses espetáculos.

Alguma coisa no olhar, na rígida encenação, revela que a alegria e a espontaneidade foram embora, que as crianças amadurecem um pouco à força, como frutas de supermercado.

Compreendo que exista o medo de que as crianças não sintam amor pelo seu país, nem se entusiasmem por defendê-lo. Uma de minhas filhas é atleta. Toda vez que que consegue uma vitória internacional, costuma acenar com a bandeira do Brasil.

O orgulho pelo país não nasce necessariamente das aulas de Moral e Cívica nem dos prolixos hinos pátrios. É algo que se desenvolve na experiência coletiva, nas dores e alegrias do cotidiano.

Lançar o véu dos lugares-comuns sobre a riqueza do instante presente, como observa Milan Kundera, é a forma de sufocar o real com abstrações para que a criança nunca saiba o que viveu.


Fernando Gabeira: O país que importa

Temos de achar forma de abstrair baixo nível e nos unirmos no principal: tirar o Brasil da crise, votar a reforma da Previdência

Aqui na Praia do Norte, em Nazaré, pensando nos portugueses que se atiraram, como diz o poeta, ao mar absoluto, ao encontro do impossível — aqui sigo surpreso com o que acontece conosco, com o que fizemos de nós no outro lado do Atlântico. São tristes as imagens que chegam do Brasil, a mulher deformada pelo espancamento, a jovem mãe correndo com um bebê no colo do conflito entre torcida e polícia. E Maduro fechando a fronteira para comida e remédio.

Todo cais é uma saudade de pedra, como lembra Fernando Pessoa. É preciso um momento de reflexão à distância. A mais recente crise política no Brasil seria tema de um folhetim, amores enviesados, mentiras, veneno e fel.

Temos de achar uma forma de abstrair esse baixo nível e nos unirmos no principal: tirar o Brasil da crise, votar a reforma da Previdência, reduzir o número de crimes. No caso da Previdência, ela tem a aprovação das pessoas preocupadas com o país e não pode ser nem rejeitada nem mutilada pelo Congresso.

Por mais que o governo considere a imprensa como inimiga, os ambientalistas como obstáculo ao progresso, é preciso ajudá-lo, pois o que está em jogo no momento é muito maior que ele.

O Congresso derrubou o decreto que deformava a Lei de Acesso à Informação. Já havia criticado Mourão por tê-lo lançado. A transparência venceu. Faz parte do jogo ganhar ou perder. Sou catedrático em derrotas e asseguro que não importam tanto. Com uma boa análise, fugimos das inevitáveis; com alguma cintura, transformamos outras em vitória relativa.

Num outro artigo em que divago sobre o tempo na concepção do historiador Fernand Braudel, classifico a vitória de Bolsonaro apenas como uma conjuntura em que vários fatores convergem para alterar o tempo rotineiro.

Guardadas as proporções, uma convergência que também aconteceu nos Estados Unidos. São conjunturas que necessariamente não quebram a longa linha do tempo.

Conheço um pouco do Brasil e de Bolsonaro. Quando se tornou um candidato favorito, sabia que sua experiência ainda era limitada. E que sua vitória exigiria de todos nós uma dose de maturidade para evitar traumas. O resto ficaria por conta dos eleitores em 2022.

Foi essa a escolha majoritária. Diante dela, creio eu, o ideal é mapear os temas essenciais para sairmos do buraco. E criticar o governo sempre que se afaste deles.

Intrigas, vaidades, embriaguez do poder sempre se apossam das pessoas mais simples. Ainda mais no Brasil, onde tudo parece ter um viés novelesco: “Carlos Henrique, nunca pensei que fosses me trair…”

De novo, reafirmo aqui minha defesa do jornalismo preventivo. Não se trata de evitar as coisas feias, mas simplesmente de colocá-las no contexto.

Com todo o respeito pelo seu trabalho, Bebianno não existia na política brasileira até a campanha de Bolsonaro. Por sua vez, Bolsonaro nunca foi um hábil estadista, atenuando arestas, unindo forças divergentes. São, por assim dizer, forças não buriladas, que podem amadurecer ou seguir aos trancos até o fim do mandato.

Bolsonaro sempre foi um homem risonho e brincalhão, embora, é natural, tenha ficado mais sombrio depois do atentado que sofreu. Não me importo com as coisas que diz sobre o meio ambiente, muito menos com seus seguidores fanáticos. Pertenço a um grupo no Brasil que leva porrada dos dois extremos e já se acostumou.

Na hora de fazer a coisa certa, como proibir barragens a montante e dar um prazo para desativar as que existem, ele o fez. Será que está esverdeando? Será que, como todos os outros verdes, ele é uma espécie de melancia, verde por fora, vermelho por dentro?

É um país estranho. Não sei se os portugueses traçariam o mesmo rumo se soubessem do desfecho. Sei apenas que é hora de partir. Saudade e dever me empurram de volta, depois desses dias ao lado de Fernando Pessoa:

“E nada traz tanta religiosidade como olhar muito para gente/ A fraternidade afinal não é uma ideia revolucionária/ É uma coisa que a gente aprende pela vida afora, onde tem que tolerar tudo/ E passa a achar graça ao que tem que tolerar/ E acaba quase a chorar de ternura sobre o que tolerou!”

O poeta me saúda no cais:

“Boa viagem! Boa viagem!/ Boa viagem, meu pobre amigo casual, que me fizeste o favor /De levar contigo a febre e a tristeza dos meus sonhos.”


