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Fernando Abrucio: Estratégias para não repetir o maior erro da eleição de 2018
As principais políticas públicas do país estão no caminho errado. O desempenho do Ministério da Saúde no combate à covid-19 foi um dos piores do mundo. A área ambiental foi destruída pelo antiministro e, enquanto ele continuar no cargo, o mundo não vai acreditar nas promessas feitas pelo governo brasileiro. O MEC abandonou os governos subnacionais e as escolas na pandemia, o que vai aumentar a desigualdade entre os alunos, no curto e no longo prazo. A lista de equívocos é longa e assustadora, e sua origem inicial está no processo eleitoral de 2018. Como evitar a repetição desse erro é uma das tarefas fundamentais para sair das trevas atuais.
Várias razões explicam as origens desse erro eleitoral, mas uma delas foi estratégica: a campanha foi muito curta e, sobretudo, houve poucos debates públicos com os principais candidatos, o que ficou ainda pior por causa da ausência do vencedor da eleição na controvérsia direta contra seus oponentes. Em defesa do presidente eleito pode-se dizer que ele sofrera um terrível atentado, o que é verdade. Mas no segundo turno Bolsonaro foi a inúmeros eventos públicos e deu entrevistas ao “jornalismo-amigo”, de modo que poderia ter ido aos debates contra seu adversário, mas preferiu fugir.
Bolsonaro não foi aos debates porque estava despreparado para ocupar a Presidência da República. Há três provas cabais disso, vinculadas ao seu plano de governo, às qualidades técnicas e políticas dos apoiadores mais próximos e do próprio futuro presidente, bem como à visão de mundo mais geral do bolsonarismo, tanto em termos de projeção de futuro para o país, como também em seu comportamento político.
Em primeiro lugar, o programa de governo foi o pior feito por um presidente eleito desde a retomada da democracia. Reduzido no tamanho e com pouquíssimo aprofundamento das ideias propostas, o programa de governo bolsonarista espalhava slogans e mitos sem a devida comprovação. Com erros básicos no uso dos dados, que nem mesmo alunos do primeiro ano de faculdade cometeriam, o projeto bolsonarista era claramente anticientífico, pois as principais evidências em educação, meio ambiente, segurança pública e saúde foram completamente ignoradas.
Uma lição ficou dessa história: os programas de governo precisam ser mais discutidos pela sociedade e, particularmente, pela imprensa de massa, como a TV. Geralmente, a mídia faz umas poucas matérias sobre as propostas formalizadas dos candidatos, mas o melhor caminho seria chamar, num primeiro momento, os candidatos para discutirem os programas de todos, e, num segundo momento, chamar especialistas nacionais e até internacionais, nas várias áreas de políticas públicas, para discutir a pertinência das ideias de cada concorrente. Quanto mais houver escrutínio público dos programas de governo, mais chances haverá de se evitar que despreparados cheguem à Presidência da República.
O segundo fator que comprova o despreparo de Bolsonaro está na qualidade das pessoas que apoiaram mais diretamente sua candidatura. Como já disse em artigo recente, os piores nomes dominam hoje grande parte dos postos da Esplanada dos Ministérios. Quem não percebeu isso, procure lembrar o nome do ministro da Educação e compare suas ideias para a área com o que é feito pelos países com melhor desempenho educacional. E não para por aí. Por mais de um ano, o Ministério da Saúde foi ocupado por pessoas que desconheciam completamente o setor – o próprio ex-ministro Eduardo Pazuello disse que nem sabia o que era o SUS. A militarização da política sanitária provou que não se pode improvisar com problemas coletivos complexos, pois uma pessoa pode ser habilitada para uma função e ser completamente despreparada para outra.
O pior de tudo isso é que o Brasil tem grandes acadêmicos, especialistas e gestores governamentais reconhecidos internacionalmente. Uma procura em bons sites especializados traria uma lista de nomes qualificados. Quantos desses foram chamados pelo atual governo? Quase ninguém. Bolsonaro prometeu que só chamaria “técnicos” para compor o núcleo de seu governo. Promessa descumprida: colocar policiais militares no Ibama, gente com currículo acadêmico pífio na educação, pessoas que nunca trabalharam com a cultura na respectiva secretaria, para ficar só em alguns exemplos, demonstra como o governo Bolsonaro é formado por amadores despreparados para as várias funções, que só estão lá porque obedecem completamente ao chefe maior.
Os debates na campanha deveriam discutir os principais nomes que assessoram os candidatos e que podem se tornar peça-chave para a qualidade do futuro governo. Mas não só o time de assessores faz diferença. É necessário também analisar a trajetória e as características pessoais dos presidenciáveis. Olhando para a biografia de Bolsonaro, não só ele não tinha comprometimento com a democracia e não fizera nada de relevante em 30 anos de Congresso Nacional, como nunca aprendera nada com as mudanças no mundo. Como todo governante despreparado, não é capaz de admitir e aprender com suas falhas. Isso poderia ter sido mais colocado em questão durante a campanha.
Há um terceiro e último elemento que já antecipava o despreparo para o cargo presidencial. Trata-se da forma como Bolsonaro e seu grupo se colocam frente ao mundo, em termos de ideias sobre o futuro almejado para o Brasil, formas de reagir à adversidade e a disposição em dialogar e aprender com os outros. Desde a campanha, percebeu-se que o bolsonarismo tinha um modus operandi muito claro: queria a volta ao passado em termos de valores e políticas públicas, não tinha muito respeito pela democracia e incentivava o ódio aos adversários.
O que vigora no grupo governante é o que pode ser chamado de “Planeta Bolsonaro”. Neste lugar distópico, imperam ideias e propostas que não são adotadas e/ou implementadas por nenhum outro país bem-sucedido nas diversas políticas públicas. A proposta educacional bolsonarista contém o contrário dos cardápios utilizados por nações que melhoraram sua educação nos últimos anos. A visão sobre a questão ambiental do bolsonarismo é o inverso do que está se firmando como um consenso mundial. Na mesma linha, a luta contra a desigualdade, não só de renda, mas com ações de defesa de minorias e da diversidade, é um processo crescente no mundo, enquanto as políticas do governo brasileiro vão no sentido contrário.
A construção do “Planeta Bolsonaro”, como um “mindset” que organiza o atual governo, não dialoga com as ideias e grupos que procuram enfrentar os desafios do século XXI. O Brasil ficará ainda mais para trás com as políticas do governo do presidente Joe Biden, nos Estados Unidos, que vão inspirar boa parte do mundo. A fonte desse reacionarismo radical vem de uma parcela da sociedade brasileira, que pode ter de um quinto a um terço dos eleitores, que está preocupada em evitar que as transformações do mundo contemporâneo cheguem aos seus lares. Não detém a maioria da população, mas consegue emperrar as necessárias decisões que deveríamos tomar para não construirmos aqui um salazarismo do século XXI, para lembrar o ditador português que atrasou por décadas a modernização da sociedade portuguesa.
A campanha de 2022 não pode repetir a de 2018. Os programas de governo devem ser discutidos exaustivamente. Não importa quais serão os candidatos: eles precisam falar mais sobre suas ideias, definirem como lidarão com situações difíceis, debaterem com outros concorrentes e serem testados pelo contraditório de especialistas, jornalistas independentes e cidadãos. Afinal, bons governos baseiam-se em propostas consistentes que necessariamente têm de passar pelo debate público.
Além disso, os nomes dos assessores devem ser conhecidos e analisados profundamente. Uma prévia de boa parte da equipe governamental deveria ser apresentada por todos os concorrentes. Desse modo, seria possível confrontar o plano de governo com a biografia e qualidade de seus prováveis implementadores. Soma-se ainda a isso a necessária análise das trajetórias e características de cada um dos presidenciáveis, tomando como principais qualidades a habilidade de dialogar e de agregar, além da capacidade de aprender com seus próprios erros.
Tão importante quanto o programa de governo e o conhecimento dos membros que o implementarão é a análise do “mindset” de cada grupo que disputa a Presidência. Sugiro quatro questões orientadoras aos condutores dos debates que deveriam ser feitas para todo concorrente a presidente. Primeira: como o senhor imagina que deve ser o país daqui a 20 anos num conjunto amplo de áreas (educação, meio ambiente, saúde, economia, cultura)? Segunda: que medidas adotará para que esse cenário se realize? Terceira: em que ideias, experiências de países e líderes governamentais o senhor se inspira para propor mudanças ao Brasil? E, por fim, como reunirá as pessoas em torno de suas propostas?
Para que uma campanha melhor aconteça em 2022, o período eleitoral deve ser maior e as regras sobre os debates deveriam ser melhoradas, fortalecendo o contraditório baseado em conhecimento sobre as políticas públicas. É sobre isso que o Congresso Nacional e a sociedade deveriam estar debruçados agora se quiserem que o Brasil tenha futuro. Seria a melhor reforma política para enfrentar as barbaridades produzidas no “Planeta Bolsonaro”.
*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas
Fonte:
Valor Econômico
Fernando Abrucio: Bolsonaro é o adversário do centro
O cenário mais provável para 2022 é de um peso enorme para o antibolsonarismo
A volta de Lula para a ribalta da política fez as peças do tabuleiro de 2022 se mexerem. O primeiro a sentir essa mudança foi o presidente Bolsonaro, que colocou até máscara e teve de trocar o ministro da Saúde, mais pelo discurso de São Bernardo do que pelas mais de 270 mil mortes causadas pela covid-19. Já a oposição de Centro ficou muito abalada pela decisão do STF e reagiu na linha do antipetismo. É natural que a maioria dos contrários ao PT reagisse negativamente, inclusive Ciro Gomes, que terá de conquistar boa parte da centro-esquerda. Passado o choque inicial, deveria vir o diagnóstico eleitoral. Neste ponto, uma coisa é clara: o principal adversário do Centro é Bolsonaro.
Entender quem é seu oponente central e descobrir como enfrentá-lo são os dois passos estratégicos para quem quer entrar na disputa política. O posicionamento de Bolsonaro e do lulismo no jogo político está bem claro. Ainda há dúvidas sobre como Ciro Gomes vai se reposicionar. Mas a maior incógnita está no Centro oposicionista (em contraposição ao Centrão), que congrega vários partidos e candidatos com pretensões presidenciais, tem importantes governos estaduais e capitais em suas mãos, além de ter um suporte de importantes grupos sociais. É um cabedal político muito forte, mas que por ora está fragmentado e não consegue produzir um projeto eleitoral nítido.
O discurso contra a polarização gerada pelo bolsonarismo versus o lulismo serve para criar uma identidade, mas é claramente insuficiente para se vencer a eleição. Três razões embasam esse argumento. A primeira é que o jogo político da redemocratização tem se organizado de forma polarizada, no sentido estrito da ciência política: duas forças têm predominado na eleição presidencial, com pouco espaço para uma terceira via.
Na primeira eleição direta da redemocratização, houve uma grande dispersão no primeiro turno, particularmente porque os partidos estavam ainda se organizando e se posicionando frente à sociedade. Foi só depois do impeachment do presidente Collor que se estruturou o eixo polarizado do sistema político brasileiro. Assim, de 1994 a 2014, a disputa presidencial brasileira foi orientada pela competição entre PSDB e PT. Ou, nos termos do excelente livro de César Zucco e David Samuels (“Partisans, Antipartisans, and Nonpartisans: Voting Behavior in Brazil”), criou-se uma dicotomia entre petismo e antipetismo que estruturou as preferências dos eleitores por pelo menos 20 anos. Em todas as eleições presidenciais da redemocratização, o Partido dos Trabalhadores esteve no segundo turno, perdendo em quatro ocasiões (1989, 1994, 1998 e 2018) e ganhando nas outras quatro vezes (2002, 2006, 2010 e 2014).
A força petista, bastante vinculada à liderança do ex-presidente Lula, é algo que tem levado os demais grupos políticos a lutar para ser o outro lado desse jogo. Seguindo essa lógica, o Centro disputa com Bolsonaro para ver quem será o adversário do petismo. Esse raciocínio foi esquecido por muitos analistas políticos e, especialmente, por lideranças centristas de oposição. Talvez estivessem pensando que tal fator não apareceria mais em 2022, pois o antipetismo cresceria de tal forma que a escolha seria de um nome não-petista para competir com Bolsonaro.
E aqui entra a segunda razão pela qual o Centro tem de ir além da narrativa da polarização entre PT e Bolsonaro: o principal eixo da eleição de 2022 será o antibolsonarismo, do mesmo modo que a disputa presidencial de 2018 teve no antipetismo sua peça-chave. A crise atual é imensa, mas claro que o governo pode se recuperar às vésperas do pleito. Só que o cenário político aparenta ter mais pedras e espinhos no caminho bolsonarista do que esperança de uma reeleição tranquila.
A lista de fatos problemáticos para o governo é extensa. A crise da pandemia terá seus piores momentos nos próximos três meses, quando a cobertura vacinal será muito baixa e não haverá ainda vacinas para um bom contingente da população. As mortes se multiplicarão e serão cada vez mais dramáticas, como foram em Manaus. Num cenário como esse, além da revolta de boa parte da população com o fracasso da política de saúde, não há a menor chance de a economia andar no primeiro semestre. O auxilio emergencial agora será bem menor e a popularidade obtida no ano passado não se repetirá.
Nos próximos meses, incluindo o início do segundo semestre, Bolsonaro perderá muita popularidade. Não se sabe ainda qual é o seu piso, mas se chegar mais próximo dos 20%, o Centrão cobrará caro para evitar o impeachment ou a transformação do presidente num “lame duck” (pato manco), sem autoridade até com quem lhe serve o café. Esse preço causará mais danos sobre a imagem presidencial, bem como uma possível piora na parte fiscal. Tudo isso num contexto em que os juros poderão subir para se evitar a inflação, em que o dólar não vai cair porque o descrédito do Brasil só acabará com uma mudança radical desse governo (algo difícil de acontecer) ou quando assumir o próximo.
O aumento da cobertura vacinal e o impulso econômico vindo de fora poderiam ser dois empurrões para a recuperação econômica brasileira e, com isso, o presidente poderia subir novamente nos indicadores de popularidade. É uma hipótese possível, mas que ainda terá que competir com vários escândalos envolvendo a família Bolsonaro e que vão assombrar o Planalto até o fim do mandato. Soma-se a isso o fracasso em outras áreas de políticas públicas, como educação, meio ambiente e garantia de direitos humanos nas questões de gênero e raça, para não falar do sepultamento de qualquer política anticorrupção.
