Fernando Gabeira

Fernando Gabeira: As simples armadilhas

A grande tarefa dos intelectuais é convencer quem desconfia de sua atividade sobre seu valor

O Brasil é dirigido por um bando de loucos, afirmou Lula. Ainda bem que não são cachaceiros, respondeu Bolsonaro. Os dois homens com mais apelo popular no Brasil falam uma linguagem rude e franca. Sabem que se comunicam com a maioria e desprezam as nuances sofisticadas para combaterem um ao outro.

Essa polaridade é um sinal dos tempos. Na verdade, Bolsonaro é um recém-chegado. Ele explodiu a outra polaridade, entre PSDB e PT, assim como em muitos lugares da Europa também foi para o espaço a alternância centro-direita e centro-esquerda.

Bolsonaro procura expressar o que acha ser a aspiração do homem comum. É disso que se trata: apresentar soluções simples e deixar que a complexidade fique para intelectuais e especialistas – os suspeitos de estarem enrolando e mantendo o status quo com suas avaliações mais profundas.

Creio que é dentro desse contexto que é preciso analisar a disposição de Bolsonaro de reduzir o apoio aos cursos de sociologia e filosofia. Ele quer se dedicar aos que dão retorno, como os de agricultura, medicina, administração.

Bolsonaro já foi contestado de muitas formas. Ficou claro que há uma previsão constitucional amparando esses cursos. A contestação que deve ter pegado mais fundo é a de natureza econômica: o avanço da robótica, da inteligência artificial, reacendeu a importância das ciências humanas. Asfixiá-las seria um lamentável atraso.

O próprio Japão, usado como argumento, já percebeu que os desdobramentos científicos tornaram um erro a ideia de subestimar as ciências humanas.

Não sei como essas coisas vão ser elaboradas na cabeça de Bolsonaro. Sinto que ele exprime uma espécie de senso comum talvez originado na suposição de que apenas o que se produz materialmente tem valor – outro equívoco bastante difundido entre as pessoas que buscam líderes simples e diretos para resolver os problemas do País.

Outra fonte de mal-entendidos é supor que sociologia e filosofia sejam matérias de esquerda, isto é, conduzam os que se dedicam a elas inevitavelmente a uma posição contestadora.

Se a direita que apoia Bolsonaro pensa assim e quer suprimir cursos, ela está, na verdade, capitulando intelectualmente, abandonando um campo por achar que a partida ali jamais será ganha ou, no mínimo, empatada.

No livro O Povo Contra a Democracia, Yasha Mounk, acho eu, acerta ao afirmar que esses líderes expressam posições populares e não adianta vê-los com olhar superior ou classificar seus seguidores como idiotas. Essa é uma tese que defendo, em termos semelhantes, desde o período eleitoral. O segredo, para ficarmos numa expressão popular, é mostrar às pessoas como o buraco é mais embaixo, nem todas as ideias simples são exequíveis.

Bolsonaro vetou um anúncio do Banco do Brasil (BB). Havia gays, tatuados e negros. Na sua visão estreita, a propaganda do banco é um instrumento da guerra cultural. O povo não pagará por ideias que confrontam a família.

A deputada Janaina Paschoal chegou a perguntar por que estatais fazem propaganda. No caso, o Banco do Brasil é apenas um ator num cenário competitivo em que estão também os bancos privados. A propaganda é uma forma de competir e assegurar uma fatia do mercado.

Mesmo aqueles que defendem a privatização do BB – talvez não seja o caso de Bolsonaro – deveriam estar interessados em que o banco não perca uma fatia de mercado. Se isso acontecer, sai mais barato, o País receberia menos por ele.

Tudo isso, na verdade, é apenas uma reflexão sobre a tática, a possibilidade de progressivamente levar às pessoas uma ideia de que as coisas são mais complexas, sem que com isso se considerem ludibriadas por um misterioso e onipresente sistema.

Bolsonaro tem dito que a propriedade privada é sagrada. Hoje usa esse argumento para refletir sobre a resistência dos fazendeiros às invasões de terras.

No entanto, há várias situações em que a tese da sacralidade tem de ser relativizada. Às vezes, um rio que passa na sua sagrada propriedade privada é o mesmo que passará em outras sagradas propriedades, ou terá de abastecer os que não têm nenhuma propriedade. É possível, em nome do seu pedaço de terra, arruinar um patrimônio comum?

Os políticos que propõem soluções simples para os problemas complexos vencem de goleada no Brasil de hoje. E, diria, em muitos pontos do globo, na atual conjuntura. O problema com eles é que o tempo vai passando e as pessoas que esperam soluções simples e rápidas se desapontam com facilidade. E o capital político escapa pelos dedos.

Os movimentos de Bolsonaro são uma espécie de contraponto à reforma da Previdência. No momento, é o tema que pode trazer algum alívio à economia, sem necessariamente despertar entusiasmo popular.

Ele parece atento a esse jogo. Tanto que descartou a ideia de mais um imposto que atingiria também as igrejas, sobretudo as evangélicas. E se concentra na guerra cultural, um campo em que as coisas não só se mexem com muita lentidão, como dependem do confronto de ideias e se realizam com armas próprias, dentro da diversidade.

A grande tarefa dos intelectuais é convencer as pessoas que desconfiam da sua atividade e mostrar pacientemente o seu valor. É importante não perder o vínculo com as pessoas que acreditam, como Bolsonaro, que ciências humanas não têm retorno.

A convergência das ciências humanas com a inteligência artificial, que vai revolucionar nossos cotidianos, é um bom argumento. Mostra que está em jogo o futuro de todos nós. E nos anima a argumentar que a desconfiança mútua é um fator de atraso.

Intimidar intelectualmente os simpatizantes do populismo não me parece o caminho adequado. O melhor é mostrar de forma amigável o que às vezes fazemos com arrogância: que as coisas são mais complicadas do que parecem.


Fernando Gabeira: O poder briga com a sombra

Não importa o que aconteça com Mourão, um governo tão estreito como o de Bolsonaro certamente terá novas tensões internas

O governo deu um passo na reforma da Previdência, mas continua no clima de barraco eletrônico, com grupos internos se atacando.

Não entro em detalhes, nem me interesso por personagens. Persigo um quadro um pouco maior.

Nele, a primeira ideia que surge dessas incessantes brigas é a ausência da oposição, ocupando ampla e seriamente o seu espaço. Na falta dela, o governo não tem com quem brigar e resolve brigar consigo próprio.

A cena agora revela mais abertamente uma tensão entre presidente e vice. É uma dupla singular para quem observa o recente período democrático. Na última viagem a Brasília, o fotógrafo Orlando Brito me mostrou a imagem da posse de Fernando Henrique Cardoso. No carro aberto, o vice Marco Maciel levantava a mão, de olho na altura da mão de Fernando Henrique. Ele não queria que acidentalmente seu braço estivesse mais elevado.

Marco Maciel era rigoroso na interpretação do papel do vice. Entre Temer e Dilma, houve um período em que a relação esquentou, terminando com aquela carta em tom de bolero: você não se importa comigo, sou apenas um vice decorativo.

Era, na verdade, uma carta de despedida. Temer já se preparava para substituir Dilma.

No caso Bolsonaro-Mourão, teoricamente tinham tudo para se complementar. Poderiam ter até combinado uma divisão de trabalho: Bolsonaro falaria para seus adeptos; Mourão faria a ponte com os setores que, por pura rejeição ao PT, votaram sem concordar com tudo.

Mas a política não se faz apenas com teorias. Ela é mediada por nossas paixões humanas. Sem combinar suas posições, agindo desorganizadamente, acabaram caindo na armadilha de sempre: até que ponto o vice pode ser protagonista?

No princípio da campanha, Mourão parecia tão ou mais conservador que Bolsonaro. Com o tempo, foi abrandando seu discurso, voltado para o mercado financeiro, a imprensa, a diplomacia.

Até que ponto Mourão quis apenas manter a amplitude da frente que elegeu Bolsonaro, até que ponto seu protagonismo é a maneira de se diferenciar dele, mostrar-se como uma alternativa?

Isso dá margem para tantas nuances interpretativas que prefiro avançar um pouco na tese inicial. Não importa o que aconteça com Mourão, um governo tão estreito como o de Bolsonaro certamente terá novas tensões internas, sobretudo pela ausência de uma forte oposição. Um efeito colateral dos confrontos entre alas do governo é o tiroteio contra as Forças Armadas. O que se diz sobre os militares em posts e lives da direita, não se dizia nem nos panfletos da extrema esquerda no tempo da Guerra Fria.

Não me importo com textos que tentam interpretar o golpe de 64 como algo realizado pelos civis, muito menos com a afirmação de que os militares destruíram os políticos de direita.

O mundo da internet é recheado de interpretações, eletrizado por teorias conspiratórias. Por que perder tempo em desfazê-las?

As coisas mudam de figura quando os ataques às Forcas Armadas são postados na conta do próprio presidente da República.

É algo tão grave, em termos políticos, como a postagem do golden shower. Não creio que Bolsonaro compartilhe realmente da tese de que as Forcas Armadas no Brasil são uma nulidade. Todo os que viajam pelo Brasil podem testemunhar a ação positiva do Exército. Se quiser reduzir o aprendizado a duas situações, basta ir à fronteira com a Venezuela, ou mesmo às cidades mais secas do Nordeste, onde o Exército organiza o abastecimento de água.

