Fernando Dantas

Fernando Dantas: E se acontecer no Brasil?

Para cientista político Octavio Amorim, invasão do Capitólio reforça que centrodireita e militares têm papel fundamental para evitar que Bolsonaro atente contra a democracia nos próximos dois anos. Mas para derrotar Bolsonaro nas urnas, o dever de casa principal está com a esquerda

A invasão ontem do Capitólio por uma horda de extremistas, atiçada pelo presidente derrotado Donald Trump, trouxe de imediato o temor de que fatos semelhantes, ou até piores, possam ocorrer no Brasil em 2022, caso de Bolsonaro seja batido nas urnas.

Após o tumulto em Washington DC, Bolsonaro voltou a lançar suspeitas completamente infundadas sobre a eleição nos Estados Unidos e sobre o sistema eleitoral brasileiro.

Para o cientista político Octavio Amorim Neto, da Ebape-FGV, o risco é real: “Se uma democracia tradicional e antiga com os Estados Unidos podem passar por isso, imagina a nossa no Brasil, que tem 35 anos – está claro que bravatas presidenciais podem ter consequências radicais e deletérias para a democracia”.

Por outro lado, ele nota, “a ideia da necessidade de defender a democracia do extremismo de extrema-direita se fortalece no mundo inteiro com a invasão do Capitólio”.

Amorim cita editoriais da The Economist e do Financial Times, bíblias do establishment global, de ontem para hoje, com esse teor.

Mesmo aliados importantes de Trump, como o seu vice, Mike Pence, e o líder no Senado, Mitch McConnell, se distanciaram como puderam do episódio de ontem, condenando fortemente os invasores e contribuindo para que a certificação de Joe Biden como próximo presidente dos Estados Unidos ocorresse hoje com tranquilidade no Congresso.

O caos de ontem fez com que vários membros republicanos do Congresso que sinalizavam votar contra os resultados da eleição no Arizona e na Pennsylvania mudassem de posição. Ao final, a vitória de Biden foi confirmada por maciça maioria.

Amorim Neto lembra também da carta aberta, do início de janeiro, exortando as forças armadas norte-americanas a não se envolverem nas tentativas desesperadas de Trump de invalidar a eleição. O documento foi assinado pelos dez ex-secretários de Defesa ainda vivos, incluindo dois que serviram ao próprio Trump. A iniciativa foi coordenada pelo arquiconservador Dick Cheney, que serviu ao presidente George W. Bush.

No Brasil, essa ficha global que caiu, da necessidade de a direita que se pretende decente desembarcar definitivamente do trem do populismo de extrema-direita, pode ter efeito até na eleição para presidência da Câmara, na visão do analista.

O temor do risco à democracia representado pelo extremismo de direita poderia trazer mais alguns votos de centro-direita para a candidatura do deputado Baleia Rossi (MDB-SP), que disputa a presidência da Câmara com Arthur Lira (PP-AL), apoiado por Bolsonaro.

“Os políticos têm que analisar seriamente esse tipo de decisão, é hora de deixar de lado o cálculo individualista e a política do varejo, e pensar de forma mais ampla em qual candidatura fortalece o regime democrático no Brasil”, diz o cientista político.

Segundo Amorim Neto, “a bola está com a centro-direita e o Exército”, em termos de conter as ações antidemocráticas de Bolsonaro nos dois anos que lhe restam de governo. Na sua visão, são esses dois atores que mais têm o poder de subtrair do atual presidente a capacidade da atentar contra a democracia.

O cientista político diz que é difícil traçar a linha entre direita e centro-direita hoje em dia, com atores políticos em constante mudança (como João Doria). Mas a frase acima, sobre o papel da centro-direita, abarca, na sua definição, todos aqueles do centro à direita que não fazem parte do grupo extremista que apoia Bolsonaro de forma incondicional.

O papel do Exército também é fundamental. Amorim Neto observa que, em entrevista hoje à BBC sobre a invasão do Capitólio, o célebre cientista político norte-americano Steve Levitsky, autor do recente bestseller “Como as Democracias Morrem”, declarou que o “autogolpe” de Trump só fracassou por não ter apoio dos militares.