Fernando Gabeira: Brasil, uma visão de tempo

Nada se parece mais com comunista do que as ideias de Bolsonaro sobre meio ambiente

A longo prazo estaremos todos mortos. Essa frase, atribuída a lorde Keynes, é verdadeira. Mas prefiro ficar com as dimensões de tempo descritas pelo grande historiador Fernand Braudel: o tempo imediato é local, a convergência de fatos que produzem uma nova conjuntura é a extensa linha do longo prazo. Naturalmente, estaremos todos mortos, mas existe uma linha de longo prazo e devemos interrogá-la para definir uma estratégia.

No meu entender, a vitória de Bolsonaro é uma convergência de fatos que produziu uma nova conjuntura. Mas continuo achando que na linha do tempo, no longo prazo, o Brasil não pode fugir de seu destino de detentor de grandes riquezas naturais que são um trunfo econômico e diplomático.

O governo Bolsonaro foi eleito pela maioria, de forma democrática. Alguns de seus ministros, Agricultura e Meio Ambiente, consideram que o controle ambiental sobre a produção é coisa de comunista fantasiado de defensor do meio ambiente. Melancias, verdes por fora, vermelhas por dentro. O chanceler Ernesto Araújo classifica o aquecimento global como uma invenção do marxismo globalizante.

Isso não corresponde à realidade. Eles não conhecem um país comunista. Não visitaram o Leste Europeu, não viram a devastação ambiental deixada pelo regime. Os desastres por lá, a julgar por Chernobyl, eram piores que os nossos. Aqui, contaminamos com lama e minério dentro de nossas fronteiras. As usinas nucleares espalham a radiação por todo o continente, às vezes além dele.

Os ministros de Bolsonaro ignoram até o debate nacional. Em 2003, quando saí do PT, afirmei que o partido tinha uma visão ambiental atrasada e replicava a visão dos velhos partidos comunistas. A ideia dos antigos quadros era de que o essencial era o crescimento econômico, a melhoria de condições dos trabalhadores. Era preciso competir e vencer o Ocidente.

Por mais que Bolsonaro deteste os comunistas, nada se parece mais com eles do que suas posições sobre crescimento e meio ambiente. Na realidade, seu ponto de partida é diferente. Bolsonaro defende a propriedade privada e acha que está sendo tolhida pelo controle ambiental. Pelo menos é isso que depreendo de seus discursos de campanha.

A defesa da propriedade privada é uma boa causa. No entanto, ela tem nítidos limites. Um rio que passa na sua fazenda não pode ser usado de qualquer maneira. Há pessoas a jusante, comunidades que dependem dele.

Por causa disso, afirmamos em lei que os rios são de responsabilidade dos Estados ou do governo federal. E criamos um instrumento democrático para geri-los: o comitê de bacia, no qual os usuários são também representados.

Seria fácil descartar a visão de Bolsonaro e seus ministros, afirmando só que ignoram os fatos. Eles, ao que parece, têm uma visão de longo prazo. Acreditam que o meio ambiente pode ser explorado com menos limites se avançamos em ciência e tecnologia. É uma suposição muito frequente a de que as principais tarefas da natureza podem ser substituídas por descobertas científicas. Ainda que isso fosse possível, estaríamos construindo uma civilização solitária, a mais solitária que existiu até hoje, dispensando plantas, animais, fontes de água limpa.

No meu entender, a linha decisiva de longa prazo vai prevalecer. Governos passam. E ainda que não passassem (há os que duram demais), a realidade acabará por se impor.

Os exemplos estão aí. Dilma fazia um governo próximo do marxismo. Mas após o desastre de Mariana ela não mandou fechar as barragens existentes nem proibiu as que são construídas a montante. O governo Bolsonaro, que odeia ecologistas e acha que o controle ambiental deveria ser relaxado em nome da produtividade e do respeito à propriedade privada, fez exatamente o que o chamado marxismo não fez: proibiu as barragens a montante e deu um prazo para que fossem esvaziadas.

Isso foi depois de Brumadinho. Mas não desmonta o argumento de que os fatos acabam produzindo uma aproximação do que chamo de linha estratégica de longo prazo.

O ministro do Turismo de Bolsonaro compreendeu também que a melhor tática para salvar Brumadinho é estimular o turismo, sobretudo o baseado no grande museu a céu aberto de Inhotim. Na verdade, o museu é só uma das atrações da área, rica em águas, no pé da Serra do Rola-Moça, com grandes pedaços de Mata Atlântica ainda preservados.

Ao desenvolver essas ideias, não quero dizer que exista uma história pré-escrita, nem aconselhar que as pessoas cruzem os braços e deixem de lutar por melhores condições ambientais. Ao contrário, quero dizer apenas que existem fortes tendências determinadas por nossa rica biodiversidade que abrem um caminho para o Brasil num mundo assustado com a degradação planetária.

Não importa tanto, aqui, se o ministro gosta de laranjas ou tangerinas, neste caso específico o importante é que faça a coisa certa. Não importa, ainda, se Bolsonaro atribuiu ao PT a defesa de nosso meio ambiente ou se o chanceler confere ao marxismo a constatação de que o planeta esquenta de forma perigosa. Karl Marx compartilhava o otimismo burguês com a exploração ilimitada dos recursos naturais.

Quem vai conter a realidade quando ela se revela em eventos extremos, furacões e tempestades, quando a barragem mineral desce na forma de um tsunami de lama? Não tem nenhuma importância que continuem a combater um comunismo desenhado na cabeça deles, nem mesmo que nos mandem prender por criticá-los com acidez. Conjunturas, convergência singular de alguns fatos, são ebulições que nos deixam pensar tudo, sobretudo fantasiar a realidade como um produto de nossa ideologia. Mas a longa linha do tempo, as grandes tendências históricas acabam nos trazendo ao mundo concreto.

Esta é minha interpretação livre da visão de tempo de Braudel. Não sei se ele autorizaria minha tosca leitura. Pelo menos estou lendo e tentando entender.

