Fernando Gabeira

Fernando Gabeira: O bode na sala

Os pobres continuarão presos. O STF não se lembra deles, exceto em episódicas campanhas de mutirão

Prometi a mim mesmo que não faria, esta semana, mais um artigo defendendo prisão em segunda instância. Não são nossos argumentos que pesam.

Os ministros do STF já estão decididos. Tudo o que podem fazer é ampliar o prazo do anúncio da decisão. Usar de novo a tática do bode na sala. Anunciam ou indicam uma decisão arrasadora para uma semana e guardam sete dias mais para apresentar algumas atenuantes. Esperam com isso reduzir o desgaste de sua imagem, que não é pequeno.

Durante muito tempo, acalentaram essa decisão. Esperaram cuidadosamente o momento ideal. Ganharam a simpatia agradecida de Bolsonaro pelo gesto de proteção ao filho, encalacrado no Rio. Foi um gesto tão amplo que paralisou, por tabela, um grande número de investigações baseadas em operações financeiras.

Observaram o desgaste de Moro. De vez em quando, deram um empurrão com frases indiretas ou mesmo o discurso desqualificador de Gilmar Mendes. O otimismo que alguns tiveram com as eleições não se justificou. Nem governo nem Congresso decidiram enfrentar a corrupção de frente.

Está tudo começando, diziam alguns. Estão sendo sabotados, acreditavam outros. A qualquer momento as coisas podem mudar, concluíam.

Não mudam fácil no Brasil. Um dos dramas que nos perseguem é este: ser governado por ladrões ou ditadores. Nos momentos históricos piores, as duas características se concentram num só governo.

Mas existem alguns fatores que podem libertar dessa inevitabilidade. Um deles é a inter-relação cada vez mais estreita do Brasil com o mundo.

A volta da tolerância com a rapina pode nos trazer inúmeras dificuldades. Entrar na OCDE, por exemplo, vai para o espaço. Atrair investidores sérios também será problemático, pois, certamente, o esquema de propinas vai ser restabelecido.

Os juízes dizem que não. A esquerda limita-se a afirmar que isso não tem importância: a corrupção é uma nota de pé de página na brilhante história que pretende escrever.

Um outro fator é o nível de informação da sociedade, num período de revolução tecnológica. Nunca se falou tanto de política e, com todas as distorções, as pessoas hoje têm mais consciência do que se passa, conhecem mais a realidade.

Um dos argumentos que usam contra a decisão dos ministros não me emociona: o de que milhares de presos serão libertados.

Desde quando o país mudaria com uma simples decisão de 11 ministros? As prisões estão abarrotadas, e muitas pessoas nem foram julgadas, quanto mais em segunda instância.

O fim da prisão em segunda instância tem um alvo inequívoco: os políticos envolvidos na Lava-Jato e outras operações. Os pobres continuarão presos. O Supremo não se lembra deles, exceto em episódicas campanhas de mutirão. O que os interessa mesmo é julgar e absolver os iguais.

Viveremos, segundo eles, num estado de direito perfeito. Os advogados vão celebrar, os partidos vão celebrar, mas todos sabemos que esse estado de direito concebido por eles apenas autoriza o saque aos recursos nacionais, sem nenhum perigo de cadeia.

Há duas perspectivas para os grandes ladrões: empurrar o processo até a prescrição ou levar para o túmulo o risco de ser preso. As consequências de decisões como essa trazem um profundo descrédito na democracia. E aí reside o perigo maior. Esgotadas as formas legais de combate, sobretudo as desenvolvidas pela Lava-Jato, a memória de muitos se volta para os militares.

Os próprios militares, indiretamente, dão sinais de descontentamento com a volta da impunidade. Mas eles também se comprometeram com o governo Bolsonaro. E sem examinar algumas evidências. Bolsonaro não combateu a corrupção de frente no seu período de deputado. Ele era do PP, apoiou o Severino Cavalcanti.

Mesmo se Bolsonaro fosse de fato decidido nesse campo, dificilmente teria competência para enfrentar STF, Congresso, partidos, parte da burocracia estatal, grandes advogados.

Ele encontrou a coexistência pacífica com as diferentes dimensões do poder. Aliás, os militares sempre foram contra a corrupção de esquerda. Na hora H, abraçavam os seus aliados, como foi o caso de Maluf na eleição indireta para a Presidência da República.

O buraco é mais embaixo. Nenhuma força política isolada conseguirá desatar o nó da impunidade. É tarefa de longo alcance.


Fernando Gabeira: Choro sobre o óleo derramado

Inútil culpar a esquerda, que levou anos para ver o verde e deve levar séculos para ver o azul

Há três semanas ando pelas praias do Nordeste e não consigo chegar a uma conclusão sobre esse desastre. Foi relativamente fácil seguir os efeitos da mancha, no sentido norte-sul, observar seus efeitos na areia e nos seres marinhos. No entanto, é muito complicado seguir a mancha para trás, em busca de suas origens. Satélites americanos foram usados para isso e não encontraram rastros. Parece que a mancha engana satélites.

Baseado em fotos postas à disposição pelos europeus, pesquisadores da Universidade da Bahia chegaram a ver o que poderia ser uma nova mancha de 22 quilômetros quadrados a caminho da costa baiana. Essa possibilidade foi desmentida. O Ibama sobrevoou a região e não a viu. Chegou a supor que os pesquisadores se tivessem enganado, pois havia nuvens dificultando a visibilidade. A técnica usada para calcular a mancha baseia-se na rugosidade da água. A região apontada como problemática era lisa, chata. A suposição era de que o óleo dominasse a superfície.

Os americanos, ao afirmarem não ter conseguido rastrear a mancha, confirmam indiretamente a ideia de que o óleo, mais pesado, afunda e navega numa camada inferior.

Minha experiência induz a uma comparação com o desastre na Galícia, que cobri em 2003. Um petroleiro chamado Prestige derramou 770 mil toneladas de óleo na costa da Espanha. A Galícia, região cruzada por petroleiros mal equipados e semiclandestinos, já conhecera outros vazamentos.

Pode ser que isso esteja acontecendo com navios que saem da Venezuela, de onde veio o petróleo vazado. Pressionados pelas sanções americanas, fazem de tudo para escoar a produção, que, de modo geral, vai para a Índia e a China.

Barris de rejeitos foram encontrados nas praias com inscrições da Shell. Pesquisadores dizem que rejeitos e óleo derramado na praia são a mesma substância. A Marinha discorda. A Shell também desmente.

Tudo isso se passa com relativo desinteresse nacional. Deputados e senadores foram ao Vaticano e deram as costas para as praias manchadas. O próprio Bolsonaro acusou esquerda, ONU e ONGs de ocultarem o desastre por a origem do óleo ser a Venezuela.