Todos esses fatos tendem a levar um grande contingente de eleitores a não votar em Bolsonaro, mesmo que ocorra alguma bonança econômica, até porque esta será suave e sem as proporções de um Plano Real ou do desempenho do segundo governo Lula. Neste sentido, uma eventual reeleição de Bolsonaro tenderia a ser mais parecida com a de Dilma, isto é, de alguém que ganha com uma diferença ínfima e que teria uma altíssima rejeição, inclusive de grupos com forte capacidade de mobilização. Uma vitória assim é a antessala para a ingovernabilidade, como já vimos por duas vezes desde a redemocratização.
O cenário mais provável para 2022, portanto, é de um peso enorme para o discurso antibolsonarista. Isso não impede Bolsonaro de chegar ao segundo turno, do mesmo modo que o PT foi para a disputa final em 2018 quando foi o auge do antipetismo. Mas, nesta situação, Bolsonaro e suas ideias se transformam no espantalho a ser batido. Quem percebeu isso? Lula, muito mais do que o PT, e num só discurso se colocou como mais antibolsonarista do que o Centro em dois anos de mandato. Ao fazer esse movimento, o ex-presidente tornou-se o líder mais apto a conquistar o eleitorado mais de centro-esquerda e os eleitores das classes D e E. Se o centrismo de oposição não radicalizar seu viés contrário ao presidente da República, inclusive encampando o impeachment ou atuando para criar CPIs, perderá o trem da história.
Uma ressalva poderia ser feita pela oposição de Centro: contava-se com uma candidatura petista que não fosse Lula. Na verdade, não há ainda nem a certeza de que o ex-presidente poderá ser candidato, visto que o STF é a instituição menos previsível da democracia brasileira. O que poderia ser um alento para os antipetistas é, antes de mais nada, miopia, uma vez que, sendo candidato ou não, Lula terá muito mais influência do que na eleição de 2018, seja porque o antipetismo será menor e a história da “prisão injusta” vai conquistar mais gente agora, seja porque Bolsonaro estará em declínio.
Esta é a terceira razão que deveria levar o Centro a criar uma estratégia mais consistente do que o mero discurso da polarização: sendo ou não candidato, a influência de Lula tende a ser capaz de garantir mais de 30% dos votos do primeiro turno, se não mais - afinal, Fernando Haddad, nome nacionalmente pouco conhecido, com Lula preso e no auge do antipetismo, teve 29,28% na votação inicial. Em outras palavras: é muito difícil que um representante do lulismo não esteja no segundo turno. O outro oponente sairá da luta entre Bolsonaro e seus outros adversários.
Encurralar Bolsonaro e lhe fazer uma dura oposição, que torne claro o seu antibolsonarismo para a população, é o melhor caminho para o Centro ganhar um lugar no segundo turno da eleição presidencial. Para tanto, é preciso começar agora esta tarefa, e não deixar para o ano que vem, marcando por um longo tempo uma posição, de modo a torná-la eleitoralmente consistente. Poderia começar por defender uma visão favorável ao impeachment ou a uma responsabilização pública mais forte do presidente. Quem estiver nitidamente com a maioria do povo nos próximos meses, que serão os piores da pandemia, poderá ser recompensado em termos de apoio político.
Mas essa atuação centrista deve ser precedida por uma proposta alternativa de políticas públicas e, sobretudo, da união em torno de uma posição antibolsonarista, criando uma identidade mais relevante do que a narrativa da polarização. Muitos do Centro já falam num candidato único, que seria a solução política mais efetiva, porém, esse esforço só fará sentido para se chegar ao segundo turno se conseguirem destronar Bolsonaro da posição de adversário preferencial do PT.
*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas
Fernando Abrucio: Bolsonaro nos afasta do século XXI
A covid-19 é o mal imediato, mas o problema mais profundo está na visão arcaica, míope e populista de nosso presidente
O Brasil chegou ao seu pior momento da pandemia e o governo Bolsonaro tem apenas sabotado o país. Milhões de casos, milhares de mortes, sistema de saúde em colapso, aumento da pobreza e da desigualdade, além do confronto com governadores, prefeitos e mercado, tudo de uma vez só. Esse é o retrato atual da nação. Mas é possível ver a luz do fim do túnel e imaginar que no segundo semestre, após a vacinação de boa parte da população e com os ventos positivos da economia internacional, sairemos do momento mais crítico da crise. O problema é que o dia seguinte da covid-19 deixará o rei nu, mostrando que o presidente não tem a menor ideia do que fazer para enfrentarmos os desafios do século XXI.
Muitos analistas já estão apresentando um cenário pós-pandemia alvissareiro, com melhor desempenho econômico em 2022. Por esta ótica, a crise sanitária da covid-19 é o “bode na sala”: basta retirarmos esse bicho que nos incomodou tanto que tudo voltará ao normal. Trata-se de uma visão míope, que olha apenas para o curto prazo.
Há dois grandes erros nesta percepção de que a pandemia é apenas o “bode na sala”. O primeiro deles deriva do fato de que haverá sequelas da crise impulsionada pela covid-19. Não será fácil apagar a dor dos parentes que viram seus próximos morrerem, das pessoas que sofreram com a doença, daqueles que perderam emprego ou tiveram sua vida virada de cabeça para baixo. A vacinação em massa e o impulso externo têm boas chances de ativar a roda da economia até o fim do ano, mas as taxas de desemprego dificilmente voltarão ao patamar anterior à eleição de Bolsonaro.
Uma das sequelas da crise é o aumento, ainda em curso, do contingente de descontentes que não mudarão sua visão apenas com a melhoria do cenário econômico. Puxando esse processo, há uma parcela significativa da população que avalia muito mal a gestão da política de saúde, algo que foi catapultado pelo fracasso inicial no processo de vacinação. Na verdade, consolidou-se num patamar próximo à metade do eleitorado, uma visão negativa sobre a capacidade de o governo gerir qualquer coisa. O fracasso não ocorreu apenas no plano sanitário. Ele também é nítido, especialmente para a população mais pobre, na política educacional, que foi abandonada por um MEC que nem consegue gastar o dinheiro que tem. A sensação de incompetência também aparece em outros setores, como meio ambiente e cultura, por exemplo, nos quais o bolsonarismo só fez por destruir.
Assim, além do radicalismo dos valores e da lógica política de guerra, o modelo bolsonarista caracteriza-se hoje, para grande parte da população, como um governo de incompetentes. Há uma enorme lista de ministros e auxiliares que são reconhecidos pela opinião pública como desastrosos. Mesmo que a economia seja puxada um pouco para cima, quase que naturalmente, pelo fim da pandemia, não parece haver muito espaço para Bolsonaro ampliar seu eleitorado por meio de políticas públicas.
Não por acaso a sua presidência alicerça-se numa concepção que independe ou é contraditória com uma lógica estruturada de políticas públicas. Bolsonaro busca legitimidade no terreno dos valores tradicionais, na criação de inimigos para seu séquito de apoiadores odiar e, cada vez mais, em medidas populistas que não são sustentáveis ao longo do tempo, mas que geram um alívio imediato em públicos-alvo importantes do bolsonarismo. Todo o debate recente sobre os preços dos combustíveis, com a mudança abrupta na gestão da Petrobras e a criação de um paliativo tributário, tem como objetivo contentar momentaneamente caminhoneiros, motoristas de aplicativos e afins. O que será feito para garantir no longo prazo essa política está fora do alcance do populismo bolsonarista.
Em poucas palavras, a crise da covid-19 revelou claramente que o governo Bolsonaro é adepto de um populismo imediatista, pouco preocupado em construir políticas públicas consistentes e bem estruturadas, seja porque seleciona basicamente gestores incompetentes, que estão lá porque têm juízo de obedecer, seja porque o bolsonarismo não tem nem um diagnóstico nem um plano para transformar o Brasil.
A falha da visão otimista alicerçada na teoria da pandemia como “bode na sala” vai além de não perceber as sequelas deixadas pela gestão populista da crise da covid-19. O maior problema do bolsonarismo reside na ausência de uma agenda para enfrentar os desafios do século XXI. O governo oscila entre a defesa de ideias completamente ultrapassadas e a proposição de ações puramente imediatistas. Trata-se um populismo que bebe em visões arcaicas de sociedade e do modelo político - incluindo aqui sua defesa nefasta da ditadura militar -, ao mesmo tempo que procura saídas fáceis para resolver as demandas do eleitorado, como mudanças no Código Nacional de Trânsito como forma de “libertar” os motoristas ou a ampliação gigantesca do uso de armas como forma de garantir a paz do “cidadão de bem”.
A opinião pública em geral e as elites econômica e política continuam discutindo as ações e os factoides de curto prazo criados por Bolsonaro, mas deixam de lado a ausência de uma agenda minimamente antenada com as principais questões contemporâneas. Esse fenômeno já vinha de antes, porém, aprofundou-se com o bolsonarismo: perdemos a capacidade de pensarmos o futuro do país e de dialogarmos com as principais tendências internacionais.
Por isso, quando sairmos da fase mais crítica da pandemia, precisamos elencar quais são os grandes desafios para os quais devemos nos preparar nos próximos anos. Cinco deles serão decisivos como passagem a um século XXI melhor: questão ambiental, educação, novas formas de desenvolvimento econômico, combate às desigualdades e aperfeiçoamento da governança democrática.
A temática ambiental é relevante para todo o mundo, todavia, é muito mais importante para o Brasil, por causa de nossa riqueza e diversidade de ecossistemas, especialmente da Amazônia. O meio ambiente tem que se transformar num ativo para o desenvolvimento do país. Qualquer outra perspectiva é anacrônica e nos levará a perder apoio econômico e geopolítico.
O segundo desafio é o da educação. O Brasil precisa, aqui, fazer duas tarefas ao mesmo tempo: acabar com as mazelas derivadas de um longo tempo de letargia educacional e, sobretudo, criar pontes para o futuro. Professores e gestores mais qualificados e em constante renovação, métodos didáticos inovadores que ampliem as possibilidades formativas dos alunos, formas colaborativas de gestão, parcerias com a sociedade e um modelo educacional comprometido com a maior equidade das crianças e jovens, eis os pontos que deveriam ser discutidos agora. Mas, no momento, o MEC está completamente ausente deste debate.
Explorar as potencialidades econômicas do país de uma forma criativa, antenada com as tendências futuras e captando as singularidades brasileiras deveria ser uma tarefa central hoje. Várias frentes de produção de riqueza podem surgir: atividades culturais e de entretenimento, melhor exploração do meio ambiente pela agroecologia e pelo turismo sustentável, empreendedorismo das periferias, criação de novos serviços com tecnologia da informação, reorganização dos grandes centros urbanos, uso de fontes renováveis de energia, avanço da infraestrutura sob bases mais modernas, para ficar em alguns dos temas mais contemporâneos e fascinantes. Há um enorme espaço para novas formas de desenvolvimento, que podem ativar e renovar o restante da economia.
O combate às desigualdades é essencial para mudar a cara do Brasil no século XXI. É preciso atacar as profundezas desse fenômeno, ampliando as oportunidades para um enorme contingente de pessoas que estão alijadas do processo de desenvolvimento. Não se trata de políticas compensatórias de curto prazo. Em vez disso, são necessárias ações estruturais, baseadas num planejamento de longo prazo. A redução das iniquidades de diversas ordens - de renda, racial, de gênero, regional - vai não só tornar o país mais justo e solidário (algo essencial para a melhoria da ação coletiva, como a pandemia comprovou), como também vai aumentar o espaço sustentável de desenvolvimento econômico.
O quinto e último desafio é aperfeiçoar e fortalecer a governança democrática do país. Isso passa pelas estruturas institucionais mais gerais, como as eleições, as relações entre os Poderes e a responsabilização da administração pública, bem como pela cultura política, incentivando o diálogo social permanente e o reforço das formas solidárias de ação coletiva. Ter mais e melhor democracia tem efeitos positivos sobre todas as coisas. Basta pensar que novas pandemias podem surgir no futuro, e o Brasil não poderá repetir a vergonha que foi ter conjunto enorme de indivíduos atuando de forma egoísta, sem respeitar o distanciamento social e ignorando o uso de máscaras, o que se somou a um líder nacional que não teve empatia com os milhares de cidadãos mortos.
Começar a refletir, debater e planejar para atuar nestes cinco desafios é tarefa urgente. O pós-pandemia, neste sentido, é muito mais complexo do que o debate rasteiro que tem sido feito no Brasil. Pior: Bolsonaro não quer dialogar ou mesmo ignora os desafios do século XXI. A covid 19 é o maior mal imediato, mas o problema mais profundo do país está na visão arcaica, míope e populista de nosso presidente.
*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas
Fernando Abrucio: Não verás país nenhum com Bolsonaro
Seguindo essa toada, o Brasil aprofundará a sua crise e passará por uma longa travessia de pelo menos dois anos
O Brasil está à deriva e deverá passar por uma longa travessia até o fim do governo Bolsonaro, com provável piora de sua situação. Dois fatos levam a esta constatação. De um lado, a crise já era grave em 2018 e aprofundou-se nos últimos dois anos, numa proporção gigantesca. O país precisaria mudar muitas coisas, algo que só é possível com um diagnóstico preciso dos problemas, trabalho árduo de equipes bem preparadas e muito diálogo político e social. E aqui entra o outro lado do cenário atual: o presidente não está preparado para combinar essas qualidades. O pior é que praticamente não há chance de ele modificar seu estilo de governar.
Esmiuçando melhor este diagnóstico geral, cabe inicialmente mostrar o tamanho do buraco em que o país está. Há uma combinação de crise sanitária, estagnação econômica, aumento da desigualdade social, redução da legitimidade dos políticos junto aos cidadãos e uma piora gigantesca de políticas públicas essenciais. Parte desse processo foi uma herança deixada para o atual governo. Todavia, Bolsonaro não só não conseguiu avançar no combate desses problemas, como piorou a situação geral e trouxe novas dificuldades. Por este caminho, o Brasil estará pior daqui a dois anos, no fim de seu mandato.