 


Fernando Gabeira: O vento no laranjal

Uma pena, porque os temas básicos precisam ir adiante: reforma da Previdência, combate ao crime organizado

Saio do Brasil por uma semana para visitar minha filha em Portugal. Mas saio apreensivo. Coração na mão. Houve uma série de tragédias neste início de ano. Há muitas coisas pendentes desses desastres. Como se não bastasse essa sensação de casa velha caindo que o Brasil nos transmite hoje, há ainda uma crise política, provocada pelo próprio governo.

Uma pena, porque os temas básicos precisam ir adiante: reforma da Previdência, combate ao crime organizado. Os liberais levaram um chega pra lá no caso do leite. O governo manteve restrições ao leite da Europa e Nova Zelândia. Falando de subsídios, a ministra da Agricultura afirmou: o desmame não pode ser radical. No mundo biológico, o desmame tem um momento de acontecer. Se deixar apenas pelo gosto de algumas crianças, a coisa vai longe.

O plano de Sergio Moro é voltado para mudar as leis, adaptá-las ao combate ao crime. Se forem aplicadas com seriedade, vão levar mais presos às cadeias? O que faremos com elas?

A última das minhas escolhas em política é falar de intrigas palacianas e familiares. Mesmo para contestar o ministro do Meio Ambiente, no caso do Chico Mendes, hesitei um pouco. Tenho vontade de deixar tudo isso pra lá, seguir focado no que importa.

É tudo tão subversivo para minha concepção de política que me sinto um pouco espécie em extinção. No mundo que se foi, presidentes reuniam-se com ministros, acertavam sua demissão e, em alguns casos, trocavam cartas diplomáticas de agradecimento etc.

Hoje, são demitidos pelo Twitter. Não é novo. Trump costuma usar esse método. Mas esse estilo de fazer política representa mesmo um avanço?

No caso de Bolsonaro, há um dado delicado. Ele divulgou uma gravação telefônica com um ministro. Presidentes não punem primeiro nas redes sociais . Nem costumam divulgar suas falas.

É um cochilo em termos de segurança nacional. Mas é, sobretudo, uma falta de consideração. Se houvesse alguma coisa a ser resolvida, deveria ter sido pessoalmente. Sem humilhações públicas.

O poder, isso é um lugar-comum, revela muito as pessoas. Sobretudo no princípio de governo, quando ainda estão embaladas pelo voto popular e ainda não sofreram o desgaste das limitações reais.

A tendência é um excesso de autoconfiança. Mesmo entre os generais, que são uma força moderadora e mais tranquila, às vezes surgem surpresas.

Na minha concepção política, os governos, de um modo geral, ao saber que serão criticados, apenas preparam-se para a defesa, que será proporcional às críticas e suas repercussões.

O governo brasileiro resolveu se antecipar às potenciais críticas que sofreria de bispos de esquerda num sínodo sobre a Amazônia. Nesse movimento, ele trouxe as atenções para as críticas que podem sair daí. O sínodo ainda não aconteceu. Dizem que o celibato dos padres será um dos temas. Por que não esperar que aconteça e reagir de acordo com os fatos reais?

Enfim, é tudo tão perturbador para uma visão mais clássica. Governos minimizam críticas, não criam um palco planetário para elas.

Um dado novo também é a importância dos filhos de Bolsonaro nas crises políticas.

Como um sobrevivente do século XX, impossível não levar em conta a intensidade da relação pai e filho. Não usaria jamais a frase redutora: “Freud explica”. Arriscaria apenas dizer que ele fornece algumas pistas.

O que me parece fato neste momento é a intensidade emocional deste governo, as rivalidades, as tramas, os ciúmes. A experiência mostra que existe um antídoto para as veleidades pessoais: é a existência de um projeto comum, algo que nos transcenda.

A retirada do Brasil desta crise, as necessárias reformas, tudo isso deveria falar mais alto. Mas não fala. A própria insegurança estrutural pela ausência de uma cultura de precaução só aparece nas primeiras semanas pós-desastre.

Quando este governo se instalou, dispus-me a ficar atento e, se necessário, fazer uma crítica construtiva. Mas esse projeto se esvaziou um pouco. Daí minha apreensão. Será preciso, em primeiro lugar, libertá-lo dessa tendência autodestrutiva.

Tratem-se bem, cuidem uns dos outros, vivemos num país quase em ruínas. Isso é o pressuposto para trabalhar com a sociedade, levá-la para as mudanças que deseja.

Deixem, pelo menos, a oposição trabalhar.


Fernando Gabeira: Um futuro para Brumadinho

Ter o mais belo museu a céu aberto do mundo e uma estrutura de hotéis e restaurantes sugere o novo caminho

De novo em Brumadinho, desta vez para falar de reconstrução, como em Mariana. A cidade tem dois polos: cultura e mineração. O Museu de Inhotim, erguido no meio de um lindo pedaço da Mata Atlântica, pode ser um dínamo desse processo. Recebe 350 mil pessoas por ano e reabriu neste fim de semana. Nele trabalham 600 pessoas.

Se os artistas brasileiros quiserem dar uma força, é possível fazer a cidade transitar da hegemonia da mineração para se tornar um centro cultural. Será preciso apenas esquecer as diferenças ideológicas. Certos temas de união nacional ajudam até a lidar com as divergências.

Não sou especialista em barragens. Os engenheiros pensam coisas claras. Um deles sugeriu que a barragem se rompeu por liquefação. Desde esse momento, levei a serio a hipótese.

Agora, fico sabendo que a barragem de água estava a montante do minério armazenado. Vazava constantemente. A Vale construiu um cano para desviar essa água. Mas será que foi suficiente? Os sensores funcionavam mal, e faltavam cinco deles.