Um complicador adicional no caso brasileiro – e também americano, de certa forma – é o cultivo constante que Bolsonaro faz das forças policiais, especialmente da PM, a cujas formaturas o presidente comparece o mais que pode.

Embora em última instância o poder armado superior esteja com os militares, a capacidade de forças policiais, mobilizadas em favor de um presidente, de facilitar e até alimentar movimentos revoltosos não deve ser subestimada. Há uma especulação, inclusive, de que certa leniência da polícia diante dos invasores do Congresso americano poderia estar ligada à simpatia por Trump de grande número dos policiais envolvidos.

Amorim Neto nota que, durante a campanha presidencial, uma associação policial dos Estados Unidos chegou a apoiar Trump, o que deveria ser um ato impensável, a seu ver.

Mas o cientista político acrescenta que, se, em termos de refrear as ações autoritárias de Bolsonaro até 2022, “a bola está com a centro-direita e os militares”, em termos de derrotar o atual presidente na próxima eleição, “a bola está com a esquerda”.

Para ele, “se a esquerda continuar no seu gueto, lançar um candidato como Lula e fazer uma campanha radical, estará ajudando Bolsonaro a se reeleger, caso o presidente sobreviva ao dificílimo ano de 2021 e chegue competitivo a 2022”.

Segundo Amorim Neto, “a esquerda precisa ter sabedoria, se unir, e pensar seriamente em apoiar um candidato de centro em 2022”.

Fernando Dantas é colunista do Broadcast (fernando.dantas@estadao.com)

Esta coluna foi publicada pelo Broadcast em 7/1/2021, quinta-feira.


Fernando Dantas: O liberalismo falhou de novo?

Na minha visão, não (respondendo à pergunta do título). Nesta coluna, tento explicar o porquê.

O superchoque do coronavírus parece ser mais um prego no caixão da retomada da economia brasileira em 2020 em ritmo mais animador. No auge do furacão, não há nem como falar quais serão os impactos no crescimento ao longo do ano. Mas certamente o sonho de crescer no intervalo entre 2,5% e 3% parece enterrado nas brumas do passado recente.

Acumulado com expansões anuais de ligeiramente mais do que 1% desde 2017, o resultado projetado para 2020 reacendeu o debate sobre o “fracasso” da política econômica liberal no Brasil.

Com efeito, a partir de 2016, as equipes econômicas que se sucederam no comando da economia brasileira têm perfil liberal e ortodoxo. E fica difícil “culpar o PT” ou a recessão de 2014-2016 pelo que está acontecendo quatro anos depois.

Assim, na arena do discurso político, mais uma narrativa de fracasso do liberalismo vai sendo montada.

Mas será mesmo?

O Brasil é uma economia com carga tributária, ao longo das últimas décadas, dependendo do critério, na faixa de 30-35% do PIB. Países emergentes ao gosto do que pregam os economistas liberais estão numa faixa mais próxima de 20%.

O Brasil gasta por volta de 13% do PIB com Previdência e outros benefícios a idosos, enquanto uma visão ortodoxa de economia recomendaria algo como metade daquele percentual. As pensões por morte brasileiras ultrapassam 4% do PIB, enquanto o número aceitável seria de no máximo 2%.

O déficit público nominal brasileiro em 12 meses roda acima de 5,5% do PIB há vários anos, quando países que “fazem o dever de casa” em termos de ortodoxia costumam ter resultado fiscal equilibrado ao longo do ciclo econômico, ou pelo menos não muito longe disso.

O Brasil ainda tem sistemas previdenciários distintos para o setor público e o setor privado, com o primeiro sendo muito mais generoso. Uma visão liberal da Previdência daria preferência a um sistema único e equânime. No Brasil, grande parte dos benefícios previdenciários e sociais é indexada ao salário mínimo, que cresceu acima da inflação durante décadas, criando uma despesa gigante de transferência que asfixiou os investimentos e a expansão dos serviços públicos. Economistas ortodoxos costumam defender benefícios sociais e previdenciários corrigidos por índices de inflação relativos à cesta de consumo dos grupos que os recebem.

