Fernando Gabeira
Fernando Gabeira: Seis meses à direita
A linha-mestra do comportamento político de Bolsonaro é flertar com a morte
Neste primeiro período de governo, Jair Bolsonaro afirmou que a cadeira do presidente era sua kryptonita, o metal que enfraquece o super-homem nas histórias em quadrinho. Mais tarde, ele disse que estavam querendo transformá-lo na rainha da Inglaterra. Ambas as afirmações convergem para sua ansiedade sobre o poder escapando entre os dedos. E remetem às primeiras discussões após sua vitória eleitoral.
Naquele momento, a esperança era de que os contrapesos democráticos contivessem Bolsonaro. Da mesma forma que se esperava, guardadas as proporções, que isso acontecesse com Trump nos Estados Unidos.
Na verdade, Bolsonaro foi contido pelo menos sete vezes pelo Congresso e pelo Supremo Tribunal Federal (STF). É verdade que muitas de suas propostas foram lançadas para mostrar ao eleitorado que cumpria as promessas de campanha. Mas foram propostas que desprezaram as necessárias negociações. Parece que Bolsonaro não se importa em perder ou conseguir pelo menos alguma eficácia. Ele quer mostrar que suas ideias morrem no Congresso ou são rejeitadas pelo Supremo.
São coisas tão elementares que qualquer assessoria jurídica desaconselharia. Por exemplo: tentar com uma nova medida provisória passar a demarcação de terras indígenas para o Ministério da Agricultura. Isso havia sido negado e ele reeditou a medida, algo que não pode ser feito na mesma legislatura.
Na verdade, não o estão tornando uma rainha da Inglaterra. Uma combinação de incompetência e arrogância o conduz a sucessivas derrotas.
Ultimamente, tenho observado uma linha-mestra no comportamento político de Bolsonaro. Ele flerta com a morte, como faziam, à sua maneira, os governos de extrema direita do passado. Seus projetos caminham nesta direção: liberação das armas, flexibilização das regras do trânsito, legalização de potentes agrotóxicos que devem dizimar nossos insetos e abelhas, sem falar nas consequências disso para a saúde humana.
Já escrevi sobre isso tudo, de forma isolada. Mas o conjunto da obra revela uma tendência mórbida, ainda que mascarada de um desejo de crescimento econômico rápido e sem barreiras.
O simples fato de usar a imagem da kryptonita o coloca dentro da mitologia do super-homem, algo que era muito comum na direita no limiar da Segunda Guerra.
Vi com certa apreensão que os próprios manifestantes pró Sergio Moro escolheram a imagem do super-homem para defini-lo, isso precisamente no momento em que sua condição humana estava em jogo com as revelações do The Intercept.
Pode ser que essas conexões sejam de alguém que assimilou mal a história do século 20 e está vendo fantasmas em cada esquina. No entanto, o desdobramento do projeto de Bolsonaro é preocupante, exceto pelo fato de que as salvaguardas estão em pleno funcionamento. Até o momento, nenhuma medida ilegal foi engolida pelo Congresso e pelo STF.
Tudo indica que Bolsonaro não se preocupa tanto com as derrotas porque mira a reeleição, continua em campanha, revelando aos seus eleitores como suas ideias são trituradas pelo aparato constitucional.
Atropelar o Congresso e o Supremo não parece ser a saída. Soaria como um retorno a 64, algo que os militares rejeitam: estamos num mundo diferente, a guerra fria não é o quadro geral em que nos movemos.
Bolsonaro, entretanto, não é tão saudosista como parece ser em alguns momentos. Ele sabe que surgiu uma nova extrema direita no mundo, principalmente no rastro do problema migratório. Ele conhece, por exemplo, como seu colega húngaro tenta reduzir as limitações que a democracia lhe obriga.
Em certos momentos, chegou a revelar sua admiração por Hugo Chávez, embora saibamos que é uma admiração pelo método, não pelos objetivos.
Bolsonaro, penso eu, está fadado a ter muitas dificuldades com o Congresso. Atender a todos os pedidos é fatal; rejeitá-los significa o isolamento.
Seu propósito inicial de superar o toma lá dá cá, de contornar os vícios do presidencialismo de coalizão, é interessante. Todos os candidatos que se pretendem inovadores batem nessa tecla. No meu entender, é uma visão limitada de quem também sonhava em acabar com isso, mas há um caminho estreito cujo êxito não é assegurado. Este caminho está apoiado em duas variáveis: um projeto de governo claro e conhecimento das regiões do Brasil e de suas bancadas.
Ao tornar o Congresso um parceiro na realização do programa, é possível reduzir o medo do parlamentar de perder a eleição.
Conhecer o Brasil não é difícil para um militar, apesar de Bolsonaro ter deixado a farda e o rodízio pelo País há muito tempo. O mais importante é conhecer os problemas regionais, sobretudo aqueles dos quais os parlamentares não podem fugir.
É muito difícil para os candidatos que se dizem inovadores obter a cooperação do Parlamento apenas com ideias novas e a esperança de apoio popular. É preciso mais. Era evidente que a reforma da Previdência seria alterada nos pontos em que o foi.
Era evidente que o decreto das armas demandava negociação. Se eleitores de Bolsonaro apoiavam a tese, parte da opinião pública era contrária.
Apesar da qualidade da nossa imprensa, ainda não houve um estudo em profundidade sobre a bancada do PSL, a base parlamentar de Bolsonaro. Dizer que são inexperientes é pouco. Todo mundo o é ao começar. Tenho dúvida se são vocacionados. Se não forem, não vão aprender nunca.
Ao longo destes meses, vi desfilar a mitologia da direita, o flerte com a morte, a ilusão do super-homem. Ainda agora, sempre os vejo juntos movendo os dedos como se apontassem uma arma. Para onde, José?
Uma frente pela democracia é sempre falada em momentos históricos complicados como este. Mas cada vez mais me convenço de que o objetivo é mais amplo: a extrema direita nos coloca diante da necessidade de uma frente pela vida, em toda a sua diversidade.
*Fernando Gabeira é jornalista
Fernando Gabeira: Os ancestrais da Lava-Jato
Vale a pena discutir a tese de Luiz Werneck Vianna, que compara operação ao tenentismo nos anos 20
Por ter sempre defendido a Operação Lava-Jato, sofri algumas críticas por não tê-la condenado agora, com o material divulgado pelo Intercept.
Na verdade, escrevi dois artigos sobre o tema. Provavelmente, não os acham adequados aos tempos de julgamento rápido e linchamento em série que a atmosfera da rede propicia. Há algumas razões para isso. Uma de ordem pessoal: o trabalho — às vezes imerso na Mata Atlântica e em outros biomas —não me permite olhar o telefone de cinco em cinco minutos.
Há também uma razão de ordem prática: o próprio Glenn Greenwald, o jornalista que apresenta as denúncias, anunciou que tem um grande material sobre o tema e que vai divulgá-lo até o fim. Dada a dimensão, vai compartilhar a análise com outras empresas de comunicação.
Portanto, Greenwald anuncia um jogo longo. Estamos apenas na primeira parada técnica. No final da partida, voltamos a conversar.
No momento, não me importo que me julguem rapidamente, pois esse é o espírito do tempo. Nem que me culpem por apoiar a Lava-Jato. De um modo geral, as pessoas que o fazem são as mesmas que culpo por omitirem os erros da esquerda, sobretudo a colossal roubalheira que tomou conta do país nos últimos anos. Portanto, jogo jogado.