Quem gosta de ler também pode ter acesso às obras que militares têm publicado. Outro dia, resenhei o livro do coronel Alessandro Visacro sobre “A guerra na era da informação”. Acabo de receber o livro “Direito internacional humanitário”, do coronel Carlos Frederico Cinelli. Um estudo sobre a ética em conflitos armados.

As Forcas Armadas não divagam sobre filosofia ou política, mas cuidam de temas ligados à sua atividade principal.

Quem escolheu um general como vice foi o próprio Bolsonaro. Tem de arcar com sua escolha. Se quiser trocar de vice, que o faça em 2022, se for candidato.

A comparação das fotos de posse de Fernando Henrique e Bolsonaro é sintomática. No carro de FH, Marco Maciel obcecado em ser discreto; no carro de Bolsonaro, a ausência. Em seu lugar, Carlos Bolsonaro, protegendo o pai.

O protagonismo de Mourão foi suprimido no ritual. Naquele momento, o drama, como dizia o poeta Drummond, já se precipitava sem máscaras. Era só olhar.


Fernando Gabeira: Um supremo pulo de cerca

Toffoli e Moraes deveriam renunciar não só ao inquérito como aos próprios cargos

É uma semana que começa com o foco na reforma da Previdência, mas dificilmente esquecerá a crise aberta com a ação dos ministros Toffoli e Alexandre de Moraes.

O inquérito aberto em março era visivelmente nulo. Digo visivelmente porque até eu, que não sou especialista em leis, previa que seria legalmente derrubado.

Não deu outra. Raquel Dodge decidiu fulminá-lo. Não sei se ela podia decidir sozinha, ou se deveria passar pelo Supremo.

Sei apenas que os argumentos jurídicos dela apenas confirmam a ilegalidade do inquérito. Para o leigo havia tantos equívocos grosseiros, uma vez que todos sabemos que existem instituições para conduzir o processo legal.

Foi uma carteirada, escrevi na época. Surpreendi-me com o fato de dois ministros articulados abrirem um inquérito e começar a fazer buscas e apreensões até o desatino final em censurar a revista “Crusoé” e o site “O Antagonista”.

Dizem que Toffoli não passou em concurso de juiz. Mas, pelo que vejo em seus votos, tem cultura jurídica e certamente vai apresentá-la quando tiver de defender sua escapada além dos limites democráticos, seu ato de censura.

O que sei apenas é analisar a qualidade política de sua decisão, como presidente do Supremo Tribunal Federal. Nesses critérios, ele não passaria num psicotécnico.

A notícia que o constrangia acabou sendo multiplicada pelas emissoras de televisão e todos os jornais e rádio do país.

A notícia ainda um pouco nebulosa de que o amigo do amigo do pai nos códigos de Marcelo Odebrecht não continha uma denúncia aberta de corrupção.

Ao investir autoritariamente sobre os veículos que a publicaram, Toffoli estimulou também a desconfiança de que há algo importante a esconder.

O pior desdobramento diante do qual acho que Toffoli deveria deixar a presidência é, no fundo, essa disposição de fazer justiça com as próprias mãos, de que despreza os mecanismos legais.

Num país onde nem todos são preparados para exercer sua autoridade, o exemplo de Toffoli e Moraes é uma sinalização negativa. É um estímulo aos pequenos tiranos, uma possibilidade até de multiplicá-los.

No meio da semana, Toffoli e Moraes decidiram, apesar de Dodge, seguir com o inquérito por mais 90 dias.

O interessante é como dois homens da elite fazem uma interpretação tão distante do Brasil real. Tornaram-se uma piada nas redes onde se trocam mensagens assim: por ordem do Supremo Tribunal Federal seu WhatsApp foi bloqueado.

Talvez o tempo tenha passado rápido demais diante de Toffoli e Moraes. Não perceberam que a liberdade de expressão tem um enorme potencial de unir as pessoas.

Nem se deram conta de que a transparência é a melhor maneira de lidar com denúncias, falsas ou verdadeiras.

Na verdade criaram uma situação inesperada. Diante do resultado eleitoral, o Supremo era visto como um poder moderador num sistema de pesos e contrapesos.

O Supremo pulou a cerca. Fragilizou o jogo democrático. O aspecto positivo de tudo isso foi a demonstração de um apoio amplo à liberdade de expressão. Não só, como no passado, uma defesa do trabalho jornalístico.

Nos dias atuais, como todos têm a possibilidade de se expressar, a liberdade de expressão é sentida mais diretamente como um direito pessoal não apenas de receber notícias, mas de opinar.

Quando ministros do Supremo se transformam num guarda de esquina nem sempre cuidadoso com os ritos democráticos, é sinal de que entramos numa fase perigosa, e isso precisa ser tratado com seriedade.

Toffoli e Moraes deveriam renunciar não só ao inquérito como aos próprios cargos. Certamente não farão isso, mas serão apenas mais dois fantasmas numa cidade onde já circulam tantos outros.

Unidos podem tentar transformar o país num grande fantasma do passado , um lugar das carteiradas, do sabe com quem está falando, do prendo e mando prender, do comigo ninguém pode, do cala a boca que sou autoridade. É difícil dizer para grandes juristas que estão delirando. Espero que a realidade dos fatos cumpra esse papel. De preferência, o mais rápido possível.


Fernando Gabeira: Cavaleiros do apocalipse

Existe um consenso em torno da liberdade de expressão que não se pode mais ultrapassar

Os acontecimentos da semana me fizeram lembrar do debate eleitoral. Discutíamos muito o futuro da democracia. Havia pessimistas, mas, assim como nos Estados Unidos, contamos com um sistema de pesos e contrapesos. O Supremo aparecia aí como um Poder moderador, uma das garantias democráticas. Com o inquérito mandado abrir por Dias Toffoli, o papel do STF sofreu um deslocamento. Quando foi instaurado, escrevi que aquilo parecia uma carteirada, era tão absurdo que seria legalmente anulado.

O que era ainda apenas um mau sinal acabou se tornando uma ferida aberta em nossa democracia com a censura à revista Crusoé e ao site O Antagonista e inúmeras buscas em casa de pessoas que se expressam pelas redes sociais.

A notícia que a Crusoé publicou acabou sendo multiplicada à exaustão: Marcelo Odebrecht informou que Toffoli era o “amigo do amigo do meu pai”, apelido que aparecia em algumas mensagens dele. O que quer dizer isso? O amigo do pai de Marcelo é Lula. Ser amigo de Lula não é um fato isolado: milhares de brasileiros assumiriam essa condição. Toffoli era advogado-geral da União e possivelmente tratou com a Odebrecht das usinas de Santo Antônio e Jirau, em Rondônia.

Mas até aí também não apareceu nada de mais. Houve corrupção na construção de Jirau? Digo que sim, e já estive lá depois que a Lava Jato levantou o tema. Fiz um pequeno documentário no próprio lugar.

Não vi o nome de Toffoli. O próprio documento da Odebrecht não o liga à corrupção, não houve referência a pagamentos. Não havia, portanto, uma razão para transpor um marco democrático e determinar a censura da revista e do site. O que Toffoli conseguiu com isso? Em primeiro lugar, multiplicou fantasticamente a divulgação de uma notícia que lhe era incômoda. Em segundo lugar, fortaleceu a suspeição de que havia realmente algo a esconder.

Não foi um lance inteligente para quem personifica um Poder moderador. Foi um curto-circuito na compreensão do que é o Brasil hoje e abre uma crise aguda, anuvia ainda mais uma atmosfera nebulosa.

Todo esse equívoco terá um desfecho. Se o Supremo realmente se preocupa com a gravidade da situação, deve resolvê-la logo. E Toffoli perderá – e creio que perde também as condições de seguir na presidência.

Esse é um desdobramento que me parece realmente superar a questão. Na verdade, a necessidade de ir um pouco mais a fundo se dá em outros problemas neste momento. E nada se realiza. O caso da morte de um músico por soldados do Exército, em Guadalupe, no Rio de Janeiro, é um deles.

É discutível se o caso não deveria ser enviado para a Justiça comum. Mesmo um julgamento perfeito na esfera militar ainda não esgota o tema. Era preciso um projeto de longas conversas com os soldados, entender de onde tiraram aquela confiança para disparar tantos tiros e desprezar os apelos de socorro.

Existe uma possibilidade de encontrarmos algumas ideias que circulam na dimensão política, uma banalização da violência. Não me arrisco a dizer que uma ou outra ideia das que correm tenha influenciado os jovens. Apenas digo que valeria a pena pesquisar.

Em quase todas as conversas sobre segurança, incluído o pacote de Sergio Moro, existe uma ênfase punitiva. Mas há um amplo caminho pelo trabalho preventivo e creio que o Exército, tantas vezes chamado a intervir, tem condições de trilhá-lo. Que ideia os soldados tinham do protocolo, que ideias os levaram a desprezar as regras? Isso não pode acontecer com soldados do Exército Brasileiro e certamente o estudo do caso tende a indicar alguns caminhos.