A afirmação de que a manutenção do modelo bolsonarista empurrará todos ladeira abaixo precisa de melhor qualificação. Vamos aos fatos. Primeiro, Bolsonaro foi uma tragédia no combate à pandemia. Isso pode ser constatado pelo número absurdo de casos e mortes, inclusive em perspectiva comparada, bem como pelas medidas preconizadas e pelas lacunas governamentais. Nenhum governante mundial foi tão contundente na defesa do negacionismo. A vacinação demorará para ter impacto no Brasil e os próximos meses deverão de ser de crescimento da covid-19. Casos trágicos como o de Manaus poderão se repetir.
A situação econômica ainda pode ter uma chance de melhorar, especialmente no ano que vem. Menos pelo que o país tem feito e mais pelas políticas expansionistas que os Estados Unidos e a China deverão adotar. Eis aí uma notícia auspiciosa. Não obstante, o Brasil poderá aproveitar bem menos essa bonança, porque não há grandes perspectivas de melhora, até 2022, da produtividade, da taxa de investimento e do consumo da população.
Não me parece que o governo será capaz de fazer uma mudança fiscal mais ampla do que o atual feijão com arroz que o teto de gastos gera. O ministro Paulo Guedes tem enviado uma série de propostas ao Congresso, mas poucas são aprovadas. Geralmente, a última metade do mandato não é o melhor momento para dar uma arrancada em reformas estruturais, especialmente porque Bolsonaro tem mais apetite por outros tipos de mudança legislativa, como a ampliação do uso de armas pela população e o Estatuto da Família. Esta é a agenda para a qual usará sua influência política, com muitos cargos e verbas ao Centrão.
Para completar esse panorama econômico, o desemprego tende a continuar alto, talvez com algum alento no mercado informal, que gera menos renda. Parte dos ganhos do país virá da exportação de commodities, como tem ocorrido há 20 anos. Mas, diferentemente de outros momentos do passado, como no Plano Real e no governo Lula, definitivamente não somos a bola da vez para os investidores internacionais. Alguma coisa pode vir das concessões em infraestrutura. Só que a imagem internacional do Brasil sob Bolsonaro atrapalha esse movimento. Os erros em políticas ambientais e de direitos humanos, bem como o isolacionismo diplomático, vão custar caro.
A crise social tende a aumentar nos próximos dois anos. O auxílio emergencial foi uma tábua de salvação inventada pelo Congresso que caiu no colo de Bolsonaro. Terminado o Orçamento de Guerra, caberia ao governo federal pensar em uma estratégia mais ampla de combate à desigualdade social. Pelo tipo de pensamento mágico que orienta a cabeça do presidente, não há perspectiva de se ter um plano estruturado para as políticas sociais. O aumento da desigualdade nos principais centros urbanos vai criar um cenário distópico, típico de filmes como “Mad Max”.
Políticas públicas essenciais para o país também estão à deriva. O MEC vive seu pior momento em 30 anos e a abstenção recorde no Enem revela uma política educacional trágica, que vai aumentar a desigualdade entre os alunos. O Ministério do Meio Ambiente é contrário à política ambiental. Com o atual titular, não há chances de melhora, até porque o bolsonarismo prometeu a madeireiros e garimpeiros que eles teriam tudo aquilo que os “ecologistas” tiraram deles nas últimas décadas. Sobre a política indigenista é melhor não comentar. Marechal Rondon deve estar se remexendo no túmulo.
No plano político, duas trajetórias suicidas foram traçadas. No âmbito externo, a política internacional levou o Brasil a um isolacionismo inédito, particularmente depois da vitória de Joe Biden nos Estados Unidos. Quem são nossos aliados? De um modo ou de outro, China, União Europeia, os vizinhos latino-americanos e agora os EUA, no mínimo, desconfiam do governo brasileiro e, na pior das hipóteses, mantida a lógica bolsonarista, vão certamente nos retaliar.
Desde o fim da ditadura militar, nunca um presidente ameaçou tanto a democracia como Bolsonaro. Num dia, propõe o voto impresso para tumultuar o jogo político e acusar os outros de fraude, já preparando um possível golpe caso perca a eleição. Noutro, diz que as Forças Armadas são o alicerce do regime democrático, quando qualquer manual de ciência política diria que o povo e as instituições é que dão legitimidade à ação dos militares, e não o contrário. O bolsonarismo não acredita nos valores básicos democráticos, como o pluralismo, a crença nas regras do jogo e os freios e contrapesos entre os poderes. Em seu comportamento mais benigno, Bolsonaro aceita o apoio de políticos medíocres que se deixam comprar por cargos e verbas, contanto que eles não interrompam sua estratégia autoritária mais profunda.
A rota do bolsonarismo pode ser interrompida, com o presidente mudando seu estilo de governar, diriam alguns. Os mesmos que acreditaram que Paulo Guedes faria privatizações em massa e reformas profundas no Estado; que Sergio Moro seria o guardião do republicanismo de todos, inclusive da família Bolsonaro; que o general Santos Cruz garantiria uma participação parcimoniosa das Forças Armadas no poder, que nunca aceitariam obedecer ordens absurdas como receitar cloroquina em massa para uma população que nem oxigênio tinha; e, como última esperança dos ingênuos, que o Centrão evitaria que o presidente trilhasse por caminhos autoritários. Sinto informar: a era da esperança pela mudança da natureza do bolsonarismo acabou.
O núcleo duro das crenças de Bolsonaro o leva a preferir a guerra cultural, uma política populista e autoritária, como também ser mais fiel ao seu eleitorado mais radical. Na linha contrária, ele não vai optar claramente por políticas públicas baseadas em evidências e na opinião dos especialistas, nem por um estilo político baseado no diálogo e na moderação. Crises políticas maiores podem resultar em concessões e alguns recuos, como aconteceu em junho do ano passado, após a prisão de Fabrício Queiroz. Mas quanto mais as eleições presidenciais se aproximam, mais o presidente acredita que precisa manter a aliança com seus alicerces básicos, em termos de ideias, grupos políticos e modos de atuação.
Em outras palavras, o roteiro básico daqui para frente tende a ser de poucas reformas profundas - se houver alguma -, conflito constante com os possíveis adversários políticos, inclusive fortalecendo o gabinete do ódio, discursos e propostas moralistas para agradar ao eleitorado conservador e, sobretudo, ameaçar a todos que o criticarem. É possível que haja algum populismo fiscal para distribuir alguma renda aos mais pobres e obras para o clientelismo do Centrão, mas o essencial para Bolsonaro é montar um exército de apoiadores entre trabalhadores informais, policiais militares, evangélicos e milicianos puros, sempre dizendo que as Forças Armadas estarão com ele em qualquer situação.
Seguindo essa toada, o Brasil aprofundará a sua crise e passará por uma longa travessia de pelo menos dois anos. O momento é similar ao do governo Figueiredo, quando o projeto dos militares já tinha fracassado, porém as forças em prol da democracia não tinham força suficiente para mudar a lógica do poder. Foi nesse momento, em 1981, que Ignácio de Loyola Brandão escreveu o livro “Não Verás País Nenhum”, uma ficção distópica que caracterizava o Brasil como um país marcado pelo autoritarismo, pela tragédia ambiental e pauperização da população, tudo isso ambientado numa São Paulo caótica. Nada mais atual do que essa história.
O Brasil sofreu muito, inclusive com atentados terroristas de milicianos incrustados no Estado autoritário, mas superou aquele momento autoritário. Para isso, precisou da aliança de muita gente diferente, como mostram as fotos dos comícios das Diretas-Já, com Montoro, Lula, FHC, Brizola e Ulysses abraçados e unindo-se pela mudança. O país provavelmente terá de fazer isso daqui a dois anos, embora possa fazê-lo agora em nome de um impeachment que tem razões de sobra para ocorrer, em especial a garantia da sobrevivência do país.
*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas
Fernando Abrucio: O que está em jogo é o silêncio da Câmara
Eleição para a Mesa da Câmara definirá se teremos efetiva separação entre os Poderes ou cooptação de um dos pilares da democracia pelo bolsonarismo
Dois mil e vinte e um já começou, mas o ano político se inicia em 1º de fevereiro, quando forem eleitos os presidentes da Câmara e do Senado. Ambas as Casas são muito importantes para o equilíbrio democrático do país, realizando a dupla tarefa de tomar as decisões últimas sobre as legislações nacionais e de gerar contrapesos ao Executivo. Mas a disputa entre os deputados terá um efeito mais forte no cenário político porque é na Câmara se reside a esperança tanto do presidente Bolsonaro como daqueles que desejam um Congresso mais independente. O resultado desse pleito definirá se haverá uma efetiva separação de Poderes ou a cooptação de um dos sustentáculos da democracia pelo Palácio do Planalto.
Cinco fatores explicam a maior relevância política da eleição para presidente da Câmara. A primeira é que o Senado, mesmo que eleja alguém razoavelmente alinhado ao Executivo, tem uma configuração que lhe garante maior independência. Algumas razões estruturais explicam esse comportamento senatorial. Os senadores, em geral, pretendem representar o conjunto de seus Estados, o que lhes leva a ter maior parcimônia decisória, tornando-os menos vinculados a uma temática ou à pressão de um único grupo de interesse.
Além disso, são menos suscetíveis ao fisiologismo do varejo que os deputados, porque normalmente têm uma posição política mais forte, advinda de sua trajetória com experiência em vários postos públicos - alguns são ex-governadores, foram ministros e até presidente da República -, o que se soma à aquisição de um mandato maior, de oito anos.
Há, ademais, questões conjunturais que afetam a configuração política do Senado. Se forem somados os integrantes o grupo intitulado Muda Senado com os membros dos partidos mais de centro-esquerda, chega-se a um número de cerca de 30 senadores, ou um pouco mais, contingente capaz de evitar qualquer agenda mais extremista do presidente Bolsonaro. Basta lembrar o caso do projeto de regulamentação do Fundeb que foi aprovado inicialmente pela Câmara, cujo objetivo era direcionar recursos da educação pública para igrejas, e que em apenas um dia foi rechaçado pelos senadores. Além desse episódio, a rejeição da indicação de um embaixador muito ligado ao ministro da Relações Exteriores, Ernesto Araújo, o mais ideológico do governo, realçou a independência da Casa.
Em resumo, no Senado não haverá espaço para a agenda populista de extrema-direita do bolsonarismo-raiz, bem como há um sentimento de autoproteção institucional mais forte. A Câmara é a arena legislativa onde o presidente Bolsonaro pode reduzir parte do contrapeso democrático que o Congresso Nacional deve, constitucionalmente, exercer sobre o Poder Executivo.
Desse modo, o que explica a relevância da eleição na Câmara é ela ser o ramo legislativo em que o Executivo tem mais capacidade de exercer seu poder sobre a carreira política de seus componentes. Os instrumentos de cooptação são variados: cargos, verbas, imagens junto com o presidente da República que demonstrem prestígio político, entre outros, são moedas de troca pelo apoio ao governo. Todos os deputados podem, em algum grau, ser seduzidos por esses agrados, mas há um grupo que se destaca nesta relação simbiótica: os vinculados historicamente ao chamado Centrão, nomenclatura criada ainda no período Sarney.
O Centrão não tem um tamanho único ao longo dos mandatos presidenciais, variando conforme a dança proposta pelo Executivo e de acordo com os humores da sociedade. Assim, esse grupo aceita apoiar o Executivo em troca de benesses, mas só fica fiel no relacionamento enquanto o presidente tiver popularidade suficiente para reduzir o desgaste derivado do fisiologismo desbragado. De todo modo, seu núcleo duro tem sido composto por cerca de 200 deputados, número insuficiente para aprovar uma ampla agenda legislativa, mas grande o bastante para proteger o presidente e para garantir que a agenda presidencial seja no mínimo discutida pela Câmara. É nesse time que Bolsonaro hoje se apoia, embora no passado o chamasse, pejorativamente, de “velha política”.
Para Bolsonaro, ganhar a eleição na Câmara é fortalecer o Centrão e, consequentemente, dar poder ao grupo que mais depende das benesses do Executivo para sobreviver. Eis aí, em síntese, o segundo fator que explica a relevância desta disputa pelo comando dos deputados: está em jogo se haverá uma Câmara mais ou menos subserviente ao Executivo. Negar isso é como acreditar que a Terra é plana e que as vacinas contra a Covid-19 vão transformar pessoas em jacaré.
Muitos podem retrucar dizendo que vários deputados que não apoiam Arthur Lira, o candidato oficial de Bolsonaro, têm cargos no governo, tiveram a execução acelerada de suas emendas parlamentares e votaram muitas vezes com o Executivo, em especial em agendas econômicas mais liberais, embora o presidente tenha comemorado mais a aprovação do novo Código Nacional de Trânsito do que qualquer reforma econômica. Mas há uma sutileza aqui que define o aspecto central da gestão de Rodrigo Maia na Câmara, presente agora na candidatura oposta ao bolsonarismo: o Legislativo foi ciente de sua independência, o que gerou uma postura aberta ao diálogo com a sociedade em sua pluralidade.
É isto que, como terceiro motivo, está em jogo na eleição da Câmara: a sua abertura para ouvir e levar em conta as demandas de diversos atores sociais. O grande Ulysses Guimarães, um dos principais responsáveis pela volta do Brasil à democracia, defendia que o Parlamento deveria ser uma caixa de ressonância da sociedade. Foi isso que aconteceu quando a Câmara aprovou um auxílio emergencial maior do que o proposto pelo presidente da República, ao definir ações na saúde mais condizentes com as prescrições científicas e ao defender a federação nas brigas de Bolsonaro com os governadores.
A eleição de um candidato vinculado a Bolsonaro vai ter o efeito inverso. Os cooptados pelo Executivo governarão a Câmara, de modo que, condizente com o jogo fisiológico, estarão mais preocupados em beneficiar seus currais eleitorais do que em ouvir, por exemplo, a comunidade científica ou instituições de defesa dos direitos humanos. Quando esse grupo do Centrão faz acenos ao mercado ou a outras instâncias mais gerais, trata-se de puro jogo de cena. A prova dos nove é que só receberam o apoio do Executivo, com a consequente promessa de mais cargos e verbas, porque se ganharem deixarão de fiscalizar as políticas públicas, facilitando o caminho das medidas atuais, como o Plano Nacional de Imunização, que está mais para um “Plano Nacional de Improvisação”.
Para os que se preocupam com o futuro da economia, das empresas e do emprego no Brasil, passar o comando da Câmara a “estadistas de província” é o primeiro passo para que o desgoverno reinante vigore sem contrapesos até 2022.