No entanto, vale a pena discutir, por exemplo, a tese do cientista político Luiz Werneck Vianna, que compara o papel da Lava-Jato ao do tenentismo nos anos 20. Na época em que ele lançou essa ideia, por coincidência, eu estava lendo o livro de Pedro Doria sobre o tenentismo. Concorde-se ou não com as teses de Werneck, ele lança um tema que merece ser discutido e estudado porque nos remete a alcance histórico mais longo que a sucessão diária no Twitter.
Werneck tem uma visão crítica da Lava-Jato. Considera que o objetivo dos procuradores é mais corporativo e que se esforçam para concentrar poder e, possivelmente, benefícios.
Mas se examinamos o momento mais tenso do tenentismo, a Revolta dos 18 do Forte, veremos que também eles costumam ser classificados de corporativistas. Em tese, estariam reagindo às criticas oficiais que maculavam a honra dos militares.
O tenentismo repercute por toda a década de 20 em espasmos distintos, inclusive a Coluna Prestes. Muitos dos integrantes do movimento são nome de rua em várias cidades do país.
O tenentismo lutava contra um poder concentrado na oligarquia de Minas e São Paulo, a chamada aliança café com leite. A Lava-Jato já encontra tantos anos depois um sistema mais bem distribuído nacionalmente e atinge quase todos os partidos.
Quando a candidatura de Nilo Peçanha enfrenta a oligarquia, existe uma tentativa de conquista da opinião da classe média para as teses do que se chamava Reação Republicana.
Aqui de novo uma grande diferença. A inspiração da Lava-Jato foi a Operação Mãos Limpas, na Itália. Nela estava contida também a necessidade de convencer a opinião pública.
Os meios de hoje são mais potentes, e a própria opinião pública, mais articulada e desenvolvida. Os tenentes estavam dispostos à ação armada, ainda que em condições dramaticamente desfavoráveis.
A Lava-Jato optou pelo caminho legal. O que realizava na prática era passível de confirmação ou veto pelas instâncias superiores. Havia nela o mesmo fervor dos tenentes que esperavam com ação consertar o Brasil.
Dentro do quadro jurídico, ela sobreviveu até agora. Os julgamentos de seus atos foram públicos.
No momento, sofre um ataque especial. Dificilmente um movimento histórico dessa dimensão não se desgasta com a divulgação de conversas íntimas que se acham protegidas da divulgação.
Lendo o livro sobre o gênio político de Abraham Lincoln, a sensação é de que, se algumas conversas fossem vazadas como hoje, também seriam incômodas. Para abolir a escravatura, foi preciso um toma lá dá com parlamentares, ainda que em número pequeno.
Isso não justifica nada. Apenas reforça a tese de que um julgamento depende de dados, de um contexto e, sobretudo, de verificação de sua autenticidade.
Por que tanta pressa, se garantem que é devastador o material contra a Lava-Jato?
Fernando Gabeira: O ocaso da privacidade
Se um hacker invade telefone de autoridades, o que não pode fazer com pessoas que não se preocupam com segurança?
Na semana passada, fiz uma viagem nostálgica à Suécia. Fui apenas a São Paulo, onde conversei com o embaixador que deixava o cargo e empresários da Câmara de Comércio Sueco-Brasileira.
Lembrei-me da Suécia que deixei e me descreveram a atual. Eles passaram bem todos esses anos, sobretudo depois da crise de 2008. Há novos problemas, como o crescimento do partido da direita e diante do crescimento da presença estrangeira. Já intuía esse problema; na verdade, o menciono no primeiro parágrafo de um livro sobre o exílio.
Ajustaram a Previdência, e podem se dar ao luxo de discutir uma lei que pune o dono que abandona o cachorro sozinho depois de mais de cinco horas.
Aqui, após o caso Neymar, surgiam a invasão do telefone de Sergio Moro e o ataque geral aos procuradores da Lava-Jato. Escrevi sobre consequências políticas e jurídicas no artigo de fim de semana.
Ainda no ritmo nostálgico da conversa com os suecos, gostaria de avançar: o mundo mudou, ganhamos muito com a revolução digital mas, ao mesmo tempo, ficamos vulneráveis.
Se um hacker invade telefone de autoridades e de uma sofisticada operação policial, o que não pode fazer com pessoas que não se preocupam com segurança? As pessoas comuns que trocam mensagens familiares, dizem algumas bobagens — afinal, temos direito a uma cota de bobagem —não têm interesse público. A divulgação provocaria sorrisos ou compaixão pelas nossas dificuldades cotidianas. Mas suas intenções de consumo e outros hábitos já são monitorados com a ajuda da inteligência artificial.
A vulnerabilidade é assustadora, porque o hacker sequestra sua identidade virtual. Pode, por exemplo, escrever barbaridades como se fosse você. E num mundo de linchamento eletrônico, não há tempo para a defesa.
Não estamos verdadeiramente sós. Isso é uma perda em relação ao passado. E nos remete a outra vulnerabilidade: o que é verdadeiro ou não num tempo de fake news? A fronteira pode se apagar?
De um modo geral, existe uma tendência negativa que descarta a importância dessa questão e passa imediatamente a outra: não importa se a notícia é verdadeira ou não, e sim como aproveitá-la.
Moro e os procuradores admitem que foram hackeados. Se fossem pessoas comuns, poderiam dar de ombros. Foi um crime, não se responde à devassa da intimidade. Em outras palavras: não é da sua conta.
No entanto, com pessoas públicas, a dinâmica é diferente. É natural que elas determinem investigação rigorosa. E seria natural que houvesse no Brasil uma discussão sobre a vulnerabilidade cibernética do país.
Mas precisam também dar sua versão dos fatos. Colocar as frases soltas no contexto, descartar as fake news que surgiram na rede, enfim, realizar o debate que a invasão traz: a questão da imparcialidade.
Embora com regras diferentes, é um tema comum a juízes e jornalistas. The Intercept Brasil apresentou algumas frases que mostram a proximidade entre Moro e Dallagnol, juiz e procurador.
Juristas condenam isso. Embora aconteça muito no cotidiano do combate ao crime comum, por exemplo. Um juiz teme muito mais favorecer, pela inércia, a uma organização criminosa do que à promotoria.
Quando se trata de política, de novo, o tema ganha nova luz. The Intercept apresentou frases que realmente precisam ser discutidas. Mas a questão da imparcialidade é tão delicada que o próprio Moro e os promotores acusam o site de não os terem ouvido. Argumento contrário: eram muito poderosos e poderiam sufocar o caso.
Jornalistas resguardam o anonimato de sua fonte. The Intercept diz que a fonte foi protegida por algumas semanas. É um sinal de proximidade. Há uma diferença entre proteger a fonte e proteger apenas seu anonimato.
Nós nos movemos num mundo imperfeito, às vezes ressaltando nossas qualidades, às vezes diminuindo a do adversário. Isso ficaria claro se todos os telefones fossem invadidos.
Gilmar Mendes, por exemplo, achou um escândalo a relação de proximidade entre Moro e Dallagnol, procurador da Lava-Jato. Mas se esquece de que também foram vazadas conversas suas com Aécio e com o governador do Mato Grosso que estava para ser preso.
Viver, na era digital, é muito perigoso.
