Fernando Gabeira
Fernando Gabeira: Uma guerra particular
Simpatizantes de Bolsonaro frequentaram boas escolas e não fecharam suas cabeças para sempre. Podem mudar no futuro
Me segura que vou ter um troço. Esta é uma frase cômica, talvez muito vulgar para um tema clássico como a política externa de um país. No entanto, ela me parece adequada para definir os passos de Bolsonaro neste primeiro ano de governo.
Ele começou questionando a relação com a China, o nosso maior parceiro comercial. Os chineses não podem comprar o Brasil, dizia. Com o tempo, a turma do deixa-disso o convenceu de que as relações com a China são necessárias. Os próprios chineses, do alto de muitos séculos de experiência, estavam tranquilos. Hoje, Bolsonaro já fala de um futuro comum com a China.
Bolsonaro resolveu transferir a embaixada do Brasil em Israel para Jerusalém. De novo, a turma do deixa-disso o convenceu de que não era oportuno. O filho Eduardo insiste na tese. Isto indica, pelo menos, que na próxima geração de Bolsonaros no poder a transferência pode ocorrer. Isso leva tempo e depende das urnas.
Bolsonaro disse a Trump que o ama. Sua ideia era se alinhar totalmente com os Estados Unidos. De novo, a turma do deixa-disso alertou: calma, é preciso se aproximar sim, mas com cautela.
Ele achou que os Estados Unidos indicariam o Brasil para a OCDE. Pensava que isto viria de uma hora para outra. Os americanos indicaram a Argentina, pois já tinham compromisso anterior com o vizinho. Trump vai cumprir a promessa. Mas no seu tempo. Por enquanto, fala em taxar aço e alumínio do Brasil sem, ao menos, telefonar para Bolsonaro.
Por falar em Argentina, Bolsonaro criticou a escolha popular e disse que aquilo iria se tornar uma nova Venezuela. Resolveu que não iria à posse de Alberto Fernández. Em seguida, designou um ministro. Voltou atrás e disse que não iria mais ninguém. De novo, a turma do deixa-disso entrou em campo. Bolsonaro atenuou seu discurso e resolveu enviar o vice, general Mourão.
Nem sempre foi possível segurar Bolsonaro. Às vezes, ele teve um troço, como no momento em que divulgou o vídeo do golden shower. Sua ideia era mostrar como o mundo estava perdido.
Bolsonaro de novo teve um troço quando foi criticado por Macron e ofendeu Brigitte, a mulher do presidente francês.
No campo da política ambiental, aí sim não foi possível contê-lo. Ele não consegue entender a preocupação mundial com a Amazônia, muito menos com o aquecimento do planeta.
Mesmo contido em vários momentos, continuou tendo um troço, dessa vez acusando Leonardo DiCaprio de financiar as queimadas na Amazônia. Em seguida, investiu contra Greta Thunberg: pirralha, pirralha.
Bolsonaro não entende a influência crescente da juventude. Ainda mais quando é encarnado por meninas. Ele mesmo disse que fraquejou quando fez a filha, depois de tantos varões na família.
Ele no momento ainda tem o apoio de 30% dos brasileiros. Este índice é dinâmico, pode cair.
Mas a verdade é que muita gente como ele duvida do aquecimento global, questiona o papel das ONGs e acha Greta uma pirralha que deveria estar estudando.
Bolsonaro não é um relâmpago em céu azul. Nem simples produto da ignorância, pois seus simpatizantes frequentaram boas escolas. Isto não significa que fecharam suas cabeças para sempre. Podem mudar no futuro.
Por enquanto, não há outro caminho, exceto segurar para que Bolsonaro não tenha um troço. Em termos domésticos, tem sido mais difícil. Foi preciso a intervenção da Justiça para evitar que nomeasse um diretor da Fundação Palmares simpático à escravidão.
Além da Justiça, o próprio Congresso tem de segurar Bolsonaro: supressão de radares nas estradas, mineração em terras indígenas, ataques à ciência, ele vive tendo um troço.
Sexta-feira passada foi o 13 de dezembro. Felizmente, o ano termina sem que consigam ter o grande troço, aquilo que ameaçam constantemente nas entrevistas: um AI-5.
Foi um ano duro para todos os seguradores no Brasil, inclusive a imprensa, que sofreu alguns solavancos para evitar os troços. No entanto, chegamos ao final de 2019 sem grandes sobressaltos. E com muito mais experiência para a nova temporada. Creio que isto é uma forma modesta de dizer Feliz Ano Novo.
Fernando Gabeira: Um ano pela extrema direita
O governo Bolsonaro é tosco e despreparado para a complexidade do Brasil e do mundo
Hoje, 13 de dezembro de 2019, até que aqui tudo bem. Em termos, quero dizer. Não decretaram o AI-5 nem massas se revoltaram, como no Chile, apesar dos apelos. O drama se fragmenta em morte de adolescentes em Paraisópolis e assassinato de índios guajajaras no Maranhão.
As pessoas compram presentes e se preparam para o Natal, como o fizeram em dezembro de 1968. E os articulistas fazem o balanço de 2019.
Há muitas formas de analisar o primeiro ano de Bolsonaro no poder. Os mais otimistas veem a economia se recuperando, saúdam a redução dos índices de criminalidade, aprovam a gestão na infraestrutura. Não são apenas essas variáveis que definem o País. Se olhamos de fora para dentro, veremos que o prestígio internacional do Brasil caiu, embora não tenha ainda atingido os negócios.
Bolsonaro começou duvidando da relação com a China. Disse algumas coisas atravessadas, como os chineses comprando o Brasil, mas a resposta de lá foi tranquila. Trabalham com projetos de longo prazo, não se importam muito com os arroubos de estreantes. Agora, no final do ano, Bolsonaro afirmou que serão positivas as relações futuras Brasil-China e os dois países até já anunciam o lançamento de um satélite.
Bolsonaro começou amando Trump. Reaproximou o Brasil dos EUA e sempre esperou muito desse romance. Ao não ser indicado para a OCDE pelos EUA, houve um certo desencanto. Mas a verdade é que o próprio governo brasileiro superestimou a promessa. Não era imediata: a Argentina estava na frente.
Outro grande desencanto veio com o anúncio de Trump de taxar o aço e o alumínio do Brasil. A decisão econômica não é das mais interessantes para os americanos, apesar de seu pequeno valor eleitoral. Mas não foi tanto pela economia que Trump desencantou os admiradores locais, ele acusou, injustamente, o Brasil de manipular o câmbio, e nem se deu ao trabalho de ligar antes para Bolsonaro.
O olhar de fora para dentro, focado nas ideias presidenciais, revela Bolsonaro em toda a sua fragilidade. Para começar, aquele episódio do golden shower foi só um ensaio pelo lado selvagem do governo. Muitos outros tropeços iriam sacudir nossa imagem e desaguar no recorde de 37 denúncias contra o Brasil na ONU.