Além de denunciar a esquerda, Bolsonaro pouco fez. Em Sergipe foi preciso uma determinação judicial para que protegessem a foz dos Rios São Francisco, Sergipe, Vaza Barris e Real, entre outros.

Embora possa haver um componente político no relativo desinteresse, vejo outras razões para ele. Há muita atenção para certos biomas, como a Amazônia, pois são vistos como decisivos para as mudanças climáticas. Ignoram-se em grande escala o papel dos oceanos e a importância das correntes marinhas no aquecimento do planeta. Num encontro internacional realizado na Inglaterra, alguns cientistas chegaram a dizer que as correntes marinhas e sua dinâmica é que iam determinar a irreversibilidade do aquecimento global.

Uma semana antes do desastre comecei a ler o livro de Rachel Carson sobre o litoral. Além de excelente escritora, Rachel Carson dedicou-se à zoologia marinha. A riqueza biológica do litoral é descrita por ela com detalhes, desde caranguejos do tamanho da unha do polegar a seres maiores, passando por medusas, nereidas, uma paisagem visual e verbalmente encantadora. Na medida em que conseguirmos transmitir a riqueza da vida oceânica, talvez o interesse aumente.

Na Galícia, em 2003, vi muitos voluntários limpando as praias. Neste desastre no Nordeste também houve movimento, crianças em Alagoas, artistas na Bahia, todos empenhados em tirar a sujeira da praia. Discussão política, requerimentos, comissões, enfim, todo o zum-zum em torno de um desastre tem o seu papel. Usar uma pá e sujar os pés é mais eficaz.

Assim como na Galícia, estamos diante de um problema internacional. Como controlar os navios bandalhas que enganam a fiscalização e descumprem normas de segurança?

Se o desastre foi mesmo provocado por um petroleiro, o que me parece mais lógico, o Brasil teria de acionar mecanismos internacionais de controle. Não fazer nada implica esperar um novo desastre, que fatalmente virá.

Ainda não sabemos o impacto real do óleo derramado. Temos as praias como alvo porque sua limpeza é essencial para o turismo. Mas há os manguezais e o consumo de crustáceos e moluscos tem um grande papel na dieta da população litorânea. Aí se joga também um jogo mais difícil: limpar os mangues demanda técnica e roupa especial. Ainda assim, é difícil.

Fico pensando num peixe-boi que é acompanhado pela Fundação de Mamíferos Aquáticos. Chama-se Astro e nada agora entre a Praia do Coqueiro e Mangue Seco, na Bahia. Astro é tão tranquilo quanto à presença humana que foi atropelado por barcos 13 vezes. Depois de escapar com vida dessas trombadas, enfrenta um novo momento. O equipamento que o monitora está coberto de óleo. Ele parece que segue bem.

Mas, sem dúvida, a vida no mar, que é o berço da própria vida, tornou-se uma aventura perigosa. O transporte clandestino de combustível é um tema que merece cuidado especial. Tende a produzir desastres.

Inúmeras vezes, entre Boa Vista e Pacaraima, na fronteira com a Venezuela, parei para documentar os destroços de carros incendiados. Em geral eram de pequenos contrabandistas fugindo da polícia.

Não adianta apenas criticar a esquerda e as ONGs que cuidam mais dos biomas que estão na moda. Ou culpar a esquerda, que levou anos para descobrir o verde e possivelmente levará séculos para ver o azul.

O transporte marítimo de petróleo depende de um controle internacional das embarcações. O Brasil foi vítima. Precisa fazer algo, caso contrário as possibilidades de novo desastre aumentam. O oceano que deixaremos para as novas gerações nunca mais será o que encontramos. Mesmo assim, é preciso resistir.

 


Fernando Gabeira: Esqueletos no armário

Ao gritar que Queiroz estava com a mãe do ciclista, Bolsonaro chamou a atenção para os ossos

Correndo de praia em praia, seguindo a mancha de óleo no Nordeste, tive uma noite livre para pensar na política nacional.

Dizem que é nova política. Não sei se tenho condições de entendê-la. Mas o exame da política de sempre é o critério que tenho para analisar esses fatos. Na minha tosca enciclopédia, dois verbetes dariam conta da fúria de Bolsonaro contra um ciclista e a divisão desse estranho partido que é o PSL: esqueletos no armário e racha, entendido aqui como a cisão num grupo partidário.

Esqueletos no armário podem ser cadáveres reais ou mesmo episódios que governos ou partidos querem ocultar porque a transparência, nesse caso, é indesejável. Fabrício Queiroz é um esqueleto no armário. Há muitas formas de tratar disso. Bolsonaro parece ainda inexperiente no assunto. Ao gritar que Queiroz estava com a mãe do ciclista, ele apenas usou a pior tática: chacoalhar os ossos e chamar a atenção de todos para o esqueleto rangendo contra a madeira.

Esqueletos no armário são corrosivos. Os ultrafiéis não se importam, talvez nem acreditem que essas coisas aconteçam nos bastidores. Há um grupo que simplesmente aceita, com o argumento de que o objetivo é maior e que essas coisas acontecem mesmo em todos os partidos.

Mas essa concordância entra em colapso quando o chamado objetivo maior não se realiza. Manter os esqueletos silenciosos no armário é uma tarefa difícil também a longo prazo. Bolsonaro, diga-se a seu favor, não é dos mais brilhantes na tarefa.

Outro tema que me interessou foi a história de um possível racha no PSL. É o partido de Bolsonaro, e ele disse que é preciso esquecê-lo. Disse ainda que o presidente do partido estava queimado para caramba. É um partido que movimenta milhões. E brigas partidárias, apesar de sua natureza diferente, lembram separações conjugais: quem fica com o quê?

No nosso movimento estudantil, os rachas, quando aconteciam, sempre desfechavam uma disputa em torno do mimeógrafo. Bem mais poético que agora.

Não há grandes divergências ideológicas no PSL. Não há correntes de pensamento definidas. São indivíduos e suas carreiras políticas. Se houvesse espaço, avançaria em outro verbete da tosca enciclopédia: as bancadas eleitas pelo populismo. São heterogêneas, compõem-se de gente que expressa proximidade com o líder, repete um ou outro dos seus slogans, e pronto.

Imagine o que acontece quando se injetam milhões de reais num agrupamento com essa consistência política? Não se trata mais de discutir quem fica com o quê, depois de uma divergência ideológica.

Nesse caso, o dinheiro é a própria razão do conflito. Dinheiro público, pois acabou o financiamento privado.

Nos partidos chamados nanicos, o fundo oficial é uma espécie de vaquinha que alimenta os dirigentes, consegue mantê-los com uma renda pessoal. Mas quando a soma é gigantesca, em R$ 350 milhões, como no PSL, é certo que vão se dilacerar para decidir quem gasta o quê, campanhas vão florescer; outras, submergir.

