fernando exmann
Fernando Exman: A pandemia como oportunidade eleitoral
Falta de regras para a campanha permite arbitrariedades
Será uma experiência única e, lamentavelmente, inesquecível para as atuais gerações. A eleição municipal foi adiada de outubro para novembro devido à pandemia e por esta será marcada.
As curvas de contaminação a serem observadas no fim do ano são uma incógnita, assim como os potenciais índices de abstenção. Mesmo assim, pré-candidatos já conjecturam como podem levar vantagem sobre adversários. Partidos definem suas estratégias. Traçam cenários de como o vírus pode influenciar não só a atual disputa, mas também a correlação de forças políticas para os próximos anos.
Foi neste clima que ocorreram as discussões sobre a conveniência de se adiar ou não as eleições. Num primeiro momento, muitos dirigentes partidários se posicionaram mais em defesa dos interesses de suas próprias legendas do que preocupados com a saúde dos eleitores. Gostariam, na verdade, de poder adiar para o ano que vem as eleições e que seus correligionários permanecessem no comando das prefeituras até o fim do estado de calamidade.
O plano fracassou. Integrantes das cúpulas do Judiciário e do Legislativo logo impuseram, como condição para que as discussões avançassem, que os mandatos dos atuais prefeitos, vices e vereadores não fossem estendidos. Temia-se a criação de um precedente perigoso, num ambiente radicalizado e com atores relevantes da cena política defendendo, sem pudor, o desrespeito à institucionalidade.
Esse risco extremo parece ter ficado para trás, mas não deve ser esquecido. Os números de infecções e mortes, por outro lado, fazem-se cada vez mais presentes no dia a dia do eleitor. Impedem que se esqueça a periculosidade do novo coronavírus.
São pouquíssimos os municípios que não registram casos de covid-19. Menos de 2% do total, segundo um dado recente do Ministério da Saúde, uma realidade que não deve ser desprezada na hora do voto.
No entanto, definido o novo calendário pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), nada mais natural que partidos e parlamentares passassem a se debruçar sobre o tabuleiro. Por isso é de chamar a atenção um levantamento recente do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap) sobre o número de pré-candidatos entre deputados federais e senadores.
De saída, segundo o documento, há 123 congressistas no páreo - 121 deputados e 2 senadores. A tendência é de uma diminuição desse total, mas hoje ele supera a média histórica de 94 candidaturas de parlamentares em eleições municipais.
Os dados da série do Diap começaram a ser coletados no pleito de 1992. Em 2016, 81 deputados e 2 senadores entraram na corrida municipal. Os números de 2012 somaram 87 deputados e 5 senadores. A eleição que eleva a média é a de 1996, quando 121 congressistas concorreram aos cargos de prefeito ou vice-prefeito - 117 deputados e 4 senadores.
Alguns fatores explicam esse aumento de interesse. O fim das coligações proporcionais, por exemplo, faz com que os partidos cogitem lançar “figurões” capazes de puxar votos em suas chapas. As capitais são as principais opções das pré-candidaturas dos parlamentares.
São Paulo e Rio de Janeiro são os Estados com o maior número de interessados, com respectivamente 15 e 14 nomes. Em seguida, aparecem Paraná, Minas Gerais e Bahia, com 9 pré-candidatos em cada uma dessas unidades da federação.
Neuriberg Dias do Rêgo, analista político do Diap, elenca outros aspectos. Existe também uma maior disponibilidade de recursos para os parlamentares custearem as campanhas, aponta: além do chamado fundão eleitoral, o fato de as emendas ao Orçamento terem se tornado impositivas mudou a dinâmica do jogo.
Elas viraram um ativo valiosíssimo em tempos de crise econômica e restrição fiscal. Armas poderosas para fazer política na ponta, movimentar a economia local e promover os próprios congressistas ou seus aliados.
Muitos dos pré-candidatos no Congresso tentarão aproveitar a polarização ou a onda que alçou ao poder policiais, religiosos e representantes da chamada nova política. Acreditam poder influenciar as disputas em bases eleitorais estratégicas para as eleições majoritárias de 2022 ou, no mínimo, terem mais facilidades para concorrer à reeleição. Entre os partidos, os destaques do levantamento do Diap são PT (14 pré-candidatos), PSL (12) e PSB (12).
Contudo, Neuriberg Dias do Rêgo diz acreditar que o número de pré-candidaturas tende a refluir para a média histórica nas próximas semanas. O levantamento será atualizado e, claro, concluído quando as candidaturas definitivas forem registradas no TSE, no fim de setembro.