Uma possível vitória de Arthur Lira, na verdade, corresponde à contraposição entre a agenda bolsonarista, que ignora aspectos técnicos das políticas públicas e está mais preocupada em defender valores do que em produzir resultados, e uma agenda que possa sofrer a interferência da sociedade. Nos dois últimos anos, a propostas legislativas mais importantes foram aprovadas com pouquíssima influência positiva do Poder Executivo, inclusive a reforma da Previdência, que só foi piorada pela interferência do Palácio do Planalto, em nome da defesa de interesses corporativos. Embora o Ministério da Economia tenha enviado algumas PECs ao Congresso Nacional, a mobilização pessoal do presidente da República em torno delas é quase zero. Alguém acredita que Arthur Lira o convencerá a participar mais ativamente da mobilização da base governista em prol dessas mudanças legislativas reformistas?
É preciso deixar bem claro que o centro das preocupações legislativas de Bolsonaro está em duas questões: a discussão de projetos vinculados à defesa de valores do conservadorismo bolsonarista, como o “homeschooling” ou o porte de armas, e a autoproteção do presidente e de sua família. Todo o restante da agenda é para enganar a plateia. Isso porque Bolsonaro só pensa na eleição de 2022, por meio de uma estratégia eleitoral que evita qualquer desgaste por meio de reformas. Suas metas são barrar qualquer tentativa de impeachment ou punição aos filhos e estabelecer-se como o defensor do conservadorismo moral brasileiro.
Portanto, a importância da eleição da Câmara está, em quarto lugar, vinculada à seguinte pergunta: os deputados vão se pautar pela agenda legislativa que se combina com a estratégia eleitoral e de sobrevivência política dos Bolsonaro, ou vão se guiar por um programa de atuação autônoma que pense em como garantir que o país não afunde mais nos próximos dois anos?
Dessa pergunta deriva um último fator que realça a importância da votação entre os deputados e que deveria estar na cabeça de cada um deles na hora de sua escolha: votem pensando nos 200 mil mortos pela Covid-19, naqueles milhões que estão sem emprego, nas empresas que fecharam, na enorme desigualdade social do país. Isso será muito mais relevante para suas reeleições e para o futuro do Brasil do que seguir um presidente negacionista e isolado pelo mundo que lhes dará cargos e benesses estatais em nome do silêncio.
*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas.
Fernando Abrucio: Um 2021 a favor da vida
A mudança política nos EUA e na União Europeia, com o enfraquecimento da extrema-direita, e a ascensão de novos líderes vão colocar uma nova agenda nos próximos anos
Ao refletir sobre 2020 e imaginar como pode ser 2021, um verso não sai da minha cabeça: “Ano passado eu morri, mas nesse ano eu não morro”. A canção é de Belchior (“Sujeito de Zorte”) e reapareceu gravada recentemente por Emicida, numa belíssima parceria com Pablo Vittar e Majur. Não há nada mais atual para definir o que passamos nos últimos meses, marcados pela desesperança e pela morte, e a chance que temos de mudar esse cenário, abrindo as portas a favor da vida. Muitos sinais mostram que o mundo pode trilhar esse caminho, mas no Brasil a escolha pela vida ou pela morte, num sentido literal e num plano mais amplo, ainda não foi feita pelo governo Bolsonaro.
A principal causa da desesperança que marcou 2020 foi a pandemia. Já houve mais de 70 milhões de casos em todo o mundo e quase um milhão e setecentas mil mortes. São números de guerra. A covid-19, no entanto, não só foi uma arma de destruição em massa. A doença foi além disso, tendo dois outros importantes efeitos.
O primeiro ocorreu nas principais organizações e formas de sociabilidade contemporâneas, como escolas, empresas e a própria vida social dos indivíduos e famílias. Nada funcionou como antes e tivemos de nos adaptar. Só que no final das contas ninguém mais quer ficar neste mundo pandêmico, com milhões de reuniões e aulas por videoconferência, precarização do trabalho e afastamento das pessoas queridas. Quase todos estão gritando: “Tragam meu mundo de volta!”
Junto com esse efeito negativo da pandemia na vida de cada um e nas principais organizações contemporâneas, a desgraça trouxe reflexão. Isso porque os problemas trazidos pela covid-19 escancararam temas que a humanidade tinha jogado para debaixo do tapete. A mudança política nos EUA, com a eleição de Biden, e na União Europeia, com o enfraquecimento da extrema-direita, além da ascensão de novos líderes sociais, vão gerar uma nova agenda para os próximos anos. O Brasil precisa prestar a atenção a esse processo, para não perder o trem da história.
Destacaria cinco temas que serão colocados no centro da agenda na maior parte do mundo a partir de 2021: a revalorização da ciência, a questão ambiental vista como emergencial, a busca de soluções humanizadoras para as organizações, a preocupação com a desigualdade em suas múltiplas dimensões e, por fim, a luta para reconfigurar a comunicação de massas, dominada hoje por redes sociais polarizadas e muito influenciadas pela lógica das “fake news”. O crescimento da importância de tais temáticas não quer dizer que haverá soluções para tudo no curto prazo, pois haverá muitos conflitos e dificuldades no processo político. Todavia, os grupos defensores dessas mudanças vão ganhar força e o clima de opinião irá mudar substancialmente.
A revalorização da ciência é filha direta da esperança com as vacinas contra a covid-19. No momento, há uma discussão inútil sobre a obrigatoriedade da vacinação. Ora, se mais gente for imunizada e ficar livre da doença, surgirão barreiras contra os que não se vacinarem. Países fecharão as suas portas para os estrangeiros não vacinados e o mesmo será feito por empresas multinacionais, com o argumento de resguardar a saúde coletiva de seus funcionários. E o sucesso nem precisa ser de 100% porque muita gente morreu com a pandemia. Isso não será esquecido. Quem tem dúvida, veja o que a história diz de outras epidemias famosas.
Uma vitória científica como essa pode afetar profundamente o negacionismo. Como consequência, será alavancado um segundo tema ao centro da agenda: a questão ambiental. Empresas, consumidores e governos em quase todo o mundo vão bater de frente contra aqueles que desdenham da mudança climática, que insistem em manter padrões que não são ambientalmente sustentáveis e que defendem atividades econômicas atrasadas, que destroem a natureza, afetando nosso futuro no planeta. Cabe frisar que as soluções nesse campo demandam um certo tempo, porém, quem fugir da cartilha básica será punido internacionalmente, especialmente no campo econômico. E isso ocorrerá mais cedo do que se imagina.
A pandemia realçou o lado sombrio de várias organizações e modos de vida atuais. A morte de tanta gente, combinada com a dificuldade de sobrevivência econômica ou psíquica de boa parte da humanidade, colocou uma palavra no topo do dicionário contemporâneo: empatia. Daí que, como terceira temática que vai crescer na agenda pública, empresas, escolas e governos vão ser pressionados a levar mais em conta os aspectos humanos. A educação, por exemplo, precisa ser vista como um processo fundamental para garantir o aprendizado de conhecimentos básicos a crianças e jovens, mas é muito mais do que isso. Ela é responsável pela formação de boa parte da personalidade de cada um e da noção de coletividade que vigora numa comunidade ou num país. As escolas nutrem nossos sonhos para a vida adulta. Educar é formar seres humanos melhores, desenvolver seus talentos e fazê-los entender que o outro é a coisa mais fantástica da vida.
O maior obstáculo da transformação humanística está no mundo empresarial, pois a lógica econômica atual ainda privilegia o individualismo exacerbado. Não obstante, muitas empresas começam a mudar seus processos seletivos para captar gente com habilidades socioemocionais mais favoráveis ao trabalho em equipe e à consciência social. Além disso, as pessoas como consumidoras e cidadãs vão exigir cada vez mais uma postura diferente de quem lhe vende bens e serviços. Por essa razão, assuntos como responsabilidade social e diversidade do corpo de funcionários vão ser alavancas para ganhar mercado.
A pressão pela maior humanização da sociedade contemporânea virá certamente de uma herança da pandemia: aumentou a percepção das múltiplas formas de desigualdade. Foi graças a políticas públicas como sistemas de saúde públicos e do trabalho de abnegados profissionais da educação, da segurança pública e assistência social que as mortes e calamidades produzidas pela covid-19 não foram maiores. No mesmo momento histórico, injustiças causadas contra negros e mulheres em várias partes do mundo mobilizaram milhões de pessoas em torno de um não rotundo contra a ordem desigual atual.
Essa quarta temática vai gerar muitos conflitos, mas já ganhou um lugar especial na agenda pública. Que os bilionários dividam mais suas riquezas, que a justiça não tenha mais cor nem gênero, que todos possam ter acessos a oportunidades mais iguais (afinal, como disse antes, a boa educação deve ser uma fábrica de sonhos), que a diversidade nos faça melhores como seres humanos. Para quem acha que essa pauta é muito utópica, pergunte aos jovens atuais o que eles pensam. Você irá se surpreender.
A agenda transformadora em favor de mais vida para todos tem um último elemento que é a batalha da comunicação. A internet produziu, inegavelmente, maior acesso à informação e aproximação de pessoas em várias partes no mundo. Contudo, essa mesma fonte emancipadora gerou redes sociais marcadas pela polarização política e pela expansão da mentira pública como estratégia política. Como remédios a esse mundo distópico, devemos alimentar a tolerância, a capacidade de ouvir o outro, de respeitar e aprender com a discordância. Ademais, só há democracia quando os fatos públicos se guiam por uma noção de transparência e verdade. Ou seja, é possível ter opiniões diferentes, mas a realidade factual não pode ser tão ampla que fuja de critérios mínimos de veracidade.
E como ficará o Brasil quando toda essa agenda estiver sendo puxada para o centro do debate em 2021? Por ora, o que se pode dizer que o governo Bolsonaro optou, nos últimos dois anos, pela destruição e pela desesperança como bussolas de sua ação. Isso antes da pandemia, quando se defendia que a solução para os problemas do país passava por armar a população, pela ocupação econômica desenfreada da Amazônia, por desprezar políticas a favor das minorias ou dos mais pobres e pela disseminação criminosa de mentiras contra os adversários e as instituições.
O pior de tudo é que o bolsonarismo não aprendeu muito com o espelho de problemas que nos estão sendo apresentados pela covid-19. Ao contrário, fechou os olhos para a profusão de mortes e lutou incansavelmente contra a ciência. É por essa razão que ninguém tem certeza se teremos, o mais rápido possível, vacinas suficientes para salvar pessoas, recuperar a economia e trazer de volta nossa vida em sociedade. Mas esse cenário pode ser transformado pela construção de uma nova agenda, antenada com as mudanças internacionais que vão sacudir o mundo nos próximos anos.
Inaugurar um novo ano marcado pela defesa da vida no Brasil, entretanto, vai além de ser contra o governo Bolsonaro. É preciso que a sociedade brasileira e suas elites se incomodem com a morte cotidiana não só dos atingidos pela covid-19, mas também por aqueles majoritariamente jovens, negros e pobres que morrem numa quantidade absurda, ano após ano. Segundo o Fórum Nacional de Segurança Pública, policiais mataram 2.215 meninos e meninas entre 2017 e 2019, o que representa mais de duas crianças ou jovens por dia. Desejar um Ano Novo melhor significa dizer aos brasileiros: tenham vergonha dessa carnificina e assim estaremos dando o primeiro passo para transformar o país.
*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas.
Fernando Abrucio: O que fica para 2022 e o que falta ainda jogar
Se algo novo vier, seu sucesso dependerá de entender que houve uma mudança no clima político do país
O jogo político presidencial começou com as eleições de 2020, seja por causa da ascensão de uma nova agenda, seja por suas consequências, pois os atores políticos não serão mais os mesmos na segunda parte do mandato do presidente Bolsonaro, incluindo o próprio. Mas ainda falta definir os jogadores e as táticas que vão vigorar no campeonato nacional do sistema político. Por ora, não dá para saber quem estará efetivamente em campo, nem quem vai liderar e chegar ao segundo turno. Muita coisa pode acontecer. De todo modo, alguns sinais foram dados e quem souber interpretá-los melhor terá vantagens na próxima disputa.
As eleições municipais deixaram, basicamente, três legados que vão influenciar os próximos dois anos da política brasileira, com possíveis impactos sobre a disputa presidencial. O primeiro legado é o mais importante: houve uma mudança no clima de opinião. O humor político que se iniciou em 2016 e teve seu auge em 2018, baseado na visão antipolítica, na proeminência da luta contra a corrupção e no discurso bélico como forma de garantir a segurança pública, perdeu a hegemonia no discurso dos políticos e a efetividade para conseguir votos em 2020.
Em substituição a esse clima de opinião, surgiram pelo menos três grandes referências que ganharam força agora e têm tudo para se estabelecer como tendências majoritárias no caminho para o pleito presidencial. A primeira é uma aversão ao bolsonarismo como forma extremista de se fazer política em todas as suas dimensões; a segunda é a ascensão da questão social como a dominante na agenda pública; e a terceira é a volta da política como algo positivo e necessário para articular grupos, interesses e valores.
Os eleitores demonstraram cansaço do modelo bolsonarista, com seu negacionismo em relação à ciência, sua forma de comunicação baseada em fake news e na polarização, sua lógica de só reclamar dos outros e não apresentar soluções. O clima de ódio como instrumento eleitoral não só perdeu força, como tendeu a ser rechaçado. Esse modelo que Bolsonaro abraçou, ademais, tende a ser bombardeado pelas mudanças no cenário internacional. Será muito difícil ser trumpista em 2022 e ganhar as eleições.
A tendência política mais importante que emergiu das eleições de 2020 é a ascensão da questão social ao centro da agenda política, que dominou a campanha dos vencedores - os de esquerda, os de centro e os de centro-direita. A pandemia foi fundamental neste processo, ao escancarar uma desigualdade imensa, aumentando a consciência do país sobre a centralidade desse tema. Mas a longa estagnação econômica e a organização da sociedade contra os diversos tipos de injustiça também têm um papel relevante na mudança do humor político.
Como não deve haver um crescimento econômico relevante até a eleição presidencial, mantendo-se provavelmente um desemprego alto, o presidente Bolsonaro ficará marcado pela pauperização da população. A emergência da questão social vem, ainda, da eclosão de episódios como os de George Floyd e do assassinato de João Alberto, que modificaram a percepção da temática racial não só de forma difusa, mas também nas elites sociais. E outras manifestações da desigualdade, como a educacional e a de gênero, vão ser cada vez mais abordadas até 2022. E Bolsonaro não se preparou para essa mudança no clima político - na verdade, ele tem uma noção preconceituosa das origens e formas de propagação da desigualdade, como revelam seus vários discursos ao longo da vida.