Sempre tive essa intuição sobre a briga atual do PSL. Temia, no entanto, supersimplificar. Afinal, é possível que tenham ideias. Ganhei um pouco de coragem para enunciá-la porque no momento em que perguntaram a Bolsonaro qual era o problema do PSL, ele respondeu: é o tesoureiro.

No tempo em que, diante da complexidade de governar o país, o problema do partido dominante é o tesoureiro, meu tosco arsenal carece de atualização. Faltam categorias. Esperava que o líder populista entrasse em conflito com sua base pantanosa. Pensei em infidelidade partidária, em choque de egos.

O tesoureiro me escapou. Tesoureiros de partidos costumavam ser presos, em tempos de financiamento privado. Agora, são o objeto de desejo.

A nova política não se cansa de me surpreender. Embora se diga defensora de valores tradicionais e prometa uma volta ao passado num mundo que se transformou profundamente, o seu tema central, no fundo, é o mais prosaico: dinheiro.

Aliás, ele é também a causa do ruidoso esqueleto no armário. Não apenas por ofensas ao ciclista. Os ossos rangem estrepitosamente desde o momento em que Toffoli proibiu a cooperação entre receita e órgãos investigativos. É uma espécie de grito: há alguma coisa errada entre nós; logo, suprimam-se as investigações.


Fernando Gabeira: Não há como tirar as crianças da sala

Quem combate Greta ou se assusta com seu tom talvez não tenha ainda uma ideia nítida de como as coisas vão se complicar

Na semana passada, escrevi um artigo sobre o Supremo. As coisas de sempre, bloqueio de investigações financeiras, o flerte com o autoritarismo. Mas, com tanto problema interno no Brasil, deixei de lado algo que talvez possa contribuir: a passagem de Greta Thunberg pela ONU e as reações que ela suscitou no Brasil.

Muitos estranharam o fervor da adolescente. Mas ela vem de uma cultura em que, apesar do grande avanço material, a religião ainda tem um peso. A religião é um dos temas resilientes. Ela nunca desaparece, comunistas e liberais são constantemente apontados como adeptos de uma religião secular.

Isso é secundário diante do agravamento da crise ambiental. Ela não só está produzindo personalidades como Greta, mas influencia também as crianças do mundo inteiro. As praias de Alagoas, depois do vazamento de óleo, foram limpas por crianças de escolas primárias, e seu discurso era bastante consciente da gravidade do problema.

Adultos costumam se irritar com a precocidade política. Esquecem, no entanto, que estão diante de um tema singular, diferente dos outros. Crianças o tomam como seu porque entendem que o próprio destino está em jogo. Têm, portanto, legitimidade.

Há uma diferença entre nós, que muitas vezes fomos chamados de ecochatos, e esta novíssima geração. A tendência nos primórdios do movimento era considerar a luta ambiental como uma atitude ética em relação aos que viriam depois de nós.

O discurso de Greta não enfatiza novas gerações, mas a dela própria. É simultaneamente uma cobrança e uma acusação. Os adolescentes se colocam no centro do drama.

As pessoas que combatem Greta ou se assustam com seu tom talvez não tenham ainda uma ideia nítida de como as coisas vão se complicar. Um exemplo disso é o surgimento de novas organizações, um pouco diferentes do Greenpeace e das outras que conhecemos. São grupos que consideram que o ponto de não retorno na degradação planetária pode ter sido atingido e atuam com a ideia de que há uma emergência.

Tomei conhecimento do programa de uma delas, a Extinction Rebellion, que parece estar crescendo na Inglaterra. Eles propõem a desobediência civil pacífica, mas às vezes a polícia intervém e prende alguns deles. Segundo li em seus folhetos, de um modo geral a relação com a polícia costuma ser tranquila, apesar das detenções.

A mesma civilidade não acontece com os estrangeiros que se aventuram a apoiar a Extinction Rebellion. A polícia inglesa é mais dura com eles. Outros fatores entram em cena.

Interessante o caso brasileiro. No mesmo momento em que a questão ambiental torna-se mais dramática, o país radicaliza sua negação de fenômenos como o aquecimento global.

Esta semana, Bolsonaro disse que os estrangeiros não se interessam pelos índios nem pela porra das árvores, mas pelo minério da Amazônia. É uma tese de fácil aceitação entre as pessoas mais simples.

No discurso de Bolsonaro na ONU ele disse apenas uma vez a palavra biodiversidade, ao referir-se à Amazônia.

A porra das árvores, se as tomamos como um símbolo da biodiversidade, é considerada um recurso invejável, um passaporte para o futuro. Por essa razão, a distância entre a preocupação mundial e as teses brasileiras vai se tornando cada vez mais um abismo.

Supor que tudo o que se passa hoje nesse campo seja apenas uma expressão do marxismo internacional ou mesmo de potenciais exploradores de minério é um gigantesco erro de avaliação.

Não é preciso ter uma visão catastrofista, nem achar que o ponto de não retorno já aconteceu e que o planeta caminha para ser hostil à vida humana.

Basta apenas dar uma chance à realidade, admitir a existência do problema. Isso não significa concordância com qualquer maneira de atacá-lo. Há uma ampla gama de posições disponíveis.

Tratar a biodiversidade como a porra da árvore só traz desalento e leva muitos a pensar que uma parte da humanidade merece os eventos extremos e caminha de forma arrogante para a extinção. Os dinossauros, pelo menos, foram pegos de surpresa. Nem tiveram que ser avisados pelas crianças.


Fernando Gabeira: Todos os poderes do Supremo

A política caiu nas mãos da Justiça. O STF decide pelos parlamentares

Embora não conheça os bastidores e meu trabalho costume ser distante de Brasília, às vezes sou tentado a dar explicações simples sobre esse complexo movimento do Supremo. Toffoli num certo momento, atendendo Flávio Bolsonaro, proibiu o Coaf de passar informações financeiras aos órgãos de investigação. Em seguida, Alexandre de Moraes suspendeu uma investigação do Coaf, na esteira da decisão de Toffoli. Finalmente, Gilmar confirmou a suspensão do processo de Flávio e Queiroz.

A decisão de Toffoli é problemática em si, pois traz prejuízos à luta contra a corrupção e se choca com compromissos internacionais do País. De sua parte, Bolsonaro escanteou o Coaf e o transformou num órgão de inteligência financeira no Banco Central.

Tudo começou com o dinheiro de Fabrício Queiroz e Flávio Bolsonaro. O mínimo que se pode dizer e que é difícil de explicar, senão não haveria tanto empenho em bloquear as investigações. Mas o Coaf numa outra dimensão estava também examinando as contas bancárias da mulher de Toffoli e da de Gilmar. Pobre Coaf: uniu o presidente e dois Poderes contra ele. Sem contar Senado e Câmara, cujos líderes não morrem de amores por quem segue o curso do dinheiro.

Para agravar o problema, surgiu um grupo corrupto na Receita Federal, precisamente em contato com a Lava Jato do Rio de Janeiro. Foi desmantelado nesta semana. Tudo indica que acessou ilegalmente os dados da mulher de Gilmar.