A questão ambiental foi decisiva. Bolsonaro foi eleito e começou o ano denunciando indústria de multas e combatendo a fiscalização na Amazônia. Aliás, o fiscal que o multou na Reserva de Tamoios, em Angra dos Reis, foi demitido. Mas tudo o que dizia sobre meio ambiente acabou se tornando mais dramático nas queimadas da Amazônia. Ali, confrontado com a crítica internacional, em muitos momentos derrapou. Um deles foi insultar Brigitte Macron, a mulher do presidente da França.
O longo e preocupante vazamento de óleo nas praia do Nordeste pode ter-lhe dado uma rápida trégua em termos internacionais, mas a demora em agir e o aparente distanciamento de Bolsonaro acabaram por aumentar a desconfiança dos brasileiros.
Ao deixar o ringue do confronto entre presidentes, Bolsonaro voltou-se para o show business e escolheu Leonardo DiCaprio como rival, acusando-o de financiar as queimadas na Amazônia.
Nestes dias de dezembro, pelo menos esqueceu-se de assinar o AI-5 para se dedicar a combater Greta Thunberg, a adolescente sueca: pirralha, pirralha.
Houve quem achasse semelhanças entre Hugo Chávez e Bolsonaro. Mas este parece habitar um outro mundo: o programa de TV Chaves.
Visto de dentro, Bolsonaro leva uma guerra cultural que é uma extensão de seu combate externo contra os defensores do meio ambiente. Ele comanda um governo da pós-verdade. Jesus sobe na goiabeira, Theodor Adorno fazia as letras para os Beatles, o rock leva ao aborto, que, por sua vez, leva ao satanismo, e o responsável pela política teatral ofende um símbolo de nossa cultura, Fernanda Montenegro. Não bastasse, o novo presidente da Fundação Palmares vê com bons olhos a escravidão e acha que o Movimento Negro deveria acabar. A luta cultural tornou-se um vale-tudo, com golpes abaixo da cintura das mínimas evidências: o governo adota a pós-verdade.
Tudo isso também funciona como manobra para esconder o fracasso de Bolsonaro em conduzir a bandeira da anticorrupção, que lhe deu tantos votos. As denúncias sobre o laranjal do PSL e, sobretudo, o episódio de rachadinha envolvendo seu filho Flávio o levaram à defensiva nesse campo.
O partido de Bolsonaro esfacelou-se neste ano. Como descreveu Rodrigo Maia, todos nus querendo matar uns aos outros. O que parecia um movimento conservador disposto a recuperar uma certa dignidade da política se tornou uma troca de insultos, rebaixando-a a um inédito nível de grosseria.
Bolsonaro termina o ano com 30% de aprovação. Comparado com outros presidentes, sua rejeição é a maior no primeiro ano. Alguns analistas afirmam que ele manteve sua base. Mas, evidentemente, ela se estreitou. E esses índices são dinâmicos. Outros afirmam também que o Brasil é conservador, mas se esquecem de que está sendo conduzido por uma política de extrema direita. Num país profundamente influenciado pela cultura africana, marcado pela escravidão, até o mais simplório dos políticos percebe a tendência suicida do bolsonarismo.
Neste momento, a esquerda está perdida no seu labirinto. Mas um progressivo isolamento da extrema direita abre chance de ser contestada pelo centro ou pela própria direita mais moderada.
O ano acaba, outro começa. Visto de fora, o governo Bolsonaro não tem mistérios: é tosco e despreparado para a complexidade do País e do mundo.
Aqui dentro, como jogam muitos outros fatores, os mistérios se desfazem mais lentamente. Que vengan los toros de 2020. Em 13 de dezembro veremos quem e como politicamente sobreviveu.
*Jornalista
Fernando Gabeira: A pós-verdade no poder
Dizer que a escravidão foi boa para os negros é um título de loucura que você não apenas pode como deve contrariar
Minha formação cultural se deu principalmente no século XX recheado de rocambolescas teorias revolucionárias. De um modo geral, eram apostas no futuro, uma inconsciente reconstrução do paraíso. Se há algo no século XXI para o qual custo a encontrar o tom adequado de lidar é esse período de pós-verdade, em que as evidências científicas ou não são atropeladas por narrativas grotescas.
O intelectual francês Bruno Latour considera que esse período foi de uma certa forma inaugurado por Colin Powell quando apresentou falsas evidências de armas de destruição em massa, antes da invasão do Iraque. Mas a tendência era muito mais forte, e aqui nos trópicos deságua no terraplanismo, na mamadeira de piroca, na crença de que o filósofo alemão Theodor Adorno escrevia as músicas dos Beatles, que John Lennon tinha um pacto com o diabo, que o rock leva ao aborto, que por sua vez leva ao satanismo. Como lidar? Às vezes, lembro-me da infância e dos conselhos paternos muito presentes nos adultos mineiros: não contrariar.
Lembro-me de uma ambulância que parou na porta do vizinho, um grupo se formou e, sem contato com os médicos e enfermeiros, alguém afirmou: “Foi leite com manga, certamente foi leite com manga que derrubou o vizinho”.
Essa ideia de não contrariar as afirmações malucas me acompanhou nos anos de juventude. No livro “O que é isso, companheiro?”, relato o caso de um louco que acordou gritando quando estávamos presos em Ricardo de Albuquerque. Ele tentava em voz alta, desesperadamente, ajudar a encostar um caminhão imaginário e às vezes se alarmava: “Vai bater, vai bater”.
Não conseguíamos dormir com aquele barulho. O único caminho foi ajudá-lo também em voz alta a encontrar o caminhão. Avançamos num ritmo conjunto até que conseguimos estacionar aquele maldito caminhão nas nossas exíguas celas de um distrito policial.
Mas essa tática é ineficaz quando se dizem coisas absurdas em nome do governo, sobretudo as que influenciam o destino de milhares de pessoas, a própria realidade histórica do Brasil. Dizer, por exemplo, que a escravidão foi boa para os negros é um título de loucura que você não apenas pode como deve contrariar. Inclusive destituir legalmente essa nomeação. Muitos adeptos do governo consideram apenas a economia, o combate ao crime e a gestão da infraestrutura como pontos essenciais. O resto seriam apenas borbulhas inconsequentes. Mas um país não se reduz à economia, à infraestrutura e ao combate ao crime. Ele é tecido de múltiplas teias que se interpenetram.
Considerar como apenas perfumaria nossa história de escravidão, tentar que revolvam nos túmulos nossos formadores — como Joaquim Nabuco, mas sobretudo milhares de negros açoitados e assassinados — é introduzir um elemento de corrosão que apodrece todo o tecido nacional.
Se tivesse tempo, iria me divertir demonstrando que Theodor Adorno jamais escreveria um verso como esse: “Help, I need somebody”.
Essa loucura é do gênero que não se precisa tanto contrariar. É preciso reservar um espaço para as de Bolsonaro. Elas repercutem na imagem do Brasil. Quando um presidente acusa um astro de Hollywood de financiar queimadas, ele nos expõe à autocombustão no conceito internacional.