Fernando Gabeira: Um país nada monótono
Se Moro resistisse no cargo de juiz, talvez enfrentasse melhor os ventos contrários
Num discurso de despedida na Câmara do Comércio, o embaixador sueco Per-Arne Hjelmborn disse esta frase para concluir: “O Brasil não é um país monótono”. Fui convidado para falar um pouco sobre as expectativas na volta do exílio e de como as coisas se passaram nestes 40 anos. Foi uma oportunidade para agradecer a generosidade com que a Suécia recebeu os brasileiros após o golpe no Chile.
A frase de Hjelmborn não me saía da cabeça. Pensei: está morrendo o caso Neymar e entrando em cena os vazamentos na Operação Lava Jato.
Na primeira leitura do caso, achei um pouco exageradas as reações que viam naquilo uma tempestade em copo d’água ou que viam o fim da Lava Jato e uma regressão à era da impunidade no Brasil. Previ alguma coisa no meio: agitação política e um desgaste para a Lava Jato.
É difícil de considerar com frases sem o contexto. Mais ainda basear-se puramente nelas, pois, de um modo geral, vazamentos que abalam a política costumam ser como terremotos, com explosões sucessivas. Não se sabe quando será nem a intensidade do próximo abalo.
O conjunto das frase que li mostra uma proximidade entre Sergio Moro e os promotores. Revela uma orientação a uma das partes. A maioria dos juristas que se pronunciaram acha que rompe com o princípio de imparcialidade.
Haverá consequências políticas e consequências jurídicas. Tanto numa como em outra, é importante preservar a Lava Jato. Algumas pessoas acham que ela foi negativa para o País. Não é o meu caso. A Lava Jato, que condenou 159 pessoas, trouxe bilhões de reais de volta ao País e repercutiu no continente levando ex-presidentes do Peru à prisão, foi um passo gigantesco na luta contra a corrupção. Mas não está isenta de crítica nem de enquadramento jurídico. Ela foi uma tentativa de corrigir os fracassos do passado: operações sufocadas, como a Castelo de Areia e o caso Banestado. Era todo um aparato político a ser enfrentado e um Supremo Tribunal Federal (STF) severo na garantia dos direitos.
A proximidade entre juiz e promotor não é muito questionada quando se trata do combate a uma organização criminosa comum. É normal até a prisão de advogados de defesa. Neste caso, não se questionaria um juiz que indicasse a produção de provas, desde que avaliasse com serenidade se válidas ou não. Quando repórter policial, observei em alguns júris que o promotor se sentava ao lado do juiz e o advogado de defesa ficava no plenário. Em termos rituais, já era um traço de proximidade.
Mas estamos no campo da política, onde tudo é banhado por um outro ar. A Lava Jato conseguiu driblar muitos obstáculos neste território.
No meu entender, ela se fragilizou com a ida de Moro para o governo Bolsonaro. É um governo que prioriza o combate ao PT. A Lava Jato alcança um espectro muito mais amplo, atravessa fronteiras, leva a uma reavaliação dos bancos suíços, um terremoto na política sul-americana. A opção de Moro, simbolicamente, associou Bolsonaro à Operação Lava Jato e o PT como seu alvo.
Pode-se argumentar que Moro como ministro, ao contrário de outros, ajudará a Lava Jato. O problema é que ele a encarnou e seu desgaste terá repercussão em todo o trabalho daqui para a frente.
É sempre interessante saber quem invadiu o aplicativo, quem encomendou o ataque. Mas as consequências estão aí. Faça chuva, faça sol, o PT grita “Lula livre”. Por que deixaria de gritar agora, com o impulso dos vazamentos? Renan Calheiros, no Congresso, sempre quis aprovar a lei do abuso de autoridade. E Gilmar Mendes, por sua vez, já acenou com a possibilidade de usar os vazamentos como prova contra a Lava Jato. Enfim, não há outro caminho: segurar o tranco, reconhecer as frases autênticas, descartar as fakes produzidas na rede e analisar uma a uma, colocá-las no contexto.
No caso das operações que Moro mencionou num diálogo, talvez seja mais fácil de determinar o contexto. Moro autorizava operações da Lava Jato. Era razoável que perguntasse pelo destino de suas autorizações anteriores. Tecnicamente para um juiz, suponho, a imparcialidade é sempre uma tensão. Por inércia, pode estar ajudando uma das partes, precisamente uma suposta organização criminosa. Politicamente, de novo, as coisas são mais complicadas.
Ao entrar no governo Bolsonaro, Moro acionou inúmeras sinapses, o vazamento do diálogo de Dilma e Lula antes que ele assumisse o cargo de ministro, por exemplo. Tecnicamente, poderia ser visto como uma tentativa de bloquear a fuga de um acusado. Comumente, um acusado desaparece. Lula iria se refugiar no foro privilegiado. A repercussão disso no impeachment passa a ser vista como intencional.
Se Moro resistisse no cargo de juiz, talvez enfrentasse melhor os ventos contrários. De todos os obstáculos políticos a enfrentar, o mais insidioso e melífluo é a atração pelo poder.
Estrategicamente, a Lava Jato não pode se associar a um governo específico. Caso contrário, ela será de alguma forma sempre cobrada. Onde está o Queiroz?, por exemplo. A investigação está correndo em nível estadual, mas envolve o filho de um presidente, tem repercussão nacional, trabalha suspeitas não só de rachids, mas de envolvimento com as milícias. Por que não esclarecer no ritmo daqueles tempos? Cá para nós – com o perdão da rima –, já saberíamos muito sobre Queiroz.
Mexer nisso agora pode parecer suicídio: afinal, o governo é um aliado da Lava Jato. Mas o grande aliado é a parte da sociedade que quer combater a corrupção como tarefa de Estado, com os cuidados legais, mas acima de todos os partidos.
Não é uma tempestade em copo d’água. É um momento decisivo. Durante anos lutei, no Congresso, entre outros temas, contra a corrupção no sistema político que construímos. Resultados modestos, desanimadores.
A Lava Jato foi o instrumento mais eficaz produzido na história moderna do Brasil. Imaginar que se pode voltar o ponteiro aos tempos da roubalheira é uma fantasia. Os tempos são outros, a sociedade é outra: não deixa.
*Jornalista
Fernando Gabeira: A cabeça pode salvar o capacete
Os desastres com moto já são campeões nas estatísticas. A saída é continuar documentando acidentes, fazendo as contas
Governo estranho este. O que Bolsonaro propõe hoje vai na direção oposta do Código de Trânsito Brasileiro, pelo menos tal como o votamos. É um governo conservador que se lixa para o princípio de precaução, o que poderia ser uma ponte para o debate. É um governo liberal pouco atento à vida das pessoas, embora queira livrá-las das garras do Estado.
Lembro-me dos debates sobre o Código de Trânsito. O relator era um deputado de São Paulo, que conhecia bem o tema. Chama-se Ary Kara e aceitou emenda para que os carros populares tivessem airbag. Fomos derrotados porque a indústria achava, na época, que isso reduziria vendas.
Bolsonaro deu uma grande mexida no setor. Propõe abolir a multa para quem não usa cadeirinha das crianças, ampliar os pontos para suspensão da carteira, afrouxar as regras para uso de capacete em moto. Isso entra em choque com a experiência cotidiana. No Norte e Nordeste, há uma abundância de motos e uma escassez de capacetes.