Apesar da novidade para os eleitores de agora, esta não será a primeira vez que eleições ocorrem durante uma crise sanitária de tamanha magnitude.
A gripe espanhola, de 1918, também impactou as eleições daquele ano. Os registros da “Agência Senado” apontam, segundo discursos feitos à época, queixas sobre o baixo comparecimento dos eleitores. Uma das mais notórias vítimas da gripe espanhola no Brasil foi o próprio presidente eleito, Rodrigues Alves, que nem chegou a tomar posse. Uma outra eleição fora de época foi realizada.
Hoje, esta saída não está sobre a mesa. Mas parece inevitável que outra característica do pleito de novembro comece a ganhar peso: a falta de definição de um padrão nacional para as campanhas em meio à pandemia.
A intenção do Tribunal Superior Eleitoral é deixar que Estados e municípios definam como se darão os eventos de rua e os comícios, o que converge com a postura da Justiça de delegar para os entes subnacionais a regulamentação dos comportamentos de distanciamento social. Também pode fazer sentido, quando se pondera a extensão do território nacional e suas especificidades. Mas vem a ser tudo o que um governador ou um prefeito pode querer para eventualmente influenciar a campanha, limitando-a ou ampliando seu alcance, de acordo com seus objetivos políticos. A segurança dos eleitores pode ficar novamente em segundo plano.
Falta de regras para a campanha permite arbitrariedades
Será uma experiência única e, lamentavelmente, inesquecível para as atuais gerações. A eleição municipal foi adiada de outubro para novembro devido à pandemia e por esta será marcada.
As curvas de contaminação a serem observadas no fim do ano são uma incógnita, assim como os potenciais índices de abstenção. Mesmo assim, pré-candidatos já conjecturam como podem levar vantagem sobre adversários. Partidos definem suas estratégias. Traçam cenários de como o vírus pode influenciar não só a atual disputa, mas também a correlação de forças políticas para os próximos anos.
Foi neste clima que ocorreram as discussões sobre a conveniência de se adiar ou não as eleições. Num primeiro momento, muitos dirigentes partidários se posicionaram mais em defesa dos interesses de suas próprias legendas do que preocupados com a saúde dos eleitores. Gostariam, na verdade, de poder adiar para o ano que vem as eleições e que seus correligionários permanecessem no comando das prefeituras até o fim do estado de calamidade.
O plano fracassou. Integrantes das cúpulas do Judiciário e do Legislativo logo impuseram, como condição para que as discussões avançassem, que os mandatos dos atuais prefeitos, vices e vereadores não fossem estendidos. Temia-se a criação de um precedente perigoso, num ambiente radicalizado e com atores relevantes da cena política defendendo, sem pudor, o desrespeito à institucionalidade.
Esse risco extremo parece ter ficado para trás, mas não deve ser esquecido. Os números de infecções e mortes, por outro lado, fazem-se cada vez mais presentes no dia a dia do eleitor. Impedem que se esqueça a periculosidade do novo coronavírus.
São pouquíssimos os municípios que não registram casos de covid-19. Menos de 2% do total, segundo um dado recente do Ministério da Saúde, uma realidade que não deve ser desprezada na hora do voto.
No entanto, definido o novo calendário pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), nada mais natural que partidos e parlamentares passassem a se debruçar sobre o tabuleiro. Por isso é de chamar a atenção um levantamento recente do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap) sobre o número de pré-candidatos entre deputados federais e senadores.
De saída, segundo o documento, há 123 congressistas no páreo - 121 deputados e 2 senadores. A tendência é de uma diminuição desse total, mas hoje ele supera a média histórica de 94 candidaturas de parlamentares em eleições municipais.
Os dados da série do Diap começaram a ser coletados no pleito de 1992. Em 2016, 81 deputados e 2 senadores entraram na corrida municipal. Os números de 2012 somaram 87 deputados e 5 senadores. A eleição que eleva a média é a de 1996, quando 121 congressistas concorreram aos cargos de prefeito ou vice-prefeito - 117 deputados e 4 senadores.
Alguns fatores explicam esse aumento de interesse. O fim das coligações proporcionais, por exemplo, faz com que os partidos cogitem lançar “figurões” capazes de puxar votos em suas chapas. As capitais são as principais opções das pré-candidaturas dos parlamentares.
São Paulo e Rio de Janeiro são os Estados com o maior número de interessados, com respectivamente 15 e 14 nomes. Em seguida, aparecem Paraná, Minas Gerais e Bahia, com 9 pré-candidatos em cada uma dessas unidades da federação.