A transformação do clima de opinião completa-se com a recuperação da política como forma de juntar grupos partidários e sociais em torno de compromissos com a coletividade. Esse ponto se coloca como antípoda da polarização e do ódio entre adversários. É bem provável que a arte do diálogo e, sobretudo, a capacidade de articular os diferentes ganhem força nos próximos dois anos, de tal modo que não se sabe se haverá uma frente ampla ou “frentes progressistas” e de centro contra o bolsonarismo, porém, é nítido que o candidato que conseguir convencer a sociedade que ele representa múltiplos atores e expressar isso no universo de seus apoiadores terá mais chances de vencer a disputa presidencial.
A recuperação da política também envolve construir propostas e candidaturas mais orgânicas com setores sociais e grupos técnicos. A ideia do “salvador da pátria” que tem um “posto Ipiranga” não se sustenta mais, particularmente porque ela não é capaz de dar conta dos problemas do país. As pessoas querem soluções práticas para suas vidas, o que envolve conversas com a sociedade e políticas públicas bem definidas.
Bolsonaro representa o contrário dessa tendência de dar maior organicidade à política. De um lado, ele reduziu a participação social institucionalizada e retirou o papel da Presidência da República de ser uma mesa de diálogo e negociação com os diversos grupos (como FHC e Lula faziam). De outro, houve um enfraquecimento da profissionalização das políticas públicas, seja com a escolha de gente desconhecida e amadora para comandar os setores, seja com o desprezo das evidências cientificas como bússola das decisões governamentais.
A mudança no clima de opinião é o principal legado de 2020 para 2022. No entanto, há outros dois efeitos da eleição municipal que deverão ter um impacto também relevante. Um é o fracasso do bolsonarismo em seu formato atual. A maioria dos candidatos que o presidente apoiou acabou perdendo a disputa, não porque ele seja um pé-frio, mas porque a sua proposta de governo não entregou o que havia prometido e não dá conta dos desafios surgidos no meio do caminho. Ou Bolsonaro muda o seu estilo de governança, colocando as políticas públicas na frente da ideologia, ou então seus próximos dois anos serão muito difíceis, comprometendo a reeleição.
O terceiro e último legado da eleição municipal é a consolidação do isolamento petista. Mais do que uma derrota, o que 2020 revelou é a impossibilidade de o PT ter a mesma hegemonia na esquerda e na sociedade que teve por mais de dez anos. Se Lula conseguir se viabilizar juridicamente como um candidato presidencial, ele ainda terá uma força não desprezível, que pode ficar entre 20% e 30% dos votos. E se o percentual alcançado levar o Partido dos Trabalhadores ao segundo turno, o resto já se sabe: será muito difícil juntar outros para esse projeto político.
Uma saída para o PT seria abdicar, pelo menos por ora, de seu papel hegemônico, procurando construir uma aliança mais ampla. Será que o partido está preparado para isso? Ou melhor, será que Lula, um dos maiores líderes populares da história do país, conseguiria vestir esse figurino? Tal qual foi dito para o caso de Bolsonaro, fica ao petismo o desafio: é mudar ou caminhar para o fracasso em 2022.
Terminada a contagem dos votos, já se quer saber quem será o favorito para 2022 e com quem ele estará aliado. Eis aqui algo que está muito longe de ser definido. Há muito jogo pela frente, com quatro grandes incógnitas. A primeira diz respeito ao desempenho dos governantes nos próximos dois anos. É provável que a segunda parte do mandato de Bolsonaro seja bem mais difícil do que a primeira, com impactos sobre sua popularidade. Mas os outros possíveis concorrentes também apoiam governos no plano subnacional. Doria, por exemplo, tem baixíssimas taxas de aprovação em seu Estado, e é muito cedo para saber se será capaz de mudar esse cenário. Os partidos de centro e centro-direita, os que mais cresceram nas eleições municipais, agora terão a responsabilidade de fornecer soluções à população. Se fracassarem, o povo pode procurar outras alternativas.
De todo modo, o jogo dos governos, nacional e subnacionais, ainda está sendo jogado. Todos os principais partidos e a maioria dos presidenciáveis têm uma vitrine para ser responsabilizada pelos eleitores. Neste sentido, o desempenho das políticas públicas até 2022 vai ser um elemento importante de comparação na definição do voto.
Uma segunda incógnita, e das bem grandes, relaciona-se às alianças entre os partidos. Haverá muita conversa, mas o destino das legendas e de possíveis parcerias só serão definidos mais para o final de 2021, porque os partidos vão esperar até o último minuto para escolher seu caminho, especialmente aqueles que provavelmente não tenham candidato presidencial, mas que serão peças centrais na eleição em termos de vice e, sobretudo, de arranjos para as governadorias e Congresso Nacional.
Um terceiro ponto diz respeito ao papel das principais lideranças políticas. Bolsonaro, Ciro, Doria, Huck e Lula, além dos líderes dos partidos do centro que provavelmente não terão a cabeça da chapa (como ACM Neto e Kassab), serão decisivos. O quanto serão capazes de ultrapassar o seu próprio autointeresse e enxergar um caminho coletivo melhor? Eis a pergunta de um milhão de dólares.
Por fim, muitos fatos e novidades podem mudar o rumo da política nacional. Quem diria que uma pandemia marcaria o mandato de Bolsonaro? Será que não há algum presidenciável que não estamos prestando atenção? Seria ele o prefeito Kalil ou um líder carismático em gestação? O imponderável existe na política e não podemos ignorar os caprichos do destino. Mas se algo novo vier, seu sucesso dependerá de entender que houve uma mudança no clima político do país.
*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas.
Fernando Abrucio: "Eleitor evangélico mostrou que não é voto de cabresto"
Para cientista político, PT ampliou o isolamento e bolsonarismo terá dificuldades em 2022. “Ninguém aguenta mais ficar ouvindo essa discussão ideológica, essa invasão da política na vida diária das pessoas, é uma overdose, cansou”
Atuando como consultor na construção de candidaturas para as eleições de 2022 e com acesso a diversas pesquisas qualitativas junto a eleitores encomendadas por partidos, o cientista político Fernando Luiz Abrucio, professor da Fundação Getúlio Vargas, está confiante em dizer que o tempo do bolsonarismo acabou, apesar de ainda haver mais dois anos de mandato para o presidente Jair Bolsonaro. Mais que isso, ele observa que a esquerda perdeu a hegemonia na discussão de questões sociais e que essa pauta definirá o próximo pleito presidencial e para governador nos Estados. “O grande tema para 2022 é a questão social no país. E isso é o contrário do bolsonarismo”, resume. Nessa entrevista ao EL PAÍS onde analisa o cenário político brasileiro com o resultado das eleições municipais de 2020, Abrucio fala ainda do isolamento do PT e da confirmação de que os eleitores evangélicos na enorme maioria dos casos não coloca a pauta dos costumes acima de questões concretas como emprego, saúde e educação. Leia abaixo.
Pergunta. O que chama atenção nos resultados das eleições municipais deste ano? Existe um padrão no segundo turno?
Resposta. Não só no segundo turno, também no primeiro, nas principais cidades do país vemos uma derrota muito forte do bolsonarismo. Ele teve derrotas muito claras em campanhas nas quais se envolveu, mas não é só isso. O discurso dos vencedores anuncia já um clima de opinião muito diferente do clima de 2018. A eleição municipal é importante não para dizer quem vai ganhar a eleição presidencial, mas para vermos o clima de humor, os assuntos, o clima de opinião. O clima de opinião que vimos em 2018 já estava colocado nas eleições de 2016. O candidato antissistema já estava lá. Pensemos no Doria quando dizia “eu sou gestor, não sou político”. Nessa campanha nenhum dos vencedores falou eu não sou político. Bruno Covas fez uma campanha muito certinha, quadradinha, e explorou o oposto. Dizia na TV, “eu sou político”.
Fora que a imagem do Bolsonaro está muito desgastada. Se pensarmos que o presidente da República e os filhos fizeram campanha pessoalmente para a Wal do Açaí ao cargo de vereadora em Angra dos Reis e ela não se elegeu... Ele teve um nível de superexposição nestes dois anos, lives no Facebook toda semana, tempo todo nas redes sociais. Para o eleitorado mediano em um contexto de crise, afetou ele fortemente, fica se oferecendo como alvo para a frustração das pessoas com a situação.
P. Bruno Covas se distanciou da imagem e discurso do padrinho político dele, no caso o governador João Doria.
R. Não foi só em São Paulo que isso aconteceu. Em todos os lugares o discurso de valorização da política, um discurso mais orgânico, de ativação com a sociedade, isso tudo veio muito forte. Na verdade é o contrário de tudo que foi o bolsonarismo em 2018, uma candidatura antissistema, polarizadora, baseada em chavões e não em discussão de programas. Ele fez uma campanha inteirinha sem falar em questões sociais em um país tão desigual e carente de soluções na área como o Brasil. Se pegarmos as campanhas a prefeito nas capitais agora, olha em Salvador e Rio o DEM, em São Paulo o Bruno Covas e o Guilherme Boulos, as principais candidaturas foram todas muito parecidas em suas temáticas. Especificamente as questões sociais, esse é o tema. E esse vai ser o tema de 2022. É muito diferente do humor eleitoral que a gente tinha em 2018. Eu pego muitas pesquisas qualitativas constantemente e uma coisa está muito clara: o grande tema para 2022 é a questão social no país. E isso é o contrário do bolsonarismo. Hoje não temos um ministro da Educação e nem da Saúde dignos do nome do cargo. Se você fizer uma enquete na rua ninguém vai saber quem são os dois, não conseguem nem gastar o pouco dinheiro que tem.
Na área social o Governo é uma nulidade e a agenda bolsonarista foi enterrada pela pandemia e pelas eleições municipais. Ainda tem a mudança de humor no cenário externo, com a eleição do Joe Biden e que ainda não foi sentida por aqui. A União Europeia agora vai atacar fortemente isso e a China e os EUA também. Vai juntar os três para pressionar o Brasil. A gente começa a perceber que existe uma mudança externa, a pandemia e as eleições municipais que fazem com que aquela agenda e clima de opinião que imperou em 2018 acabou já era.
P. O bolsonarismo está morrendo?
R. Não, mas vai diminuir progressivamente e chegar em 2022 bem menor. Em 23 das 26 capitais, aumentou muito a rejeição ao Bolsonaro nas últimas duas semanas. Isso é impressionante. Em São Paulo, tem pesquisa colocando ele com 17% de bom e ótimo... nunca teve isso e a tendência é piorar, não é melhorar. Não vai ter muito dinheiro para o ano que vem, os partidos do Centrão ali vão se afastar completamente do bolsonarismo para compor a eleição da presidência da Câmara e continuarem firmes, toda a oposição a ele vai começar a bater cada vez mais forte. É todo mundo contra ele. Vendeu-se uma ilusão de que seria um governo que antissistema, que derrubaria o sistema por completo, que acabaria com a corrupção, e essa bandeira o Bolsonaro não tem mais condições de carregar, não consegue mais se colocar como um arauto anticorrupção.
P. O peso do voto evangélico nesse cenário diminuiu?
R. Se você pegar no Rio de Janeiro, grande parte dos evangélicos votou no Eduardo Paes. Por que os evangélicos votaram nele? Em 2018, grande parte dos evangélicos foi nesse discurso bolsonarista de ser contra a corrupção, pela pátria e a família. Passados dois anos, boa parte desse grupo percebeu que precisa de mais alguma coisa. Não adianta ficar falando de pátria, família e religião se não tiver emprego, renda, escola, se parentes estiverem ficando doentes e morrendo de covid-19. Quem é o evangélico com perfil mais padrão na Baixada Fluminense, por exemplo? Homens e mulheres negros ou pardos, é o primeiro dado demográfico. Aí vem o presidente e o vice-presidente dizer que não existe racismo no Brasil? O cara já está sem emprego, vivendo da economia informal, o auxílio emergencial está acabando, percebe que seu filho está sem aula e tem algum parente ou amigo que morreu de covid? Esse cara não está para brincadeira nesse momento.
Para completar, sente-se uma inflação nessa mesma ponta. Embora esteja começando a se alastrar agora e o tamanho disso ainda tem de ser mesurado e vermos se o efeito será duradouro, até agora é principalmente uma inflação acelerada de alimentos. E quem é que sente mais isso? As famílias de baixa renda, boa parte delas evangélicas. A imagem do Bolsonaro está bastante desgastada inclusive dentre os evangélicos, não adianta tentar se desvincular de todos os problemas, as pessoas precisam de soluções. Ele tem um erro de estratégia e comunicação de privilegiar essa coisa ideológica ao invés de políticas públicas. Ninguém aguenta mais ficar ouvindo essa discussão ideológica, essa invasão da política na vida diária das pessoas, é uma overdose, cansou. Neste ano, o eleitor evangélico não é um voto de cabresto, que não obedece cegamente as orientações das lideranças das igrejas. No Rio e em São Paulo, para ficarmos só nesses exemplos, os candidatos da Igreja Universal e do bispo Edir Macedo, Marcelo Crivella e Celso Russomanno, perderam inclusive entre os evangélicos, mostram as sondagens.
P. É possível falar em um renascimento da esquerda, mesmo que incipiente?
R. Não sei. Na verdade o que a gente vê é que a agenda social tornou-se muito forte e não foi exclusividade da esquerda. Os candidatos de direita e centro-direita que abraçaram a pauta social se deram bem. Mais importante que falar no fortalecimento da esquerda é falar no fortalecimento da pauta social, que sempre foi prioritária da esquerda e agora foi incorporada por outros atores políticos. Se pegarmos a situação de Porto Alegre, por exemplo, tirando as fake news contra a Manuela D’Ávila que tiveram um peso importante na derrota dela, o Sebastião Melo começou a falar da questão social o tempo todo. Teve o bárbaro assassinato no Carrefour e ele rapidamente entrou no Twitter e já se posicionou, estava antenado com isso. Os conservadores mais empedernidos que insistem em não legitimar questões como o enfrentamento ao racismo estão de fora dessa nova onda. Isso mostra que apesar de resultados importantes em alguns lugares, mais do que o renascimento da esquerda é a ascensão da questão social, essa é a nova questão central.