Numa das primeiras viagens para a TV, passei pelo interior do Maranhão e constatei como algumas UTIs estavam cheias com acidentados de moto. E nem todos os hospitais do país têm neurocirurgião.
Outro dia, no interior do Piauí, mostrei como é a saída da escola. Os pais vêm de moto e recolhem as crianças, às vezes mais de uma na garupa. Nem sempre usam capacetes. Em alguns casos, usam, mas não trazem o capacete das crianças.
Isso sem contar no Norte e Nordeste o grande número de bebês que é transportado em moto. Documento isto com frequência.
Já havia manifestado minha posição favorável aos radares. Sou sensível à possibilidade de multas injustas. Mas acho que existe um canal para contestá-las.
Bolsonaro está reduzindo multas porque acredita no caminho pedagógico. Mas é uma contradição acreditar nesse caminho e, subitamente, afrouxar as punições. A mensagem que passa, já estamos falando de pedagogia, é de que as infrações não são graves.
Compreendo que existam muitos motoristas que serão beneficiados, que Bolsonaro procura não apenas atender aos seus impulsos, mas também a muitos dos seus eleitores.
Mas é um governo meio doido. Ao mesmo tempo em que apresenta uma política de drogas repressiva, com a internação obrigatória, amplia os prazos para exames toxicológicos em motoristas profissionais.
No passado, tive a esperança de que os governos convencessem a indústria de motos a gastarem parte de seus lucros em campanhas e cursos de segurança. Isso já acontece em alguns países. Mas a vida tem se desvalorizado nos últimos tempos no Brasil, a própria política de segurança potencialmente pode produzir um número maior de mortes.
Não há outro caminho a não ser enfrentar as estradas e conviver com um perigo ainda maior. Perigo que aumenta não só no trânsito, como na mesa. Com conhecimento, e algum dinheiro, ainda é possível comer algo saudável, num país em que oito perigosos agrotóxicos são liberados.
Uma grande rede de supermercados sueca iniciou um boicote aos produtos brasileiros, precisamente por causa das decisões do governo na liberação de agrotóxicos.
Os desastres com moto já são campeões nas estatísticas. A saída é continuar documentando acidentes, fazendo as contas. Os liberais que se apoiam apenas na liberdade pessoal de assumir os riscos se esquecem de algumas relações que estabelecemos no trânsito.
Todos estamos em jogo. Desastres acontecem não só com os que têm opções imprudentes. Levam os outros também. As UTIs superlotadas deixam gente de fora, postergam cirurgias.
Conservadores de fato compreendem isso, da mesma forma, aos liberais de fato não escapam essas interconexões.
Este é um governo estranho. Eleito por 57 milhões de brasileiros, parece querer levar o Brasil para um tempo que não existe mais e que talvez nunca tenha existido, exceto na fantasia de Bolsonaro.
Às vezes, você espera um Messias e recebe um Jim Jones, aquele reverendo que levou seus seguidores ao suicídio coletivo.
Não quero dramatizar. É preciso apenas ficar de olho. Costumamos punir gestão temerária de bens. Por que não dedicar um tempo para avaliar uma gestão temerária de vida? Naquela, a vida ceifada por caminhos indiretos. Nesta, a vida apenas, sem apelação.
Fernando Gabeira: O planeta versus Bolsonaro
Quem conheceu os países do Leste Europeu, onde o marxismo era a ideologia oficial, percebe que o comunismo teve papel devastador
Não me sinto obrigado a escrever sobre meio ambiente nesta semana. Trato do assunto a maior parte do tempo. Este ano, estamos diante de algo histórico para o Brasil e, de uma certa forma, para o planeta.
Pela primeira vez, em todo o período democrático, temos um governo que é cético a respeito do aquecimento global e acha que o Brasil tem muito ainda a desmatar. Os fatos se sucedem em várias frentes. Na mais ampla delas, a do aquecimento, o governo o considera uma invenção do marxismo globalizante.
Essa associação entre o marxismo e o meio ambiente contribui para retardar a tomada de consciência de muita gente. Não consigo entender como se sustenta. Quem conheceu os países do Leste Europeu, onde o marxismo era a ideologia oficial, percebe que comunismo teve um papel devastador.
Não só aconteceu o desastre de Chernobyl: muitas usinas nucleares do período ainda são um dado preocupante para toda a Europa.
Associar o marxismo à luta ambiental é reduzir sua dimensão. Como correspondente na Europa, cobri uma manifestação dos skinheads em Dresden. Eram simpáticos ao nazismo, mas colocavam o meio ambiente como uma de suas bandeiras, ao lado de expulsar os estrangeiros e outras barbaridades.
O tema é tão forte que ultrapassa divisões ideológicas e partidárias. No entanto, o governo parece caminhar para essa tese singular de que meio ambiente é algo da esquerda; logo, é preciso desmontar a política ambiental que o Brasil construiu com seus parceiros como a Noruega e a Alemanha.
Para começar, demitiu a direção do Fundo Amazônia, financiado por aqueles dois países. Agora, quer usar dinheiro do Fundo para indenizar proprietários, alguns deles possivelmente grileiros. Se o Fundo não tivesse resultados positivos, os próprios noruegueses e alemães já teriam reclamado. No entanto, estavam satisfeitos.
Bolsonaro insiste também em acabar com a Estação Ecológica de Tamoios para transformar a região numa Cancún brasileira. Acha que pode fazer isso por decreto. Vai se dar mal, se tentar. É ilegal e, além disso, pateticamente inadequado. Espero que seus eleitores compreendam isto. Angra não é Cancún, o mar é diferente; a geografia, as condições sociais, a presença de usinas nucleares, tudo desaconselha.
Não temo a destruição do planeta, como nos advertem nos hotéis para evitar troca excessiva de toalhas. O planeta continua, não podemos acabar com ele, mas apenas com as condições para a existência humana.
Ainda não se avaliou o impacto das posições de Bolsonaro em nossa imagem externa. O Brasil está se isolando. Em alguns lugares como Nova York, o prefeito faz campanha contra sua presença.
Em outros, como Dallas, o prefeito, mais ponderado, assim como o presidente do Chile, limita-se a reconhecer que Bolsonaro teve 57 milhões de votos, mas acentua que não concorda com suas ideias.
O próprio “Financial Times”, um veículo conservador, levantou a hipótese de Bolsonaro se tornar uma espécie de pária do liberalismo.
Não seria bom para ele nem para nós. As pessoas se acostumaram a contar com o Brasil no esforço de preservação, a senti-lo como uma parte integrante do planeta, decisiva para o futuro comum.
Nesta semana do meio ambiente, os governos de Goiás e Mato Grosso lançam um grande programa de recuperação do Rio Araguaia. Haverá um ato na divisa dos dois estados.
Bolsonaro parece que vai comparecer, incluindo, pelo menos, a recuperação de um dos mais importantes rios brasileiros na sua agenda. É uma oportunidade que tem de atenuar sua hostilidade contra o meio ambiente, sua admiração por um tipo de progresso empobrecedor.
Ao compreender a importância das águas, que não podem ser substituídas por Coca-Cola, deveria se dar conta também do absurdo de transformar uma estação ecológica em Cancún.
Ajudaria também a romper o isolamento se ele fosse mais discreto no seu humor. A história de dizer que tudo no Japão é pequeno constrange os mais antigos, que ainda se lembram desse tipo de piada.