Quando Toffoli proibiu usar dados do Coaf, ainda não se sabia desses crimes dos fiscais, levantados pela própria Lava Jato. E sua decisão repercute em centenas de casos policiais no Brasil, paralisa investigações. A suspeita de corrupção na Polícia Federal, por exemplo, não poderia suspender todas as suas atividades no combate ao crime.

Toffoli criou uma delegacia própria dentro do STF. Alexandre de Moraes funciona como o delegado. Censurou a revista Crusoé, determinou buscas e apreensões na casa das pessoas.

Eles têm um canto próprio de poder e os outros ministros parecem conformar-se. As lamentáveis declarações de Janot serviram para fortalecer esse núcleo e, simultaneamente, revelar seu viés autoritário.

Considero razoável que, depois do que disse, fosse apreendida a arma de Rodrigo Janot. Para evitar recaídas. No entanto, é completamente inexplicável apreender celulares, computadores e tablets na casa do ex-procurador. Não esclarece nada sobre o caso, todavia abre um leque de informações valiosas no jogo do poder.

Da mesma forma, é exagerado proibir que Janot se aproxime de qualquer ministro do Supremo. Não há nenhum indício de que represente perigo para os dez restantes. É supor que Janot encontrasse um ministro e dissesse: não tem o Gilmar, vai você mesmo.

São passos de uma dança velha como a política. A pretexto de combater os métodos autoritários, enveredam pelo caminho que querem combater.

Numa decisão do plenário, o Supremo deu a entender que poderia suspender muitas condenações da Lava Jato. Minha presunção é de ter sido apenas um bode na sala: restringir a anulação da sentença aos casos de quem recorreu.

Apenas uma presunção. O Supremo sabe que não há uma oposição pequena no Congresso e Jair Bolsonaro foi neutralizado pelo flanco aberto no caso de Flávio e Queiroz. A única modulação possível nasce na sociedade, embora algumas manifestações que pedem o fechamento do STF acabem por fortalecê-lo, tal como é. É uma situação complicada e no fundo está em jogo não a extinção da Lava Jato, mas o limite do freio de arrumação.

Se as coisas marcham nesse ritmo, o limite será dado com o fim da prisão em segunda instância. Suponho que esse seja o marco que pretendem atingir.

Não considero surpreendente que Lula tenha desprezado a progressão de sua pena e se recusado a deixar a prisão. Empregou toda a sua energia na tese de que é inocente e nega o processo de corrupção. Por que, agora, sair da cadeia e enfraquecer a própria narrativa? Sobretudo porque no horizonte está a decisão do Supremo sobre a prisão em segunda instância, ou mesmo a suspeição de Sergio Moro. Ele se mostra mais experiente que seus conselheiros.

Num mundo em que as narrativas atropelam as evidências, elas são a matéria-prima do processo eleitoral. Narrativas contra narrativas, as do populismo de direita ou de esquerda continuam sendo as que mais polarizam. Esse confronto é previsível e existe em outros países. O que há de singular é ver como a política caiu nas mãos da Justiça. De um lado, pela incapacidade de resolver no espaço próprio grandes temas nacionais. O Supremo decide pelos parlamentares. Além disso, tanto esquerda como direita têm seus problemas criminais e precisam sempre da boa vontade dos ministros.

Não creio que Toffoli, Gilmar e Moraes queiram o poder apenas para si. Duvido que contestassem o surgimento de outro núcleo, com objetivos próprios e, quem sabe, sua própria delegacia informal. Poderes monocráticos ou mesmo grupais na alta Corte são apenas um reflexo do vazio em torno dela.

O que é possível hoje, e nesse sentido a democracia está de pé, é protestar, mesmo sabendo que são eles que decidem se ouvem ou não. Como disse acima, é uma democracia. Mas não do tipo que você está satisfeito com seu funcionamento.

O processo de redemocratização foi tocado com consensos bastante amplos, como o da luta pelas eleições diretas. Os próprios atores o levaram para um impasse. Vieram a Lava Jato, as delações do fim do mundo.

As eleições eram um caminho para recomeçar. Mas a renovação foi insuficiente no Congresso. E Bolsonaro é um museu de novidades.

O próprio calendário eleitoral pode reanimar a energia renovadora, voltada para as cidades e seus problemas. Ainda assim, o quadro nacional continua inquietante.

É algo que pode ser também retomado com novas batalhas eleitorais. Mas não suprime a questão: o que fazer até lá, como se mover nesse labirinto?

 


Fernando Gabeira: Bolsonaro em Nova York

O presidente ignora o ímpeto das forças que despertou com sua política amazônica. Ninguém o avisou

Bolsonaro deve falar amanhã em Nova York. É o acontecimento da semana, embora as semanas no Brasil surpreendam com frequência.

Escrevi um artigo tentando elaborar sobre o contexto que espera Bolsonaro. No passado não era assim. Os presidentes brasileiros inauguravam a sessão da ONU com discurso protocolar e bocejos na plateia.

Sarney foi criticado por citar um obscuro poeta maranhense em seu discurso. Se o problema agora fosse esse, nem valeria escrever sobre o tema.

Bolsonaro ignora o ímpeto das forças que despertou com sua política amazônica. Ninguém o avisou. Seu chanceler acha que a Nasa não distingue fogueira de queimada. Internamente, estimulou os predadores. Era evidente que o enfraquecimento da fiscalização, a promessa de trazer mineradoras americanas para atuar na Amazônia, tudo isso contribuiu para a frase que estava no ar: da próxima vez o fogo.

Nos Estados Unidos houve quem afirmasse que as queimadas na Amazônia são uma grande ameaça à segurança nacional e devem ser tratadas como armas de destruição massivas.

Macron recuperou, timidamente, o discurso de Mitterrand sobre soberania limitada. Mitterrand a mencionou em dois casos: destruição ambiental e grandes violações dos direitos humanos.

Esse debate aparece pouco no Brasil. Mais concretas são as consequências econômicas. Fundos de pensão estrangeiros, que administram trilhões, exigem uma política de preservação da Amazônia. No meio da semana, a Áustria fez saber que não apoiaria o tratado da Europa com o Mercosul por razões ambientais.

São muitas as oportunidades que o Brasil pode perder se insistir no tom de Bolsonaro. O centro do debate não é a soberania, mas o que o Brasil faz dela numa região específica que interessa ao planeta.

Num contexto tradicional de buscar as melhores vantagens para o país, a Amazônia é dos maiores trunfos para nossa diplomacia. Basta reconhecer como legítima a preocupação internacional, que não é apenas dos líderes mundiais, mas também de seus eleitores.