O atestado de estabilidade dado pela empresa alemã TÜV SÜD tratou desse tema. E parece que houve pressão para que os alemães transigissem: ou davam o atestado de estabilidade ou seria rompido o contrato com a Vale.

Indo um pouco adiante, como detetive amador, lembro que a barragem de água estava tão cheia que ameaçou romper após o desastre. No domingo de manhã, a sirene tocou por lá, pelo perigo da barragem de água. Possivelmente, a mesma sirene que silenciou diante do tsunami de lama. Nesse caso, enganada pela insuficiência dos sensores. Diante de tais circunstâncias, não é correto dizer, como disse a Vale, que a barragem de rejeitos era de baixo risco e grande poder de dano. Ela era de alto risco.

Essa é a conclusão de um ignorante esforçado. Quando a Vale disse que o desastre era inexplicável, ela estava de posse de todos os dados, tanto que tentava desviar o curso da água.

Espero que os fatos confirmem esta hipótese, pois, até agora, não consegui ouvir alternativas. Houve uma fake news, na época do desastre, dizendo que explodiram uma bomba. Um venezuelano e um cubano teriam sido presos. E não é que circulou. Os venezuelanos não têm bombas para uso externo: estão à beira de uma guerra civil.

Apesar de tudo, espero que a Vale participe do esforço de reconstrução, sem ambiguidades como em Mariana. Seria aprender a operar num espaço estrategicamente mais valioso que suas minas de ferro.

A entrada de Brumadinho é feinha e encardida. Na cidade, há um conjunto de painéis pintados por artistas brasileiros. Foi uma parceria da Vale com a prefeitura. Os painéis perderam a cor, foram degradados pelo descaso, alguns parecem uma colagem de minério de ferro.

A ideia geral era esta: já que produzimos minério, por que se importar com a beleza? Em outras palavras: já que vai sujar mesmo, por que manter limpo?

Antes do desastre, fui a Brumadinho uma única vez. Na época, para a palestra de fundação do Partido Verde, que hoje, quem diria, é o partido do prefeito. Não o conheço bem. Apenas o entrevistei sobre os fatos correntes. Mas, se pudesse dar um palpite, diria que o futuro de Brumadinho deveria se concentrar numa ideia simples: entra a beleza, sai a feiura.

As mineradoras costumam deixar apenas buracos, quando não levam as montanhas, como levaram o Pico do Cauê, na Itabira de Drummond.

Ter o mais belo museu a céu aberto do mundo e uma estrutura de hotéis e restaurantes sugere o novo caminho, que nem merece ser chamado de economia criativa: é uma decorrência lógica. Seria preciso um novo marco regulatório para exploração de minério numa área onde a cultura tem um grande papel. Brumadinho tem lindas estradas vicinais com áreas preservadas. Os 300 hectares enterrados na lama são apenas uma pequena parte de um município maior do que Belo Horizonte. Seu bairro mais atraente, Casa Branca, está no pé da Serra do Rola Moça, um parque estadual. É um belo roteiro, que pode florescer no futuro.

Em Casa Branca, onde há muitos moradores fugidos do estresse da grande cidade, há um movimento de defesa da águas em permanente choque com a mineração. O que alguns mineradores chamam de Quadrilátero Ferrífero é, na verdade, para os moradores um quadrilátero aquífero.

Há um passado e um futuro para Brumadinho. Hora de virar o jogo.


Fernando Gabeira: Adeus às velhas raposas

Renan achou ser um produto da novidade eleitoral só porque se reelegeu. Engano

As eleições no Senado marcaram o fim de uma hegemonia de décadas do velho MDB. Nesse aspecto, houve uma renovação. Ela não veio com o melhor espetáculo possível. Nem se pode afirmar ainda a amplitude dessa renovação. O consenso é que as reformas ficaram mais fáceis. Acredito ser essa uma das vantagens da renovação.

Mas minha alegria com um Senado propenso às reformas é limitada. Isso significa que pode respaldar ou mesmo melhorar as reformas vindas do governo, mas não demonstrou ser capaz de dar uma contribuição singular, que, além das reformas, é capaz de nos dar grandes projetos.

Mal conheço o presidente Davi Alcolumbre. Vi o senador Randolfe Rodrigues compará-lo a Rui Barbosa porque suportou em silêncio as críticas dos adversários. Em silêncio todos se parecem com Rui Barbosa. O problema é quando começam a falar.

A eleição no Senado foi num momento em que os corpos ainda estão sendo retirados da lama, num desastre com cerca de 350 mortos, lastimado no mundo inteiro, do papa a Theresa May. Houve poucas menções a isso, na verdade havia até uma certa pressa, confessada nos microfones, de comemorar a posse com as famílias. Será que nos trabalhos centrais, reforma da Previdência e pacote contra o crime, vão encontrar um espaço para a segurança nas barragens?

O governo mandará um projeto nesse sentido. Mas o Congresso tem papel vital na formulação de um marco regulatório.

A Vale decidiu fechar as barragens que têm o mesmo modelo de construção das de Mariana e Brumadinho. Está fechando por contra própria. Se o desastre de Mariana tivesse inspirado os parlamentares, elas deveriam ter sido proibidas no Brasil, como já o são em alguns outros países.

Naquela gritaria insana dos senadores, pensei, como todo mundo, que o nível estava baixo. Mas não me alonguei nesse sentimento. Não sou um turista sueco. Esse é o nível e é com ele que temos de trabalhar.

A grande inspiração para seguir a política no Brasil vem dos bombeiros de Minas, rastejando na lama em busca dos corpos e sobreviventes. Não importam a paisagem nem o cheiro.