No caso de Guararema, onde a PM matou 11 assaltantes, toda a ênfase de Doria e de Bolsonaro foi na ação policial. Estive em Guararema seis meses antes para mostrar como a cidade se tornou segura, por meio do seu sistema de câmeras. Acompanhei casos na sala de controle, observei que mesmo pequenos atos de vandalismo estavam sob vigilância.

Claro que, na minha concepção de segurança, interpretaria Guararema como um sucesso das câmeras – um estímulo para outras cidades brasileiras. Isso não significa desvalorizar a ação policial. É louvá-las. Mas depois de um exame no cérebro da segurança de Guararema, que é a sala de controle, por sinal, ao lado do quartel da PM.

A política de Bolsonaro flerta com a morte constantemente. Isso me incomoda. Vivo nas estradas brasileiras. É meu trabalho cotidiano. Considero um absurdo a ideia de reduzir os radares. Vai aumentar os acidentes. Não sei de onde ele tirou isso, aliás parece um Jânio Quadros punk. Briga de galo, biquíni, saudades dos delírios amenos.

Já vi anseios por aumento do limite legal de velocidade na Alemanha. São outros carros, outras estradas. Bolsonaro quer suprimir os controladores de limites.

Nosso regime democrático baseia-se num sistema de pesos e contrapesos. Ultimamente, andam todos muito pesados. Um importante contrapeso acaba sendo a própria sociedade: o Brasil está em outra, espero.

Se os próprios ministros do STF observarem bem a reação que suas medidas provocaram, vão perceber que existe um consenso em torno da liberdade de expressão que não se pode mais ultrapassar, a não ser numa ditadura.

Bolsonaro, creio, continuará atirando a esmo. De repente aparece em Israel com uma ousada tese sobre a História. Presidentes não são historiadores. Os que eventualmente o forem sabem que presidente não dá opiniões tão radicais sobre um fato histórico.

De repente, congela preços, opina sobre os equipamentos irregulares que o Ibama pode queimar e ainda tem toda uma guerra cultural para fazer – comunistas, Paulo Freire, globalistas, teorias do aquecimento global, de gênero...

Se há alguma teoria que nos possa ajudar, entre todas, é a teoria do caos. Temos de estudá-la muito para tirar algo de positivo da confusão nacional.


Fernando Gabeira: Memórias do dilúvio no Rio

Acordei às 7h em Cabaceiras, no sertão da Paraíba. Sol brilhando como sempre. É a cidade com o menor índice de chuvas no Brasil. Malas feitas, começaria minha longa viagem de volta para o Rio.

Antes do café, fui ver os pássaros. Eram os mesmos de sempre. De novo, apenas um papa-sebo, também chamado de sabiá-do-campo. Minha imagem final: a umburana, uma árvore com casca brilhante e sulcos vermelho-escuro.

Fim de semana intenso, subindo e descendo morro. Visitei o Lajedo do Pai Mateus, um esplêndido conjunto de pedras. Descoberto pelos turistas escandinavos, ajudou a salvar Cabaceiras.

Nos momentos de conexão, ainda tive de responder a jornalistas se nossa campanha tinha oferecido um milhão de dólares para Crivella, em 2008. Nunca vi um milhão de dólares e, assim como Armínio Fraga, jamais compraria votos. Considero a versão um desrespeito aos evangélicos: jamais votariam em mim contra sua consciência.

Cabaceiras foi descoberta pelos cineastas. A cidade, de apenas cinco mil habitantes, foi cenário de duas séries e 33 filmes. Ela se intitula a Roliúde Nordestina. Prefiro chamá-la de cidade luz. Ao contrário de sua homônima francesa, é uma cidade luz natural.

Passei várias horas entre as pedras da região. Quando voltei do trabalho, estava exausto, como sempre, e maravilhado com a luz. Antes de dormir, ainda pensei na história do Crivella. Lembrei-me de Bertrand Russel, quando correu um boato de que namorava uma linda jovem. Ele disse: “Não vou contestar logo de cara, só para saborear um pouco essa hipótese”.

Meu último pensamento antes de cair no sono foi este: se tivesse um milhão de dólares, o que faria com ele. Creio que daria para Crivella não votar em mim, e assim seguir minha trajetória de vida como ela é hoje: longe do universo político visceralmente corrompido do Rio.

De novo na estrada para Campina Grande. Chegamos com o restaurante ainda fechado. Havia um banco na porta, usei-o para passar as últimas imagens para o computador e as salvei num HD externo. É sempre bom ter duas versões, num país em que tudo acontece.

Conexão no aeroporto do Recife. Achei o aeroporto meio sombrio, depois de tantos dias de luz intensa. No celular, já havia algumas mensagens da Defesa Civil: teríamos chuva no Rio. Mesmo assim, é bom voltar. Nos últimos tempos, não digo como Tom Jobim: “minha alma canta, vejo o Rio de Janeiro.” No máximo, a alma cantarola, discretamente.

Ainda no ar, era possível ver a GloboNews e o estrago que a chuva fazia no Rio. Assim que o avião aterrissou, liguei para Neila, e ela estava presa num carro, com os dois netos. Tentava vir de Copa para Ipanema havia duas horas. Não havia táxis. Dividimos o equipamento; nossa equipe é de apenas dois. Fiquei com as câmeras, e Mauricio foi tentar um táxi no embarque.

Depois de uma hora, lembrei-me do Uber e, surpreendemente, estava no ar. Um homem mais velho nos disse: evitem o túnel, usem o aterro. O motorista ficou agradecido e disse: “Obrigado, pai.”

A cidade parecia arrasada. Os carros se deslocavam com dificuldade e em marcha constante para que o motor não morresse. Tentei orientar o motorista pelo instinto. Achei algumas ruas escuras e traiçoeiras . Na entrada do túnel, caiu uma árvore. Meia hora, e a árvore foi movida por um guindaste. Em Ipanema, de novo engarrafados. A Rua Vinicius de Moraes estava cheia de carros buscando a Lagoa inundada.

Pedi ao motorista para dar uma ré, usamos a Joana Angélica para ganhar minha rua. Mas o bloqueio continuava. Os carros na Vinicius fechavam a passagem. Disse para ele: estou a 400 metros de casa, ainda chove e terei de carregar duas malas de câmeras, a mochila com o computador e a mala de roupa. Bem que gostaria de saltar aqui para você se safar, mas não dá.

Desci do carro na chuva e fui até a Vinicius controlar o trânsito. Toureei alguns carros. Outros não davam nem bola. Finalmente, consegui abrir a rua.

Cheguei em casa depois da meia-noite. Todos bem, felizmente. Estava aceso. Vi um homem com a camisa do Vasco agarrado na cerca do Jardim Botânico. Ia para a Rocinha, parecia calmo. A repórter enfatizava a dificuldade de sua jornada, ele parecia ver tudo com normalidade. Gente forte.

Esperava dormir tranquilo, mas acabei ficando excitado demais com o longo dia. Antes de dormir, sabem quem apareceu na TV? Crivella.

A Ciclovia Tim Maia é segura, desde que não haja desabamentos — disse. Um milhão de dólares para Crivella fechar a boca. Estou gastando minha fortuna com ele, pensei antes de adormecer.


Fernando Gabeira: O Rio que passou

A chuva da última segunda-feira não foi apenas mais uma chuva. Ela tem de ser considerada um marco na necessidade de repensarmos a vida na cidade

Quando é que o Rio se estrepou? Vargas Llosa começa um romance perguntando o mesmo sobre o Peru. O estudo da gênese da derrocada cabe num romance. A tarefa central é como evitar o colapso maior. Algumas circunstâncias não animam. A primeira delas, de ordem geral: os eventos extremos devem continuar independentemente do esforço planetário para reduzir emissões. Eles já fazem parte do cenário irreversível. É difícil imaginar uma performance melhor do poder local. Ainda que os governos melhorem, seu limite é nítido.

O único fator de esperança está na sociedade, no seu potencial solidário. Não me refiro a uma solidariedade apenas quando as coisas acontecem.

Ela precisa ser constante e organizada. Nos lugares sujeitos a ciclones e furacões já uma grande preparação para enfrentá-los, inclusive cartilhas sobre o que fazer. Visitei uma comunidade em São Gonçalo onde havia um bote num lugar determinado, lista dos moradores que não podem se mover, que dependem de hemodiálise, além dos lugares de refúgio.

Claro que a Defesa Civil comunitária não basta. Ela apenas revela um potencial de reduzir os danos. Mas serve de inspiração para um trabalho muito mais amplo. Ninguém recomenda de boa-fé apenas enxugar o gelo. Mas é necessário uma compreensão do buraco em que caímos para, pelo menos, tentar sair dele. Faltam líderes? Se limitamos o conceito de líder apenas aos políticos, certamente falta. Mas o tipo de reação social necessário traz à tona líderes em diferentes dimensões que não dependem de votos.

O que se espera da política não virá nada ou muito pouco. O que não significa que o esforço social não possa repercutir na política na exigência de um plano diretor, na cobrança das autoridades etc.