Economia e infraestrutura não se fazem sozinhas. Política de segurança é algo muito complexo para se focar apenas na repressão. Andei por Paraisópolis para realizar um programa de televisão. O governo estadual afirmou que cumpriu o protocolo, e isso não foi entendido pelas pessoas. Se cumprir o protocolo leva à morte de nove jovens, alguma coisa estava errada nesse protocolo.
Certamente algo terá de mudar, assim como a própria ideia desses bailes funks chamados pancadões precisa ser, de uma certa forma, adaptada à vida das pessoas. Senti em Paraisópolis que há pessoas doentes, falei com muitos idosos, vi muitas gestantes. Elas não frequentam baile funk, mas são atingidas por ele. Não tenho uma saída no bolso. Aliás, fui ouvir as pessoas em que sentido apontam para se equacionar o problema.
Andamos por um território sensível cada vez mais acossados pela realidade, e os terraplanistas investem contra o rock e o satanismo. No século passado, os grandes, os chamados loucos de Deus, deixavam todos os confortos materiais para seguir sua orientação religiosa. O século virou, e hoje os loucos entram no governo e já nem se lembram mais de Deus, siderados que estão no combate ao satanismo. Da busca da verdade à pós-verdade o novo século me desconcerta.
Fernando Gabeira: Saudades do Brasil
Uma medida do AI-5 foi pôr censores nos jornais. Não havia internet. Como fariam hoje para censurar a rede?
No dia em que o Flamengo se tornou campeão da Libertadores, cruzei no avião com um homem vestido com a camisa do time. Apenas nos olhamos, mas nos sentíamos unidos pela mesma tensão e esperança. Naquele momento, senti uma estranha saudade do Brasil. A seleção brasileira já não empolga como antes; o lugar foi momentaneamente ocupado pelo Flamengo.
Mas o futebol não era meu objeto de saudade, mas sim a política. Vim me perguntando na viagem de Natal para o Rio como era difícil encontrar essa sensação de unidade nacional, sobretudo em tempo de paz.
Quando digo unidade, não quero dizer unanimidade. Mas algo que congregue as pessoas para além de suas escolhas singulares. A última vez que senti isso foi no movimento pelas Diretas. A partir daí, a sensação foi escapando aos poucos.
É um pouco ingênuo acreditar nessa possibilidade. A política americana em alguns momentos conseguiu unificar os dois grandes partidos pontualmente, em temas bem definidos. Hoje, com Trump, esse sentimento deve estar se esvaindo também lá. Digo também lá porque aí as perspectivas são de confronto, com os atores se pintando para a guerra.
O Chile é uma espécie de arma que os contendores escolheram para o seu duelo. De um lado, a esquerda pedindo manifestações como a chilena; de outro, o governo de extrema direita acenando com o AI-5 e preparando-se para uma repressão sem limites, camuflada sob um nome bastante complicado: excludente de ilicitude, cuja tradução real é liberar a porrada.
Dentro desse quadro radical, uma tênue centelha do passado comum reaparece nas reações que surgem sempre que se fala de novo no AI-5. Elas têm sido rápidas e bastante amplas no mundo relativamente restrito dos que se interessam por política. Mostram não só um vigor democrático, mas apontam para uma unidade nacional contra estados de exceção.
Tenho várias razões pessoais para não acreditar num novo AI-5. A principal delas é ser velho o suficiente para conhecer as condições daquela época e as que existem hoje.
Uma das medidas do AI-5 foi introduzir pequenos grupos de censores dentro dos jornais. Não havia internet. Como fariam hoje para censurar a rede? Não me refiro apenas às dificuldades técnicas, mas aos gigantescos transtornos culturais e econômicos.
Naquele tempo, vivíamos numa Guerra Fria simbolizada pelo Muro de Berlim. Embora o governo ainda respire os ares da Guerra Fria, e o muro não tenha caído para uma parcela da esquerda, a verdade é que os tempos são outros.
O movimento pelas Diretas, com seu potencial unificador, foi basicamente contra um resquício da ditadura. Qualquer novo ato ditatorial, creio eu, poderá reviver seu espírito, uma vez que, apesar de todas as divergências, estamos de acordo em preservar o sistema democrático.
É possível olhar o que se passou no Chile de forma diferente: estudar o que aconteceu e buscar soluções menos dramáticas. O número de pessoas que ficaram cegas parcial ou totalmente supera duas centenas.
O ultraliberalismo tende a trazer enormes dificuldades para a vida das pessoas. Sem sensibilidade política, não há chances de racionalizar a economia. Da mesma forma, os governos de esquerda tendem a quebrar o país com a ilusão de que dinheiro cai do céu.
Uma ampla frente contra o fantasma da ditadura está no horizonte imediato, pois ela se manifesta toda vez que falam de AI-5. Mas ela ainda não é articulada o bastante para intervir na base da instabilidade. Propor uma agenda social aos liberais e uma racionalização econômica à esquerda.
Não deixa de ser estranho falar sobre AI-5 nesse começo de dezembro. Não é que me sinta aprisionado na máquina do tempo. Mas era como se conversasse com sua tela, com pessoas que ainda estão com a cabeça em 13 de dezembro de 1968.
Para não ficar triste, posso entender isso como uma maravilha da tecnologia, estar voltando atrás para dizer: não pensem nisso, vocês vão durar pouco tempo. E os adversários não serão mais os gatos pingados do passado, mas multidões enérgicas como a torcida do Flamengo.
Fernando Gabeira: Os fantasmas atacam de novo
Paulo Guedes sobressalta a economia com sua miopia política ao reviver o AI-5
D repente o fantasma do AI-5 volta a assombrar. É como se tivéssemos entrado na máquina do tempo e ela nos levasse, célere, para 13 de dezembro de 1968. Zuenir Ventura escreveu um livro chamado 1968, o Ano que Não Acabou. O título pode ter sido mal interpretado, pois não fala em momento algum que o tempo correria para trás.
Estamos em 2019, que, por sinal, está quase acabando. Muita coisa mudou nestas seis décadas. Hoje, na sombra do AI-5, há outro mais assustador: as demonstrações no Chile. Ele estava embutido nas ameaças de Eduardo Bolsonaro, parcialmente apoiadas pelo general Heleno, e ressurge agora na entrevista de Paulo Guedes. É sempre o mesmo fantasma arrastando correntes nas névoas de uma miopia histórica.
Tanto o governo como Lula partem de um pressuposto equivocado: o de que um movimento como o chileno é provocado por exortações nos palanques ou inibido por ameaças de virar a mesa democrática. Tivemos grandes movimentos populares em 2013 e ninguém falou no AI-5. Mesmo no Chile, o que se vê é o horizonte de um novo acordo social.
O Financial Times disse que os acontecimentos no Chile foram uma ducha de água fria no governo Bolsonaro. Afinal, os mesmos objetivos econômicos fazem parte de sua agenda liberal. E o mesmo Paulo Guedes trabalhou no Chile sob Pinochet e reaparece agora conduzindo o processo no Brasil. Iria um pouco mais longe. Os acontecimentos no Chile abalaram a confiança do governo Bolsonaro e o que vemos desde então não passa de sinais de insegurança sobre os rumos da agenda liberal.