A partir daí, é possível definir um amplo campo de cooperação. Só não fico aflito porque sei que uma coisa é Bolsonaro e suas redes; outra é o Brasil real. Nove governadores da Amazônia Legal falam pela região e desenvolvem uma política própria. Sabem melhor o que estão fazendo porque conhecem a Amazônia e se preocupam com a sorte de 28 milhões de pessoas que vivem na região.

De uma certa forma, isso acontece também com o Trump nos Estados Unidos. Os governadores que levam a sério as mudanças climáticas desenvolvem uma política própria.

O problema, no caso brasileiro, é que Bolsonaro é um presidente bastante conhecido no exterior. Nova York não se importa tanto com a ONU e os discursos. Mas a imprensa e a televisão certamente vão se interessar. Será uma semana de grandes debates sobre o clima na ONU. Manifestações e tudo mais.

Não sei precisamente o que Bolsonaro falará. Mas, se falar o que pensa, vai escandalizar; se falar o que não pensa, talvez não seja convincente.

Se pelo menos citasse poetas maranhenses. O passivo já é grande. É preciso reconstruir a relação com os europeus, afastar as sempre presentes ameaças de boicote comercial.

Bolsonaro vê a Amazônia com os olhos dos fazendeiros que o apoiam. Critica os fiscais e ignora um campo em que precisa crescer: o combate à biopirataria.

O centro da tragédia de sua política amazônica é subestimar o conhecimento que a floresta pode produzir e o já acumulado pelos seus habitantes. No Pará existe um homem que cria cobras e vende seu veneno para a indústria farmacêutica. Ganha bem, e o veneno tem inúmeras utilidades medicinais.

Novas espécies são identificadas pelos pesquisadores, às vezes cinco por semana.

O conhecimento da Amazônia é o instrumento estratégico que o Brasil precisa manobrar, definindo a cooperação estrangeira, direitos autorais de povos da floresta, enfim exercendo sua soberania nos fatos onde realmente ela interessa, e não em discursos para entusiasmar eleitores, cada vez menos entusiastas, cada vez mais envoltos nas brigas internas.

Quando não há horizontes, a sensação é de naufrágio, que, aliás, se define mesmo como a perda do horizonte.


Fernando Gabeira: Soberania em Nova York

Discursos de presidentes brasileiros são ouvidos com frieza na ONU. Bolsonaro será exceção

Os discursos de presidentes brasileiros são ouvidos com frieza na ONU. É a abertura da sessão, quase uma formalidade. O de Bolsonaro tende a ser uma exceção. Não por suas qualidades oratórias, mas pelas circunstâncias que o cercam.

Leio que o tom do discurso será conciliatório, com ênfase na defesa da soberania. Um tom conciliador é sempre bem recebido. O próprio conceito de soberania nacional, embora definido há séculos por Jean Bodin, foi ratificado no pós-guerra pela ONU ao reconhecer o direito de autodeterminação dos povos.

Em termos diplomáticos, Bolsonaro tem dito barbaridades, se consideramos que fala pelo País. Zombou da mulher de Macron, ironizou a Alemanha, criticou a Noruega e defendeu a ditadura de Augusto Pinochet. Pesa contra ele, também, sua desconfiança da ONU e de instrumentos internacionais, incluídos os que trabalham com as mudanças climáticas.

Embora outros biomas, como o Cerrado e o Pantanal, estejam igualmente em chamas, a questão da Amazônia é a mais importante. O exercício da soberania nacional sobre um governo que administra uma extensa área indispensável ao planeta coloca inúmeras questões.

Como se vê a soberania no Brasil? É um debate que existe também nos EUA. Nele, ambas as partes defendem a soberania. Mas uma delas a vê fortalecida com a cooperação internacional e a outra, com o isolacionismo. Como Bolsonaro navegará entre esses polos não sei exatamente.

O conceito puro de soberania vem sendo questionado. Lembro-me da primeira menção a esse questionamento numa conferência na Holanda. Já naquele momento Mitterrand experimentava a expressão soberania limitada, aplicável em pelo menos dois setores: a destruição do meio ambiente e o desrespeito maciço dos direitos humanos.

Agora, no cenário norte-americano, vejo uma nova forma de questionar a soberania. Enquanto alguns senadores falavam em boicote comercial, alguns articulistas e acadêmicos afirmaram que a destruição da Amazônia é um ataque à segurança nacional dos EUA. Um deles afirmou que as queimadas podem ser vistas como arma de destruição em massa.

Tudo isso se dá no campo democrático. Mas é o que vai disputar as eleições com Trump e, segundo as pesquisas, com chances de vitória, embora seja muito cedo para falar disso.

Aos poucos, a questão não é mais o conceito de soberania a ser questionado, mas posto contra outro de grande alcance nos EUA: a segurança nacional.

A expressão arma de destruição em massa certamente é um cálculo sobre os prejuízos humanos e ambientais. Pode-se discordar da análise. Mas o fato é que se trata de uma expressão perigosa, o Iraque que o diga. Com ou sem armas de destruição em massa, Saddam Hussein foi para o espaço.

Bolsonaro já é uma espécie de vilão na imprensa internacional. Trabalhou para isso e parece não se importar muito com as consequências para a imagem do Brasil. Afinal, os estrangeiros não votam.

A julgar pelas intervenções do ministro Ernesto Araújo, o tom será de negação das mudanças climáticas, inexistentes ou exageradas. Segundo ele, a Nasa não consegue distinguir uma queimada de uma fogueira. Seus sensores devem pirar no Nordeste com as festas juninas.

Li que Araújo será o principal formulador do discurso. Li, também, que Araújo consultou Steve Bannon para se inspirar. Bannon certamente vai querer fortalecer uma coalizão de extrema direita da Hungria ao Brasil, passando por partidos como o de Marine Le Pen, na França, e pela extrema direita latino-americana. Se isso transparecer no discurso de Bolsonaro, será um contrabando, uma vez que o partido de Bolsonaro pode ser de extrema direita, mas a política nacional, não. É a mesma cantilena do passado, a dificuldade no governo do PT de levar uma política internacional diferente da visão partidária.

Esta passagem por Nova York, embora breve, é um teste para Bolsonaro, com repercussões em nossa vida política. Ele já pensou em visitar a cidade em outras circunstâncias. Numa delas, iria ao Museu de História Natural, onde seria homenageado. Foi rejeitado.

Imagino que as pessoas em Nova York não se importem muito com o que acontece na ONU nem se interessam pelos discursos que se fazem ali. Mas desta vez, creio, a presença de Bolsonaro falando como presidente do Brasil interessa aos jornais e à televisão. Impossível prever um desfecho, mas dentro dos limites é possível elaborar sobre o contexto em que esta fala de Bolsonaro se coloca.

Lembro-me das críticas a Sarney por citar um obscuro poeta maranhense no seu discurso na ONU. Pecado venial, mesmo porque não estavam prestando tanta atenção assim a um discurso protocolar. Os tempos de terraplanismo, negação do aquecimento global, da diversidade da culturas – enfim, tantas armadilhas – podem nos fazer sentir saudades dos tempos em que o único reparo era o nome de um poeta maranhense.