A possibilidade de obter um avanço no controle da indústria é real depois desses dois grandes desastres. As chances são maiores porque a influência da indústria foi menor nas eleições de 2018. A anterior, de 2014, foi a última financiada por empresas. A Vale destinou então cerca de R$ 75 milhões aos candidatos.

Senadores que me parecem bem-intencionados, como o próprio Randolfe e Simone Tebet, para citar alguns, vão ter um papel importante neste processo de renovação do Senado. Muitas vezes declararam que seu objetivo era aproximar o Senado da sociedade. Para dizer a verdade, a própria sociedade se aproximou do Senado e deu um empurrão final em Renan Calheiros.

O mandato que começa é muito diferente dos anteriores. Talvez a pressão social sobre os eleitos seja mais intensa e isso muda o jogo. Votações abertas criam um vínculo com os eleitores. Eles cobram e agora sabem com clareza quem votou o quê.

Existem, evidentemente, alguns raros momentos em que a pressão social se choca com a consciência do parlamentar. Mas isso se revolve, são perdas e ganhos. Rui Barbosa jamais foi presidente.

Não será apenas na segurança de barragens que eles podem ter um papel. Também na segurança pública, algo que move mais a população do que a reforma da Previdência.

No texto de Moro, as milícias são consideradas organizações criminosas, ao lado do tráfico de drogas. Ambos dominam grande parte do território no Rio e, em menor escala, em outras cidades.

O ex-ministro Raul Jungmann percebeu bem o que chamou de coração das trevas, a inevitável associação dos donos do território com políticos eleitos ou ainda em busca de voto. De modo geral, esse nó se desata fora do Parlamento, a partir das investigações policiais. Mas se parlamentares não reconhecerem essa limitação da democracia, essa impossibilidade de votar e ser votado em todo o espaço urbano, aí, então, a tarefa será mais difícil.

O quadro geral na imprensa é de que a coisas começam bem para a agenda do governo. Mas sempre existe algo que não aparece na agenda, a não ser em sobressaltos. É o caso do meio ambiente. De nada adianta argumentar nesse campo, porque os desastres, naturais ou provocados, são de uma eloquência cada vez mais poderosa.

Da mesma maneira, não é possível um Parlamento ignorar que um país vizinho ao Brasil vive uma grande crise e que o governo Maduro agoniza. No caso de uma guerra civil sangrenta, certamente haverá mais gente na fronteira. A Venezuela tornou-se um problema internacional. Isso não significa que o papel do Brasil se tornou supérfluo. Discute-se em todo o mundo, mas é em alguns países vizinhos que sofreremos as consequências.

São apenas algumas ideias inspiradas nesta estreia do Senado. Na verdade, não teria espaço ainda para discuti-las. Se estivesse lá, certamente eu manteria silêncio, não ia perder esta única chance de ser como Rui Barbosa.

O jogo político começa agora. De janeiro para cá, apenas o governo apareceu. Agora é mais amplo. A sensação que tive inicialmente é de que não há blocos organizados.

Continuo achando que o número de surpresas será grande. Mas nesta altura, o melhor é garimpar alguns avanços no que às vezes parece um caos, um circo, um botequim.

O velho grupo caiu. São as consequências das eleições. Renan achou que era um produto da novidade eleitoral só porque se elegeu. Engano. Os ventos continuam soprando e o levaram para o espaço. Onde, aliás, já estão todos os seus colegas derrotados. Renan apresentou-se como um falso novo. Até que ponto o novo que venceu representa mesmo uma novidade? Os tempos não estão favoráveis às manipulações.


Fernando Gabeira: Algumas reflexões diante da lama

Nem tudo será esquecimento; 348 pessoas soterradas pela lama ficarão para sempre na memória das famílias

Difícil não ser caótico para descrever uma catástrofe.

“O Rio? É doce/ A Vale? Amarga/ Ai, antes fosse/ Mais leve a carga” (Carlos Drummond de Andrade).

Viajei triste para Brumadinho. Estou cansado de desastres. Conheço até sua lógica: tristeza, indignação, medidas urgentes para acalmar os ânimos e logo depois o esquecimento.

A única forma de suportar o que veria era levar a obra de Drummond na viagem. Ninguém melhor do que ele descreveu as relações das mineradoras com a paisagem e mesmo com as almas. Talvez seja o melhor caminho para entender toda essa história.

Drummond era ao mesmo tempo a testemunha e o profeta. Morreu antes do desastre de Mariana, não viveu a fase trágica que se completa agora com o desastre em Brumadinho. A maneira como descreve Itabira é um desastre em câmera lenta.

Depois de Mariana, passei a seguir o trilho da mineração. Cobri um vazamento de alumínio nos igarapés de Barcarena, no Pará. Em seguida, o rompimento do mineroduto em Santo Antônio do Grama.

Não foram em barragens, onde se situa o maior perigo, sobretudo a do tipo de Mariana, que deveria ser proibida. Era uma decorrência do desastre. Mas onde estavam governo e Parlamento? Muito próximos da indústria, muito longe das pessoas e da natureza.

Onde estava a Justiça no caso de Mariana? Por que tão lenta? No ano passado, estive lá e nos escombros comentei a decisão de um juiz de suspender o processo contra a Samarco. Chicanas.

Tenho um pouco de escrúpulo em dizer: isto não pode se repetir. As coisas se repetem tanto. O presidente da Vale, Fabio Schvartsman, assumiu o cargo com o slogan “Mariana nunca mais”. Agora, a Vale quer prometer Mariana e Brumadinho, nunca mais. É só ir empurrando o nunca mais para o fim e acrescentando alguns nomes antes dele.

Lembra-me dos trens italianos, rapido, molto rapido, rapidissimo .