Lula, é verdade expressou no palanque o desejo de ver algo no Brasil como o que aconteceu no Chile. Mas talvez saiba que as exortações têm poder limitado, revoltas desse tipo são fermentadas por múltiplos fatores e não se fazem de cima para baixo.
Surpreendido pela eclosão do movimento em 2013, quando era governo, o PT tenta se antecipar a ele, na oposição. Se acontecer, pode dar a ilusão de que foi o grande personagem.
Não é verdade, entretanto, que Lula tenha exortado a violência, como disse Guedes nos EUA. Ele tem experiência para saber que a violência é um fator que desagrega um movimento, assusta as pessoas que querem demonstrar pacificamente.
Houve focos de violência tanto no Brasil em 2013 como no Chile agora. Eles não conseguiram esvaziar o movimento chileno. Mas o preço foi alto: mais de 200 pessoas cegas inteira ou parcialmente por balas de borracha, a maioria delas manifestantes pacíficos.
Bolsonaro voltou a insistir na chamada exclusão de ilicitude, que na prática é a liberação da porrada. Ainda não conhecemos bem o que virá por aí, como os ingredientes fermentam, que tipo de estopim pode provocar a explosão, quaisquer 20 centavos a mais. Mas uma coisa aprendemos tanto em 2013 como no Chile: é importante superar a crise sem golpear a democracia.
Diriam: Piñera decretou estado de sítio. Mas sua primeira promessa em seguida foi precisamente anular o estado de sítio. Essa trajetória seria suficiente para as pessoas saírem da máquina do tempo, rasgarem seu AI-5 de estimação, caírem em 2019 e trabalharem exclusivamente com saídas democráticas.
Os generais que fizeram o AI-5 tinham um pé na realidade, tanto que o consumaram com êxito. As pessoas que insistem em usar o velho instrumento num mundo transfigurado me intrigam. Ser mais velho tem alguma utilidade. Posso lembrar que não havia internet na época do AI-5. O estado de exceção é uma espécie de estado de espírito que parecem carregar por todos os momentos históricos.
Paul Guedes, entre outros, tem a tarefa de manter o curso da economia mais ou menos protegido dos sobressaltos políticos. Ele fez o contrário, sobressaltou a economia com sua miopia política ao reviver o AI-5 como uma possibilidade.
Lembro-me do AI-5 nas vésperas do Natal, panfletagens na porta de igrejas, sinos, o embrulho dos presentes. Não simpatizo com a terraplanismo, muito menos acho Trump salvador do Ocidente. No entanto, os arautos do AI-5 de certa forma me devolvem a juventude, ter algo obsessivo e prioritário para fazer na vida: derrubar o governo. Não há heroísmo nessa fantasia. Outra utilidade de ser velho é distinguir as épocas: desta vez eles cairiam bem mais rápido e os heróis seriam coletivos.
Algo me impressionou no jogo Flamengo x River Plate: a torcida que empurrou o time brasileiro até o ultimo minuto. Sem ela dificilmente haveria aquele feito histórico. Não creio que haja uma força no Brasil capaz de instalar um estado de exceção e segurar o tranco, nacional e internacional. Mas já que insistem tanto no tema, talvez merecessem paciência; que façam o AI-5 e aguentem as consequências. O problema é que sua aventura seria devastadora para o Brasil.
A democracia permite a defesa de ditaduras tanto à direita quanto à esquerda. Às vezes somos tentados a legislar sobre isso. Mas não creio que isso resolva. O melhor mesmo é uma reação em cadeia cada vez que invocam o fantasma da ditadura.
No meio desse fogo cruzado, o Parlamento, com todos os seus defeitos, faz outra leitura do Chile. Ele não se contenta em levar apenas a agenda liberal, mas se dispõe a combiná-la com iniciativas sociais. Na minha cabeça nem sempre essas agendas estão separadas. Convergem, por exemplo, no saneamento básico, campo em que abertura econômica e aumento do bem-estar caminham ombro a ombro. Como foi a privatização da telefonia.
De qualquer forma, o caminho do Congresso parece ser mais realista, contribui para conter os extremos. Diria um caminho do centro. No entanto, o centro do Brasil, em alguns quesitos, como a corrupção, consegue ser tão ou mais vulnerável que os extremos. Esse é um dos motivos que o afastam da sociedade. Em síntese, não empolga a torcida.
Mas pode, pelo menos, não se acovardar diante de ameaças de AI-5. Lembram-se do que aconteceu com o Congresso, a censura entrando de corpo presente nos jornais? Vale algo mais que simples declarações de praxe.
Fernando Gabeira: Um esforço para entender javanês
Forma que Tofolli usou para recuar é complicar ao máximo, para que não se entenda perfeitamente sua trajetória
Um artigo difícil de escrever. No barco para Galinhos, constatei que deixei os óculos de leitura no carro, que ficou para trás, no estacionamento.
Minha tarefa era ler o voto de quatro horas de Toffoli, diante de péssimas referências. Um ministro disse que o voto tinha sido redigido em javanês. Ler mais de 300 páginas em javanês, sem óculos, depois de um duro dia de trabalho, é superior às minhas forças. Se os ministros não estavam entendendo, o melhor seria esperar o resultado final.
Pelos fragmentos dos votos e pela tendência geral, suponho que cairá a proibição ao Coaf — atual Unidade de Inteligência Financeira — de trocar informações com os órgãos de investigação e que voltará a correr inquérito sobre Flávio Bolsonaro.
Numa visão mais ampla, posso intuir que houve um recuo. Toffoli disse que havia lendas urbanas em torno do caso. Uma delas era a de que 935 processos foram paralisados. Mas a informação partiu do Ministério Público. Da mesma forma, ele não se deteve no caso Flávio Bolsonaro. Mas foi a partir dele que proibiu as investigações sem autorização judicial.
O principal é que haja um recuo. Há muitas formas de recuar, nem muito depressa para parecer que está com medo, nem muito devagar para parecer provocação. A forma que Tofolli usou é a de complicar ao máximo, para que não se entenda perfeitamente sua trajetória.
Fragmentos da sessão de quinta já indicavam que eram muitas as perguntas dos próprios ministros e que dificilmente passará a ideia de restringir a troca de informações à prévia autorização judicial.
Esse período ainda inacabado foi aberto pela grande ofensiva da Lava-Jato contra a corrupção, provocando um terremoto político em escala continental. Um dos personagens, a Odebrecht, é até citada no filme americano “A lavanderia”.
Depois das eleições, veio a contraofensiva cujos marcos foram as revelações do site The Intercept e,em seguida, a derrubada da prisão em segunda instância. O Supremo atua como modulador dessa contraofensiva mas parece que, desta vez, Toffoli avançou demais, por contra própria. De um lado, é indefensável paralisar ou inibir investigações baseadas em atividades financeiras.