Ela pode ter alguma graça entre os frequentadores de uma Cancún construída sobre as frágeis ilhotas de Angra, à sombra das usinas nucleares. Apenas confirma sua fixação no órgão genital masculino e aumenta o medo de que a ignorância realmente vai esmagar o conhecimento humano.
Fernando Gabeira: Ruas, corredores e gabinetes
A sociedade está dando régua e compasso. Mas quem pode utilizar esse impulso são os políticos
Vivemos um momento de manifestações, de um lado e de outro, até com a velha disputa: a minha é maior que a sua. Não sou teórico no assunto, mas o fato de ter vivido muitas manifestações ao longo de 60 anos me autoriza a especular sobre elas de modo geral.
Para começar, sei que observadores de fora sempre são vistos com desconfiança. Há uma constante tensão entre manifestações e os modos de calcular seu alcance: técnicas aritméticas de contá-las, diferenças entre o que viram os manifestantes e a PM, os cálculos nunca coincidem. Enfim uma constante sensação de que os movimentos não foram devidamente reconhecidos.
Falando sobre o falso dilema entre governar com conchavos e obter o que o governo quer apenas com pressão popular, ouvi de uma leitora que estava equivocado. Ela parou de ler o texto supondo que condenaria as manifestações pró-governo. Pena, porque alguns parágrafos adiante descrevia as condições em que essas manifestações são perfeitamente possíveis: quando há convergência de propósitos entre manifestantes e governos, um momento em que é preciso mostrar a demanda social por um tema em debate.
Manifestar-se, para mim, é uma forma de autoexpressão válida em si. Jamais analiso as manifestações apenas por seu tamanho. Existem outros critérios decisivos. Até que ponto elas transcendem a pura autoexpressão e contribuem para a solução real do problema?
Neste último caso, elas são medidas por seu grau de eficiência. E isso não depende apenas dos manifestantes, mas de como as forças políticas que eles apoiam vão aproveitar seu impulso positivo.
Tanto nas manifestações pró-governo como nas contrárias a ele procuro encontrar essa lógica. Um pouco como no futebol: a equipe cria condições de gol, mas são os atacantes, em geral, que o completam. Nas manifestações pelas reformas era de esperar que, dentro das instituições, as aspirações coincidentes fossem levadas adiante.
Bolsonaro deu um passo, parecendo compreender a complementaridade política-manifestantes: a assinatura de um pacto com o Congresso e o STF. Acho o pacto inócuo. Não exclui as negociações específicas para que as pautas de reforma caminhem, o que significa obter de fato os votos necessários à sua aprovação.
No caso do Coaf nas mãos de Sergio Moro, houve um curto-circuito entre o que as pessoas pediam nas ruas e alguns políticos do governo prometiam. A realidade é que os prazos e ritos parlamentares tornariam muito arriscado devolver o Coaf ao Ministério da Justiça. Era possível perder toda a reforma do Ministério apenas para salvar um aspecto dela.
Em outro plano, as manifestações pela educação são ainda defensivas. Trata-se de não perder verbas essenciais para seu funcionamento. Mas um tema dessa dimensão para o País sempre se alarga quando entra em debate.
Não se trata apenas de verbas, mas da necessidade de manter a educação no topo da agenda. Nesse caso, cabe uma questão básica: estamos satisfeitos com a qualidade da educação? Como virar esse jogo?
Manifestantes trazem calor, despertam a esperança de uma grande ação para valorizar realmente esse tema no Brasil. Mas quem pode utilizar esse impulso são os grupos políticos.
A oposição apoia o que acontece nas ruas, mas não propõe ainda uma saída. Os dois ministros da Educação que vi passar pelo Congresso foram questionados sobre um plano estratégico. Não tinham. Senti que alguns deputados se contentaram em mostrar que a discussão, da parte do governo, está limitada ao marxismo cultural e ao método Paulo Freire. Não há ao menos um esboço do que deve ser feito nessa frente, a partir do olhar da oposição.
São espaços abertos. Assim como o governo, fortalecido com as manifestações, precisa aprimorar seus métodos de negociação para conseguir as reformas, a oposição será forçada a pensar o tema educacional com mais amplitude. E tentar algumas vitórias.
Quando as equipes jogarem com um mínimo de coordenação entre rua e Parlamento, o ritmo político no Brasil deixará de ser erradio e ineficaz.
A sociedade está dando régua e compasso. Apoiar uma ou outra manifestação, tirar selfies e louvá-las nas redes e mesmo votar de acordo com o prometido não basta. É preciso algo mais que demonstrações isoladas.
É possível argumentar que essa sintonia entre ruas e Parlamentos deveria ser pensada por partidos. Mas a verdade é que eles não existem como intérpretes e realizadores das aspirações. Em ambos os casos, nas reformas e na educação, será preciso criar frentes suprapartidárias para responder com algo mais profundo que um simples tapa nas costas ou um like nas redes sociais.
Possivelmente ainda encontraremos nas ruas grupos antidemocráticos nas suas propostas, como o fechamento do Congresso, ou mesmo na prática, como a violência ou o vandalismo. Essas forças ainda são minoritárias e insignificantes. Mas o que as alimenta é precisamente a ideia de que as manifestações não mudam nada.
Se houver sintonia entre instituições e as ruas, resultados práticos, a tendência é de manifestações cada vez mais pacíficas. E talvez menos frequentes.
Ser parlamentar com as ruas constantemente cheias é uma experiência interessante. Não há o que temer, apenas vislumbrar a oportunidade histórica que não tiveram mandatos em fases de indiferença.
Ali dentro do Parlamento, sozinho ninguém avança. O passo é descobrir quem está percebendo a mesma realidade ou vivendo a mesma ilusão. Só a prática vai mostrar.
Tudo isso acontece num momento difícil. Índices de crescimento baixos, perigo de recessão, gastos nas alturas. O governo depende de um crédito suplementar de R$ 249 bilhões. Isso dá à palavra experiência um interessante sotaque chinês da velha maldição: que vivam tempos interessantes.
Fernando Gabeira: O caminho do meio na política
Seria necessário um autêntico interesse pela produção dos parlamentares, uma noção de sua trajetória
Depois de um longo dia de trabalho em Oeiras, no centro-sul do Piauí, fui contemplar a lua cheia e vi um corpo brilhante sobre ela. Era Júpiter, que se aproxima todo mês, mas aparece claramente quando a lua é cheia. Fotografei com prazer aquela presença. Uma conjunção feliz, pois nos traz algo de novo ao alcance do olho nu.
Do meu posto de observação da história contemporânea do Brasil, conjunções são raras, desastres mais comuns, não é raro ver a vaca ir pro brejo.
O documento que Bolsonaro divulgou sobre as dificuldades de governar o país nos coloca diante de uma alternativa: governar com conchavos e perpetuar a corrupção ou usar a força popular para provocar mudanças, o que tende a desembocar no autoritarismo.
Existe um caminho do meio, uma nova forma de de se relacionar com o Congresso que ainda não foi experimentada amplamente. Não há garantia de êxito, mas certamente vale a pena tentar.
É uma ilusão supor que os congressistas sempre se curvam à maioria. Foram eleitos também, e para muitos a opinião de seus próprios eleitores pesa mais do que a da maioria.
Uma saída seria atrair o Congresso na execução do Orçamento, tornar políticos de uma região responsáveis também por uma série de obras programadas para ela. É uma parceria que não acaba com o fisiologismo. Mas pelo menos o isola um pouco, oferecendo aos envolvidos uma forma de superar o medo de que seus eleitores pensem que nada fazem por eles.