Um caminho que me parece correto seria reconhecer a legitimidade da preocupação internacional com a Amazônia, e não descartá-la apenas denunciando interesses escusos. Outro passo seria contar com a cooperação de outros países para preservá-la de forma sustentável e inclusiva.

Não há contradição entre cooperação multilateral e soberania, desde que os objetivos sejam idênticos: manter a floresta em pé, recompor parte dela, explorar seus recursos de forma sustentável, melhorar as condições de 28 milhões de pessoas em nove Estados do País.

Esta me parece ser a posição de todos os governadores da Amazônia Legal. Falando em nome do Brasil, Bolsonaro não pode ignorá-la. E teria de defendê-la de forma bastante convincente, pois todos os olhos e ouvidos são conhecedores de sua biografia política.

Estarão esperando um lance para reconhecerem o Bolsonaro que têm na cabeça. Seria preciso que desaparecesse por trás de um discurso sensato. Mas tenho minhas dúvidas.


Fernando Gabeira: A saga dos talibãs tropicais

Se os gays desaparecessem do mundo, Crivella ficaria amuado, sem um tema

Liberdade de expressão e democracia ocuparam grande parte da agenda da semana. Volto a elas porque, nesses casos, o tema nunca é antigo. E volto também porque talvez minha experiência possa acrescentar algo. Refiro-me à decisão de Crivella de censurar o beijo gay num dos livros da Bienal.

Eu o conheço um pouco. Em 2008, quando começava a campanha eleitoral, éramos candidatos. Ele me criticou por apoiar a relação de homem com homem. Respondi apenas que isso não era o mais interessante para mim naquele momento. Vivíamos uma epidemia de dengue, como hoje vivemos, e o que me interessava era a relação do homem com o mosquito.

Crivella está de novo no limiar de uma campanha eleitoral. É hora de tirar o tema do homossexualismo da cartola e tentar agrupar sua tropa de fiéis eleitores. Nada mais que isso. Agora não é apenas candidato. É o prefeito do Rio. Não é ingênuo a ponto de ignorar que sua ação vai promover a venda do livro alvo de sua cruzada.

Para ele, isso não tem muito importância. Não quer verdadeiramente combater o homossexualismo, mas agrupar alguns votos. Se os gays desaparecessem do mundo, ele ficaria amuado no seu canto, sem um tema para aquecer a campanha.

Foi muito animador ver a reação dos artistas e a pronta resposta do STF. Definiu-se um limite que dificilmente será transposto no Brasil, sem destruir também as bases da democracia.

No passado foi diferente. A batalha contra a censura do filme “Je vous salue, Marie”, de Jean-Luc Goddard, foi mais difícil porque aconteceu no auge de um plano econômico.

Sarney não tinha razão para temer. O filme, que exibi como um ato de desobediência em inúmeros lugares, se fosse às salas de cinema não iria durar mais do que dois dias, por falta de público.

Aqui na atmosfera da fronteira norte, diante da reação nacional a Crivella, sou mais otimista em considerar improvável uma teocracia puritana, do tipo do Irã, no país.

Na esteira do Crivella veio o post de Carlos Bolsonaro dizendo que a democracia era um instrumento limitado para mudar o país. De fato, seria possível concordar com ele, pois num contexto revolucionário, sem as formalidades legais, os governos podem andar mais rapidamente.

Mas cada vez que se enuncia uma tese desse gênero, é fundamental lembrar que a democracia é lenta, diria até sinuosa, mas a alternativa a ela tem um preço: a perda da liberdade.

Quanto à eficácia das mudanças revolucionárias, também sou cético. O socialismo, segundo alguns teóricos, fracassou simplesmente porque, ao liquidar o mercado, perdeu a chance de ter uma real política de preços. Todas as ditaduras, inclusive as de direita, mergulham em zonas nebulosas, perdem a noção do país real.

Os filhos de Bolsonaro são filhos do presidente, que, por sua vez, diz muitas frases inadequadas. Um deles, Eduardo, falou no fechamento do STF com um cabo e um soldado. O mais velho, Flávio, está mudando o curso da política brasileira por suas possíveis ligações com as milícias. O Coaf já mudou, Bolsonaro escolheu um procurador-geral sob medida e procura detonar a PF.

Tanto as ações de Crivella como as frases da família Bolsonaro podem ser um balão de ensaio para testar a resistência democrática da sociedade. Nunca é demais voltar ao assunto, lembrar-se dele na próxima Bienal, onde quer que escritores e artistas se reúnam. É essencial também que os políticos se manifestem quando a democracia parece estar em jogo.

Quando os artistas se expressam por alguma questão social, ou mesmo pela sobrevivência da Floresta Amazônica, sofrem muitas críticas por estarem tratando de “algo que não lhes diz respeito”. No caso da liberdade de expressão, o tema é direto, sua própria sobrevivência está em jogo. Eles devem gritar mais ainda do que gritaram e, sinceramente, deveriam se preparar para isso.

Os Bolsonaros testam a sociedade. Não basta responder apenas a cada frase. É necessário que se comece a trabalhar uma frente, imune à instrumentalização da esquerda, mas que tenha muito claro os limites que não podem ser transpostos sem que a democracia entre em colapso. A liberdade de expressão é um desses marcos. O outro é escolher livremente nossos governantes e poder descartá-los de quatro em quatro anos. Os dois marcos se entrelaçam. A família Bolsonaro é livre para dizer absurdos; defensores de um Brasil tolerante e democrático, livres para empurrá-los ao ostracismo ou à dimensão real da extrema direita.


Fernando Gabeira: Máscaras que caem

Quando eleitores se derem conta de que a luta de Bolsonaro contra a corrupção era da boca pra fora, seu prestígio vai desabar mais

Há duas semanas, escrevi um artigo sobre o desmonte da Lava-Jato. A tese era esta: os três Poderes investiam contra ela: STF, Congresso e Bolsonaro. Isso sem contar o desgaste produzido pelo vazamento no site The Intercept.

O ataque mais vigoroso partiu do presidente do Supremo, Dias Toffoli. Ele proibiu o Coaf de compartilhar dados com os órgãos de investigação, exceto em casos em que a Justiça autorize. Recebeu o apoio de Bolsonaro, porque sua decisão foi tomada precisamente para atender a um recurso de Flávio Bolsonaro, investigado a partir da movimentação atípica de seu funcionário Fabrício Queiroz. O Supremo voltaria a atacar, anulando a condenação do ex-presidente do BB e da Petrobras Aldemir Bendine.

Na trincheira do Congresso, foi votada a lei de abuso de autoridade. É uma lei que contém artigos abstratos como, por exemplo, o que pune prisões sem base legal. É um problema de interpretação. Se faltar base legal a uma prisão, as instâncias superiores a suspendem. Por que criminalizar o juiz que considerou haver base legal?