Acreditamos demais na palavras. O presidente da Vale estava na plateia em Davos quando o presidente Bolsonaro afirmou que o Brasil é o país que mais protege o meio ambiente no mundo. Falava apenas da relação das florestas com agricultura e pecuária.

Isso é um problema antigo com Bolsonaro. Ele teve a ideia de fundir o Ministério da Agricultura com o do Meio Ambiente. Argumentei que o meio ambiente era mais amplo, crise hídrica, saneamento básico, estendia-se até o licenciamento no pré- sal.

A pressão de todos os lados o fez recuar: manter o Ministério do Meio Ambiente. Mas, ao falar em Davos, de novo ele abstraiu o meio ambiente e o reduziu à questão do campo.

Bolsonaro dizia na campanha que o Ibama é uma indústria de multa. O Ibama não recebeu, por exemplo, nenhum centavo da multa de R$ 250 milhões aplicada à Samarco. É uma indústria completamente falida. Seus devedores não pagam.

Não vou argumentar mais, o desastre fala por si: toneladas de lama, bombeiros rastejando no barro fétido, uma vaca atolada, uma antena de TV flutuando, uma caixa-d’água, o desespero das famílias.

A sirene que não tocou, e a lama levou os hóspedes da Nova Estância, a própria pousada foi arrastada. Eles tinham um plano de fuga. E a sirene não tocou. Eram 34, ao que me consta. E mais um bebê na barriga da mãe, mulher de um arquiteto brasileiro que vivia na Austrália e veio conhecer Inhotim. E a sirene não tocou.

A resposta geral do governo Bolsonaro foi rápida. Vem aí um Plano de Segurança das Barragens. Faltou aparecer o responsável pela Agência Nacional de Mineração. Pode ser que não tenha visto, estava no meio do desastre.

O que mais temo no pós-desastre é o esquecimento. Triste como a música do Piazzolla “Oblivion”. É um país se esquecendo de si próprio. Essa talvez seja a resposta para a pergunta mais adequada. Por que o que não pode se repetir tem se repetido? Esquecimento. Mas, pelo menos, a obra de Drummond lembrará para sempre as origens do drama:

“Quantas toneladas exportamos/ De ferro?/ Quantas lágrimas disfarçamos/ Sem berro?”

Nem tudo, entretanto, será esquecimento. Trezentos e quarenta e oito pessoas soterradas pela lama ficarão para sempre na memória das famílias, dos amigos, dos bombeiros de vários pontos do Brasil, dos soldados israelenses, voluntários, repórteres amadores, todos que se aproximaram física ou emocionalmente da tragédia. Carregam na memória o capítulo trágico do testemunho poético de Drummond.


Fernando Gabeira: Estreia e reprises

Bolsonaro se vê diante do desafio de João: divulgar a verdade e esperar que ela o liberte

A ida de Bolsonaro a Davos é parte da aposta maior de seu governo: reformas e retomada da economia. A reforma da Previdência, por exemplo, não será tão consensual como Paulo Guedes afirmou. No entanto, tem chance de ser realizada.

Concordo com a tese geral de que um passo correto na economia fortalecerá seu governo. Discordo, entretanto, de quem acha que a economia neutraliza todos os outros problemas.

Não tem sido assim. No passado discutia com simpatizantes do PT o mesmo tema. Argumentavam que o importante era crescimento e renda e a corrupção seria apenas uma nota de pé de página na História do período. Teoricamente, acho que as dimensões econômica e política se interpenetram e, em certos momentos, uma delas pode ser a determinante.

O período de democratização revelou para mim que existe uma grande demanda de valores na vida pública. Na primeira eleição direta, Collor era o caçador de marajás; Lula, o que traria a ética para a política. Na verdade, era uma demanda já na eleição do período anterior, em que Jânio venceu esgrimindo uma vassoura.

O governo Bolsonaro surge com uma demanda maior, potencializada pelas redes sociais e diante de um País bastante severo e conhecedor das táticas evasivas dos políticos. Por isso vejo com a apreensão o episódio envolvendo o senador Flávio Bolsonaro. Os elementos que existem ainda não nos permitem concluir sobre o conteúdo. Mas é possível ter uma opinião sobre como as pessoas reagem quando estão sob suspeita – o comportamento acaba revelando mais do que a própria denúncia.

Quando Flávio Bolsonaro pediu ao Supremo que suspendesse as investigações, usando o foro privilegiado, alguns analistas concluíram que tinha tomado um elevador para o inferno. No primeiro andar já encontrou uma fogueira. Durante a campanha, Jair Bolsonaro, ao lado de Flávio, condenou o foro privilegiado.

Novas revelações – é sempre assim – surgiram e as explicações foram ficando mais difíceis e complicadas.

Surge um novo elemento com a prisão do Escritório do Crime, uma organização criminosa. Nova fogueira pelo caminho. Um dos milicianos teve a mãe e a mulher empregadas no gabinete de Flávio, então deputado estadual. Flávio disse que a responsabilidade da contratação era de Fabrício Queiroz, o motorista que já o enredara nas transações bancárias, levantadas pelo Coaf. Acontece que é muito difícil um deputado não conhecer perfeitamente seus assessores.

Além do mais, Flávio tem uma visão de que as milícias são um mal menor, porque expulsam os traficantes. E achava razoável que fossem financiadas pela comunidade.

São posições muito delicadas porque se aproximam da apologia do crime, na medida em que ignoram que as milícias vendem gás, controlam parte do mercado imobiliário, do transporte alternativo e em certos lugares elas próprias até assumem o tráfico de drogas.

Bolsonaro elegeu-se repetindo a frase “conhecereis a verdade e ela vos libertará”. Ele se vê agora diante do desafio de João: divulgar a verdade e esperar que ela o liberte.