Pela experiência no Congresso, não considero apenas os fatores materiais. Há um grande muro simbólico a ser derrubado.
Os deputados e senadores seriam mais felizes se pudessem aprovar seus próprios projetos e não serem sufocados por medidas provisórias e pautas oriundas do governo. Há um desequilíbrio aí, e ele já existe há muitos anos.
Ainda num campo simbólico, a atenção de um presidente e uma palavra de apoio ao seu trabalho representam para um deputado mais que verbas. Não recomendo um expediente de relações públicas, como mandar um telegrama no dia do aniversário.
Seria necessário um autêntico interesse pela produção dos parlamentares, uma noção de sua trajetória, uma tentativa de impulsionar o que tem de melhor: jovens começando a carreira, veteranos especializados em alguns temas, todos amparados por um corpo técnico competente.
Pode ser bobagem o que vou dizer, mas os presidentes falharam de uma certa forma em buscar esse caminho e suas variantes.
De um modo geral, chegam ao governo depois de uma grande campanha eleitoral. Ao contrário de terem resolvido as ilusões do ego, eles aceleram a viagem e colocam-se num outro patamar: sabem mais que os outros, são acontecimentos inéditos na história, enviados de Deus. E há os mais distantes, como Collor e Dilma, que claramente não tinham esse dom.
O caminho do meio depende de um presidente que realmente leve a sério o Congresso. Isso não exclui que, em certos momentos, existam manifestações não a favor do governo, mas a favor de alguma bandeira que coincide com algo bem claro no jogo democrático.
Nesse caminho do meio não há avanços vertiginosos. Quem os espera se decepciona. Sem ilusões sobre o Congresso. Não se trata de fazer um avião decolar. Na verdade, trata-se de pôr em marcha uma geringonça.
Essa imagem não é depreciativa. Assim os portugueses chamam sua experiência relativamente exitosa. Comunistas? Nesse caso, Portugal seria o único país comunista a atrair tantos imigrantes, ricos e pobres.
A chance de superar o dilema corrupção ou autoritarismo não foi realmente tentada por Bolsonaro. Mas ainda está aberta para a virada da década.
Os candidatos sempre prometem alguma forma de resolver o impasse. Fica essa lembrança quando o tema voltar em 2020.
Há um caminho do meio. Quem sabe?
O problema é produzir políticas públicas que melhorem as condições reais de vida de milhões de pessoas. O resto são honrarias, condecorações, estátuas para pombo fazer cocô.
Prefiro acreditar que exista uma solução e contribuir para ela a continuar na velha história de que, no fundo, afirma o documento lançado pelo Bolsonaro, o Brasil não tem jeito. Como os estoicos, acham que tudo vai passar como os bárbaros por Roma, pois acabariam engolidos por ela.
Fernando Gabeira: Aviso de tsunami
Bolsonaro viu Lula Livre em todos os cartazes. Parece pedir socorro ao PT. Por favor, voltem com força. Preciso de um bicho-papão
Conversando com um amigo, disse para ele que escrever um diário talvez ajude a atravessar esta fase sombria no Brasil. Diários costumam ser confusos, incompletos, mas talvez espelhem melhor o caos, sejam a única maneira de interpretá-lo. Quando houvesse necessidade de clareza, como existe aqui, bastaria organizar, editar, acrescentar um ou outro argumento, para voltar a fazer sentido.
Pensei em começar com a frase de Eduardo Bolsonaro sobre a bomba atômica. Num diário, falaria da Coreia do Norte, que era dirigida por Kim Il-sung, e agora um dos rebentos da família se dedica à produção da bomba. Ou mesmo do ministro brasileiro que defendeu a construção do artefato, vestido com um roupão numa sala de hospital.
Estava envolvido nessa questão de gênero, no caso gênero literário, quando li que Bolsonaro esperava um tsunami. Pensei: estou de bobeira na praia. Deixei tudo de lado, para esperar a gigantesca onda.
Na verdade, não é só uma onda, mas um punhado de ondas estranhas: a revelação de um pacto para levar Moro ao Supremo, a inabilidade na explicação para contingenciar gastos na educação, a frase de Bolsonaro chamando manifestantes de idiotas inúteis.
Uma tática que me parece suicida; quem sabe um dia descubra sua lógica.
Aí então veio uma onda maior: a iniciativa dos procuradores do Rio de quebrar o sigilo bancário de Flávio Bolsonaro e de seu funcionário Fabrício Queiroz, o que, certamente, vai revelar a vida financeira de ambos.
Mas as grandes interrogações que rondam a passagem de Flávio pela Alerj não se limitam ao sucesso na compra e venda de imóveis. Houve muitas fontes de renda suspeitas entre deputados do Rio. Propinas, cala-boca, rachadinhas, um longo inventário.
No entanto, o mais inquietante são os indícios de que a milícia tinha um espaço no gabinete de Flávio e que esse espaço era administrado por Queiroz. Milicianos, esposas e mães de milicianos recebiam salários e não se sabe precisamente por quê.
Uma história de corrupção envolvendo a família Bolsonaro realmente representaria uma grande onda negativa para quem se elegeu com a bandeira de luta contra a corrupção.
Mas se a investigação sobre as origens da grana demonstrar também uma associação com as milícias, aí, realmente, é melhor se afastar da praia, pois tem cara de tsunami.
De um modo geral, as ondas foram criadas pelo próprio governo. Bolsonaro viu Lula Livre em todos os cartazes. Parece pedir socorro ao próprio PT. Por favor, voltem com força. Preciso de um bicho-papão.
Milhares de pessoas foram às ruas porque consideram a educação um tema decisivo para o país. Elas pedem projetos, explicações mais sérias do que contar chocolates na TV.
Resta-me, no momento, voltar ao pensamento informal, refletir mais livremente. Por que sobem e caem os populistas? Por que, ao cair, acabam fortalecendo um outro populismo que se opõe a eles?
Até que ponto continuarão brincando de gangorra com um país desse tamanho? O medo de um leva ao outro. E assim vamos vivendo de horrores.
Por acaso, o que esteve em jogo esta semana de manifestações é uma das chances de sair dessa armadilha: priorizar a educação.
A bomba atômica que explodiu na agenda, com o discurso do filho do presidente, foi sufocada pelo rumor das ondas. Ia tratá-la com respeito, pois Eduardo Bolsonaro apresentou-a como um fator de poder do país. Mas há outros poderes mais suaves: nossa cultura, que não se expressa apenas nas artes e costumes, mas na defesa da paz em vários lugares do mundo.
É um poder mais barato e durável. Não significa desprezar a defesa necessária. Mas esse poder é em si um fator auxiliar da proteção. Quem vai atacar um país internacionalmente empenhado em garantir a paz?
Se tivéssemos uma bomba atômica, Maduro nos respeitaria como espera o jovem Bolsonaro? A resposta é não. O que faríamos com a bomba atômica?
Momentos estranhos. Mas passam. No meu caderno, anoto apenas um verso de Fernando Pessoa e o imagino transfigurado na boca de um ministro Weintraub, mestre em Contabilidade: “Come chocolates, pequena/ Come chocolates!/ Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.”