É uma ilusão pensar a solidariedade apenas como um instrumento dos pobres para superar sua limitação. O barco está afundando com todos dentro. Os investimentos imobiliários podem ser afetados, o turismo, a chegada de novas empresas. A chuva de segunda-feira não foi apenas mais uma chuva. Ela tem de ser considerada um marco na necessidade de repensarmos a vida no Rio. O que está acontecendo? O que posso fazer? Com quem me unir para atenuar os impactos?

O que aconteceu nesse longo período foi a traição dos dirigentes. Devem ser punidos, criticados, alguns trancafiados.

Mas continuamos sós. É preciso fazer algo independente deles.

Alguns fatores importantes como a presença do Exército nas ruas foram importantes no passado recente, sobretudo pela infraestrutura e pela organização que trouxeram para a segurança. Mas a execução de um músico que levava família para um chá de bebê em Guadalupe mostrou como até isso no momento

É um fator de incerteza. Pela lei, é caso de Justiça comum, não se enquadra nas três hipóteses de júri militar.

O presidente se solidarizou com Danilo Gentili, mas se esqueceu da família carioca arrasada por esse crime. O novo ministro da Defesa afirmou, em audiência pública, que as milícias eram bem intencionadas no princípio. Fazer as próprias leis e tirar proveito financeiro delas nunca contém boas intenções. Ontem, por exemplo, dois prédios irregulares desabaram na Muzema, matando pelo menos cinco pessoas. E nesse panorama desolador que temos de achar o caminho de uma ação solidária para reerguer o Rio. Lembro de uma frase de um personagem de Samuel Beckett: não posso continuar, continuo.


De: Gabeira Para: Bolsonaro

Por Morris Kachani, de O Estado de S. Paulo

Com a vivência de quem já participou do sequestro de um embaixador americano, foi preso e torturado, passou 10 anos no exílio, revolucionou os costumes vestindo uma icônica tanga rosa na praia de Ipanema em 1980, primeiro ano da abertura após a anistia, fundou o Partido Verde, elegeu-se deputado, rompeu com o PT, abandonou a carreira política e hoje apresenta um belo programa de reportagens documentais na GloboNews, Fernando Gabeira oferece sua visão 360 graus sobre os primeiros 100 dias do governo.

Na última conversa que tivemos, antes da definição das eleições, você falou que a sobrevivência da democracia não estava ameaçada, mas sua qualidade sim.
Exatamente isso que está acontecendo. Até o momento não houve um passo que justificasse você dizer que houve um retrocesso democrático institucional. No sentido de que não foi feito nada que você pudesse apontar como ruptura com a democracia. Os contrapesos da sociedade brasileira continuam aí.
 
O Jean Wyllis por exemplo teve que sair do país. Não são sinais?
Lamento a saída dele. Há muita gente que se sente ameaçada no Brasil. Acho que a sensação de ameaça vem menos das instituições do que do clima de rivalidade nas redes sociais, o baixo nível de debate político que predomina no país. Naturalmente, o governo tem um papel na medida em que emergiu desse debate radicalizado. O general Mourão afirmou, recentemente, que o governo teria condições de dar segurança a ele. Não sei como isso seria feito. Acho, no entanto, que o melhor caminho é desanuviar o debate político, para que todos sintam-se seguros na expressão de suas ideias.
Sobre as redes sociais e o presidente…
A questão não é propriamente a rede social, a questão é de quem a usa e de como a usa. Se o Bolsonaro saísse do twitter, seria como tirar o sofá do sala. Porque ele ia continuar dizendo besteira em outros campos, em outras plataformas.
Nesse sentido eu acho que o erro mais condenável, que eu jamais vi em um presidente da república, e jamais creio que verei adiante, foi o fato de ele ter divulgado na conta dele um vídeo como o do golden shower. Eu não sou a favor de nenhum tipo de censura, mas eu sou favorável à ideia de que o presidente da República escolha os temas que vai difundir.
Eu acho que as redes sociais têm a ligação direta com a população, Bolsonaro inclusive está muito orgulhoso com o crescimento permanente nas redes sociais. Porque é uma forma também de procurar dizer o que o povo quer, de ganhar popularidade com uma série de medidas.
É por isso que o governo avança com uma série de medidas na área de costumes com debates ideológicos. É porque ele não sente avanço nas coisas materiais, objetivas.
Isso aconteceu muito com Jânio Quadros. Como ele não tinha um desenvolvimento fluido no governo, nas coisas que queria, ele trazia um tema de costume. Se ele tinha uma dificuldade na economia por exemplo, ele proibia o biquíni. Ou então ele proibia a briga de galo. Com isso ele deslocava a discussão e a transformava em algo que estava um pouco fora do centro das preocupações. Afasta o exame crítico, objetivo, do governo dele.
Como bateu pra você essa proposta de revisar o golpe de 64?(Risos)
Alguns deles acham que a história foi escrita de maneira unilateral e que não foram contemplados. Como o desejo de acabar com o comunismo, ou os que que sofreram alguma violência também. Mas para haver revisão histórica, é preciso de fatos e realidade.
O arranjo que fizemos com a anistia ampla, geral e irrestrita, foi uma forma de estabelecer um equilíbrio no qual o Brasil pudesse avançar democraticamente para outros momentos, e nesse sentido deu certo, nós conseguimos um período democrático grande da ditadura até hoje.
Acho que não tem sentido nesse momento discutir o governo militar, o golpe militar, porque daqui a pouco a gente vai chegar na Guerra do Paraguai, vai ficar todo mundo discutindo Guerra do Paraguai, com uma série de problemas caindo sobre nossas cabeças. No Rio de Janeiro por exemplo, eu vejo uma cidade sendo destruída, não vamos ficar discutindo quem ganhou a guerra do Paraguai…
Fazer isso é estar fora do mundo.
O relacionamento do governo com o Congresso anda complicado. O tom da discussão entre Bolsonaro e Maia, as gritarias nas sessões… Estamos em evolução ou indo pra trás?
Nós estaríamos indo para trás se fosse colocado imediatamente sem nenhuma máscara e reserva o sistema do toma-lá-dá-cá. Acho que Bolsonaro tentou uma forma que todos os candidatos novos tentariam necessariamente. Uma possibilidade de você fazer um governo de coalizão sem terminar em uma troca material, sem que envolvesse necessariamente um processo de corrupção. Eu acho que isso é uma coisa desejável.
No entanto eu acho que ao escolher um ministério longe das influências políticas mais imediatas, ele foi um pouco mais radical.
Um inovador bem intencionado saberia que sem o apoio do Congresso, não conseguiria fazer nada.
Esta semana ele colocou no Ministério da Educação um cara que não tem experiência na educação. Não tem sentido você fazer isso. Mesmo se ele tivesse uma grande experiência na educação, é necessário fazer uma consulta política. Se você tiver políticos com capacidade e com honradez, preparados para assumir o cargo, você tem que fazer isso.
Bolsonaro precisa buscar uma mediação entre a ideia de não tratar com os políticos, e o toma-lá-dá-cá. Ele não conseguiu formular isso no princípio e até agora está um pouco hesitante, embora recentemente tenha se aproximado um pouco mais do Parlamento.
Você acha que o Mourão é a voz do bom senso nesse governo?
Olha, acho que Mourão representa, ainda que não diretamente, a opinião de alguns generais que teriam um nível intelectual bastante diferente do Bolsonaro no meu entender. Eles têm uma experiência histórica maior, o Mourão por exemplo já serviu na Venezuela, conhece bem o problema de lá, o Heleno já esteve no Haiti, conhece bem os problemas de uma força de pacificação, o Santos Cruz já esteve no Congo também resolvendo problemas gravíssimos como comandante de uma força internacional.
São pessoas mais experientes do que o Bolsonaro, com conhecimento internacional maior que o de Bolsonaro e possivelmente com conhecimento do Brasil maior que o de Bolsonaro.
Então essas pessoas tendem a ter posições muito mais sensatas do que Bolsonaro e seus ideólogos.
Ele recebeu mais de 57 milhões de votos. Será que a sociedade brasileira compactua com sua ideologia?
A ilusão dele foi a de que por ter sido eleito, a sociedade brasileira na sua maioria estava afirmando suas ideias. Ele subestimou muito a carga antipetista enorme que havia no eleitorado dele. Ele não compreendeu que foi escolhido porque era quem tinha chances de derrotar o PT.
E ao não compreender isso e iniciar o governo com este tom e esta perspectiva, ele tem perdido muito apoio, e é hoje o presidente avaliado nos primeiros 100 dias como o mais impopular. A aprovação dele caiu brutalmente. É sinal de que ele está equivocado.
O que ele supunha ser um aval eleitoral para ele, ele não entendeu bem, continua achando que é um aval da sociedade para ele tomar essas posições. Como se a sociedade tivesse refletido sobre a construção ou a transferência da embaixada do Brasil para Jerusalém. Não há uma reflexão na sociedade a esse respeito, me parece que o consenso está muito mais próximo do que existe hoje.
Ele está tomando posições que tem ideologicamente e que supõe que foram aprovadas nas urnas. Ele não foi eleito necessariamente por conta dessa visão ideológica e sim pela perspectiva de reconstruir o país a um nível de normalidade que as pessoas achavam que o governo do PT tinha tirado no final.
Outro dia li um artigo dizendo que talvez a Câmara passasse a decidir as coisas importantes e o presidente cada vez mais inexpressivo.
Acho que este ano de 2019 vai ser muito crítico. Não quero ser pessimista, mas acho que a crise vai ser a forma de governar.
Temer precisou se livrar de algumas acusações e negociar com o Congresso constantemente. O Congresso sentiu o poder dele ali. Quando ele sente o gosto de sangue, quando sente que o governo está fraco dependendo dele, ele passa a assumir progressivamente o espaço que às vezes é ocupado pelo próprio governo.
Quanto mais fragilidade, mais o Congresso vai ocupando esse espaço. Essa é a tendência.
Você acha que está havendo um desmonte do Estado brasileiro?
Não, não necessariamente um desmonte, mas eu acho que em alguns setores está havendo transformações perigosas, como no caso das relações exteriores, e no caso da educação.
Nesses dois setores há um impacto ideológico maior, muito maior do que a posição pragmática e necessária para conduzir as coisas.
No caso da política externa, você abandona uma linha tradicional, brasileira, construída ao longo de todo esse período, e não coloca no lugar nada, apenas algumas afirmações muito vagas.
Originalmente, seria importante uma aproximação maior com os Estados Unidos, mas essa aproximação não poderia ser uma aproximação que emulasse algumas posições americanas, sem que a gente tenha condições de ser os Estados Unidos.
Podemos ser aliados, mas somos um país com condições diferentes, ambições diferentes, interesses diferentes.
E o que foi colocado no lugar da política externa foi uma adesão ampla, uma confiança no Trump como o salvador do Ocidente, e um certo messianismo, uma certa vontade de levar ao mundo a fé e os valores.
Richelieu, no século 17, já dizia que o indivíduo tem salvação, tem uma alma, ele vai para o outro mundo e se salva. Mas o Estado não tem isso, ele tem que se salvar aqui e agora.
Até hoje me parece muito equivocada, toda a política externa.
 