No Brasil, bem mais de 90% do gasto primário federal é carimbado, e, na maior parte, destinado a transferências a pessoas, na forma de Previdência, salários do funcionalismo e programas sociais. Uma abordagem liberal do orçamento, como insiste o ministro da Economia, Paulo Guedes, teria uma grande parcela dos recursos discricionária, e daria preferência a investimentos ou custeio para expandir serviços públicos de qualidade. No Brasil, o investimento público federal (excluindo estatais) é de pífios 0,5% do PIB, o que revela uma estrutura de gasto público que jamais um liberal recomendaria.

No Brasil, o governo destina todo ano subsídios às empresas da ordem de 4% a 5% do PIB, sem nenhuma ou quase nenhuma avaliação sobre os supostos efeitos positivos destas transferências de dinheiro público. A “receita liberal” prevê subsídios muito menores, e cuja manutenção depende da avaliação de impactos.

A Constituição brasileira é muito longa, e dispõe sobre uma enorme variedade de temas, tornando necessárias emendas constitucionais para praticamente todas as mudanças mais profundas na organização do Estado e da economia. Liberais costumam ser favoráveis a Constituições curtas, genéricas e que estabeleçam princípios gerais, de forma que quase toda a política pública pode ser feita por leis ordinárias.

O sistema tributário nacional é um dos mais complexos do mundo, repleto de exceções e regimes especiais. Nos países que economistas liberais veem como modelos, os sistemas tributários são mais simples e tão uniformes quanto possível, com a exceção da progressividade distributiva, em que o Brasil, em particular, não vai muito longe.

A observância tributária e burocrática é extremamente custosa para as empresas que operam no Brasil, e emprega capital humano altamente qualificado. A recomendação liberal é que seja simples e fácil pagar impostos e se adaptar às exigências burocráticas, de forma que os trabalhadores mais preparados e talentosos possam se dedicar a aumentar a produtividade das empresas.

O ambiente de negócios brasileiro é classificado como dos piores do mundo em rankings internacionais de países, que foram criados justamente para incentivar uma visão liberal de organização da economia.

O Judiciário no Brasil é extremamente complexo, lento, ritualístico e formalista. Várias das nações para os quais os liberais olham como exemplo têm sistemas judiciais mais simples, velozes, pragmáticos e com um pé no senso comum.

A maior empresa brasileira, a Petrobrás, é uma estatal que opera em um ambiente que, na prática, ainda é de quase monopólio. Diversos setores produtivos nacionais, como também costuma apontar Guedes, são dominados por um pequeno grupo de participantes, com considerável poder oligopolista. A visão liberal de economia, por outro lado, valoriza a competição.

O Brasil é uma das economias mais fechadas do mundo, com alíquotas tarifárias altas e uma teia de preferências para empresas nacionais. Liberais preferem países mais abertos e com menor proteção para as empresas nacionais.

Seria possível continuar por muito mais linhas de texto com as discrepâncias entre o que o Brasil é e o que seria um “modelo liberal” de país. Temas como a estrutura federativa supercomplexa de três níveis e a falta de clareza e transparência em relação aos recursos disponíveis e as atribuições das diversas esferas e partes dos governos, abrangendo todos os Poderes. A capacidade de entes subfederativos, como os Estados, de incorrerem em déficits e dívidas impagáveis e buscar socorro financeiro na União, com a cumplicidade do Judiciário. A dificuldade em executar garantias. O desempenho desastroso da produtividade nas últimas décadas. A má qualidade da educação, mesmo quando comparada com países de renda equivalente. Etc. etc.

Toda essa longa lista de características antiliberais da economia e das instituições brasileiras são traços entranhados da sociedade nacional, alguns remontando à Constituição de 1988 e ao período da redemocratização, mas muitos outros com raízes bem mais profundas, por vezes seculares. São um arcabouço institucional que espelha a ação histórica de poderosos grupos de interesse, que ainda estão ativíssimos na tarefa de defender suas vantagens.

Necessariamente, o trabalho de reformar a sociedade para trazê-la para mais perto do modelo liberal é lento, arrastado, penoso, cheio de idas e voltas, acertos e erros etc. Nesse sentido, interpretar a atual dificuldade de crescer da economia brasileira como mais um “fracasso da visão liberal” é uma ideia profundamente equivocada.