Fernando Gabeira: Os dilemas de Moro
Não foi pelas armas que a Lava Jato rendeu muitos elogios e prestígio internacional
Não posso dizer que o ministro Sergio Moro me surpreenda, porque não o conheço bem. Nem posso avaliar o êxito de sua escolha, pois o governo apenas começa, apesar de tantos episódios cheios de som e fúria, significando nada.
Nos últimos meses, o Brasil vem reduzindo o número de assassinatos. A queda foi de 12,5% em 2018. Leio que em fevereiro a queda dos assassinatos no Ceará foi de 58%. Já analisei a situação do Ceará em artigos anteriores. Parte da derrocada do crime se deve à suicida ofensiva militar das facções. Derrotadas, tiveram de unir objetivos e parou a matança mútua.
Mas houve trabalho também por trás dessa redução. Do governo petista e de Moro. Um dos fatores foi a apreensão rápida dos carros roubados, graças às câmeras que identificam as placas e acionam o alarme. Carros roubados são fundamentais em ações criminosas.
Era o momento de dizer: o índice de assassinatos está caindo, é possível reduzi-los, vamos discutir o que aconteceu e traçar os rumos do próximo avanço.
Moro parece-me indiferente a esses dados. É provável que, no caso do Ceará, exista um pequeno incômodo: o sucesso parcial se deve a um trabalho conjunto com o governo petista. Reconhecer as vantagens de uma ação republicana não repercute bem nas hostes radicais governistas. Mas, no meu entender, existe outro fator que condena o pequeno sucesso ao anonimato. Ele se deve também à tecnologia. Assim como em Guararema (SP), são as câmeras que fazem o trabalho – um trabalho decisivo.
Num governo preocupado com espingardas e trabucos, a grande expectativa é a posse de armas para todos. O sucesso não interessa porque ele é resultado do avanço tecnológico, não comprova a ideologia oficial que vê nas armas a única salvação.
Moro assistiu meio constrangido à assinatura de um decreto claramente ilegal para a liberação das armas. É uma espécie de estatuto próprio de Bolsonaro, atropelando o Congresso e a lei.
De que adianta ser ministro da Justiça e concordar com esse amadorismo bélico? De certa forma, Moro lembra a obra mestra da literatura alemã: Fausto, de Goethe.
Bolsonaro sabe que Moro engole sapos no governo e tende a ser derrotado no Congresso. E relembra a compensação para tantos transtornos: um lugar no Supremo Tribunal Federal.
Com todo o respeito pelo Supremo e pelos juízes que querem chegar lá como ápice de suas carreira, isso é um enredo modesto e provinciano diante das oportunidades que se abrem de construir uma eficaz política de segurança pública no Brasil. As afirmações de Bolsonaro sobre o compromisso de levar Moro ao Supremo, entre outras coisas, apenas reduzem a dimensão do que parecia ser até para ele um tema de grande importância.
Isso sem contar o absurdo de indicar um ministro para o Supremo com mais de um ano de antecedência, abstraindo as condições da Corte e os potenciais candidatos, algo que só pode ser levado em conta no momento da escolha.
Moro tem um pacote anticrime e se empenha em aprová-lo, o que acho improvável em curto prazo e na integridade do texto. Mas isso não esgota o trabalho. Há muita coisa a fazer no campo da segurança pública e nem tudo está contido no pacote.
Uma das coisas mais lamentáveis nos políticos é ocuparem um cargo pensando em outro. Alguns são derrotados por causa disso. Outros escapam pela tangente, como é o caso do governador de São Paulo.
Essa história do Supremo acabou colocando Moro no mesmo patamar das pessoas que estão fazendo de seus postos apenas uma espécie de alavanca para o que consideram um salto maior.
E nem sempre consideram com precisão. De fato, seria uma bela carreira começar como juiz no interior do Paraná, conduzir importantes processos e conquistar ainda jovem uma cadeira no Supremo. Mas isso é um capítulo do livro “pessoas que deram certo”, que realizaram seus sonhos.
Muitos podem achar que a soma de pessoas que deram certo faz um país vitorioso. Mas é um engano. É preciso um trabalho específico de recuperação do Brasil, que independe de promoções, promessas compensatórias.
Uma política de segurança pública é algo essencial. No entanto, apesar de eleito com essa bandeira, Bolsonaro confia apenas nas armas e aponta os dedos como se estivesse atirando. Ao seu lado, numa foto meio patética, políticos e aspones apontam o dedo também como se estivessem atirando.
A base deixada por Temer e implementada por Jungmann precisa ser desenvolvida. Visitei no Ceará um centro de informações que será vital para o Nordeste. Agora foi inaugurado de vez. Inteligência e tecnologia, aos poucos, vão transformando o caos na segurança pública em algo administrável.
Movidos por sua ideologia bélica, os dirigentes atuais seguem apontando os dedos como se atirassem. Não há provas da eficácia dessa visão. É um pouco como as cerimônias religiosas dos antigos para garantir a chuva e fertilidade.
É preciso problematizar a solução pelas armas e Moro até agora não se dispôs a fazê-lo. Não foi pelas armas que a Lava Jato rendeu muitos elogios e prestígio internacional.
Apoiei a operação por considerá-la a única capaz de desatar o nó da impunidade no Brasil, unindo instituições, estabelecendo a cooperação internacional, usando da melhor forma os recursos tecnológicos. Se alguém me dissesse que o sonho de Moro era fazer tudo isso para ganhar uma cadeira no Supremo Tribunal, perguntaria: mas só isso?
Moro decidiu entrar no governo para completar seu trabalho, uma vez que a Lava Jato dependia de novas leis. Agora, corre o risco de retrocesso e tudo o que lhe prometem é uma compensação, um cargo de ministro, uma capa preta, lagosta com manteiga queimada, vinhos quatro vezes premiados e espaço na TV para falas intermináveis. Mesmo o Doutor Fausto queria mais.
*Jornalista
Fernando Gabeira: Os vencedores levam tudo
Os tropeços de Bolsonaro e dos seus ardentes defensores abrem um espaço de poder, até agora percorrido pelo Congresso
Mas que briga é aquela que tem acolá? É o filho do homem com o seu general. Não pretendo analisar uma luta interna no governo, cheia de insultos escatológicos.
Pergunto apenas se vale a pena tantos militares no governo, com ataques permanentes contra eles e uma certa ambivalência de Bolsonaro. Se a ideia é apanhar pelo Brasil, talvez não seja a melhor aposta. O risco de desgaste das Forças Armadas é grande. E os resultados até agora, desanimadores.
Os termos que certos setores do bolsonarismo colocam são, na verdade, uma armadilha. Não respondê-los significa um silêncio constrangedor para quem participa do mesmo projeto de governo. Respondê-los é cair numa discussão de baixo nível, um filme onde todos morrem no final.
A única experiência que tive com Olavo de Carvalho foi um trecho de seu livro “O imbecil coletivo”. Nele, Olavo diz que não tenho competência nem para ser sargento do Exército de Uganda ou do Zimbábue, não me lembro.
Foi há muito tempo. Minha reação foi esperar que o Exército de Uganda, ou o do Zimbábue, protestasse. Como não disseram nada, também fiquei na minha.
Todo esse vespeiro no governo Bolsonaro é também resultado da fragilidade da oposição. Mas, observando as consequências, percebo que o Congresso vai preenchendo o vazio de poder não para oferecer uma alternativa mais sensata à sociedade, mas para garantir um retrocesso no aparato de controle da corrupção. Um dos pilares da Lava-Jato é a integração das instituições. O Congresso quer impedir que a Receita Federal e o Ministério Público compartilhem informações. Numa comissão da Câmara, tiraram o Coaf das mãos de Moro, um outro desmanche dos pressupostos da Operação Lava-Jato.