Na decisão de Toffoli não apenas a Lava-Jato foi atacada, mas um princípio basilar da luta contra a corrupção expressa na expressão americana follow the money . É um princípio seguido internacionalmente. Daí a reação de alguns representantes da OCDE, algo que Tofolli nega mas os registros da imprensa confirmam.
Não deixa de ser curioso reclamar de lendas urbanas nas circunstâncias em que Toffoli reclama. Tanto sua atuação no caso Flávio Bolsonaro como a inibição do Coaf são fatos sobre a mesa.
Se realmente quisesse transparência, Toffoli poderia mobilizar grande equipe de jornalistas que trabalha no Supremo. Dizem que é maior que o elenco de uma empresa de televisão. O que houve para não atuarem?
Talvez fosse difícil explicar claramente o que ia na cabeça de Toffoli, assim como ficou difícil entender o enredo para os próprios ministros.
O ideal teria sido uma transparência maior, inclusive sobre os próprios interesses no caso. Tanto a mulher de Toffoli como a de Gilmar tinham suas atividades financeiras sob exame.
De fato, em ambos os casos, o vazamento de algo que ainda estava sob exame configura irresponsabilidade com a privacidade das pessoas.
A partir daí é possível um entendimento sobre erros que não podem acontecer. Mas a reação foi muito mais longe: esterilizar os laços entre autoridades financeiras e policiais.
E como se não bastasse isso, a interrupção do processo de Flávio Bolsonaro bombardeou os fundamentos de algo que parecia consenso com a passagem da Lava-Jato: a lei vale para todos.
E por acréscimo mostrou também uma realidade inconveniente: o governo que se elegeu com o tema de combate à corrupção e de apoio à Lava-Jato também torpedeava o princípio basilar de que a lei vale para todos.
Não sei quantos milhares de páginas vão escrever, quantas horas vão gastar nos seus votos. Sei apenas que na semana que entra tudo poderá ficar mais claro. Com os óculos de leitura e a opinião dos outros ministros, posso entender melhor como o STF vai desenrolar esse bizantino enredo.
Fernando Gabeira: O Big Toffoli
No mundo, a Justiça se move na tentativa de preservar a privacidade das pessoas. Aqui no Brasil é diferente
Numa semana muita dura e cheia de eventos, pensei em trazer um tema novo. Já falei de Bolívia e Chile, comentei a saída de Lula e me debrucei, sem ânimo, sobre a invasão da embaixada da Venezuela em Brasília. Isto me interessou, pois poderia usar de novo a palavra quiproquó, tão sonora e fora de moda.
Sinceramente, meu tema de preferência era um chamado projeto Nightingale, no qual o Google é acusado de vender milhões de dados médicos e hospitalares das pessoas para grandes empresas do setor. A coleta e venda de informações é um grande negócio no mundo. Tende a ser o mais interessante, pois os dados valem dinheiro, sobretudo em grandes quantidades.
Iria refletir um pouco sobre a privacidade num mundo do Google e das redes sociais quando soube que o presidente do STF, Dias Toffoli, agora por um artifício legal, tem acesso aos dados financeiros de 600 mil contas de pessoas e empresas.
Ele proibiu a UIF (antigo Coaf) de partilhar esses dados com os órgãos de investigação. Um absurdo sem nome. Tenho escrito sobre isso e, para dizer a verdade, com pouca repercussão. É um ato de exceção. Os próprios funcionários da OCDE que estiveram no Brasil dizem que a medida de Toffoli está em contradição com as normas e os compromissos internacionais do Brasil.
Toffoli não se interessa por isso. Seu objetivo era congelar as investigações sobre Flávio Bolsonaro e impedir que a Receita continuasse pesquisando os movimentos financeiros de sua mulher e da mulher de Gilmar Mendes. Ele não se contentou em paralisar investigações. Ele quer acesso a todos os dados coletados pela inteligência financeira.
É o Big Toffoli navegando pelas contas de todo mundo, conhecendo os segredos financeiros que ele mesmo impede de serem investigados adequadamente. Como é possível o país conviver com essa barbaridade? Mesmo os aliados de Toffoli deveriam temer essa concentração de poder. Nos últimos tempos, aproximou-se de Bolsonaro para salvar a pele do filho senador. Mas, no passado, foi um funcionário do PT, um assessor de José Dirceu.
Acho que tanto o PT como Bolsonaro deveriam temer Toffoli. A quem servirá com esse acesso ilimitado aos dados pessoais e empresariais? Pode usá-los para fulminar Bolsonaro ou mesmo para enrascar mais ainda seu partido de coração, que é o PT.
Em muitos lugares do mundo, a Justiça se move na tentativa de preservar a privacidade das pessoas, acossando o Google e o Facebook, entre outros. Aqui no Brasil é diferente. É a própria Justiça que invade a privacidade alheia, na pessoa do presidente do STF. Não se trata mais nos trópicos de reduzir o poder das gigantescas empresas, mas de ampliar ao extremo o poder pessoal de Toffoli.
Num mesmo ano, Toffoli salvou Lula e Bolsonaro. Lula porque foi dele, fiel advogado do PT, o voto de Minerva que acabou com a prisão em segunda instância. E Bolsonaro, porque foi ele quem tirou as nádegas do jovem Flávio da seringa do controle de operações financeiras.
Podemos falar tudo de Lula ou Bolsonaro. Mas ninguém apanha mais do que eles nas redes ou na imprensa. Ambos reclamam, Bolsonaro tira verbas publicitárias de quem o critica; Lula, volta e meia, se lembra do controle social da imprensa. Mas nenhum dos dois chegou ao ponto de Toffoli: instalar uma delegacia, convocar Alexandre de Moraes como seu braço policial e partir para cima de quem o critica, com polícia revistando casas e computadores.
Lula precisou de Toffoli. Bolsonaro também. Mas eles ignoram, talvez, que Toffoli seja muito mais do que um simples auxiliar para encrencas. Diante da vulnerabilidade dos líderes populistas que polarizam o Brasil, ele vai construindo seu universo pessoal de poder. E um poder mais persuasivo que o deles.
Toffoli é o Big Toffoli. Assim com os homens e, além disso, é o único que tem poder de acessar os dados financeiros de quase todo mundo. Digo quase todo mundo, porque não me incluo nesses 600 mil. Minha conta bancária é de uma monotonia tediosa. Mas não me inibo em defender a privacidade dos outros, ricos ou pobres.
Em 13 anos de oposição, o PT nunca me fez mal. Espero o mesmo de Bolsonaro. Ambos têm seguidores agressivos. Mas nenhum pode como Toffoli mandar a Polícia Federal vasculhar meus computadores, incluir-me nos detratores do Supremo.
A democracia tropical, com a sua incessante troca de favores, está parindo um monstro. Uso a expressão num contexto institucional. Pessoalmente, Toffoli até se parece com um desses candidatos por quem suspiram velhas senhoras em busca de bons moços para votar.