Estava há pouco assistindo uma entrevista com o Ciro Gomes feita nos Estados Unidos…
Nos Estados Unidos está se discutindo mais o Brasil do que aqui. Todos eles estão lá.
(Risos) Ciro falou que esse governo está saqueando nosso país, citando o acordo de Alcântara e a venda da Embraer.
O acordo de Alcântara é mais ou menos um consenso entre nós que acompanhamos aquele pântano que foi a relação com a Ucrânia nesse processo. Este acordo passa a ser uma coisa interessante para o Brasil, para a exploração espacial, porque o lugar é privilegiado, a instalação já está mais ou menos colocada. Eu acho que é um acordo interessante, uma vez que ele determinou bem, que o Brasil está cedendo para que os Estados Unidos usem Alcântara apenas em determinadas circunstâncias.
Por isso eu acho que o acordo de Alcântara talvez tenha sido o único aspecto positivo dessa relação. Então nesse sentido nós divergimos.
Também no caso da Embraer houve quase um consenso de que era um negócio a ser feito, não havia grandes problemas no fechamento desse acordo.
Não são esses acordos que me preocupam. O que me preocupa são as posições mais ideológicas.
Por exemplo, um questão mais delicada, mais próxima, mais preocupante, que é da Venezuela. Nós temos tido uma posição de condenação do Maduro e uma tentativa para contribuir com a democracia, mas sempre definindo que nossos limites são os limites políticos e diplomáticos. Ao passo que os Estados Unidos afirmam que todas as cartas estão sobre a mesa. O que significa indiretamente também, uma intervenção militar.
Aqui no Brasil as posições têm sido um pouco diferentes,
porque a nós que somos vizinhos e vamos continuar tocando essa relação ao longo dos anos, não interessa resolver o conflito desta forma.
O problema é que a posição brasileira é diferente, a posição representada pelo general Mourão, que se estabeleceu no Grupo de Lima, é uma posição que exclui essa alternativa, então há uma divergência nítida aí.
Marca a diferença entre interesses brasileiros e interesses americanos. Ambos querem contribuir com democracia, mas o Brasil não aceita a carta de intervenção militar, pelo menos em tese.
Embora as últimas declarações do Bolsonaro tenham sido um pouco enigmáticas…
Você usou o termo messianismo. Como ele se manifesta nesse governo?
Por exemplo, nas declarações e artigos do ministro das relações exteriores, em que o Trump aparece como líder do Ocidente e o potencial salvador de um mundo em que segundo ele é preciso afirmar os valores cristãos, democratas etc
Eu acho que quando você se coloca em política externa querendo reformar o mundo, é difícil.
Você tem alguma opinião sobre o Olavo de Carvalho?
Olha, eu não tenho opinião. A única vez em que Olavo me mencionou, foi em um livro chamado O Imbecil Coletivo, há muitos anos. Sobre mim ele disse que eu militarmente era inferior a um sargento do exército de Uganda ou de Zâmbia, já não lembro mais. Esperei Uganda ou Zâmbia protestarem (risos), mas como não protestaram nunca mais me interessei.
Mas realmente, discutir um pensador que está fora do Brasil, cujos livros sinceramente não li, eu não tenho condições.
A influência dele se dá através de cursos, palestras, ideias que são adotadas pelos filhos do Bolsonaro, e também pelo próprio presidente.
Um filósofo que tem a visão ideológica de reformar a cultura brasileira através de um governo determinado (risos), necessariamente está muito mais longe do pragmatismo.
Digamos que ele representa no governo Bolsonaro aquele setor que a gente chama de revolucionário, que pensa em alterar completamente as condições. Entra em choque necessariamente com outro setor, que tem a proximidade do real, que necessariamente tem que ser conduzido de forma mais pragmática. Esse setor são os militares.
Você consegue visualizar até onde vai essa perspectiva ideológica?
Até o momento essa questão tem um enorme peso nesse governo. De certa forma a questão ideológica tinha um peso também nos governos de esquerda, apesar do pragmatismo em alguns momentos. A questão ideológica definia nossa política externa, por exemplo empurrando a balança de relações mais pro lado dos países bolivarianos – coisa que não acontece agora.
Mas eu acho que a questão ideológica hoje está mais concentrada em três setores.
Primeiro, relações exteriores. Segundo, educação. E terceiro, direitos humanos.
No ministério dos direitos humanos, temos a ministra disse, que a partir de agora os meninos vestem azul e as meninas vestem rosa.
Você imagine uma mulher que bate na mesa com alguns funcionários ao lado, dizendo o seguinte, ‘agora vamos mudar o país, com meninas vestindo rosa e meninos vestindo azul’ (risos).
Qual o poder que uma mulher e seus funcionários têm para alterar e definir uma situação nesse campo?
Essas questões não se formam a partir de uma definição de governo. Essas coisas se definem na sociedade em várias dimensões nas quais o governo não está presente. Na cultura, nas relações cotidianas, nas relações com os outros países…
Mas o governo pode interferir bastante, inclusive com cortes na cultura justamente…
O governo pode se preparar para isso, mas não deixa de ser idealista, na medida em que está supondo que estas coisas se definem na sociedade a partir da orientação de alguns burocratas, quando na verdade elas são bem mais amplas.
O que está havendo é uma retropia. Que vem a ser o contrário de utopia. Zygmunt Bauman fala isso do mundo, uma tentativa de voltar atrás, uma mitificação do passado. Um passado idealizado, que de fato não existiu assim exatamente, e que é semelhante às utopias, só que em um caminho invertido. A utopia te aponta para o futuro fantasiado, e a retropia te remete para um passado fantasiado para o qual você deve voltar.
Robert Shiller, vencedor do Nobel de Economia, afirmou que o Brasil merecia mais, depois de assistir ao discurso de Bolsonaro no Fórum de Davos.
É verdade, o problema é esse, o Brasil precisa de mais. Eu não sei se ele merece mais, mas ele precisa de mais. Porque ele teve a oportunidade de escolher nas eleições, e o caminho que ele decidiu escolher foi esse, então ele está de uma certa maneira aprisionado neste caminho que escolheu, pelo menos até 2022.
Nós falamos do núcleo ideológico. Existe outro mais pragmático, que procura resolver as questões que foram as mais decisivas na campanha, no meu entender.
O Bolsonaro talvez não pensa assim, ele pensa que o mais decisivo na campanha foi supor que as crianças estavam usando mamadeira de piroca, mas na verdade não é isso, o mais decisivo é a reconstrução econômica, e nesse sentido foi encaminhada a proposta de uma reforma da previdência que não é perfeita, tem alguns defeitos que precisam ser corrigidos, mas é uma reforma da previdência que se dá em um momento em que o Brasil precisa fazê-la. Porque se não o fizer, muito provavelmente ela será feita contra a nossa vontade, como aconteceu na Grécia.
Outro ponto importante e que teve um peso enorme nas eleições, é a questão da segurança pública e combate à criminalidade.
Então eu vejo esses dois núcleos importantes, que dependem menos do comando dele. O Guedes que funcionou pra ele como espécie de Posto Ipiranga, ele já disse que não entende de economia e confia no Paulo Guedes. E o Sergio Moro que é o elemento mais popular do governo dele.
Como está se construindo o campo de oposição a esse governo?
Acho que tem uma desagregação muito grande ainda. Primeiro porque de um lado a própria esquerda está dividida. Há uma parte da esquerda tentando se articular como oposição ao próprio Bolsonaro, e a outra parte da esquerda significativa que é do PT, ainda muita baseada em uma palavra de ordem Lula Livre.
Enquanto uma tem a perspectiva de buscar encontrar um caminho de apresentar alternativas e críticas, a outra concentra a energia maior na libertação de seu líder.
O que possivelmente vai acontecer é a confluência da oposição em determinados níveis e questões. É possível que surja na sociedade movimentos de oposição, ideias de oposição, que não necessariamente se alinhem com a esquerda.
Já estão surgindo. A deputada Tabata Amaral talvez seja um exemplo.
Exatamente. Uma linha de oposição séria que realmente tenha algumas ideias sobre o Brasil e queira discutir e neutralizar as bobagens do governo através dessas ideias.
Esse tipo de oposição que não tem as características da oposição que o PT sabe fazer, e fazia no passado. Mais agressiva, mais disruptiva, do tipo “quanto pior, melhor”.
No estágio em que o Brasil está, qualquer pessoa que diga “quanto pior, melhor”, certamente ficará isolada porque nossa consciência é de que já estamos muito mal.
Há uma nova geração de políticos.
Acho que existe um processo de renovação com algumas pessoas interessantes. Existem também alguns sobreviventes interessantes. A minha tese sempre foi essa, de que era preciso haver encontro dos novos com os sobreviventes que tivessem alguma experiência. Porque a história não começa do zero. Você precisa de experiência e energia para poder seguir adiante.
Tenho procurado contato com parlamentares que conheço, e falado sobre a importância disso, de se formar um núcleo trabalhador, estudioso, que pudesse encaminhar uma oposição programática.
Esse grupo pode não ser suficiente para alterar a correlação de forças, mas tem potencial para alterar algumas situações, desde que saiba se aliar com a opinião pública.