P. O presidente e o bolsonarismo de uma maneira geral conseguem se reposicionar e entrar nessa onda?
R. Não, ficou muito ruim para o presidente, porque ele não está preparado para lidar com a questão social. Não tem essa agenda, não se preparou para isso. Não tem técnicos capazes de dar essas respostas, não tem gente que pensa a questão social no Governo federal. Para fazer isso tem de haver vínculos com a sociedade civil, de diversas formas, e o que o Bolsonaro fez desde que assumiu foi cortar essa ligação do Governo com o resto do país, ele está completamente desarticulado com a sociedade. Ele acha que fazer política é fazer live na Internet. Fechou conselhos de participação social, não conversa com ninguém. O retorno que a gente tem de empresários, políticos, representantes de entidades e organizações civis de reunião com o Paulo Guedes e com o Bolsonaro é de que eles não são ouvidos. Então essa ascensão da questão social, que vai se tornar mais forte em 2022, pegou o bolsonarismo de calça curta. Eles não contavam no meio do caminho com a pandemia. O auxílio emergencial é um acidente. Não existia no programa de governo do Bolsonaro nenhuma previsão de transferência de renda. Eles não tem como transformar isso em uma pauta social porque nunca tiveram essa preocupação, não sabem nem por onde começar.
O próprio entendimento sobre a segurança pública pública está mudando. Em 2022 vai ter muito candidato defendendo que a criminalidade é uma questão social. Aquele discurso linha dura do Doria, do Wilson Witzel, caiu. Em 2022 quem vier com esse papo de que bandido bom é bandido morto vai ter ali 15%, 20% dos votos e não passa disso, vai ser massacrado. Nessa campanha a gente viu policial para tudo quanto é lado nas candidaturas e, se olharmos os resultados com calma, não teve a mesma onda que rolou em 2018. Os caras pensaram que iam surfar. Em São Paulo elegeram dois vereadores da segurança pública e um deles foi eleito com a defesa dos cães e gatos. É uma piada. A questão social ganhou uma dimensão que não vai dar em 2022 para falar de segurança pública sem um ponto de vista mais amplo. Teve esse assassinato covarde em Porto Alegre que gerou uma onda forte de revolta ao redor do país, a questão racial está na pauta do dia no cenário externo. A morte do George Floyd nos EUA foi um divisor de águas nesse sentido. É uma onda muito forte essa, igual foi a Operação Lava Jato, o combate à corrupção e a linha dura na segurança pública em 2018. À direita e à esquerda, quem quiser ir bem nas eleições vai ter que modular o discurso e as ações de acordo com essa conjuntura toda que é uma novidade.
P. Qual o perfil do candidato “ideal”, de acordo com esse clima político?
R. Não existe um perfil ideal. Tanto Bruno Covas quanto Guilherme Boulos, por exemplo, com perfis completamente diferentes, foram bem em São Paulo. No caso do Covas, o que ainda prejudicou a imagem dele foi a associação com o vice e o governador João Doria. Não fosse isso ia ser mais parecido ainda. Do ponto de vista programático, não há nenhuma diferença frontal entre as propostas dos dois. Ninguém discorda das questões sociais e identitárias. Essa é uma onda que eu acho que vai vir avassaladora nas próximas eleições.
P. O que podemos dizer da situação do PT? Sai da eleição politicamente enterrado e sem nenhuma capital?
R. No cenário nacional, o que vemos é que o PT ficou mais isolado ainda no cenário político. O eleitor que tradicionalmente votava no PT preferiu o Boulos, o candidato do Ciro e em 2022 pode fazer mesmo ao invés de votar no Lula ou seu indicado novamente. Eu não diria que é um grande perdedor, por que na verdade quem já estava por baixo não tem como ser o grande perdedor. Grande perdedor é quem estava forte e perdeu espaço. Ele não sai maior ou menor, sai mais isolado.
P. E o papel do Novo nesse ciclo político que se inicia agora?
R. Qual é a grande marca do Novo em meio a pandemia? Processo seletivo para lançar candidatos. Não conseguiu oferecer nada de concreto para o país. Eles parecem completamente descolados da realidade brasileira. O resultado eleitoral é esse aí, pífio. A principal liderança eleita deles, que é o governador de Minas Gerais, Romeu Zema, vai ter problemas para conseguir se reeleger. É engraçado como eclodiu uma nova agenda e muitos não se prepararam, incluindo o Novo. Eles não conseguiram entender até agora o que é fazer política pública. E fora isso perderam identidade. Eles eram a favor do Sergio Moro, da Lava Jato. O Moro saiu do jeito que saiu do Governo e o que eles fizeram? Nada. Estão completamente perdidos. Se você olhar as redes sociais, muito mais que o Novo quem tem ocupado o lugar de um partido liberal na economia e costumes é o Livres. O Novo se propôs a ser conservador nos costumes e liberal na economia. Não precisava de um partido novo para isso. Tem vários na praça com essa proposta. Talvez fosse em uma campanha em outro país, um muito rico. Eles perderam o bonde da história.
P. Com o resultado do Bruno Covas em São Paulo, o governador João Doria obteve uma vitória importante para lançar seu nome à presidência?
R. Eu vejo o Doria enfrentando muita dificuldade. Ele foi muito longe no discurso bolsonarista e agora está com problemas para voltar atrás. Você a aprovação do Doria e do Bolsonaro em São Paulo nessas últimas pesquisas, é ruim igual. É um negócio assustador ali na casa dos 15% de bom e ótimo. Disseram que a campanha em São Paulo ia ser uma prévia do embate entre Doria e Bolsonaro, e o Covas tem o dobro de popularidade dos dois. O eleitorado identificou nele sensibilidade social. O Doria vai ter muita dificuldade de fazer essa volta no discurso. As pessoas não perdoam ele em São Paulo. Se chegar em 2022 com essa rejeição em São Paulo, o PSDB não vai querer dar a cabeça de chapa presidencial para ele e, se fizerem isso, vão começar a ter problemas para eleger bancada legislativa. O Doria tem o ano que vem para mostrar que se redimiu e está dentro da nova agenda da sociedade brasileira. Nesse quadro, a vacinação prometida pode virar o jogo para ele.
P. O ex-ministro da Justiça, Sergio Moro, fica onde nesse xadrez político e eleitoral?
R. Esse impulso de novas temáticas pode ser aproveitado pela centro direita e pela esquerda. A direita mais ligada ao bolsonarismo e a Lava Jato está muito distante dessa pauta. O Moro não entendeu em que país estamos. Não tem a menor ideia do que fazer em educação, saúde, combate à desigualdade, não sabia nem o que fazer na segurança pública. A única agenda dele é o combate à corrupção. O discurso de que isso vai salvar o país não cola mais. As pessoas continuam achando importante, mas perceberam que sem um conjunto de medidas mais amplo não resolve nada. Essa agenda específica hoje está lá embaixo na lista de prioridades. Então vejo muita dificuldade eleitoral para os dois salvadores da pátria, Bolsonaro e Moro, que brigaram e querem disputar entre si. Mesmo o eleitorado de classe média, mais conservador, percebeu que precisa de mais que isso. A situação social piorou demais no país, e todo mundo vê isso.
Fernando Abrucio: Lições para além da vitória do centro
Muitos creem que as eleições, nos EUA e aqui, apontam um novo caminho de centro para 2022. Faz sentido, porém, é preciso destacar que moderação política não significa inação
Marco Maciel, um dos políticos mais experientes do país, já dizia que uma eleição começa quando acaba a outra. No momento atual, o debate brasileiro multiplica esse provérbio: duas eleições recentes estão alimentando a discussão política, a presidencial americana e a municipal daqui. Inspirados pelo enredo e resultados de ambas, muitos acreditam que elas apontam um novo caminho para o pleito de 2022, no qual um novo centro teria grande espaço para conquistar a Presidência da República. A ideia faz sentido, mas é preciso evitar que ela não se transforme numa fácil e falsa fórmula eleitoral.
Inspirar-se efetivamente nessas duas últimas eleições seria buscar o seu sentido mais profundo, e não ficar na superfície do fenômeno. Se isso for feito, as descobertas irão além de um receituário para o novo centrismo, em contraposição ao Centrão e à polarização Bolsonaro versus Lula. Trata-se de entender os contextos, atores e projetos que deram materialidade à vitória de Joe Biden e Kamala Harris nos Estados Unidos, bem como as razões do triunfo dos políticos pragmáticos vencedores das eleições municipais de 2020.
De maneira sucinta, cinco elementos advêm dessas duas experiências eleitorais como lições para os que pretendem vencer o presidente Bolsonaro. O primeiro deles é que o desempenho do governante de plantão é a baliza básica do jogo político, especialmente quando ele busca a reeleição. No caso americano, a principal escolha estratégica de Biden foi mirar nos principais erros de Trump, colocando-se como o seu oposto nestes pontos, algo que foi facilitado pelo rotundo fracasso federal no combate à covid-19.
Para quem quiser seguir essa trilha, dois passos são necessários: definir quais são os pontos mais frágeis de Bolsonaro, centrando o foco neles, e começando a se construir como oposição a eles. Parece uma obviedade, mas o debate sobre novo centrismo brasileiro fala pouco de oposicionismo. Lembra-se muito da característica moderada de Biden - o que é verdade -, porém se esquece que sua moderação veio a serviço de uma oposição que não foi montada às vésperas da eleição.
Colocar-se mais claramente e o mais rápido possível como oposição, especialmente centrando a crítica nos pontos certos, é fundamental para se definir como um dos projetos alternativos ao governo Bolsonaro. Provavelmente haverá mais de uma proposta política em 2022, de modo que quem ficar esperando e apenas dourando a pílula não terá identidade política junto ao eleitorado. Definitivamente, moderação política não é inação.
Um bom exemplo da necessidade de contrapor claramente ao poder vigente vem de um dos mais brilhantes políticos de centro da história brasileira: Tancredo Neves. Ele só conseguiu o apoio da sociedade que queria acabar com a ditadura e, ao mesmo tempo, dos dissidentes do regime porque marcou sua posição contra o então governante, fez críticas certeiras durantes meses, sem que isso o impedisse de conversar com todos os lados. Cabe ressaltar que se Bolsonaro perder popularidade (e isso tem boas chances de ocorrer), mais a população e os políticos (inclusive governistas) vão começar a buscar alternativas. Qualquer novo centrismo tem que se mexer, o mesmo valendo para os opositores à esquerda.
Uma segunda lição que vem das eleições americanas e das disputas aos governos locais no Brasil é que o desempenho eleitoral depende muito das políticas públicas, mais fortemente quando há um candidato à reeleição. Muitas razões explicam a derrota de Trump, um dos poucos presidentes do pós-guerra que não se reelegeu. Mas é inegável que, quando analisadas as pesquisas de opinião, fica evidente o fracasso de seu governo. Segundo os eleitores, sua atuação na pandemia foi desastrosa, a política educacional foi ruim, a criação de empregos e de um colchão de proteção social diante da crise foi modesta. No computo final, a maioria do eleitorado preferiu votar olhando para resultados, em vez de se definir por guerras culturais.
De maneira inversa, os vitoriosos das eleições nas capitais brasileiras que buscavam a continuidade do governo tiveram seu sucesso muito atrelado à aprovação de suas políticas públicas. Daí que quem quiser usar essas lições eleitorais para pavimentar o caminho contra Bolsonaro precisa definir o atual governo como um fracasso de políticas públicas - na Educação, Saúde, Meio Ambiente, Direitos Humanos etc. - e apresentar alternativas simultaneamente críveis e desejáveis pela população. Esse debate é o terreno mais difícil para o bolsonarismo.
Dentro da agenda de políticas públicas, é preciso entender quais são as tendências que mais vão mobilizar os eleitores. Essa é outra lição, a terceira, para quem quiser vencer em 2022. A dupla Biden-Harris concentrou-se nas principais questões que poderiam engajar a maioria dos cidadãos: pandemia, desigualdades, questão racial, uma política menos polarizada, entre as principais, captando o espírito da época, o que foi expresso numa diferença de cerca de 5 milhões de votos.
Quais serão as principais tendências da eleição de 2022? É muito difícil cravar com certeza uma lista de prioridades porque em dois anos muita coisa pode acontecer. Mas parece que o espírito da época que vai marcar a próxima eleição presidencial vai ter na desigualdade, em suas várias facetas (de renda, regional, de gênero, racial e de acesso aos serviços públicos), o seu aspecto central. Além disso, a questão ambiental, ainda mais com a pressão externa, deve crescer de importância. Por fim, todo mundo quer que a economia ande, pois ninguém aguenta mais uma estagnação tão longa. Em outras palavras, pauta de costumes perde força quando o básico falta para a população.
Qualquer projeto oposicionista vai ter de dizer que com Bolsonaro o Brasil piorou. As qualidades da moderação centrista podem se sobrepor à polarização, mas esse grupo precisa estar antenado com as principais preocupações da população, trazendo respostas aos problemas que afligem à maioria do eleitorado. Em síntese, um novo centro só vai ganhar do bolsonarismo e da esquerda se interpretar melhor o espírito da época que vai alimentar as eleições de 2022. Não basta vender o bom-mocismo.
Além da compreensão do espírito da época, o sucesso da campanha presidencial no Brasil vai depender do grau de engajamento de setores estratégicos do eleitorado. A quarta lição aqui vem mais forte do caso americano, embora o caso paulistano recente tenha mostrado como Boulos foi muito sagaz em mobilizar o eleitorado jovem num momento de pouca participação das pessoas em comícios e afins. Quem quiser ter melhor sorte em 2022 precisará construir uma estratégia de comunicação envolvente, que atinja os grupos que podem decidir a eleição. Aliás, é neste ponto que o bolsonarismo tinha vantagem sobre as outras forças político-partidárias, como ficou claro em seu triunfo em 2018, apesar da dúvida que há hoje após o fiasco nas eleições municipais.