É apenas uma suposição que o caso de Flávio não atinja o governo. Qualquer observador pode constatar nas redes sociais o desgaste entre os próprios apoiadores do governo. Foi uma campanha feita com explicações diretas pela rede. Os seguidores estão perplexos, pois as explicações agora são em entrevistas escolhidas.

Como o governo Bolsonaro tem bastante popularidade, as perdas talvez sejam subestimadas. Mas em política sabemos que não é bom sangrar.

Na verdade, quem acompanha os debates na direita observa que já existem conflitos abertos, alguns preocupantes. A viagem de um grupo de parlamentares do PSL à China produziu um grande debate interno. Isso tudo se passa na internet, mas a sensação é de que foi uma viagem sem briefing do Itamaraty, sem visão dos limites.

Segundo Olavo de Carvalho, os deputados foram conhecer um sistema de monitoramento facial da Huawei, empresa chinesa acusada de espionagem e que é um dos temas da guerra comercial EUA x China.

De modo geral, somos muito sensíveis a sistemas de monitoramentos. Lembro-me do Sivam, fizemos muito barulho em torno dos equipamentos que iriam monitorar a Amazônia. Talvez o barulho tenha sido excessivo, o problema maior é usar todo o potencial do sistema. Isso apenas para dizer que não é uma tarefa de deputados recém-eleitos discutir essa questão na China. Envolve outras dimensões de governo.

O mais desolador é o nível do debate entre eles na redes sociais. Revela, para mim, uma das grandes distorções do presidencialismo no Brasil. Um presidente popular arrasta consigo dezenas de parlamentares. Na verdade, muitos deles são bombas de efeito retardado.

É possível que com eles, ou apesar deles, as primeiras batalhas da economia sejam vencidas. Mas de novo coloco a questão política e cultural: a direita tem consistência para dirigir um país tão diverso?

Outra dimensão preocupante é a questão ambiental. É uma ilusão ver isso com lentes ideológicas. Não é possível que considerem o tema uma trama marxista. O próprio organizador do Fórum de Davos, Klaus Schwab, questionou Bolsonaro sobre isso. Não parecia um marxista.

Antes de partir para Davos, o governo designou para o Serviço Florestal um deputado que é autor de uma lei autorizando a caça de animais silvestres. Pode argumentar que ela existe nos EUA. Eles têm um sistema de controle maior e, além do mais, por que se inspirar nos EUA nesse caso? Não há espaço para essa lei no Brasil. Nem para os setores que querem avançar sobre a floresta para criar gado, liberando carbono e toda a flatulência.

Economia à parte, os passos do governo nas dimensões político-culturais me deixam em dúvida se estou vendo estreia ou versão de um antigo filme.


Fernando Gabeira: Lições do terror

No fundo, a simples enumeração de ataques é, de forma involuntária, o jogo que interessa aos líderes de facções criminosas

Calor absurdo aqui no interior do Mato Grosso do Sul. Coisas do marxismo internacional. Acabo de ler o livro de Afonso Arinos, graças às longas viagens de avião: 1.780 páginas.

De tantos pedaços da história, discursos internacionais, personalidades, tenho espaço apenas para destacar uma frase da neta de Arinos. A mulher dele disse que ele andava triste. A menina resolveu consolá-lo:

— Vovô, não fique triste, o senhor tem sua casa, seus filhos, a sua bengala…

Livros como o de Arinos e Joaquim Nabuco me reconciliam com o Brasil. Fico orgulhoso de me dedicar ao estudo do país.

Em Fortaleza, vi um homem com um carrinho de pequenas frutas amarelas ao longe e disse: seriguelas. O homem se aproximou e, ao passar por nós, perguntei: que fruta é essa? Seriguelas, respondeu.

Fiquei feliz como um menino que passa na prova. Deveria ser um pouco mais sério porque estava cobrindo precisamente a onda de ataques no Ceará.

Acontece que estou reavaliando um pouco minha noção de jornalismo. Nossa tendência é dramatizar ataques, cortar as imagens de forma que o fogo e a destruição se destaquem.

Quando examino mais de perto, os ataques, na verdade, são feitos em lugares desertos e em altas horas da noite. Um exemplo disso foi a dinamite que apareceu no metrô. Não tinha detonante, seu objetivo era assustar.

Não quero dizer que o tema não seja grave. As cadeias estão superlotadas. As organizações criminosas cresceram muito, não apenas no Ceará. E um grande número de jovens sem emprego ou escola é atraído para as facções.

Há alguns anos li um livro sobre um congresso ligado à ONU cujo tema era diplomacia preventiva — como atuar para evitar conflitos, sobretudo aqueles que realmente podem ser evitados.

Na época, falou-se também rapidamente no jornalismo preventivo. Nos anos 1960, tínhamos cadernos teóricos e talvez me dedicasse a escrever sobre essa nova forma de jornalismo.

Mas, como as tarefas aumentaram, resta-me tentar aplicar a ideia na prática. Os puristas podem objetar: prevenir? O jornalismo não previne, não evita, nem provoca: apenas informa.

Mas é de informação de que se trata. Informar significa também colocar num contexto um pouco mais amplo.

Um pouco de estudo militar mostra que ofensivas são um momento delicado: os atacantes se expõem e costumam sofrer grandes perdas.

Com quase 4 00 pessoas presas, parece que aconteceu com as organizações criminosas do Ceará.

Em Fortaleza, há agora um centro de inteligência para todo o Nordeste. Eu visitei o centro, mas não pude entrar porque precisava de licença especial, essas coisas. Imagino que tenham aproveitado esse momento de ofensiva e muitas prisões para entender um pouco mais das organizações criminosas.

O que torna o problema do Ceará mais sério ainda é o fato de que muitas de suas coordenadas estão presentes em outros estados.