Mas a ampliacão do seu poder pela captura de dados financeiros o transforma num Big Toffoli.
Fernando Gabeira: Vendavais ao sul da América
Bolívia e Chile nos passam uma complexa lição de casa, é preciso decifrá-la...
Os ventos que sopram na Bolívia e no Chile são surpreendentes para quem se detém apenas em números de crescimento econômico. Tento entendê-los com minhas lembranças antigas e os dois últimos trabalhos que fiz nesses países. E algumas leituras.
Na Bolívia cobri para o Estadão uma crise singular no governo Evo Morales. Um choque com sua própria base de sustentação. O tema era a estrada Atlântico-Pacífico, financiada pelo Brasil. Ela iria atravessar um território indígena e houve grande reação. Cruzaria não apenas o território indígena, mas também o Parque Nacional Isiboro-Secure.
Mas ao longo desse tempo a política econômica de Evo Morales conseguiu grandes índices de crescimento e reduziu a pobreza, incluída a extrema pobreza. A política ambiental nunca foi muito bem. Lagos secando e um tratamento leviano com as queimadas, que acabaram se tornando um drama nacional neste ano.
Quando vejo o desenrolar da experiência do Movimento ao Socialismo, acabo suspeitando de que as variáveis econômicas e ambientais foram secundárias como estopim. O nó estava na política, na vontade de Evo Morales se perpetuar no poder. A Constituição não permitia. Ele fez um referendo em 21 de fevereiro de 2016. Perdeu e, em seguida, ganhou no tapetão da Justiça Eleitoral e da Suprema Corte. Isso ficou engasgado na garganta dos eleitores.
Baseio-me no relato de repórteres que cobriram a campanha de Evo. Registraram gritos de “o povo disse não” quando ele passava.
Vieram as eleições, a súbita suspensão das apurações, laudo da OEA denunciando irregularidades. Quando Evo aceitou uma nova eleição, era tarde. A polícia já havia cruzado os braços, o Exército pediu sua renúncia, como o fez com Sánchez de Lozada no passado.
Lembro-me, no exílio, de que a Bolívia representava para nós um símbolo de instabilidade. Quando os bolivianos voltaram um pouco antes de nós para seu país de origem, costumávamos brincar: levem o carnê mensal do metrô, pois podem ter de voltar antes do fim do mês.
Agora é com tristeza que vejo o país mergulhar de novo na instabilidade. Alguns temas do passado afloram de novo, como a tensão entre brancos e indígenas, com lances racistas e violência nas ruas. Apoiadores de Evo Morales achavam que ele era o único capaz de unir um país dividido. Não o foi para sempre. E certamente perdeu essa condição no referendo. A outra parte se sentiu lograda, daí os gritos de “não somos imbecis!” nas manifestações.
Fui ao Chile, também pelo Estadão, para cobrir uma revolta estudantil. Uma das muitas, mas essa mais longa. Também com base nessa experiência, compreendi como era importante para os chilenos uma educação gratuita de qualidade. Apesar dos arroubos da juventude, o movimento estudantil tinha o apoio de grande parte da sociedade. Quando ouço dizer que o Brasil terá algo como no Chile, a primeira coisa que me vem à mente é a diferença entre os movimentos estudantis chileno e brasileiro. E ainda há a precária situação dos aposentados.
Não quero dizer que o Brasil não tenha problemas, apenas que são situações diferentes. No Chile houve uma fermentação na sociedade e uma revolta, guardados proporções e contextos, com características parecidas com o que aconteceu no Brasil em 2013.
Isso é o que me leva a afirmar como é vazia essa discussão sobre exortar os brasileiros a se rebelarem como no Chile e as ameaças de Lei de Segurança Nacional, AI-5 e outras maneiras de endurecer. Na minha opinião, tanto o líder que conclama como os que o ameaçam com a punição trabalham com a falsa ideia de que esses movimentos nascem de cima para baixo, não dependem de uma voz de comando nem mesmo do sistema partidário.
Na minha opinião, repito a fórmula, porque não quero envolver ninguém nessa fórmula, os ventos que sacodem a América do Sul refletem um grave desequilíbrio, que, por sua vez, nasce em algo maior: as ilusões do socialismo e do liberalismo.
O modelo econômico boliviano começava a declinar, o déficit subia, era evidente a necessidade de um reajuste que vai abalar a taxa de investimento. No caso chileno, uma visão radical do liberalismo com pouca sensibilidade social. Em governos de esquerda como o da Venezuela, uma irracionalidade econômica gritante.
Integrar racionalidade econômica e sensibilidade social e ambiental é um desafio. Mesmo porque é um programa aparentemente modesto, poucas chances de empolgar as massas ou produzir um líder popular. Mas a julgar pela experiência de outros países, como Portugal, com toda a sua modéstia, a coisa parece funcionar.
Aqui a cena está dominada por sonhadores, glorificando o Estado ou o mercado com ideias acabadas sobre nosso futuro, quase sempre incomodados com a democracia quando ela entra em choque com seus sonhos. Vivemos muito nessa atmosfera onírica. Acontece um desastre, discutimos se o óleo é de esquerda ou de direita, em vez de conjugar esforços nas ações de emergência.
Um caminho que talvez nos ajudasse seria examinar, de forma mais profunda do que fiz aqui, os erros e acertos que levaram às crises da Bolívia e do Chile. Mas como fazer isso, se os lados já têm uma explicação antecipada para os fatos? Já tentei me aproximar disso no passado, imaginando os bolcheviques derrotados em Paris culpando seus adversários ou os alemães reclamando que o Muro de Berlim não caiu porque os comunistas não deixaram.
Apesar de todas as porradas que vêm dos extremos, o esforço para entender ainda anima muita gente. Dizem que a fé move montanhas, mas para quem tem expectativas mais modestas não há saída exceto analisar com alguma frieza, reconhecendo que, ao menos na nossa América, a realidade costuma atropelar os sonhos.
Bolívia e Chile nos passam uma complexa lição de casa. É preciso decifrá-la antes que nos devore.
Fernando Gabeira: Último capítulo sem surpresas
Não basta ser contra a mineração nas terras indígenas, é necessário apresentar uma visão estratégica para a Amazônia
Não foi uma boa para mim lá embaixo, pensava eu quando o carro alcançava a Rodovia Reginaldo Rossi, saindo de Porto de Galinhas para Recife. O trabalho duro transcorreu bem. Mas as notícias pareciam me espancar. A mais importante delas, a decisão do Supremo de acabar com a prisão para condenados em segunda instância.
Já escrevi muito sobre isso. Sabia que esse seria o resultado. Achei até que Toffoli se esforçou no jogo de cena para buscar uma atenuante. Mas era a pura e simples queda da prisão em segunda instância que estava em jogo. Com essa decisão e também com o bloqueio de investigações sobre atividades financeiras, demos um passo atrás, depois de tanta esperança popular no combate à corrupção.