A dupla Biden-Harris foi capaz de fazer uma campanha que se colocou contra o histrionismo de Trump, ao mesmo tempo em que foi criativa e engajadora dos três grupos mais relevantes para a vitória democrata: os mais jovens, as mulheres e os negros. Ficam as perguntas: quais serão os setores decisivos na eleição presidencial de 2022? Como mobilizá-los, tanto na forma como no conteúdo? Essas duas questões são essenciais para todos os aspirantes à Presidência da República, sejam de esquerda, direita ou centro. Ser centrista não é uma forma óbvia de dar conta desses desafios. Criatividade, pluralismo e inserção social mais profunda serão muito mais importantes.
A construção das alianças será essencial, por isso fica aqui como a lição que finaliza o artigo. Entretanto, é engraçado que o debate brasileiro tenha começado neste ponto, quando deveria lidar com os quatro primeiros para desaguar neste último. De qualquer modo, a questão central é a seguinte: uma candidatura fora dos extremos precisa unir candidatos diferentes numa mesma chapa. Ou seja, se o presidenciável vem do centro ou centro-direita, tem de ter um vice mais à esquerda, e se vem da centro-esquerda, tem de ter uma companhia mais ao centro (ou centro-direita). Essa foi a fórmula democrata, que aliás também procurou construir uma parceria entre dois atores políticos com características distintas - um homem e uma mulher, um branco e uma negra, um da costa Oeste e outro da Leste. Isso tem de ser adaptado para as circunstâncias brasileiras, encontrando que tipos de coisas diferentes devem ser unidas para produzir uma chapa competitiva.
Em suma, encontrar uma estratégia para se organizar como oposição ao bolsonarismo, focar no debate das políticas públicas (calcanhar de Aquiles de Bolsonaro), entender quais são as tendências predominantes que importam aos eleitores, construir um modelo de engajamento e comunicação que atue sobre grupos estratégicos do eleitorado, e, por fim, montar uma aliança presidencial entre diferentes, são as peça-chave para se ter uma candidatura bem-sucedida em 2022. Ser de centro ou ter apoio de parcelas importantes do centrismo são características que podem ajudar nesta tarefa, mas com certeza isso não é suficiente. Biden entendeu isso, bem como os pragmáticos que venceram as eleições municipais de 2020.
*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas.
Fernando Abrucio: Bolsonaro não aprendeu nada com a história
A cada dia que passa, Bolsonaro mostra que não entendeu nada do que aconteceu no Brasil nos últimos anos
O bom governante é o que aprende com a história. Essa é uma máxima que deveria estar na porta de entrada de todos os palácios e sedes governamentais. Tal ensinamento se tornou ainda mais relevante com a eleição de 2018, quando venceu a ideia de que viria algo completamente novo que substituiria a velha política. Só que a mudança só se torna factível se a liderança política sabe o quê e como mudar, e apenas quem tem efetivo conhecimento histórico pode realizar essa transformação. O problema atual é que, a cada dia que passa, o presidente Bolsonaro mostra que não entendeu nada do que aconteceu no Brasil nos últimos anos, tanto no campo político como nas políticas públicas.
A própria definição de Bolsonaro como novidade, tal qual apareceu na última eleição presidencial, foi um engodo. É preciso desmistificar essa ideia, uma vez que ele foi deputado federal por quase 30 anos e não esteve na linha de frente de nenhuma proposta séria de transformação do país. No máximo, dizia que o regime militar errou por não ter fuzilado mais umas 30.000 pessoas.
Quando o país entrou numa enorme crise política e econômica, iniciada em 2013, a sociedade começou a rejeitar o sistema partidário que fora hegemônico por pouco mais de 20 anos, desde o impeachment de Collor. Foi aí que surgiu o espaço para uma liderança que defendesse a mudança completa do país. O eleitorado majoritário não olhou para o passado de Bolsonaro e acreditou que ele seria uma ruptura positiva. O fato é que essa massa enorme de eleitores, muitos com ódio do petismo e outros sentindo-se descontentes com as alternativas de centro-esquerda e centro-direita, comprou gato por lebre, como se diz popularmente. Na verdade, a melhor expressão para definir essa escolha eleitoral é outra: quem votou em Bolsonaro comprou o velho por novo.
O início do governo Bolsonaro foi marcado por duas tendências. De um lado, procurou se distinguir do passado trazendo nomes que não ocuparam cargos nos últimos governos, aparentemente abraçou o lavajatismo com a vinda de Sergio Moro para o Ministério da Justiça, não criou uma aliança explícita com o Congresso Nacional e os partidos tradicionais, e, como pretensa forma mais inovadora, buscou imprimir um ritmo alucinante de discussão pelas redes sociais, dando a impressão que governaria por meio delas.
Havia outro lado deste modelo, entretanto. Junto com uma agenda fortemente conservadora nos costumes, defendida com muita agressividade pelos bolsonaristas, o presidente da República pouco a pouco foi instalando uma agenda claramente autoritária. Uma das principais ações neste sentido foi enfraquecer os controles democráticos impulsionados pela Constituição de 1988, como os Conselhos de Participação Social, a Polícia Federal e o Ministério Público, escolhendo um procurador-geral que fosse completamente vinculado às ordens presidenciais. Este namoro de Bolsonaro com o autoritarismo teve seu auge em meio à pandemia, com ameaças aos outros Poderes e manifestações antidemocráticas comandadas por seus apoiadores.
A história não se repetiu nem como uma farsa nem como tragédia. Bolsonaro não percebeu que o país - e o mundo - estavam num ano diferente de 1964. A prisão de Fabrício Queiroz ligou o despertador para o presidente e ele, ainda bem, mudou de rumo. Os grupos de extrema-direita perderam força no governo, mas não foram desalojados por completo da aliança governista. De tempos em tempos, Bolsonaro abraça causas malucas e radicais, como no debate sobre a vacina, piscando para os autoritários de plantão.
A ambiguidade entre a democracia e o autoritarismo não acabou por completo, mas Bolsonaro optou por fazer um compromisso com a classe política, o que foi um alento para a governabilidade do país. O presidente finalmente descobriu que os parlamentares tinham tanta legitimidade quanto ele. Podia se abrir um novo capítulo, que garantisse estabilidade democrática e gerasse a aprovação de medidas importantes para a economia e a sociedade.
O problema é que o condomínio político montado junto ao Centrão se orienta apenas por uma perspectiva defensiva de governabilidade. Trocando em miúdos, esse casamento tem como objetivo básico salvar todos os sócios de qualquer pendência judicial - inclusive (ou principalmente) as relacionadas aos filhos do presidente. Vez ou outra surge uma afinidade ideológica ou o interesse em algum tema estrutural nessa aliança do Executivo federal com esse grupo parlamentar, mas, no geral, esse novo casal tem sido incapaz de gerar uma agenda sólida de propostas legislativas.
Se quiser dar maior efetividade a essa aliança, Bolsonaro tem de estudar mais a história recente. Claro que é preciso montar uma coalizão parlamentar para governar um sistema político marcado pelo multipartidarismo. Mas o presidencialismo de coalizão vai além disso. Para obter sucesso neste modelo, faltou ao bolsonarismo aprender três lições derivadas de outros governos: é necessário ter agenda clara, coordenação política e construir políticas públicas consistentes, capazes de gerar mais do que uma popularidade momentânea.
Uma aliança parlamentar só resulta em governabilidade efetiva caso tenha uma agenda que a oriente. Os bolsonaristas podem dizer que mandaram vários projetos ao Congresso Nacional, alguns de reconhecida relevância. Mas está claro que não há prioridades bem definidas nesta inflação de PECs e leis enviadas ao Legislativo. Na verdade, o próprio presidente da República não saberia dizer o que é mais importante, a reforma tributária ou a administrativa, alterar o pacto federativo ou a legislação penal. Bolsonaro, no fundo, não quer comprar briga com ninguém, não deseja apoiar nada que o indisponha com parcelas do eleitorado. Prefere comemorar a aprovação do Código Nacional de Trânsito e falar de medidas vinculadas à pauta dos valores, embora tais temáticas não tirem os cidadãos brasileiros do atual buraco econômico e social.
Falta ao Executivo federal, ademais, maior coordenação interna e externa. A briga entre os vários lados do governo é constante, com um grau de publicidade inédito. O presidente não tem sido capaz de acabar com essa balbúrdia. Quando arbitra, é para tomar decisões movidas pelo fígado e pelo desejo de eliminar os concorrentes eleitorais. As relações com o Congresso também são caóticas. A pauta das duas Casas mexe-se lentamente e muitas vezes contra os interesses do governo. Bolsonaro provavelmente não aprovará nenhum sucessor do auxílio emergencial e, o pior de tudo, as eleições de fevereiro para Câmara e o Senado continuam em aberto, gerando enorme incerteza para os dois anos finais do mandato.
O presidencialismo de coalizão, por fim, precisa se ancorar num caminho claro de políticas públicas. A popularidade inesperada cegou Bolsonaro, que botou o carro na frente dos bois: ele já está em campanha para a reeleição sem construir o que vai mostrar. E é exatamente no campo das políticas públicas que o presidente da República menos aprendeu com a história recente.
Primeiro, Bolsonaro não entendeu que cortes muito abruptos não dão certo. Fez mudanças em políticas públicas sem saber o que estava dando certo e o que estava no rumo errado, e jogou o governo no escuro. Como consequência, a maioria dos setores não entregará bons resultados até 2022 - a principal exceção, a área de infraestrutura, é a de maior continuidade em relação ao passado recente.
Também faltou colocar gente competente nos postos-chave, profissionais que entendam dos assuntos pelos quais são responsáveis. Este é um dos governos com mais gente amadora na história brasileira. Soma-se a isso o fato de que é necessário dialogar com os atores vinculados às políticas públicas, porque a interdição da conversa ou, pior, uma agenda completamente contrária a quem historicamente está ligado a uma área não produz uma mudança bem-sucedida. Se alguém tiver dúvida disso, acompanhe o que está acontecendo na Cultura, na Educação e na Saúde. É uma coleção de desastres.
A lógica do conflito, quando não da briga de rua, alimenta boa parte da dinâmica das políticas públicas bolsonaristas. A desarticulação federativa tem atrapalhado muito as políticas sociais. Menos Brasília não é, necessariamente, melhor Brasil, muito menos governo federal bem avaliado - vide as eleições nas capitais, majoritariamente antibolosonaristas. Bolsonaro não percebeu que é preciso fazer compromissos institucionais e políticos inclusive com adversários para apresentar resultados. Em vez disso, a maneira bélica de agir tem se espalhado até na Esplanada, gerando falsas dicotomias em seu governo, como a volta da luta entre ministros gastadores e fiscalistas. Nesta disputa, quem perde é o país e o presidente da República.
Ao repetir erros do passado e não aprender com os acertos, o governo Bolsonaro fica velho antes do tempo. Esse fracasso bolsonarista não quer dizer que o país não precise de lideranças e ideias novas. Renovação é fundamental para combater os problemas estruturais e colocar o Brasil novamente nos trilhos. Mas os que portarem a mudança em 2022 só terão sucesso se conhecerem bem a história e souberem utilizá-la a seu favor.
*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getúlio Vargas
Fernando Abrucio: Aspectos centrais das eleições 2020
A lógica da polarização parece não ser a tônica da eleição de 2020, e se isso se confirmar, as estratégias políticas para daqui a dois anos podem ser fortemente afetadas
Toda eleição tem uma história própria, determinada por sua dinâmica territorial, pelo regramento institucional vigente e pelos elementos conjunturais que a influenciam. A disputa municipal de 2020 pode, até o momento, ser compreendida por cinco aspectos que delimitam sua peculiaridade: a redução do debate eleitoral, o choque entre as inovações e a força da política tradicional, os imensos desafios que aguardam os prefeitos eleitos, a percepção cada vez maior do mosaico que caracteriza os pleitos locais e, por fim, um cenário político nos grandes centros que não é o mais favorável às duas grandes forças eleitorais do país - o bolsonarismo e o petismo.
O primeiro aspecto a ressaltar não é alvissareiro à democracia: nunca houve tão pouco debate numa eleição brasileira desde o fim da ditadura militar. Na disputa municipal de 2020, os políticos falam menos ao povo, discutem menos entre si e disputam com dancinhas no TikTok a atenção de gente que está mais preocupada com memes. Esse fenômeno é resultado de uma tendência mais recente de mudanças no regramento eleitoral, da dificuldade de se montar discussões entre candidatos na mídia eletrônica e dos efeitos da pandemia.
Já faz quase uma década que o país tem optado, paulatinamente, pela redução do tempo de campanha e pela diminuição da duração do horário eleitoral gratuito. Para defender essa proposta, argumentava-se que o processo eleitoral tinha um custo excessivo, algo que gerou, em décadas, vários escândalos de corrupção. Essa proposição não deixa de ser em parte verdadeira, mas para uma eleição local, em que não há tanta exposição na mídia das principais disputas (a não ser na reta final), essa lógica pode beneficiar os que já têm cargos eletivos e os candidatos mais conhecidos, gerando uma barreira de entrada aos que venham de fora e que apresentem ideias novas, embora não necessariamente boas.
Junta-se a esse fato a ausência de debates na mídia eletrônica nos principais centros urbanos do país. De fato, por conta da legislação eleitoral e da grande quantidade de postulantes às prefeituras, não é fácil organizar algo minimamente adequado ao formato da TV e do rádio. Mas esse problema deveria ser mais bem discutido pela imprensa e por todos aqueles que reclamam cotidianamente de nossa democracia nos meios de comunicação de massa, especialmente porque concessões públicas deveriam servir mais como canais de informação à população, o que numa eleição exige o confronto de ideias.
Obviamente que a pandemia piorou esse cenário de falta de debates e de redução do diálogo dos políticos locais com a população. Não se pode esperar, por razões de saúde pública, que a campanha seja como antes. Mas quando isso se soma aos dois elementos anteriores, temos uma eleição municipal que beneficia mais os incumbentes, atrapalha a entrada de novas ideias e dificulta a comparação das propostas.
E aqui entra o segundo aspecto definidor dessa eleição municipal: há um choque entre propostas inovadoras de campanha eleitoral, em termos de forma e conteúdo, e um modelo político mais tradicional, que vai além do conservadorismo das ideias e se baseia, principalmente, na força dos partidos e políticos já estabelecidos há mais tempo no jogo eleitoral.
Deve-se destacar as várias tentativas de inovação na atual campanha. Cresceram as candidaturas coletivas, os temas novos e vinculados a várias injustiças sociais do país, os concorrentes ligados a movimentos de renovação política, a ascensão de pessoas vindas de movimentos da periferia, em suma, surgiram propostas e nomes que vão dos liberais à esquerda. Não se trata de dizer que esses grupos tenham as melhores ideias, mas choques exógenos ao sistema político têm a qualidade de obrigá-lo a buscar o aperfeiçoamento.