Neuriberg Dias do Rêgo, analista político do Diap, elenca outros aspectos. Existe também uma maior disponibilidade de recursos para os parlamentares custearem as campanhas, aponta: além do chamado fundão eleitoral, o fato de as emendas ao Orçamento terem se tornado impositivas mudou a dinâmica do jogo.
Elas viraram um ativo valiosíssimo em tempos de crise econômica e restrição fiscal. Armas poderosas para fazer política na ponta, movimentar a economia local e promover os próprios congressistas ou seus aliados.
Muitos dos pré-candidatos no Congresso tentarão aproveitar a polarização ou a onda que alçou ao poder policiais, religiosos e representantes da chamada nova política. Acreditam poder influenciar as disputas em bases eleitorais estratégicas para as eleições majoritárias de 2022 ou, no mínimo, terem mais facilidades para concorrer à reeleição. Entre os partidos, os destaques do levantamento do Diap são PT (14 pré-candidatos), PSL (12) e PSB (12).
Contudo, Neuriberg Dias do Rêgo diz acreditar que o número de pré-candidaturas tende a refluir para a média histórica nas próximas semanas. O levantamento será atualizado e, claro, concluído quando as candidaturas definitivas forem registradas no TSE, no fim de setembro.
Apesar da novidade para os eleitores de agora, esta não será a primeira vez que eleições ocorrem durante uma crise sanitária de tamanha magnitude.
A gripe espanhola, de 1918, também impactou as eleições daquele ano. Os registros da “Agência Senado” apontam, segundo discursos feitos à época, queixas sobre o baixo comparecimento dos eleitores. Uma das mais notórias vítimas da gripe espanhola no Brasil foi o próprio presidente eleito, Rodrigues Alves, que nem chegou a tomar posse. Uma outra eleição fora de época foi realizada.
Hoje, esta saída não está sobre a mesa. Mas parece inevitável que outra característica do pleito de novembro comece a ganhar peso: a falta de definição de um padrão nacional para as campanhas em meio à pandemia.
A intenção do Tribunal Superior Eleitoral é deixar que Estados e municípios definam como se darão os eventos de rua e os comícios, o que converge com a postura da Justiça de delegar para os entes subnacionais a regulamentação dos comportamentos de distanciamento social. Também pode fazer sentido, quando se pondera a extensão do território nacional e suas especificidades. Mas vem a ser tudo o que um governador ou um prefeito pode querer para eventualmente influenciar a campanha, limitando-a ou ampliando seu alcance, de acordo com seus objetivos políticos. A segurança dos eleitores pode ficar novamente em segundo plano.
Fernando Exman: Meio ambiente na árida pauta legislativa
Governo busca fato positivo, mas desmate ilegal cresce
Primeiro os deputados conquistaram o protagonismo com o Orçamento impositivo e uma agenda de reformas econômicas. Deram, na sequência, impulso a medidas emergenciais de combate aos efeitos da pandemia, por exemplo com a adoção do Orçamento de guerra, e aprimoraram diversos dispositivos enviados pelo presidente Jair Bolsonaro para tentar irrigar a economia com crédito. Logo avançaram nas discussões sobre questões sociais e asseguraram a prorrogação do Fundeb, o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação, a despeito das resistências da equipe econômica. Agora, o risco do governo é ficar a reboque da agenda ambiental da Câmara.
A administração Jair Bolsonaro tenta sair da defensiva, desde que passou a ser alvo de duras cobranças de países aliados, parceiros comerciais, empresários e investidores.
A má notícia, para o Palácio do Planalto e o Ministério do Meio Ambiente, é que a reversão das péssimas expectativas em relação aos resultados de suas ações para conter o desmatamento ilegal só se dará com a apresentação de dados positivos e confiáveis. No entanto, as estimativas de autoridades que acompanham de perto o assunto não são animadoras.
Espera-se que os dados de desmatamento de 2020 superem os observados no ano passado, quando satélites do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) captaram sinais de derrubadas na Amazônia em áreas que ultrapassaram 9 mil quilômetros quadrados. Um aumento de aproximadamente 85% em relação a 2018.
Segundo essas fontes, deve haver uma desaceleração neste ano e os números não serão tão ruins quanto os projetados num primeiro momento, mas certamente apontarão crescimento do desmate ilegal. Tudo indica que as autoridades do governo não conseguirão apresentar o balanço de dezembro com sorriso no rosto.
Existe, por outro lado, uma mudança conjuntural tanto na visão de setores do governo quanto no Congresso. A bancada ruralista, que muitas vezes interditou a tramitação de propostas advogadas pelos ambientalistas, percebeu que o tema é vital para os negócios de seus representados.