Fernando Gabeira: Pobre Brasil do aqui e agora

Professores de História terão de explicar como um movimento de esquerda invadiu a URSS, espécie de meca dos esquerdistas

O que fazer quando o presidente e o chanceler de seu país dizem, em Israel, que o nazismo foi um movimento de esquerda? O ideal é dar de ombros e seguir na vida cotidiana. Essas afirmações bombásticas são feitas para provocar debate. Não tenho tempo para ele.

Sinto muito pelos professores de História no Brasil. Terão de explicar como um movimento de esquerda invadiu a União Soviética, uma espécie de meca da esquerda mundial naquele período. E como milhões de pessoas morreram a partir desse fogo amigo.

Os professores de História terão de se consolar com os de Geografia, que ainda acham que a Terra tem uma forma arredondada. São colegas com uma tarefa mais dura: explicar que a Terra não é plana, como querem os novos ideólogos.

Estamos passando por uma revisão completa. Seus autores se acham geniais. O chanceler Ernesto Araújo disse que o nazismo é de esquerda, dentro do Museu do Holocausto, em Israel. Ali, o nazismo é considerado um movimento de extrema direita.

Mas o chanceler disse que há teorias mais profundas. Os judeus, que sofreram com o nazismo e ergueram um museu para lembrar suas vítimas, são superficiais: ainda não descobriram a verdade das obscuras teorias conspiratórias que embalam o governo brasileiro.

A direita embarca na canoa usada pela esquerda no passado recente. Não há mais respeito às evidências ou provas científicas. O que importa é a versão. Não houve desvio de dinheiro público, apenas procuradores e juízes perseguindo honestos políticos.

Eles convergem na tentativa de conformar os fatos às suas convicções ideológicas. O que foi aquela gritaria na Câmara? Nada mais que uma aversão compartilhada à palavra tchutchuca.

Suspeito que direita e esquerda são machistas da mesma maneira que suspeito que a Terra seja arredondada, e o nazismo tenha sido um movimento de extrema direita. Tenho pavor dessas gritarias noturnas na Câmara. Na minha época descobri: servem apenas para prejudicar o sono. Saem todos tensos e irados e têm dificuldade em dormir. Só isso. Uma reforma da Previdência é coisa séria. É possível alterar a proposta do governo. Mas é muito difícil negar a importância de alguma reforma, antes que a Previdência quebre como na Grécia.

Há mais de um século a esquerda desenvolve suas técnicas de provocação. Guedes precisa mais que o curso de alguns dias para enfrentá-la com êxito.

Minha experiência mostra que nessas constantes trocas de insultos, sempre alguém vai insinuar que o outro é gay. Com o tempo, certas pessoas se acostumam. É o meu caso. Tive a sorte, como na música de Cazuza, de ser chamado de viado e maconheiro. O único problema era ser chamado de apenas um desses dois nomes. Ficava esperando o outro como se estivesse faltando algo.

É como a piada de um homem que vivia no andar de baixo, e todas as noites o vizinho de cima chegava meio bêbado e tirava as botas ruidosamente. O homem reclamou. O bêbado voltou do botequim, jogou a bota esquerda com força, mas se lembrou do vizinho. Tirou a bota direita com muito cuidado, silenciosamente. O vizinho de baixo não dormiu esperando que ele jogasse a outra.

Todas aquelas pessoas xingando as outras na Câmara: não há nada de pessoal naquilo. Apenas histeria política.

É preciso superar logo essa fase de sensibilidade à flor da pele. Entender que é o país que está em jogo. E não depende apenas da reforma da Previdência.

A política externa toma um rumo radical, sem que o tema seja discutido adequadamente no Congresso. Nesse sentido, é uma política tão autoritária como a que nos ligou ao bolivarianismo. Não expressa a visão nacional.

O Ministério da Educação não funciona. Todos as semanas demitem e contratam. A ida do ministro Vélez à Câmara mostrou que não tem projeto. Exceto o de reescrever sua parte da história do golpe militar. Ele é modesto diante do chanceler que quer reescrever a história da Segunda Guerra Mundial e levar sua mensagem cristã a todos os recantos do mundo.

O velho cardeal Richelieu já dizia no século XVII: o homem é imortal, sua salvação está no outro mundo. O Estado não dispõe de imortalidade: sua salvação se dá aqui ou nunca.


Fernando Gabeira: O Supremo e o sacrifício de animais

O antropocentrismo vai, aos poucos, enfraquecendo, apesar do mundo institucional

O Supremo Tribunal decidiu que o sacrifício de animais em cultos religiosos afro-brasileiros é constitucional. Foi por unanimidade. E isso me decepcionou um pouco. Esperava uma corrente mais crítica ao antropocentrismo e sensível à dor dos animais.

Esses ventos ainda não sopram na Justiça brasileira. Mas já chegaram aqui da Argentina. Foi o caso de um habeas corpus concedido à chimpanzé Cecília, que visitei no Santuário dos Grandes Primatas, em Sorocaba. Cecília vivia triste e maltratada num zoo, mas ao chegar ao Brasil recuperou a alegria e até acasalou. Fiz um documentário sobre sua sorte.

Na mesma época entrevistei o escritor Peter Singer, autor do livro Libertação Animal, lançado em 1975, um texto inspirador do movimento moderno de defesa dos bichos. Singer estava exultante com a libertação de Cecília. Ele via ali os primeiros lampejos da aceitação de sua tese sobre os direitos dos animais.

Na vida cotidiana sabemos que essa é uma bandeira de minorias. E como tal precisa ser tratada com habilidade para atravessar a bandeira de ironia que se ergue diante dela.

Foi assim, por exemplo, que vi em Santa Catarina o movimento que criticava a Farra do Boi. É uma festa popular, tradicional na costa catarinense, onde para, os pescadores, o boi aparece como um invasor. A ideia na época não era acabar com a Farra do Boi, mas, na medida do possível, ajudar a transitá-la do boi real para um boi figurado, como, por exemplo, no Bumba meu Boi.

Creio que haveria uma possibilidade de argumentar com adeptos dos rituais de origem africana. Será que o sacrifício de animais é essencial para sua existência? Assim, como um leigo, posso afirmar que um dos mais belos rituais religiosos, envolvendo milhões de pessoas, são as oferendas a Iemanjá. Flores, quase todas flores. Na Baixada Fluminense documentei inúmeros trabalhos religiosos, nem todos usavam animais e, quando usavam, eram apenas uma parte das oferendas.

Creio que na própria religião afro-brasileira estão contidos os elementos que poderiam facilitar uma transição do corpo animal para o símbolo. Uma transição que a cultura popular brasileira, com suas representações do boi, já realizou.

Falei com um jovem político sobre o tema. Ele me respondeu: “Se me preocupar com isso, vou denunciar o peru de Natal”. Mas o peru de Natal é diferente. Ele é comido. Sempre afirmei que a proteína animal ainda é a maneira de alimentar tantas bocas no mundo. Mais ainda, para desalento dos vegetarianos, considero que o crescimento da humanidade, que nos levará aos 9 bilhões de pessoas em 2050, dificilmente dispensará a proteína animal. Mas o fato de comermos peru no Natal e sabermos que milhares morrem diariamente não justifica arrancar o pescoço de uma ave numa celebração mística.