A simples enumeração de ataques, grande parte deles em lugares remotos e escuros, no fundo, é, involuntariamente, o jogo que interessa aos líderes das organizações criminosas.

Eles precisam de um tipo de cobertura para difundir o medo. Mas chega um momento, e isso vale também para o terror político, que é preciso vencer o medo coletivo e encarar a vida com normalidade, mostrar que as coisas seguem, apesar deles.

Artistas locais fizeram uma campanha intitulada Quero Meu Ceará de Volta, evocando todas as coisas boas numa cidade tão simpática como Fortaleza: andar nas ruas, ter cadeiras na frente de casa.

A ideia, creio eu, estava numa direção correta. Mas era preciso mais que isso: era preciso retomar as ruas com firmeza. Isso seria também uma tarefa para políticos. Mas eles andam meio escondidos. Exceto os que têm de tratar diretamente do tema pela responsabilidade de governo, os outros são muito discretos, para usar um termo leve.

De qualquer forma, creio que os episódios do Ceará surgiram e sumiram sem que houvesse uma discussão mais detalhada sobre eles.

Minha impressão é que já é tempo de avaliarmos as relações de jornalismo e terror. Minha sugestão não é, absolutamente, a de omitir episódios atemorizantes.

Em muitos casos, informar com mais profundidade e exatidão pode abrir caminho para que a sociedade compreenda o que se passa e retome as rédeas de seu cotidiano.


Fernando Gabeira: Sobrou para Darwin

Assim como o PT, os vencedores de agora parecem achar que o Brasil começou com eles

Sabia que Darwin não passaria incólume por este governo. Inclusive escrevi um artigo prevendo esta hipótese. Nele, falava de um filme americano do século passado, cujo título no Brasil foi “O vento será tua herança”.

Na verdade, o filme era sobre um júri onde se discutia o ensino da teoria da evolução nas escolas. Ficou conhecido como o júri do macaco.

Darwin esteve no Brasil. Parte de sua teoria foi elaborada a partir da experiência em Galápagos. Outro dia, percorri seu caminho no interior do Rio, dentro do território de Maricá. Observava as possíveis plantas que Darwin viu e, ao passar por um casarão da fazenda, vislumbrei a grande pedra da qual, segundo se diz, os escravos se jogavam. A passagem de Darwin pelo Brasil não se limitou à natureza. Ele se impressionou com a escravidão, à qual ele e sua família se opunham na época.

A ministra dos Direitos Humanos, Damares Alves, lamentou que a igreja evangélica tenha perdido espaço para Darwin nas escolas brasileiras, nas quais o criacionismo não é ensinado. O ministro da Ciência, Marcos Pontes, já fez a defesa de Darwin. De qualquer forma, ainda existe no ministro da Educação uma desconfiança em torno da ciência, tema que também abordei no artigo anterior.

O GLOBO tentou comprar uma autobiografia de Damares. Não deu certo porque a edição de “Jesus sobe no pé de goiaba” foi suspensa. O interesse do GLOBO em Damares é o de repórter. O meu é de escritor. Ela é a grande personagem deste princípio de governo.

Imaginei até uma série de ficção, que começaria com uma ministra de cabelos longos com as mãos na mesa de uma de suas três secretárias, alguns carros usados no pátio, dizendo: “De agora em diante, neste país, menino se veste de azul, menina se veste de rosa”.

Eu a sigo com um olhar fascinado desde a história de ter visto Jesus na goiabeira. Estava pronto para defendê-la dos lobos do ceticismo, mas ela mesma recuou. Disse que era uma fantasia de criança.

O recuo a torna uma personagem mais complexa ainda. Se viu Jesus na goiabeira e está relativizando, sua visão é sinal de que não quer enfrentar os céticos.

Mas se foi apenas uma fantasia infantil, por que apresentá-la como se tivesse acontecido de verdade? Aí entraríamos num outro território, o do também fascinante personagem de Sinclair Lewis, chamado Elmer Gantry. No cinema, foi vivido por Burt Lancaster. Era um genial manipulador. Limito-me a observar os primeiros passos do governo, mas, sinceramente, não é o caso ainda de fazer oposição. A fase ainda é a de Sancho Pança, limitando-me a dizer: “Olha mestre, olha o que está dizendo.”

O governo retirou o Brasil do Tratado de Migração da ONU. Disse que o fez em nome da soberania nacional. Mas o tratado não era vinculante. Apenas uma tentativa de organizar o maior caos que a humanidade vive, os deslocamentos em massa.

Bolsonaro falou como se o Brasil estivesse na mira de multidões de refugiados. Mas não está. Na verdade, temos mais brasileiros no exterior do que estrangeiros procurando o Brasil.

Não se pensou no destino dos brasileiros lá fora. Não podem ser vistos com má vontade, uma vez que seu país é tão fechado a acordos sobre o tema?

Bolsonaro falou também que os imigrantes aqui devem saber cantar o Hino Nacional. Minha avó, analfabeta, falava mal o português. Seria uma tortura para ela cantar o Hino Nacional, mas isso não significa que não gostasse do Brasil e não trabalhasse como uma moura.

Sinceramente, não sei se os EUA de hoje são o modelo para uma política migratória. A Alemanha tem uma posição diferente. O Canadá, que me parece mais adequado como referência, deveria ser também observado.

No Rio, um deputado do PSL, a propósito de um centro indígena realmente decadente, declarou que quem gosta de índio deve se mudar para a Bolívia. Se sua inspiração é militar, por que só o capitão Bolsonaro, descartando Marechal Rondon? Talvez nem saiba quem foi Rondon.

Assim como o PT, os vencedores de agora parecem achar que o Brasil começou com eles. A tarefa é sempre se lembrar do país imenso que não cabe nas estreitas ideologias.