Parlamentares com boas conexões no meio empresarial e no mercado financeiro decidiram se mobilizar. Todos se deram conta de que investidores - nacionais e estrangeiros - exigem uma safra de boas notícias para poderem recolocar o país como destino preferencial em seus portfólios.
O governo tem o que apresentar, mas, para seu desassossego, parece não ter mais audiência. O ministério lançou um programa de pagamento por serviços ambientais e quer estimular o mercado de crédito de carbono.
A Operação Verde Brasil 2 ocorre desde maio e seu mais recente balanço contabiliza a apreensão de 28 mil metros cúbicos de madeira, 93 tratores, 85 máquinas de mineração, 259 embarcações e 174 veículos. Os equipamentos, segundo o vice-presidente Hamilton Mourão, presidente do Conselho da Amazônia, serão destinados para as prefeituras da região. Foram aplicados cerca de R$ 407 milhões em multas.
Essas medidas, embora no caminho correto, foram adotadas tardiamente. E setores do governo permanecem apostando no enfrentamento.
O próprio presidente da República responsabiliza a Câmara por parte do fracasso da sua agenda para o setor. Sempre que pode, lembra: os deputados não votaram a medida provisória que tratava da regularização fundiária, uma proposta considerada fundamental pelo governo para reduzir as ilegalidades na Amazônia e responsabilizar empresas e proprietários por queimadas e derrubadas ilegais. A Câmara tentará votar um projeto de lei com teor semelhante.
No Palácio do Planalto, existe a visão de que está em curso um complô internacional contra a autoridade do Brasil sobre a Amazônia, uma ação orquestrada visando consolidar a imagem de que a região está abandonada e o governo não consegue cuidar da floresta.
Acredita-se que isso se deve, em parte, às sinalizações de que os recursos federais e as verbas obtidas no exterior devem ser destinados prioritariamente às ações de repressão e controle - e não para projetos conduzidos por organizações não governamentais (ONGs).
Com o Congresso entrando para valer no debate, certamente visões antagônicas ganharão mais peso. Os governadores e as bancadas amazônidas serão mais ativos. Isso faz parte do embate democrático e a base aliada terá que mostrar força.
Entre as duas Casas do Legislativo, a Câmara dos Deputados novamente largou na frente. Já está construindo uma ponte com o setor privado e, além de um projeto sobre regularização fundiária, tentará aprovar um marco regulatório para o licenciamento ambiental. Pode entrar também no radar uma proposta com diretrizes para a proteção do bioma marinho.
No Senado, o presidente Davi Alcolumbre (DEM), do Amapá, tem interesse direto nas discussões por ser de um Estado da região e também defende a priorização da regularização fundiária.
Diante do fato de que a agenda ambiental passou a fazer parte das áridas relações entre o Executivo e o Legislativo, um bom começo seria os dois Poderes evitarem a armadilha de transformar essa pauta em um novo fator gerador de fricções institucionais. Espera-se, por exemplo, que o Congresso aprove rapidamente o projeto de lei de abertura de crédito suplementar em favor da Operação Verde Brasil 2, por meio do qual o governo pretende destinar R$ 410 milhões ao Ministério da Defesa.
Nesse mesmo sentido, embora seja uma iniciativa legítima do Parlamento, a criação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar o trabalho das agências e das autoridades federais ambientais certamente fomentaria novos atritos. Essa possibilidade não é vista hoje como algo exequível, mas não é descartada por parlamentares influentes no caso de o governo não atacar de maneira satisfatória o problema do desmatamento ilegal.
Fernando Exman: Um passaporte para a reeleição de Bolsonaro
Cenário para aprovação de nova CPMF é desafiador
Está se consolidando um cenário desafiador para o governo discutir com o Congresso a criação de um novo imposto sobre pagamentos. A equipe econômica e os articuladores políticos do Palácio do Planalto terão dificuldades para convencer os parlamentares de que a ideia de reforçar o caixa do governo com uma espécie de nova CPMF, somada a investidas contra o teto de gastos, não tem relação alguma com o projeto do presidente Jair Bolsonaro de se reeleger em 2022.
Hoje o diálogo entre os chefes dos Poderes é muito mais fluente do que se via poucas semanas atrás. Há exceções, claro, como a recente desavença entre as Forças Armadas e o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, em razão da declaração do magistrado sobre a gestão do Ministério da Saúde por militares durante a pandemia. A tentativa da Polícia Federal de entrar no Congresso para vasculhar o gabinete do senador José Serra (PSDB-SP), impedida pelo presidente Davi Alcolumbre (DEM-AP) com o apoio do STF, tampouco contribui para desanuviar ainda mais as relações entre Executivo, Legislativo e Judiciário. Mas é evidente que o ambiente institucional serenou.