Que sentido tem argumentar de novo? Agora é esperar as consequências, não apenas na inquietação popular, mas também na vida política em geral. Não voltamos à estaca zero. Mas foi uma guinada que interessa àqueles que ainda esperam enriquecer com dinheiro público.
Como se não bastasse, a grande pancada, Bolsonaro atingiu três vezes minhas convicções, isso num prazo de 24 horas. No campo da cultura, promoveu um diretor de teatro que ofendeu Fernanda Montenegro. O governo não reconhece os grandes talentos nacionais porque está envenenado pela luta ideológica.
Bolsonaro decidiu ainda que vai mandar um projeto de mineração nas terras indígenas. Compreendo que os militares veem uma vantagem estratégica na exploração de minério na Amazônia. Tenho uma visão estratégica diferente; além do mais, venho de Minas. Aprendemos a dizer: olhem abem as montanhas. Não só no sentido de cuidar delas. Mas de olhar mesmo porque elas desapareceram.
Segundo a Constituição, será preciso uma lei complementar para autorizar esse passo. Romero Jucá tentou muito. E não conseguiu ao longo dos anos em que tive a oportunidade, entre outros, de combater essa ideia.
Não contente, Bolsonaro revogou um decreto que proibia o avanço da plantação de cana-de-açúcar no Pantanal. Um dos grandes defensores dessa ideia foi o governador André Puccinelli, que ameaçou inclusive Carlos Minc, na época ministro do Meio Ambiente. Puccinelli foi preso por corrupção e deixou a cena.
Romero Jucá não foi preso nem deixou totalmente a cena política. Perdeu a eleição e foi várias vezes citado na Lava-Jato. De qualquer forma, a luta desses dois políticos do PMDB é hoje recompensada pela visão de Bolsonaro. Não se trata, como se vê, de um problema partidário.
São duas grandes questões que precisam ser respondidas com argumentos adequados. Quero dizer: não basta ser contra a mineração nas terras indígenas, mas é necessário também apresentar uma visão estratégica para a Amazônia que seja mais interessante e moderna do que a velha expectativa de enriquecer com o minério, quando outras fontes de riqueza da produção do conhecimento e a indústria do turismo devem ser levadas em conta.
O Pantanal já teve canaviais no século XIX. Havia indústrias e quase 200 quilômetros de plantação.
O Pantanal não acabou.
Acontece que estamos no século XXI, e o Pantanal não é mais o mesmo. Tornou-se mais vulnerável com os grandes incêndios, explorou suas belezas naturais e sua fauna, tornando-se um polo turístico nacional. Assim como a mineração nas terras indígenas, o crescimento de canaviais no Pantanal não aparece hoje num contexto de falta de alternativas econômicas.
Pelo que conheço do Congresso, não foi até hoje, nem será simples agora, aprovar a mineração nas terras indígenas. É bandeira de Bolsonaro? É. Mas significa de fato a aspiração da maioria dos brasileiros ou a bandeira ficou meio dobrada diante de outras mais sedutoras eleitoralmente?
Combater a proposta de Bolsonaro não significa nem combater as ideias da maioria. É combater uma visão minoritária sobre a Amazônia.
Numa semana em que se apanha na Justiça, na cultura, nas propostas antiecológicas de Bolsonaro, felizmente, como todos, segui trabalhando. Idas e vindas na Rodovia Reginaldo Rossi. Ele tentou ser vereador e perdeu. As derrotas nem sempre derrubam. Costumam dar um samba-canção ou um bolero.
Fernando Gabeira: A política como um pesadelo
Será que o porteiro realmente viu um dos assassinos procurando por Bolsonaro, que nesse dia estava em Brasília?
Enquanto a mancha se desloca para o Sul e ameaça Abrolhos, já não sei mais se a espero no Rio ou vou ao seu encontro. De qualquer forma, tento manter o foco no desastre ambiental enquanto as loucuras na política se desdobram num ritmo vertiginoso.
No princípio da semana, pensei em dedicar as horas vagas a pensar na questão da linguagem na política, que me surpreende tanto quanto a mancha de óleo. Os deputados do PSL brigam entre si com memes e se insultam usando personagens de história infantil. Se não parasse com as crianças, de vez em quando, não saberia quem é Peppa. Uma das contendoras na luta interna foi chamada de Peppa pelos adversários. Ainda bem que eu já vi as aventuras da porquinha rechonchuda.
Pensei em refletir sobre a nova geração de políticos e como a linguagem da infância ainda está presente no seu imaginário.
Mudei de eixo à tarde. Vi imagens do depoimento de Alexandre Frota na CPI das Fake News. Ele exibiu cartazes com frases do guru dos Bolsonaro, Olavo de Carvalho. Era tão escandaloso que fiquei tentado a examinar o avanço da linguagem pornográfica no discurso da extrema direita.
Foi então que vi aquele vídeo das hienas cercando o leão Bolsonaro e pensei em voltar ao universo infantil. Não houve tempo. Eduardo Bolsonaro invocou o AI-5, numa entrevista a Leda Nagle. Voltei aos anos 60 e pensei até em mostrar como as coisas mudaram nesse quase meio século. Desisti desse esforço pedagógico. As pessoas que confundem épocas tão díspares não o fazem por ignorância, mas por necessidade. Constroem um enredo mental para o papel que amariam representar. No caso de Eduardo Bolsonaro, é a vontade de reviver a ditadura, com poder absoluto sobre a vida e a liberdade de expressão dos outros.
Em certas viagens a Ouro Preto, fantasio uma volta ao século XVIII. Mas só por alguns momentos, quando não há carros nem buzina.
Há tempos, quando Ronnie Lessa, acusado de matar Marielle Franco, foi preso, achei explosivo o fato de ser vizinho do homem que se tornou presidente da República. Imaginei como isso não daria um roteiro para uma série de televisão. Li que o filho mais novo do presidente namorava a filha do matador. Imaginei as possibilidades clássicas dessa história.
Vejo surgir agora um novo personagem dramático: o porteiro do condomínio Vivendas da Barra. Ele é o mais antigo dos funcionários, deve conhecer todos os moradores, seus hábitos e relações superficiais. Sua lembrança do dia da morte de Marielle Franco enriqueceu as fantasias sobre a vizinhança de Bolsonaro com Ronnie Lessa, miliciano, matador e comerciante de armas.
Será que o porteiro realmente viu um dos assassinos procurando por Bolsonaro, que nesse dia estava em Brasília? Por que teria anotado o número da casa buscada pelo cúmplice do matador como se fosse a casa de Bolsonaro? Como pode ter ouvido a voz de seu Jair, sem estar sintonizado com o canal da Câmara dos Deputados, onde Bolsonaro estava naquele momento?
Não vou especular sobre esse mistério, enquanto não ouvir a versão do próprio porteiro. As procuradoras do MP do Rio dizem que ele provavelmente mentiu.
Mas por que um velho e experiente porteiro confundiu duas casas? Para nós que vemos imagens aéreas, elas são todas iguais. Somos traídos pela superficialidade de nossa percepção, como os esnobes que dizem que a caatinga é monótona porque toda a vegetação é igual.