Os 36 vetos de Bolsonaro indicam o nível de discordância da lei de abuso. Mas os vetos não atenuam seu apoio a Toffoli e as consequentes mudanças que realizou no Coaf.

O problema central são investigações sobre dinheiro. Elas não envolveram apenas Flávio Bolsonaro, mas também as mulheres de Toffoli e Gilmar Mendes. O título do meu artigo era “Desmonte em família”.

Reconheço agora que faltou um elo nessa corrente que, talvez, não queira acabar com a Lava-Jato, por causa da repercussão negativa, mas apenas neutralizá-la, impedir que chegue a alguns recantos do poder. Esse elo é a própria Procuradoria. Parece que Raquel Dodge se sentou em cima de alguns processos, e a renúncia coletiva dos procuradores é uma veemente denúncia dessa cumplicidade dela com o esquema de desmonte.

O conflito entre ela e procuradores surgiu na delação do empreiteiro Léo Pinheiro, da OAS. Ela retirou as partes que atingiam o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, e o irmão de Toffoli, ex-prefeito de Marília, São Paulo.

De novo, a família de Toffoli na parada. Ao suspender as investigações com base no Coaf, ele protegeu Flávio Bolsonaro, a mulher de Gilmar e a dele próprio. Agora é seu irmão que entra na cena do desmonte.

Dizem alguns jornais que Toffoli e Maia faziam campanha para Raquel Dodge continuar no cargo. Bolsonaro não aceitou essa alternativa.

Ele quis alguém em quem pudesse confiar. Mesmo que seu escolhido tenha a oposição dos procuradores, é preciso alguém que engavete processos embaraçosos e seja duro com as minorias.

Não há nenhuma surpresa na hostilidade de Bolsonaro às bandeiras que abominava desde a campanha. A novidade é ter se integrado ao esquema que quer desmontar a Lava-Jato. Seus defensores acham que colocar Bolsonaro nessa aliança para subjugar a Receita, a PF e procuradores é má-fé ou desinformação.

As evidências estão aí. Já me acostumei com ardorosos defensores de populistas se recusarem a encarar os fatos, refugiando-se numa narrativa paranoica para justificar o seu ídolo.

Bolsonaro cai nas pesquisas, muito pelas frases que diz, por não se conformar, às vezes, em apenas ter uma opinião sobre um tema: quer também desenterrar mortos para brigar com eles.

Quando os eleitores se derem conta de que sua luta contra a corrupção era apenas da boca pra fora, o prestígio vai desabar mais ainda. Talvez isso se torne nítido quando perceberem que investe contra Moro, que por sua vez se finge de morto. Moro é popular, conquistou admiração externa, quer eficácia no combate ao crime.

Quando ondas de desencanto batem sobre os grandes esquemas políticos, todos podem ser atingidos. Boas ou más intenções, planos de carreira, avanço no combate ao crime são variáveis que talvez não compensem o desgaste.

Na verdade, em termos internacionais o desgaste é mais acelerado ainda. Uma das últimas de Bolsonaro foi defender Augusto Pinochet, considerado um violento ditador por grande parte do mundo. Basta ler a imprensa chilena para ver como foi sentida a acusação de Bolsonaro contra o pai da alta comissária de Direitos Humanos da ONU, Michelle Bachelet.

A repercussão das falas de Bolsonaro, desde aquele fatídico post sobre o golden shower, traz uma avalanche de comentários negativos. Às vezes, num deles aparece esta frase: deve ser difícil para os brasileiros. Tem sido. A frase pressupõe também que muitos discordam, e, felizmente, as pesquisas comprovam isso.


Fernando Gabeira: Isso passa

Trump e Bolsonaro são fenômenos novos, mas suas sociedades podem torná-los passageiros

As pesquisas sobre a atuação do presidente Jair Bolsonaro mostram claramente que o nível de expectativa em torno de um presidente é mais alto do que se supõe.

Bolsonaro não acredita em pesquisas. Ele acha que sabe o caminho, não se importa muito com o que acontece na realidade. Navega com otimismo sobre a economia com base, sobretudo, na reforma da Previdência. Ignora, talvez, que seus frutos demoram. E que o momento é muito delicado.

Lendo a história da renúncia de James Mattis, secretário da Defesa de Donald Trump, sinto que é possível estabelecer um paralelo com a figura de Bolsonaro. Mattis é um general da Marinha, o mais respeitado dos Estados Unidos. Discordava de Trump e de sua política de afastamento de alianças tradicionais.

Trump disse que Mattis estava parecendo democrata e que entendia da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) mais do que seu secretário da Defesa. Acontece que Mattis já foi o chefe supremo das forças da Otan.

Mattis teria dito a amigos que Trump tem dificuldades cognitivas. Mas talvez uma causa dessa dificuldade seja exatamente supor que saiba o que não estudou, não ouviu.

Para Mattis, o modelo é George Washington, para quem era necessário ouvir, aprender, ajudar e, depois, liderar. Na verdade, esse modelo de certa forma prevalece até a ascensão de líderes populistas. Hoje está em frangalhos, tanto aqui como nos EUA.

Bolsonaro anunciou que pretende anistiar os autores dos massacres do Carandiru e de Carajás. Vai se chocar com a lei. É um ato simbólico, pois há poucos presos.

No entanto, isso vai afundar mais a imagem do Brasil no exterior. Não porque as pessoas sejam defensoras ardorosas de direitos humanos, ou mesmo de esquerda ou de direita. É porque um marco civilizatório é rompido, entramos na fronteira da barbárie.

Segurança jurídica não significa licença para matar. De que adiantam a lei e o júri, se o presidente anistia?

Bolsonaro não vai mudar. Tenho lido notas em que ministros dizem que ele é assim mesmo, uma pessoa que diz o que pensa. Alguns afirmam que a economia está deslanchando e frases ditas aqui e ali não têm importância. Ignoram o peso dessas frases na própria economia. E seguem no barco.

Mattis percebeu que era impossível manter a política de alianças dos Estados Unidos e simplesmente caiu fora. Não queria legitimar uma política que, apesar das aparências, enfraquecia o seu país.

Aqui, o governo marcha coeso para o isolamento. E escolheu, agora, a Amazônia como tema e a Igreja Católica como adversária.

O sínodo sobre a Amazônia traria como grande novidade a permissão para que padres casados atuassem na região. Mas o governo quer manter o foco em sua política ambiental, neste momento em que as chamas consomem parte da floresta.

A tese da ameaça à soberania pressupõe que a Europa não acredita no aquecimento global e viria explorar os recursos minerais da Região Amazônica. São bilhões de euros investidos numa economia de baixo carbono, dificilmente seu projeto estratégico seria liberar carbono na Amazônia. Seria execrado pelos eleitores.