No Congresso, agora o Palácio do Planalto tem uma base de pelo menos 200 integrantes e pode ampliar esse número dependendo do projeto que estiver em discussão. A atual legislatura tem um perfil mais reformista. A falta de credibilidade, contudo, pode ser um obstáculo crescente para o governo conseguir emplacar sua agenda.
As relações institucionais são feitas por pessoas e, como em toda interação humana, a desconfiança dificulta a convivência e a realização de um trabalho conjunto. Parte considerável do Congresso não acredita mais totalmente no que é dito por autoridades do Planalto nem por seus representantes no Legislativo. Acordos são descumpridos. Sinais são trocados entre o discurso e a prática.
A percepção é que o Executivo está cada vez mais dedicado a viabilizar a reeleição de Bolsonaro - uma obsessão do presidente desde os primeiros meses de seu mandato - do que a estabelecer uma agenda comum com o Parlamento. É compreensível, portanto, que os congressistas que não estejam alinhados ao Palácio do Planalto ajam com cada vez mais cautela, antes de encampar as propostas originadas no Executivo. Nessa nova conformação das relações, a intenção de se criar uma nova tributação sobre pagamentos ou transações digitais, uma reedição da antiga Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF), pode ser uma das principais vítimas.
Bolsonaro, historicamente contrário à CPMF, chegou a demitir um secretário da Receita Federal para evitar que o impopular assunto danificasse sua imagem. Agora tenta reposicionar-se no debate.
A argumentação da equipe econômica também está pronta e afiada: a contribuição se faz necessária para reforçar o novo programa de assistência social, o Renda Brasil, e bancar desonerações. Estaria no bojo de uma reforma mais ampla do sistema tributário nacional.
No Palácio do Planalto, o que se diz é que a carga tributária não aumentará e que, pelo menos de um ponto de vista, a CPMF seria um imposto relativamente justo: o valor não chegaria a ser um absurdo e paga mais quem faz um maior número de transações financeiras. Em outras palavras, se estão pedindo um sacrifício da população no pós-pandemia, a abnegação maior precisa vir daqueles que possuem mais dinheiro. O governo conta com o respaldo do Centrão e da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), a qual protagonizou no passado a campanha que ajudou a inviabilizar a prorrogação da CPMF pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Mas o governo sabe que no Congresso o embate não será fácil. A CPMF ficou estigmatizada.
A primeira experiência com esse tipo de contribuição foi feita em 1994. Dois anos depois, o governo da época retomou a discussão sobre a possibilidade de se direcionar essa arrecadação para a área da saúde. O provisório foi se tornando permanente, até que no fim de 2007 a Câmara dos Deputados aprovou a prorrogação do tributo até 2011, mas o Senado barrou a iniciativa.
O governo Lula ponderava que o fim da CPMF acarretaria numa perda de arrecadação de aproximadamente R$ 40 bilhões em 2008, mas o argumento não sensibilizou o Senado. Apesar de ter sido criada sob a alegação de que seria usada para financiar a saúde, seus recursos sempre foram destinados para outras áreas.
A derrota virou uma questão de honra para Lula. O ex-presidente fez de tudo para derrotar nas eleições seguintes os algozes da proposta de prorrogação da CPMF, os quais, por sua vez, passaram a dizer que a votação da manutenção do imposto seria um teste do governo para depois tentar emplacar uma PEC para permitir um terceiro mandato do petista.
Mesmo que essa correlação não tivesse base na realidade, é inegável que a aprovação da prorrogação da CPMF daria um grande fôlego para o governo imprimir sua marca no restante do mandato de Lula às vésperas das eleições seguintes. Beneficiaria tanto Lula quanto seus aliados.
Conjectura semelhante pode ser feita agora, com uma grande diferença: o governo atual teria que burlar ou alterar as regras que regem o teto de gastos, a grande âncora fiscal, para poder aumentar despesas ou investimentos. O problema de Bolsonaro é que sinais nesse sentido já estão sendo captados tanto por parlamentares quanto por economistas.
Os opositores de uma nova CPMF insistem que essa contribuição sobre pagamentos é regressiva e punirá os mais pobres. Inevitavelmente, a esquerda tentará retomar a discussão da tributação de grandes fortunas, sob o argumento de que esta sim seria a forma mais justa de reforçar os cofres públicos. No pano de fundo das discussões, no entanto, permanecerão as suspeitas sobre os reais objetivos do governo. A confiança é um produto em escassez na Praça dos Três Poderes.