Para ele, certamente cada uma delas tem uma história, desde o tipo de visitas aos pequenos cuidados cotidianos, instalação elétrica, vazamentos, no sentido literal.
Não entendo como pode ter confundido. Mentiu e enganou? Foi induzido? Sua memória funciona bem ou já dá sinais cotidianos de pequenas confusões? Para um roteirista, é relativamente fácil cobrir essas lacunas. Para mim, no entanto, os tempos são desconcertantes. Volto a perseguir a mancha. Também é desconcertante. Mas pelo menos vejo pessoas reais, com as luvas negras de óleo, tentando limpar as praias, proteger corais e mangues.
Desenhos infantis, frases pornográficas, jovens aspirantes a ditador ou mesmo intrincados enredos policiais —tudo é uma espécie de desastre, mas pede outro tipo de voluntariado, equipamento e paciência.
Fernando Gabeira: Uma certa dimensão do desastre
A mancha de óleo no Nordeste vem de um oceano castigado, em rápida degradação
O desastre no Nordeste não é apenas desconcertante pelo mistério de sua origem, a imprevisibilidade da aparição do óleo. Ele encerra, espero, um ano de grandes turbulências ambientais no Brasil.
Tivemos incêndios na Amazônia, no Pantanal, no Cerrado, em importantes parques nacionais, como o da Serra do Cipó, chamado de Jardim do Brasil pelo paisagista Burle Marx. Fora do Brasil as coisas também não foram tranquilas, sobretudo com os grandes incêndios na Califórnia.
Incêndios na Amazônia, no Pantanal ou mesmo na Califórnia acontecem quase todos os anos, mas têm sido mais intensos. E em alguns lugares cai a disponibilidade de água.
Tudo indica que entramos numa era irreversível de eventos extremos. Isso num momento em que temos um governo despreparado para encarar essa dramática dimensão. E dificilmente, a julgar pela reação às manchas de óleo no Nordeste, conseguirá acompanhar o seu tempo. Bolsonaro, por exemplo, não foi ao Nordeste, não entendeu a gravidade do problema, não esboçou um gesto pessoal de solidariedade. Isso é o bê-á-bá da conduta de um presidente.
Existem vários fatores que obliteram sua visão. Um deles é entender o desastre ambiental como uma luta política. Achar um culpado à esquerda, desafiar ONGs, enfim, em vez de se preocupar com o oceano, prefere alvejar seus adversários.
Bolsonaro não percebe a riqueza e a complexidade dos oceanos. Digo isso porque o observo com atenção. Logo após a vitória na eleição de 2018, seu projeto era fundir os ministérios do Meio Ambiente e da Agricultura. A visão que tinha do meio ambiente se limitava às florestas, aos rios e às plantações. Ignorava não apenas os oceanos, como também os graves problemas ambientais das metrópoles.
Bolsonaro não apenas é incapaz de compreender os oceanos. Ele pensa em urbanizá-los. Multado por um fiscal do Ibama pescando na Estação Biológica de Tamoios, resolveu que a unidade de conservação deve acabar, pois Angra dos Reis será transformada numa Cancún com a grana da ditadura saudita. Por mais importante que seja para a pesquisa da vida marinha, Bolsonaro a vê como inútil.
Esse é o contexto de sua ausência no Nordeste. Por que, com essa bagagem cultural, iria importar-se com recifes e corais num território governado pela oposição?
O governo não apenas deixou de acionar o plano nacional de contingência para esse tipo de desastre, como se recusou a coordenar diretamente os esforços estaduais e municipais. Coordenar no nível mais alto, uma vez que a coordenação operacional até que existiu nos dois centros montados em Salvador e no Recife. O ministro do Meio Ambiente designou a Marinha como coordenadora 41 dias depois de ela estar de fato trabalhando no desastre. Se dependesse de ele acordar, seriam 41 dias perdidos.
Ele foi duas vezes ao Nordeste. Tanto em Sergipe como na Bahia, não falou com os governadores, nem mesmo com o prefeito de Salvador.
O ministro do Turismo foi ao Nordeste. Disse que uma praia estava própria para o banho sem consultar as autoridades ambientais de Pernambuco. Como se isso pudesse ser definido a olho nu.
Esse modo tosco de governar não impediu que, em algumas dimensões, a máquina tenha funcionado. O Ibama trabalhou pesado. Encontrei seus funcionários nas praias mais remotas e até trocamos informações.
A propósito disso, concluí nessas viagens que as melhores notícias vêm da sociedade. O voluntariado, que já existia no Brasil, aparece agora também como um dado irreversível, sobretudo apoiado nas redes sociais. Essa nova força é que nos pode inspirar na formulação de políticas para um tempo de mudanças climáticas. Na Universidade da Bahia um professor concebeu o sistema de coleta de óleo com redes de pescadores. Os pescadores dispuseram-se a trabalhar para evitar que o óleo chegue a Abrolhos. O Ibama liberou redes apreendidas no passado e que estavam estocadas. É uma tentativa válida.
Em Pernambuco os voluntários entregaram-se à tarefa com intensidade maior, por exemplo, do que vi na Galícia. Em compensação, lá todos estavam de macacão, luvas e óculos especiais.
Essa dificuldade parece ter sido superada pelos Guardiões do Litoral, um grupo que limpa as praias e tenta descontaminar mangues e corais. Ali estão equipados devidamente. O que não evita uma ou outra dor de cabeça, pela combinação do cheiro do óleo com o forte calor.
A conjugação dessas forças com um governo eficiente é que nos pode preparar nos tempos de aquecimento global. Talvez isso já exista no Japão. O desastre do Nordeste não tem ligação com isso. Mas acontece num oceano castigado, em rápida degradação. Aliás, a importância da proteção marinha já havia subido ao topo da agenda na Conferência Rio+20.
Esse governo é incapaz de encarar a tarefa que tem pela frente. Sua eficiência depende da articulação com a sociedade. O ministro do Meio Ambiente, que deveria manter uma relação direta com o voluntariado, passando informações, agradecendo aquele esforço, preferiu brigar com o Greenpeace, sugerindo que um barco da organização derramou o óleo. As pessoas retirando óleo das praias e ele produzindo fake news.
É um universo paralelo que duvida do aquecimento, desconfia que a organização social, com sua visão crítica do governo, seja um celeiro de marxistas. Aliás, por falar no velho Marx, ele dizia que a humanidade não se coloca um problema que não possa resolver. Ele não contava com transformações climáticas, escassez de recursos hídricos, enfim, com todas essas consequências da produção.
Se depender de certos humanos, como Bolsonaro e seu ministro, teríamos mais que um problema sem solução. Teremos algo que nos vai engolir e arruinar. Somos um grande país? Dinossauros também eram grandes. Apenas não souberam se adaptar.
Fernando Gabeira: Uma vez, o Flamengo
Ficou faltando o Brasil. Não se sabe ainda quando vai parar de jogar para o lado, perder seus preconceitos, unir talentos