A votação do Supremo lembrou-me de uma coisa: adianta apenas proibir? A experiência com a Farra do Boi, levei muitas pancadas por causa disso, é diálogo e compreensão. Mais que uma decisão da Corte, o ideal é uma transição em que o debate cultural realize o trabalho de suprimir maus-tratos aos animais.

Essa discussão no Supremo foi apenas um momento. Animais morrem inutilmente em grande escala no Brasil. E a causa, de certa forma, é o progresso material. Tenho documentando a mortandade dos jegues no Nordeste. Estão sendo substituídos pelas motocicletas. Morrem atropelados, abandonados pelos donos na margem das estradas.

Em alguns lugares, como em Apodi (RN), os jumentos foram recolhidos. Um promotor propôs que as pessoas passassem a comer carne de jegue. Ofereceu um churrasco. Sua proposta não vingou. Alguns empresários ainda esperam vender carne de jegue para a China.

Na verdade, uma extinção gradual vai tirando os jegues do cenário nordestino. Isso valeria uma política pública. Assim como o sacrifício de animais em cultos religiosos merecia um debate mais amplo.

Felizmente, nada vai deter o trabalho que se faz no Brasil. O próprio Santuário de Primatas em Sorocaba é um exemplo internacional. Em Três Rios há uma pousada que recebe bichos resgatados. A dona adotou uma jaguatirica que cruzou com uma gata e deu um belo gato mestiço. Na Serra da Mantiqueira, os chiqueiros estão cheios de filhos de javalis que cruzam com as porcas de madrugada. O que fazer com os javalis devastadores?

É todo um mundo girando. Levá-lo em conta ainda é muito difícil numa cultura em que o ser humana é o centro de tudo. Mas, apesar de decisões como a do Supremo, é possível dizer que está melhorando. Além disso, as crianças vêm aí e não são as mesmas do passado.

São Paulo já tem um hospital gratuito para animais. Em dezenas de lojas e restaurantes é possível ver tigelas de água para os animais de rua. Quando implodiram o presídio da Ilha Grande muitos cachorros fugiram para o mato. Hoje a ilha é cheia deles. Alguns estrangeiros às vezes retardam sua passagem pelo País apenas para adotar um cachorro da ilha.

O antropocentrismo aos poucos vai enfraquecendo, apesar do mundo institucional. Lembro-me das difíceis discussões no Congresso sobre experiências científicas com animais. Algumas envolvem a salvação de vidas humanas. No entanto, foi possível um nível de acordo. Acredito que hoje já exista uma tendência à simulação, fórmulas de cada vez eficazes para poupar os animais.

É uma escolha que transcende a polaridade esquerda-direita: um tipo de civilização está em jogo. Isso escapa ao próprio governo, preocupado, corretamente com a morte de 60 mil brasileiros por ano, mas totalmente perdido nas suas dúvidas sobre aquecimento global, nas suas estúpidas certezas como dizer que o nazismo foi um movimento de esquerda. Invadiu a União Soviética por engano? Milhões de mortes foram resultado de fogo amigo?

Animais racionais têm cada ideia.


Fernando Gabeira: O Twitter como um sofá

Bolsonaro sonha com os combatentes do passado e de alguma forma voltar atrás, refazer a luta contra a esquerda

Uma escocesa de 71 anos, chamada Jo Cameron, sente quase nenhuma dor e nenhuma ansiedade. Os cientistas estão pesquisando o mapa genético de Jo e esperam achar um remédio que nos aproxime da ausência de dor e ansiedade.

Ao analisar a situação política brasileira, sinto falta de uma dose desse remédio natural. As coisas parecem degringolar nas últimas semanas. Não tenho ânimo para dar conselhos nem para atirar pedras. Nesses 90 dias, misteriosas forças estão em curso no governo e nas relações de poder. Talvez o melhor seja esperar a troca de farpas passar com calma, para falar da realidade…

Bolsonaro, que conheci como deputado, mudou bastante. Ele era conservador, anticomunista e de vez em quando fazia incursões exóticas contra a importação da banana do Equador.

Nesse processo eleitoral, adquiriu uma espécie de crosta teórica: uma visão estreita de nacionalismo; uma cosmovisão religiosa voltada para a catequese do mundo; enfim, uma volta a um passado idealizado como objetivo político.

Isso é um fenômeno importante pelo menos no mundo ocidental. É chamado de retropia. É uma utopia que não fantasia sobre um futuro idealizado, mas sim um passado idealizado. Qualquer das utopias, no entanto, choca-se com a realidade quando se dispõe a governar um país complicado como o Brasil.

O diálogo político com um idealista utópico é muito difícil. Tende a considerar os argumentos como uma submissão à realidade, desconfia do que lhe parece o vazio medíocre da ausência de uma utopia.

Bolsonaro, eu achava, teria mais chances se buscasse inspiração nas Forças Armadas atuais, que conquistaram uma grande simpatia, pela moderação política e eficácia em operações complexas e emergentes, como a distribuição de água no Nordeste e a montagem da Operação Acolhida em Pacaraima, que organizou a recepção dos venezuelanos. Um trabalho de nível internacional, com grande respeito pelos imigrantes.

Parece que ele sonha com os combatentes do passado e, de alguma forma, voltar atrás, refazer aquela luta contra a esquerda. Isso não bastou. Quer reconhecimento, reescrever a história.

Olho isso com tranquilidade no indivíduo, pois conheço muita gente fixada em certos períodos do passado. Mas o caminho que as Forças Armadas tomaram, fixando-se no presente e olhando para o futuro, é muito mais adequado para um presidente da República.

Os aliados aconselham Bolsonaro a deixar o Twitter. Parecem não ter percebido que o tuíte não se escreve sozinho. É apenas uma plataforma que pode ser usada com sensatez ou não.

Tirar o Twitter é tirar o sofá. Bolsonaro vai prosseguir na sua cruzada retrópica. Ele foi ao Chile, onde as cicatrizes são maiores que no Brasil, discorrer sobre o período ditatorial.

O resultado não se limitou à divulgação de suas infelizes frases do passado, mas também houve uma entrevista do próprio presidente do Chile, distanciando-se das posições de Bolsonaro.

Nos Estados Unidos, nessa plataforma diplomática que acaba inundando as redes sociais, Bolsonaro afirmou que a maioria dos imigrantes é mal-intencionada. Ainda bem que desmentiu em seguida. Na mesma semana, Eduardo Bolsonaro, presidente da Comissão de Relações Exteriores da Câmara, declarou que os imigrantes ilegais eram uma vergonha para o país. Se ele lesse os arquivos da comissão, veria que, no passado, havia um grande empenho para ajudar os brasileiros em situação irregular em todo o mundo. Chegamos a criar consulados itinerantes. Os próprios parlamentares evangélicos eram muito atuantes nessa frente.

Tudo bem, meu interesse não é argumentar contra as ideias de Bolsonaro ou mesmo as dos utópicos de esquerda. Quero apenas dizer que a posição missionária de Bolsonaro e do grupo intelectual que o inspira pode desencadear forças destrutivas. Quando o governo tem a pretensão de governar comportamentos, fica impossível achar um modus vivendi.

Isso influencia até a relação com o Parlamento. Bolsonaro, até agora, foi incapaz de organizar, quanto mais ampliar, sua base. Não fez um gesto republicano para a oposição. Na verdade, não ocupou e parece não ter querido ocupar o espaço do presidente de todos os brasileiros de dentro e fora do país.

Não adianta falar muito, apenas esperar que as forças destrutivas encerrem seu ciclo numa volta à realidade ou então num desastre. Grupos e mentalidades muito fechadas tendem a considerar as críticas como um esforço conspiratório, para minar a legimitidade do governo.

Como no castelo de Kakfa, havia uma porta aberta pela eleição. Bolsonaro não a encontrou. Não se perdeu no Twitter. Está perdido.


Fernando Gabeira: O momento da Lava-Jato

É possível que avance no governo a tese de que a operação reduz as chances de aprovação da reforma da Previdência

Aqui no alto da Serra de Ibitipoca, uma bela região de Minas, chove e faz frio. Na minha cabeça, tentava organizar um artigo sobre uma possível intervenção militar na Venezuela. Rememorava a Guerra do Iraque e os grandes debates da época. Achava uma visão idealista tentar impor, numa sociedade singular, a democracia liberal à ponta do fuzil.

Continuo achando. Lembro-me de que, num debate em Paraty, o escritor Christopher Hitchens ficou bravo com meus argumentos. Nada grave. Semanas depois, escreveu um artigo simpático sobre aquela noite. Hitchens, ao lado de outros intelectuais como Richard Dawkins, dedicava-se muito ao combate da religião. Mas não percebeu como suas ideias sobre a invasão do Iraque, como observou John Gray, tinham uma ponta de religiosidade.

Esse era meu plano. No alto do morro, o único lugar onde isso era possível, o telefone deu sinal da mensagem: Temer foi preso. Moreira Franco também. A possibilidade da prisão de Temer sempre esteve no ar. Na última entrevista, lembrei a ele que ia experimentar a vida na planície.

Aqui neste pedaço da Mata Atlântica, não é o melhor lugar para se informar em detalhes. No meio da semana, tinha escrito um artigo sobre a derrota da Lava-Jato no STF, que deslocou o caixa 2 e crimes conexos para a Justiça Eleitoral.