Verdade é que Emmanuel Macron, presidente da França, em certo momento autorizou a exploração de ouro na Guiana Francesa, mas recuou diante da resistência local.

A formulação brasileira sobre o desenvolvimento da Amazônia prevê que seja sustentável e inclusivo. Isso poderia perfeitamente ser feito com a cooperação internacional, sem perda de soberania.

No momento, fala-se em mineração, avanço sobre as terras indígenas. E o fogo das queimadas revela também o efeito de um intenso desmatamento.

O Brasil é soberano para adotar uma política de devastação da Amazônia. Mas haverá consequências, internas e externas. Não me parece razoável que os defensores de outro modelo sejam considerados adversários da soberania nacional.

Vamos enfrentar a realidade. Não se questiona a soberania, mas precisamente o que o governo está fazendo dela, como a exerce na prática. Trata-se de um processo difícil, porque a tese da soberania desconfia de pesquisadores, cientistas, e os remete para o outro lado da trincheira.

Voltamos à questão da dificuldade cognitiva na sua plenitude. É uma soberania que dispensa o conhecimento como uma das suas ferramentas. Ela se exerce na doutrina.

O mundo mudou e é impressionante como o exercício mais comum no debate amazônico é apontar interesses ocultos dos atores. A Amazônia tem mesmo sua importância para o mundo numa era em que se expandiu a preocupação ambiental – mas tudo isso fica em segundo plano. Se o Brasil levasse em conta essa realidade como um dos pontos centrais de sua posição no mundo, as coisas seriam bem melhores.

Mas não são.

O fato positivo é que as pessoas percebem, por diversas razões, que não estamos num bom caminho. Esse dado valida a tese de que é importante sempre apontar os erros sem buscar conflitos, pois é exatamente esse o estilo que favorece tanto Trump como Bolsonaro. E, enfim, acreditar na inteligência popular e no seu aprendizado, na possibilidade de as maiorias mais tolerantes retomarem as rédeas do País.

Há conservadores que dizem que a política é a arte de confortar as pessoas diante da desolação do real. O estilo de Trump e de Bolsonaro vai na direção oposta: tornar o real insuportável. São fenômenos novos, mas que as duas sociedades têm condições de tornar passageiros.

Aliás, para dizer a verdade, esta é uma frase que tenho ouvido com frequência, sobretudo entre pesquisadores e cientistas que sabem o valor do conhecimento: “Isso passa”.

E nem sempre essa frase conota resignação. Ao contrário, anima.

 


Fernando Gabeira: Cabeça fria, apesar das chamas

O caminho é mostrar a importância da floresta em pé, pelos serviços ambientais e pela riqueza da biodiversidade

Estou na Amazônia para mais uma viagem de aprendizado na região. Ela é vastíssima, e minha capacidade de aprender é lenta e sinuosa. A floresta tem cem mil espécies animais, 43 mil vegetais. As queimadas devem arder até outubro, a julgar pela experiência dos últimos anos.

Os ânimos parecem ter se acalmado. Angela Merkel deu o tom no G7 ao afirmar que é preciso fazer alguma coisa, sem dar a impressão de ser contra Bolsonaro.

Não se trata de um exercício de psicologia individual. Merkel é uma estadista, tem objetivos maiores, lida com pessoas complicadas como Trump. Percebeu talvez que Trump e Bolsonaro são frutos de uma época e que não podem ser tratados com os mesmos critérios do passado.

Bolsonaro anunciou que apresentaria uma política para a Amazônia. Mas, até o momento, afirmou apenas, em reunião com governadores, que era preciso explorar as terras indígenas.

Essa história de Bolsonaro com os índios brasileiros esbarra na Constituição. Para avançar sobre a superfície, precisa de emenda constitucional, e para avançar no subsolo indígena é necessária uma lei complementar, que Romero Jucá não conseguiu aprovar ao longo desses anos.

Algumas repercussões negativas ainda estão no horizonte: fundos suecos planejam deixar de investir no Brasil, compradores de couro, como a Timberland, querem se fechar para a nossa produção.

Importante lembrar que boicotes e sanções contra governos —pelo menos é a impressão que tenho ao longo dos anos que acompanhei — atingem as pessoas comuns e acabam fortalecendo os próprios governos visados.

As pessoas vivem grandes paixões políticas. O único caminho é mostrar a importância da floresta em pé, pelos seus serviços ambientais e pela riqueza de sua biodiversidade. Nada contra ninguém, é apenas prioritário divulgar o conhecimento científico sobre a floresta, os serviços ambientais que presta na regulação do clima, na segurança hidrológica, na captura do carbono.

No meio da semana, visitei o mercado Ver-o-Peso. É impressionante como convergem para ele os diferentes produtos amazônicos. Há 80 barracas de ervas medicinais e perfumes. Essas propriedades não são ainda comprovadas cientificamente. Mas a verdade é que a floresta e a sabedoria tradicional encontram um caminho suplementar para atenuar sofrimento e oferecer cuidados que nem o SUS pode oferecer.

O Itamaraty seguiu um novo rumo ao cobrar, no contexto do Acordo de Paris, o pagamento pela captura do carbono, já previsto. É muito melhor que pedir ajuda em horas difíceis. Não que a ajuda deva ser rejeitada. Mas, pensando bem nas dimensões do problema, 20 milhões de euros é o preço de dois apartamentos de luxo em Paris.

O importante é buscar os caminhos previstos no acordo. O governo Bolsonaro acha que o aquecimento global é uma invenção do globalismo marxista. É um pouco contraditório apoiar-se num acordo internacional de redução de emissões, considerando-a uma tarefa desnecessária.

Mas Bolsonaro decidiu continuar no Acordo de Paris. Por que não buscar também os benefícios que oferece? Um pouco de incoerência não faz mal a ninguém. Trump também não acredita no aquecimento global. Mas quer comprar a Groenlândia porque a região se tornará mais explorável com a temperatura em ascensão.

Existe hoje uma hostilidade populista às descobertas da ciência. No entanto, o caminho do conhecimento e da informação é essencial. Mesmo porque a maioria dos corações já deseja a floresta em pé. As manifestações no mundo inteiro demonstram isso. Mas revelam ainda pouca informação.

Os políticos brasileiros viajam muito para o exterior. Mas muito pouco para a Amazônia. A própria imprensa internacional é muito centrada em conflitos e pouco em universos ainda desconhecidos.

A sociedade brasileira está diante de um desafio. Certas escolhas, como já mostrou em livro Jared Diamond, podem selar o êxito ou o fracasso de um país.

A ideia básica é desenvolver a Amazônia de forma sustentável e inclusiva. O fato de não termos ainda conseguido esse objetivo não pode significar que é um erro.

Na verdade, isto está expresso em todos os planos regionais que o país destinou à Amazônia.

Bolsonaro acha que as pessoas o seguem em tudo. Não acredita nas pesquisas.