E não é só o Parlamento. O STF sente-se mais tranquilo para blindar os deputados estaduais, que só podem ser presos com autorização das Assembleias. Algo que sabemos muito improvável.
Outro passo: autorizar anistia para crimes de colarinho branco, validando o decreto de Temer.
Bolsonaro se apresentou com a bandeira anticorrupção. No entanto, no mundo real, há vários indícios de retrocesso. Não houve competência nem para evitálos, quanto mais avançar numa agenda que interessou a milhões de eleitores.
Os tropeços de Bolsonaro e dos seus ardentes defensores abrem um espaço de poder, até agora percorrido pelo Congresso com seus objetivos claros.
Enquanto isso, ele se diverte dando tiros de retórica. Ele prometeu que vai fazer de Angra dos Reis uma Cancún brasileira. São ideias de quem está no mar e pisou pouco em terra firme, nos morros e favelas de Angra.
Esta semana, houve tiroteio, dias depois da passagem do governador Wilson Witzel. Ele foi a Angra num helicóptero e disse: “Vou acabar com a bandidagem.” Deu uns tiros, inclusive em tendas de oração, felizmente desertas, hospedou-se num hotel de luxo e voltou para o Rio.
Outra fixação de Bolsonaro é acabar com a Estação Ecológica de Tamoios, próxima ao lugar onde foi multado por pesca. Estação ecológica é de acesso limitado aos cientistas porque é uma permanente fonte de pesquisa.
No passado, critiquei publicamente o senador Ney Suassuna, que comprou um barraco de um posseiro dentro da Estação de Tamoios e nela queria construir sua mansão. Uma década depois, a ideia do senador acaba se impondo sobre a minha. Cancún implica construir muitas mansões e hotéis, e mandar para o espaço nossa riqueza biológica concentrada ali naquela unidade de conservação.
A política de meio ambiente de Bolsonaro parte da negação do aquecimento global, e em todas as áreas ambientais tem dado sinais negativos. O consolo é que há mais gente lutando para proteger seu território. No entanto, certos danos podem ser irreversíveis. O licenciamento de agrotóxicos é o mais liberal da história, num momento em que o mundo se preocupa não apenas com a saúde humana, mas também com o desaparecimento das abelhas, dos insetos e das borboletas.
O processo vai ser acentuado também no Brasil. E, sem abelhas, como é que vão polinizar nossas plantas? Dando tiros de espingarda? Se apenas brigassem entre si, os bolsonaristas provocariam menos danos que a briga permanente do governo contra a natureza.
Governos passados nos levaram a esperança e alguns bilhões de dólares. Bolsonaro ameaça levar pedaços vivos do Brasil.
Fernando Gabeira: Bolsonaro, rápido no gatilho
Ele diz tantas coisas polêmicas que, ao cabo de sete dias, ninguém se lembra das que abriram a série
Bolsonaro deu um passeio no lado íntimo, falando de sexo, definindo o que pode ou não pode, sobre o número de pênis amputados.
Pensei em comentar o assunto, mas Bolsonaro é tão rápido no gatilho que desatualiza um cronista semanal. Diz tantas coisas polêmicas que, ao cabo de sete dias, ninguém se lembra das que abriram a série.
Bolsonaro disse que o turismo gay deveria ser proibido, por causa das famílias. Os gays lembraram a ele que não nasceram de chocadeiras, mas são filhos de família.
Os jornais enfatizaram que o turismo gay cresceu mais que os outros e ele acaba ajudando lugares arruinados como o Rio.
Bolsonaro disse que vir transar com a mulher brasileira pode. Recebeu críticas. Afinal, um presidente não deveria se meter em relações sexuais de adultos, nem para proibir nem para elogiar.
O que mais me surpreendeu em Bolsonaro é o fato de ter escolhido o tema e deixado de lado algo que realmente tem nos preocupado ao longo dos últimos anos: a prostituição infantil.
Com muitas campanhas, conseguimos reduzi-la. Já estive documentando isto em Fortaleza. Mas ainda assim um presidente deveria estar em sintonia com aquilo que realmente interessa e é fruto de trabalho conjugado de várias instituições.
Sobre o número de pênis amputados, Bolsonaro afirmou que se perdem por falta de água e sabão. É um tema que o preocupa pela sua experiência militar, vendo o drama de soldados pobres.
Mas Bolsonaro perdeu o ponto, embora água e sabão realmente sejam importantes. Não falou do saneamento básico, cujo marco legal deveria ser votado ainda neste semestre.
Reacendida a crise da Venezuela, tudo isso foi esquecido. Bolsonaro disse que a decisão de intervir militarmente ali seria, em última instância, sua.
Deve ter havido um ruído na comunicação. Ele mesmo sabe que a última palavra é do Congresso. Até para enviar tropas ao Haiti, em missão de paz, o Congresso foi consultado. É a lei.
Essa questão da Venezuela é muito complicada. Seria interessante um amplo debate. Bolsonaro destinou mais R$ 240 milhões para atender os refugiados. Creio que a esta altura já gastamos mais de meio bilhão com o tema.
O quanto não custaria uma intervenção militar? E quem garante sua eficácia? É grande a possibilidade de perdemos fortunas com ações militares e, simultaneamente, gastar mais ainda com os refugiados.
Maduro precisa cair. Tem de cair. Entre essa certeza e a prática, há uma longa reflexão tática e estratégica. Bolsonaro talvez não se lembre da invasão da Baía dos Porcos, no tempo em que Kennedy dirigia os EUA.
O fracasso da invasão acabou consolidando o poder dos Castro. Maduro anda mal das pernas, mas quase todas as tentativas precipitadas de derrubá-lo acabam renovando seu fôlego.
Faz tempo que não entro na Venezuela porque certamente vão confiscar minha câmera, prender ou expulsar. Mas creio que uma intervenção armada encontrará vários obstáculos.
A força aérea da Venezuela tem sido equipada pelos russos. Parte das missões militares russas pode ser até um gesto político. Mas existe uma base material para afirmar que, apesar da penúria econômica, seriam um duro adversário.
Milhares de venezuelanos foram armados pelo governo. Milícias motorizadas, treinadas pelos cubanos, atuam reprimindo manifestantes. E todo o sistema de inteligência também foi estruturado pelos castristas.
Essas condições não tornam impossível uma derrota militar dos bolivarianos. Mas, certamente, eles podem prolongar a guerra, torná-la mais cara não só em dinheiro, mas em vidas dos invasores estrangeiros. Estamos preparados para segurar essa onda? Os próprios americanos que viveram tantas experiências traumáticas topariam uma aventura desse tipo no começo de um período eleitoral?
Essa tese de que todas as opções estão sobre a mesa pode ter algum significado psicológico. Mas uma visão sensata do quadro afasta uma intervenção armada. O que não significa que a sensatez não possa ser vencida.
Ainda estou para dar um balanço. Mas creio que o fator crise da Venezuela é isoladamente o que mais atrasou o Brasil em termos externos nos últimos anos. Não só pelo custo do fluxo de refugiados, mas pela instabilidade e desconfiança que gera nos investidores interessados na América do Sul.
Não somos os atores principais nesse drama. Precisamos apenas reduzir os danos.