Lembrava que o grupo de ministros que se opõem à Lava-Jato aproveitou um momento de desequilíbrio. Foi o escorregão dos procuradores ao tentar destinar R$ 2,3 bilhões, oriundos do escândalo da Petrobras, para uma fundação. Eles recuaram para uma alternativa mais democrática, um uso do dinheiro através de avaliação mais ampla das necessidades do país.

Distante dos detalhes da prisão de Temer, tento analisar este novo momento da Lava-Jato. Até que ponto vai fortalecê-la ou ampliar o leque de forças que se opõem a ela, apesar de sua popularidade? Diante da prisão do ex-presidente, que é do MDB, certamente vai surgir uma tendência de opor as reformas econômicas à Lava-Jato.

É uma situação nova, que ainda tento avaliar. O ministro Sergio Moro tem um pacote de leis contra o crime que já está sendo colocado em segundo plano, em nome da reforma da Previdência. É possível que avance junto ao governo uma nova tese, a de que a Lava-Jato prejudica as reformas, reduzindo suas chances de aprovação. Além disso, há o mercado, sempre expressando seu nível de pessimismo.

As acusações contra Temer eram conhecidas. Como diz um analista estrangeiro, ele gastou grande parte da energia e do tempo de seu governo para tentar escapar delas. Por essas razões, será necessário deixar bem claras as razões que levaram Temer à cadeia. É apenas mais um ex-presidente; mas, no caso de Lula, só houve prisão depois de condenado em segunda instância. Essa diferença desloca o debate técnico para a causa da prisão. Daí a importância de bons argumentos.

A ideia geral é de que a Lava-Jato deve seguir seu curso independentemente de análises políticas. Mas ele depende do apoio da opinião pública. Qualquer momento de fragilidade é usado pelos lobos no Supremo que querem devorá-la.

Numa análise mais geral, as eleições fortaleceram a Lava-Jato. A própria ida de Moro para o governo era o sinal de que agora ela teria o Executivo como aliado. Mas as coisas não são simples assim. A escolha de Moro por Bolsonaro foi um gesto político.

A renovação no Parlamento pode ter ampliado o apoio à Lava-Jato. Mas ainda é bastante nebuloso prever que leis contra o crime, especialmente o do colarinho branco, tenham um trânsito fácil, maioria tranquila.

O governo perde prestígio, segundo as pesquisas. Está dependendo da reforma da Previdência. Pode haver uma convergência momentânea para empurrar com a barriga as leis contra a corrupção.

Houve maioria no Supremo para mandar processos para uma Justiça Eleitoral sem condições de investigá-los com rigor. A mesma maioria de um voto pode derrubar a prisão em segunda instância.

Nesse momento, não adiantará aquele velho argumento: perdemos uma batalha, mas venceremos no final. Uma sucessão de derrotas precisa acender o sinal de alarme. Somente uma interação entre a opinião pública e a parte do Congresso que entendeu a mensagem das urnas pode reverter essa tendência. Haverá força para isso?

Aqui no meio do mato, não me arrisco a concluir nada. Eleições não decidem tudo. Ainda mais uma falta de rumo dos vencedores, que chega a nos fazer temer que, na verdade, não tenham resolvido nada. Exceto mudar o rumo, da esquerda para a direita.


Fernando Gabeira: Reflexões sobre um voto a mais

Tomar sucessivas decisões impopulares com estilo de briga de botequim é uma escolha

A Lava Jato fez cinco anos com impressionantes números internos e grandes repercussões na política continental, algo que não se destaca muito aqui, no Brasil. Mas na semana do aniversário sofreu uma derrota: por 6 votos a 5, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que crimes conexos ao caixa 2 vão para a Justiça Eleitoral.

Os políticos acusados de corrupção terão um alívio. A Justiça Eleitoral não está aparelhada para investigar, dificilmente colherá provas. Alívio maior ainda é saber que, mesmo com excesso de provas, como no julgamento da chapa Dilma-Temer, ela decide absolver.

Há um novo marco adiante: a votação da prisão em segunda instância. Se o grupo que resiste à Lava Jato vencer, trará alívio não só para investigados, como também para os presos.

A Lava Jato vinha de uma semana difícil com a história da fundação que usaria R$ 2,5 bilhões para combater a corrupção. Era dinheiro da Petrobrás a ser devolvido ao Brasil pelos Estados Unidos. Os procuradores compreenderam rápido que era melhor recuar da ideia e deixar que o dinheiro seja usado de acordo com prioridades democraticamente definidas. Mas os adversários souberam aproveitar o tropeço.

O ministro Gilmar Mendes chegou a afirmar que havia intenções eleitorais na decisão dos procuradores de usar o dinheiro contra a corrupção. E levou o nível da tarde ao de um programa do Chaves, chamando os procuradores de gentalha.

Creio que os ministros perceberam que derrotar a Lava Jato ia custar a todos uma certa oposição social. E de fato houve reação nas redes e na rua. Algumas reportagens indicavam que era uma reação de bolsonaristas contra o STF. Penso que transcende um grupo determinado.

Dias Toffoli compreende que está diante de uma situação grave. As sessões são públicas, a rede comenta e ataca os ministros. No entanto, sua reação de determinar inquérito no Supremo e escolher um delegado para conduzi-lo deu a impressão de estar com medo e isolado.

Com medo porque, de fato, o nível de agressividade aumenta, até com posições que fariam Rui Barbosa virar no túmulo: acabar com o STF. Isolado porque o Supremo é um órgão superior, existem estruturas judiciárias próprias para isso. Por que desprezá-las? Elas só desenvolvem inquéritos sobre acusações específicas, não uma hostilidade difusa contra os ministros.

Na verdade, Toffoli deu uma carteirada. Como em toda carteirada no Brasil, no princípio as pessoas ficam meio surpresas. Em seguida, pensando bem, conseguem ver as coisas nas dimensões legais.

O inquérito determinado por Toffoli pode ser contestado legalmente e, sobretudo, no campo político. Até que ponto procuradores e parlamentares que preparam uma CPI da Lava Toga não podem interpretar isso como uma tentativa de intimidação?

Não será o fim do mundo entregar os crimes conexos ao caixa 2 à Justiça Eleitoral, muito menos acabar com a prisão após julgamento em segunda instância. Se vão fazer isso, aguentem o tranco, sem apelar para saídas autoritárias. Quem anda pelas ruas não ouve críticas ao STF apenas de seguidores de Bolsonaro. Há algo mais amplo e potencialmente agressivo. E se a reação for essa que Toffoli lançou, as coisas podem ficar muito piores. Em vez de as pessoas lutarem contra juízes que veem apenas como cúmplices dos políticos, eles vão ser vistos também como autoritários e antidemocráticos.

Algumas previsões eleitorais temiam passos autoritários do governo. O Supremo e o Parlamento seriam contrapesos democráticos. Se o próprio Supremo avança o sinal, aumenta uma percepção de insegurança. Não creio que os parlamentares se vão intimidar.

O caminho escolhido por Dias Toffoli agrava a situação. Abre-se uma perspectiva para uma luta mais áspera ainda. Já chegamos ao nível do programa vespertino Chaves com a gentalha, gentalha de Gilmar. No programa, gentalha é um achado; no diálogo institucional, uma barbárie.

A Lava Jato continuará com apoio popular. A entrada de Sergio Moro no governo ainda é uma incógnita. Ela é baseada no propósito de ampliar o trabalho da operação, levá-la além dos seus limites com um conjunto de leis e uma nova atitude do Executivo. Todavia não é garantido que os parlamentares respaldem majoritariamente suas propostas. E parece haver no governo uma luta interna com potencial desagregador. As notícias que vieram de Washington, sobretudo a entrevista de Olavo de Carvalho, revelam uma linguagem também corrosiva, em especial quanto aos militares.

Se a maioria ocasional entre os ministros prevalecer e derrotar de novo a Lava Jato, certamente haverá reações. Toffoli mostrou-se um pouco sem norte nesta primeira etapa. Se insistir nesse tipo de resposta, tende a sair enfraquecido.

Uma nova derrota da Lava Jato também terá repercussões no Congresso e, pelo que ouço, o tom lá contra alguns ministros do STF tem a mesma carga emocional das ruas. Uma CPI da Lava Toga tem o potencial de trazer uma grande pressão, criar tensões institucionais. A luta ainda está longe do desfecho, mas vejo que pode ser áspera, com os políticos estimulados pelas ruas. O aspecto delicado é que ela tem o potencial de pôr em confronto, ainda que parcialmente, duas instituições com que contávamos como contrapeso democrático.

Será preciso muita maturidade para avançar daqui para a frente, máxime neste momento crucial de luta entre diferentes maneiras de tratar a corrupção. Não deveriam ser tão excludentes. Quando um ministro se coloca como inimigo da Lava Jato, perde a isenção, propõe, na verdade, um duelo com a maioria da sociedade e parte substancial do Congresso.

Tomar sucessivas decisões impopulares com um estilo de briga de botequim é uma escolha. O próprio STF, instituição destinada a resolver conflitos, transformou-se num núcleo conflitivo. Uma fábrica de crises entre um e outro chá.