O mais provável, entretanto, é que tais inovações tenham menor impacto do que o peso da política tradicional nesta eleição municipal. É bem surpreendente esse cenário depois de um pleito nacional, o de 2018, onde o discurso da antipolítica e da renovação tenha sido hegemônicos. Além da falta de debates e da pandemia, mais dois pontos podem ser acrescentados para explicar a força da política tradicional no pleito local. O primeiro é a capilaridade dos partidos do centro para a direita em boa parte dos municípios brasileiros, especialmente nos menores. É como se fosse uma alma profunda de peemedebismo (ou arenismo) que povoa grande parte do país.
Derivado de uma reforma institucional recente, outro elemento pode favorecer esse status quo: o fim das coligações em eleições proporcionais, cujo primeiro teste está sendo feito agora. A grande maioria da opinião pública defendia essa mudança, como uma forma tanto de distribuir mais fielmente as cadeiras segundo os votos dados, quanto de reduzir um multipartidarismo de certa maneira artificial, que aumentava o custo para a formação dos governos sem necessariamente aumentar a representatividade dos diversos setores sociais. É inegável que esses efeitos são positivos e poderão ficar mais claros no pleito nacional de 2022.
Mas também está acontecendo o que o cientista político Guilherme Russo, pesquisador do FGV/Cepesp, apontou com precisão em recente artigo na “Folha de S. Paulo”: a redução do número de partidos que lançam candidatos. Esse resultado favorece as agremiações partidárias mais tradicionais e sua organização mais fechada a novos atores e ideias. Claro que não se pode dizer que quem vem de fora do sistema seja, por definição, sempre melhor do que os mais experientes. O discurso da novidade já foi muito usado para gerar enormes retrocessos em vários momentos históricos. Não obstante, o atual cenário produz algo diferente: há uma enorme desigualdade competitiva e pouquíssimo espaço genuíno de debate entre os incumbentes ou os que têm longa vida no jogo político em contraposição aos que concorrem pela primeira vez e/ou defendem projetos diferentes dos vigentes. Tal disparidade não é boa para a democracia.
A tendência à maior continuidade dos atores políticos no plano local ocorre num momento de grandes desafios aos futuros prefeitos. O quadriênio que começará em 2021 será um dos mais difíceis, senão o mais difícil, desde que os municípios ganharam um novo status político, de maior autonomia, na Constituição de 1988. Este é um terceiro aspecto essencial dessa eleição. O que está em jogo é eleger um governante capaz de reconstruir as principais políticas públicas locais diante dos efeitos da pandemia. Essa tarefa será muito complicada em questões como a educação, a assistência direta aos grupos sociais mais vulneráveis e o apoio à economia local. Ora, se o quadro eleitoral aponta para pouco debate, como os eleitores poderão se informar adequadamente para escolher a proposta mais correta para enfrentar quatro anos difíceis?
Embora haja uma situação comum de grande adversidade, os municípios partem de patamares bem diferentes. No plano eleitoral, também existe uma diversidade federativa muito grande, de modo que é sempre mais correto falar no plural das eleições municipais, pois há variados jogos políticos em questão. De um lado, existem 2.069 cidades que só terão dois candidatos a prefeito e, por incrível que pareça, 117 municipalidades terão apenas um concorrente à prefeitura. Esse cenário pouco ou nada competitivo abarca cerca de 40% dos municípios do país. Mas, de outro lado, as cidades com mais de 50 mil habitantes e, sobretudo, as principais capitais devem gerar um cenário multipartidário de possíveis eleitos.
Os resultados das urnas tendem a consagrar um mosaico pluripartidário de vencedores nesta eleição municipal. Claro que as forças mais tradicionais do centro para a direita tendem a eleger mais prefeitos nas cidades até cinquenta mil habitantes, e nas capitais haverá uma variação maior. De toda maneira, o que importa destacar aqui como quarto retrato da disputa de 2020 é que provavelmente não haverá nenhum grande vencedor, seja partidário ou de discurso uniformizador (como o do antipetismo de 2016).
Mesmo sem ter um vencedor indiscutível, o cenário da maioria das capitais aponta para um último aspecto, esse sim com possíveis consequências para as próximas eleições presidenciais. Onde há segundo turno, geralmente há pouquíssimas chances para um candidato bolsonarista ou petista vencer o pleito. Na verdade, o PT já está mal em suas posições no primeiro turno, enquanto o antibolsonarismo é, no mais das vezes, maior do que o bolsonarismo nos principais colégios eleitorais municipais, tornando o segundo turno um túmulo para o jogo da polarização.
Todos os candidatos que disputam o favoritismo no segundo turno têm em comum o fato que estão se inclinando mais para o centro. Isso não define o que ocorrerá em 2022, porém traz duas consequências para o jogo futuro. A primeira é que, a despeito de Lula ser uma grande liderança nacional, o enfraquecimento do petismo no pleito municipal reduz sua hegemonia sobre as demais forças de esquerda e centro-esquerda. Além disso, o bolsonarismo parece ser incapaz de vencer segundos turnos em que há algum arranjo político mais centrista. A lógica da polarização parece não ser a tônica da eleição de 2020, e se isso se confirmar, as estratégias políticas para daqui a dois anos podem ser fortemente afetadas.
*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas.
Fernando Abrucio: País precisa dizer o que quer ser no século XXI
Parafraseando o “50 anos em 5” de JK, o que guia Bolsonaro é um projeto de “40 anos em 4”, mas para trás, de volta ao mundo da ditadura e da Guerra Fria
Mal começaram as campanhas municipais de 2020 e os atores políticos já falam em 2022. Especialmente o bolsonarismo e seus aliados estão concentrados na aprovação de seu elixir político, que no momento tem o nome de Renda Cidadã, continuação do auxílio emergencial que catapultou a popularidade presidencial. Obviamente que há outros projetos no Congresso, mas seu sentido mais amplo está deslocado da estratégia política de curto prazo, que é reeleger Bolsonaro e salvar sua família das querelas judiciais. E qual é o projeto dos opositores do presidente? Novamente, há uma miríade de temas, muitos louváveis, mas não uma visão clara e articulada de como o Brasil deve lidar com os desafios do século XXI.
A ideia de projeto para o país, com metas claras, meios definidos e articulando as questões numa visão ampla, está em falta no momento. Geralmente, o comandante do Executivo federal tem a primazia na definição dos rumos nacionais, pois foi votado pela maioria dos brasileiros, além de ter um enorme poder político e administrativo. Mas o governo atual padece de cinco problemas que dificultam liderar um processo mais amplo de mudanças.
O primeiro é a falta de um diagnóstico para as grandes questões do século XXI. Parafraseando o “50 anos em 5” de JK, o que guia Bolsonaro é um projeto de “40 anos em 4”, mas para trás, voltando ao mundo do final do regime militar e da Guerra Fria. O passadismo domina o presidente, que se concentra em temas morais que lutam contra mudanças contemporâneas de valores e é saudosista da época da ditadura. É verdade que ele enviou várias propostas administrativas e econômicas ao Congresso Nacional, que poderiam ser colocadas dentro de um “pacote modernizador”. Porém, a soma dessas medidas geraria qual tipo de Estado? Quais devem ser as principais funções governamentais dentro da ótica bolsonarista? Como deveria ser a articulação do setor público com a sociedade? Qual é o modelo de gestão pública do bolsonarismo?
Em outras palavras, o governo Bolsonaro não apresentou até agora, com clareza, um diagnóstico de quais são os principais obstáculos para o desenvolvimento brasileiro do século XXI. Na verdade, o bolsonarismo é muito frágil no diagnóstico e no prognóstico na grande maioria das políticas públicas. Está aqui o segundo obstáculo para se construir um projeto mais amplo para o Brasil. Quem são os principais formuladores do governo? Quais países inspiram as políticas públicas ou, então, quais são as evidências que alimentam as decisões do primeiro escalão da área social?
Haveria vários exemplos dessa falta de perspectiva das políticas públicas. Para citar um deles: todos os economistas apontam o grande problema da produtividade da economia brasileira e como a questão educacional tem um peso decisivo neste tema. Pois bem, o que o MEC está fazendo ou pretende para melhorar efetivamente a Educação do país? Ninguém sabe. Falar contra Paulo Freire é lutar contra o passado - e uma luta equivocada - e não aponta um rumo para o futuro. Quais são as medidas inovadoras que estão pensadas para que o país melhore sua posição no PISA nos próximos dez anos? O que está sendo pensado para reduzir as desigualdades educacionais do país? As perguntas são muitas, e o silêncio das respostas é ensurdecedor.
Outro exemplo: é impossível imaginar o futuro do Brasil sem propor políticas consistentes sobre a questão ambiental. Aparentemente, o que governo tem conseguido é apenas piorar neste setor, com o esvaziamento dos órgãos públicos, a desregulação selvagem da legislação e, para coroar o retrocesso, os resultados têm sido apenas mais desmatamento, queimadas e desprestigio internacional. Aquilo que deveria ser um ativo para o desenvolvimento do país tornou-se um empecilho. O problema é que, em vez de apontar mudanças na postura atual, adota-se um comportamento meramente defensivo ou então se aposta na radicalização da destruição de tudo que foi feito ao longo da redemocratização. Alguém imagina que o Brasil melhorará no século XXI com o modelo bolsonarista de política ambiental?
Claro que podem ser citadas, aqui e acolá, medidas modernizadoras vindas do Executivo federal, como as ações do Banco Central para modernização do sistema de pagamentos do país. E aqui entra o terceiro obstáculo presente no governo Bolsonaro: há muitas forças políticas, muitos desiguais entre si e descoordenadas, convivendo no mesmo espaço, sem que uma liderança clara dê um sentido sistêmico às propostas.
O maior exemplo disso é a inflação de propostas que o Executivo federal mandou ao Congresso Nacional sem que haja prioridades entre elas. Cada mês uma delas é alçada ao topo das preocupações. O pior de tudo é que não há comprometimento presidencial nem com todos os pontos presentes nestes projetos. É muito estranho um presidente que manda algumas propostas de emenda constitucional bastante complexas, que mudam aspectos profundos do Estado, ter como principal preocupação a aprovação do novo Código de Trânsito Brasileiro! Que pontos estratégicos dessa legislação vão melhorar o futuro dos nossos filhos e netos?
No fundo, Bolsonaro se importa mais com aquilo que não tem evidências sobre seu impacto positivo de longo prazo, como a legislação das armas, do que com as grandes questões estruturais brasileiras, num caminho inverso aos dos países que estão efetivamente se preparando para o século XXI. Se voltarmos ao seu programa de governo apresentado na eleição, na maioria das vezes eram temas menos relevantes que ganharam destaque - e nos pontos efetivamente importantes, geralmente Bolsonaro apresentou propostas populistas ou que ele abandonou no meio do caminho, como o seu lavajatismo.
A falta de uma coalizão bem organizada no Legislativo, em termos de apoio e ideias, tem sido um quarto empecilho para a construção de uma visão clara de futuro. Isso gerou uma postura de desresponsabilização do Executivo, que muitas vezes torce para que os parlamentares resolvam sozinhos os problemas da agenda pública do país. Assim foi na reforma da Previdência, e alguns apostam que esse processo poderá ser repetido nas reformas administrativa e tributária. O problema é que quando o Executivo se ausenta, também podem ser aprovadas coisas que atrapalham o funcionamento governamental, seja em termos fiscais, seja na capacidade de execução.
Desde a prisão de Queiroz, no dia 18 de junho, Bolsonaro mudou de posição e começou a construir uma base parlamentar. Essa decisão, em boa medida, serve a ambos os lados como um mecanismo de autoproteção e sobrevivência de deputados e do próprio presidente. No entanto, vislumbra-se agora que se pode e se deve buscar algo mais dessa aliança, como revela a discussão sobre o Renda Cidadã. Só que exatamente quando essa parceria aponta para uma mudança legislativa importante, descobre-se o quinto e último aspecto que limita o reformismo bolsonarista: a dificuldade de pensar além das eleições de 2022.
É inegável que programas de transferência de renda constituem uma condição necessária para se combater a desigualdade brasileira. Mas é preciso juntá-las como outras políticas sociais. A desigualdade é múltipla e exige remédios vindos de vários setores. Qual é a política bolsonarista, por exemplo, para se reduzir a desigualdade racial? Afinal, são os negros que mais morrem com a violência na periferia, inclusive da vinda da polícia, bem como há um grande abismo educacional entre as crianças brancas e as negras. Obviamente que a renda é um ponto de partida desse processo, mas sozinha não muda este triste quadro, que já nem deveria existir em pleno século XXI.
Até agora os governistas só pensam em distribuir dinheiro para receber fidelidade na hora do voto. É esse mesmo sentido pragmático que move hoje o presidente, que no passado fora contra o Bolsa Família e todas as ações de redistribuição mais direta de renda aos pobres brasileiros. Todos podem mudar e fazer autocrítica, mas o que deve ser exigido de Bolsonaro envolve uma pergunta maior: qual será o desenho dessa política de transferência de renda para os próximos dez anos?
Do lado da oposição ao governo Bolsonaro, no seu sentido mais amplo, muitas propostas e temáticas relevantes têm sido levantadas nos últimos meses. Elas vêm de partidos ou de grupos da sociedade civil que têm apresentado bons debates e ideias sobre meio ambiente, educação, questão racial, saúde e outras questões verdadeiramente estruturais para o país. Não obstante, a fragmentação dessas visões de mundo e a falta de um modelo mais sistêmico que aponte soluções para frente, em vez de se concentrar nos sucessos e erros do passado, constituem uma fragilidade daqueles que querem se opor ao atual governo.
Muito se fala da necessidade de construir uma frente ampla, da centro-direita à esquerda, contra o bolsonarismo. Pode ser que isso seja necessário para a eleição de 2022 - e esse é um tema para um outro artigo -, mas é preciso dizer qual será o projeto mais amplo que vai orientar essa aliança, de modo que ela não seja apenas defensiva.
O país está num momento de ausência de uma proposta consistente de futuro. Para superar essa fase, além dos votos, será necessário propor ideias e soluções que vislumbrem algo além do curto prazo e do personalismo presidencial.
*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas.