feminicídio
Mulheres na berlinda: a violência política de gênero e o alcance dos casos no Brasil
Cristiane Sampaio*, Brasil de Fato
Elas passam toda a vida lutando contra o silenciamento de suas vozes; batalham por igualdade de tratamento nos diferentes espaços de convivência pessoal, pública e profissional; resistem à violência multifacetada do mundo ao redor; superam barreiras internas do ambiente político-partidário para conquistar espaços de liderança e, pasmem, mesmo depois de vencidas todas essas etapas, as mulheres que atuam em frentes de poder convivem ainda com outra chaga: a violência política de gênero.
O roteiro acima descreve a realidade que – não só de hoje, mas especialmente de forma mais evidente nos temos atuais – marca a trajetória de uma série de personagens femininas cuja atuação política é alvo de ataques contra a sua liberdade de incidência no mundo. No xadrez da política, seja ele local ou nacional, é costumeiramente reservado a elas o espaço de maior vulnerabilidade no jogo, e o problema se intensifica conforme avançam o conservadorismo e a cultura do ódio no país.
Um levantamento recente organizado pelo Psol sobre integrantes do partido que viraram alvo desse tipo de ataque cita os 34 casos mais emblemáticos de membros que foram colocados nessa berlinda. Ao longo de 18 páginas, o documento menciona situações registradas entre março de 2017 e julho de 2022. Enquanto no primeiro ano o partido registra três ocorrências, em 2021 foram nove, mesma quantidade já registrada até o mês passado.
O dossiê aponta casos como os que envolveram o ex-deputado federal Jean Willys e o atual candidato ao governo do Rio de Janeiro Marcelo Freixo (ex-Psol e hoje PSB), mas o rol deixa claro, pelo perfil das situações, que o destino principal desse tipo de violência continuam sendo elas, as mulheres. Dos 34 casos notificados pela sigla, cinco atingiram homens, enquanto 29 tiveram como alvo as mulheres, sendo seis delas mulheres trans.
As ocorrências vão desde xingamentos, passando por ameaças de estupro e morte até o assassinato de fato, como ocorreu em 2018 com a vereadora carioca Marielle Franco, o caso mais lembrado na memória traumática do Psol. A parlamentar foi morta junto com o motorista Anderson Gomes e depois de ter sofrido uma série de ataques por conta da atuação política que tinha, pautada em bandeiras como a igualdade de gênero, a igualdade social e o combate ao racismo.
Este último tema, inclusive, tem destaque entre os casos levantados pelo Psol no dossiê, que relata variadas situações de ofensas racistas às militantes atingidas. A professora Maíra Kubik, do Departamento de Estudos de Gênero e Feminismo da Universidade Federal da Bahia (UFBA), aponta que mulheres de esquerda tendem a ser o destino predileto de quem pratica a violência política por conta do ideário professado pelo segmento.
“Historicamente, são as mulheres de esquerda que estão mais próximas do movimento feminista. Elas trazem, pra esfera pública e pra política institucional, tanto no Legislativo quanto no Executivo, pautas que dizem respeito à autonomia, à liberdade, à expansão dos direitos das mulheres, e isso incomoda muito os conservadores.”
Para dar conta dos casos que se multiplicam pelo país, o Psol chegou a criar a chamada Secretaria de Segurança Militante. Fundado em 2004 a partir de divergências ocorridas no seio do PT, o partido se considera a sigla mais atacada desde a redemocratização do país em termos de violência política de gênero.
“Isso tem a ver com o fato de que hoje isso é uma prática principalmente de bolsonaristas, e as parlamentares do Psol têm uma agenda frontalmente contrária ao que é a política bolsonarista. Então, é isto: acabamos sendo vistas como inimigas e, consequentemente, alvo desses que pregam o discurso de ódio”, atribui a líder da bancada da sigla na Câmara dos Deputados, Sâmia Bomfim (SP).
O material compilado pelo Psol foi encaminhado a diversas instituições. Entre elas, receberam o dossiê o Supremo Tribunal Federal (STF), o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), a Procuradoria-Geral da República (PGR), a Procuradoria-Geral Eleitoral (PGE) e as presidências da Câmara dos Deputados e do Senado.
O partido também enviou o documento para as presidências das Comissões de Direitos Humanos do Congresso, bem como para a Organização das Nações Unidas (ONU) e para a Organização dos Estados Americanos (OEA).
"“A gente já procurou todas as instituições possíveis, apresentando o nosso relatório e colocando sugestões que poderiam ser adotadas, mas acho que precisa é de punição exemplar", defende Sãmia Bomfim / Câmara dos Deputados
2018-2022
Vereadora na cidade de São Paulo (SP) e atual candidata a deputada federal, a mulher trans Erika Hilton (Psol) relata que percebe uma piora no problema entre os anos de 2018 e 2022, ambos períodos de pleito presidencial. Quatro anos atrás uma parte da população brasileira assistiu atônita à eleição do ex-capitão Jair Bolsonaro (então filiado ao PSL e hoje ao PL).
A chegada dele ao posto mais importante do país veio depois de uma intensa e polarizada disputa que colocou em lados opostos os apoiadores do político ultraconservador e uma massa de eleitores que optaram por um caminho mais democrático e progressista.
De lá pra cá, o país virou palco de uma avalanche de fatos que envolveram ataques a mulheres, a pessoas negras, à população LGBTQIA+, entre outros grupos de maior vulnerabilidade social. No atual cenário, o ex-capitão continua polarizando o jogo eleitoral, desta vez tendo como principal opositor o ex-presidente Lula (PT), que tem arregimentado em torno de si um conjunto de apoiadores de diferentes colorações político-partidárias.
“A disputa agora está mais acirrada. Esta eleição é histórica. É uma das mais importantes da República brasileira, tem muitos grupos de ódio colocados nessa disputa e eles se organizam através dos ataques, ameaças, tentativas de boicote. Isso é um estímulo colocado pelo processo vigente no país, que é o ódio, a intolerância, a não permissão de um terreno de debate de ideias”, avalia Erika.
Com perfil insubordinado, Erika Hilton transpôe barreiras, destaca-se pelo pioneirismo e foi a mulher mais bem votada em 2020 na Câmara Municipal de São Paulo / AFP
Primeira mulher transgênero a ocupar uma cadeira na Câmara Municipal de São Paulo, Hilton obteve mais de 50 mil votos na eleição de 2020, o que lhe rendeu o título de mulher mais bem votada e sexta candidata com mais votos no ranking da capital paulista. Passada a euforia resultante da vitória, não demorou muito para que o fantasma da violência política batesse à porta da parlamentar: em janeiro de 2021, ainda o primeiro mês de mandato, Erika ajuizou uma ação contra 50 pessoas suspeitas de lhe proferirem ameaças transfóbicas e racistas no ambiente da internet.
O material organizado pela defesa da vereadora incluía expressões ofensivas como “ser desprezível”, “raça imunda”, “vagabunda”, “jumenta”, “traveco” e apontamentos de que o cabelo da parlamentar servia “pra tirar ferrugem de ferro”. Depois disso, o mandato teve que acionar a Guarda Civil Metropolitana e Erika passou a andar escoltada por segurança particular. Agora, ela olha para o cenário de 2022 com preocupação.
“Acho que essa violência tende a aumentar ainda mais e por isso acho que temos que contar com observadores internacionais, clamar pelos países vizinhos pra que tenhamos um processo eleitoral com segurança, porque eu temo pelas nossas vidas ao fazermos campanha política no Brasil este ano”, desabafa.
De acordo com o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), as eleições brasileiras são acompanhadas por convidados internacionais desde 2016, mas este ano, de forma pioneira, o pleito contará ainda com sete missões estrangeiras.
Estas últimas consistem em uma tarefa entregue a instituições ou organismos de fora do país que tenham expertise no assunto. Elas têm autonomia para conversar com atores da sociedade civil e da imprensa, acompanhar seções de votações, entre outras coisas.
Raio de alcance
O problema da violência política de gênero não se resume às integrantes do Psol, abarcando uma gama de mulheres de outras legendas e grupos. A vereadora de Fortaleza Larissa Gaspar (PT) é um exemplo disso. Ela chegou a ser ameaçada de morte pelas redes sociais em meados do ano passado, após a aprovação de uma lei de sua autoria que proíbe a utilização de fogos barulhentos na cidade.
A tentativa de intimidação recaiu ainda sobre a família da parlamentar, também ameaçada de morte. O acusado chegou a dizer inclusive que os assassinatos já estariam encomendados a uma organização criminosa. Após o mandato denunciar o caso às autoridades, a inteligência da Polícia Civil do Ceará localizou o acusado no mesmo dia. Ele foi preso e atualmente responde a um processo na Justiça.
“A gente fica se perguntando: 'Se eu fosse um homem, será que ele teria essa mesma postura?' Eu imagino que não. A gente sente como uma tentativa de silenciamento da luta das mulheres, principalmente de alguma iniciativa que tem uma repercussão pública muito forte, e aí alguém se acha no direito de silenciar essa causa e essa luta”, desabafa Larissa.
Larissa Gaspar e família entraram na mira de criminoso que os ameaçou de morte em Fortaleza (CE) / Câmara Municipal de Fortaleza/Arquivo
Mulheres que atuam politicamente em outros espectros ideológicos também se tornam alvo desse tipo de agressão. É o caso da deputada federal Rosângela Gomes (Republicanos – RJ), autora da legislação que trata do combate à violência e à discriminação político-eleitorais contra a mulher. Batizada de Lei nº 14.192/2021, a norma completou um ano recentemente, no último dia 4.
A parlamentar conta que a proposta nasceu a partir de sua própria experiência na política, iniciada com um mandato de vereadora em Nova Iguaçu (RJ). Em um seminário realizado em junho deste ano pela Secretaria da Mulher da Câmara dos Deputados para discutir o tema, a deputada fez um desabafo, afirmando que adentrou o ambiente político “com muita dificuldade”.
“Enfrentei muitas humilhações, a ponto de ser chamada de ‘macaca’, ‘analfabeta’. Sofri muita violência na política, porque eu tenho vários adjetivos. Além de ser mulher, pobre, periférica, negra, evangélica, paguei um preço alto, mas permaneci.”
Na última década, país se tornou palco de frequentes protestos envolvendo mulheres que levam pauta feminista às ruas / Mídia Ninja
A lei enquadra a violência política contra a mulher como “toda ação, conduta ou omissão com a finalidade de impedir, obstaculizar ou restringir” os seus direitos políticos. O conceito também abrange “qualquer distinção, exclusão ou restrição no reconhecimento, gozo ou exercício de seus direitos e de suas liberdades políticas fundamentais em virtude do sexo”.
A legislação prevê pena de reclusão de um a quatro anos, além de multa, com a possibilidade de ampliação da penalidade em alguns casos específicos, como é o caso de infrações que atingem gestantes, idosas e mulheres com deficiência.
Campanha
Em 2019, a Câmara dos Deputados lançou a campanha “Violência Política de Gênero – Uma letra muda todo o contexto”, que foi reeditada até aqui. Segundo explica a assessora técnica da Secretaria da Mulher da Casa, Danielle Gruneich, o objetivo é esclarecer o público feminino a respeito do conceito.
“Práticas que poderiam ser vistas como comuns não são comuns e não são normais. São práticas violentas contra a mulher. Na política a gente identifica muito isso, mas existe uma dificuldade da mulher de identificar que aquilo é uma prática violenta. Então, a campanha serve como um esclarecimento, porque a violência contra a mulher é uma violência contra a democracia.”
Violência política ganha expressão máxima com casos de assassinato; mulheres denunciam sistematicamente contexto que leva ao feminicídio / Mídia Ninja
Desde 2013 a Procuradoria da Mulher na Câmara recebe denúncias de agressões contra o segmento e foram registradas 150 ocorrências entre agosto daquele ano e setembro de 2021. Dessas, seis foram de violência política. Danielle Gruneich afirma que o número é baixo porque atualmente os canais de atendimento à mulher para esse tipo de situação são vastos e se multiplicam pelo país, o que gera uma pulverização dos dados. As estatísticas ainda não são unificadas.
Nos últimos meses, por exemplo, o Ministério Público Federal (MPF) criou um formulário específico para esse tipo de denúncia na Ouvidoria Nacional. O mesmo ocorreu com o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP). Além disso, foram criadas ouvidorias com esse fim no TSE e no CNJ.
O foco dessas vias de atendimento é computar os casos e dar o encaminhamento cabível a cada demanda. “Você tem um conjunto de canais de entrada e, obviamente, tem ainda a possibilidade de a mulher ir a uma delegacia abrir uma ocorrência policial”, acrescenta a assessora técnica.
Caminhos
Apesar do avanço que representa a nova norma, parlamentares e outras representantes têm cobrado publicamente uma aplicação mais efetiva da lei, que ainda é desconhecida por boa parte da população, por exemplo. De outro lado, discute-se também a necessidade de se diminuir ou, no plano ideal, dizimar o problema.
Entre as diferentes fontes ouvidas pela reportagem, é unânime o entendimento de que a cura do mal é complexa e por isso exige medidas profundas. Para Sâmia Bomfim, por exemplo, é preciso haver penalização concreta dos infratores.
“A gente já procurou todas as instituições possíveis, apresentando o nosso relatório e colocando sugestões que poderiam ser adotadas. Mas, sinceramente, acho que precisa é de punição exemplar. Vejam o caso da Marielle. Não é exagero dizer que, se ele não for solucionado, esse clima de naturalização do ódio e da violência política contra as mulheres vai seguir se perpetuando porque os caras vão pensar ‘bom, assassinaram uma vereadora e nada foi feito, então, seguiremos’.”
Assassinada no Rio de Janeiro, Marielle Franco já havia recebido uma série de ataques e ameaças antes de morrer / Foto: Bárbara Dias/Fotoguerrilha
Para a pesquisadora Maíra Kubik, a solução passa pelas instituições, mas também carece de providências de outra natureza. Ela comemora a lei que enquadra a violência política de gênero, mas defende iniciativas de caráter estrutural, como uma reforma política substancial que seja capaz de garantir um acesso mais democrático das mulheres ao Poder Legislativo e a qualificação da educação.
A professora analisa que o país não tem investido nos debates educativos da forma como deveria e critica, por exemplo, a retirada das diretrizes de gênero do último Plano Nacional de Educação (PNE), sancionado em 2014 e vigente até o ano de 2024. A meta foi questionada por setores conservadores que consideraram a iniciativa inadequada ao ambiente escolar.
“Fizeram um discurso de pânico moral que foi ativado na sociedade brasileira dizendo, por meio de uma fake news, que crianças seriam supostamente ‘transformadas em homossexuais’ se houvesse diretrizes de gênero no PNE quando, na verdade, o que se propunha era conscientizar as crianças desde cedo para justamente não haver violência de gênero. Nós precisamos educar crianças com base em iniciativas estruturais”, encerra Maíra Kubik.
*Texto publicado originalmente em Brasil de Fato.
Eliane Cantanhêde: Quem ama não mata
As vidas da mulheres importam e isso é cultura, é educação, depende do Estado e de cada um de nós
O Brasil está doente, não apenas por causa da pandemia, da economia, do desemprego, da corrupção e do desgoverno, mas porque a desigualdade social é a oitava do mundo, o trânsito é assassino e o feminicídio, endêmico, está em toda a parte, em todas as classes sociais. Um horror, uma vergonha, uma sensação de impotência num País tão especial, tão lindo, com uma natureza tão privilegiada.
Fiquemos no feminicídio, depois de dois fatos chacoalharem o Judiciário na reta final de um ano tão dramático no mundo inteiro: o assassinato no Rio de uma juíza, Viviane Vieira do Amaral Arronenzi, 45, e as declarações insanas de um juiz (e um juiz de Vara de Família!), Rodrigo Azevedo Costa, reveladas pelo programa Papo de Mãe, das jornalistas Mariana Kotscho e Roberta Manreza.
Na véspera do Natal, data da esperança e da generosidade, o engenheiro Paulo José Arronenzi assassinou a juíza Viviane a facadas, na frente das três filhas de ambos, uma de 9 anos e as gêmeas de 7. Viviane tentava reagir à insanidade com racionalidade, tinha dispensado a escolta e estava levando as crianças para passar o Natal com o pai, que nem sequer se deu ao trabalho de fugir. Ficou ali, olhando a mulher morrer, até a polícia chegar.
É chocante, desesperador, e gerou reações do presidente do Supremo e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), Luiz Fux, do também ministro do STF Gilmar Mendes, da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) e da Defensoria Pública. Mas está dentro da "normalidade". Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 88% dos feminicídios são cometidos por atuais ou ex-companheiros e 43% deles – pasmem! – na frente dos filhos.
É, evidentemente, uma patologia. Comprova o quanto os doentes se recusam a se assumir doentes, as famílias não reconhecem o tamanho do problema, as vítimas viram reféns do pavor e da pena. Mas, muito mais do que um problema individual e familiar, trata-se de uma patologia social, em que pesam uma cultura machista e dominadora, uma educação nas escolas e nos lares que gera e reforça a sensação de posse, de proprietário e propriedade.
O resultado, macabramente caricato, é um juiz de Vara de Família capaz de bater no peito e gritar ao mundo – ou às mulheres? – que "ninguém apanha de graça", "não está nem aí para a Lei Maria da Penha" e se orgulha de ter tirado a guarda dos filhos de mães agredidas para dar aos pais agressores. Equivale a dizer: a mulher maltratada, abusada e ameaçada pede socorro ao Estado e é maltratada, abusada e ameaçada pelo agente do Estado. Estarrecedor.
A mídia está repleta de casos de mulheres espancadas e mortas, de diferentes idades e classes sociais, em todos os Estados. Na capa do Correio Braziliense de 22 de dezembro, as fotos de três moças do DF: Luciene, morta a socos no meio da rua, Maria e Cleide, vítimas de tiros. Todas três eram mães. E se tivessem recorrido ao juiz Azevedo Costa? Ou a alguém do mesmo feitio? Morreriam do mesmo jeito, mas ainda mais humilhadas e sem os filhos.
Os dois novos fatos, o assassinato de uma juíza e a exposição de um juiz injusto, jogam o foco no Judiciário, mas produzem mais discursos do que mudanças. Até porque, como adverte a juíza e escritora Andréa Pachá, não adianta endurecer ainda mais as leis, é preciso intervir em comportamentos sociais que geram e, de certa forma, estimulam a violência contra as mulheres.
Ela ensina: os criminosos não vão parar de matar a companheira por temer dois, cinco ou dez anos a mais na prisão, eles só vão parar quando a sociedade mudar, quando homens, mulheres, inclusive juízes e policiais, mudarem. Isso é cultura, é educação, depende do Estado, dos líderes, dos pais, de cada um de nós. As vidas das mulheres importam.
Ricardo Noblat: Natal manchado pelo sangue de mulheres assassinadas
Feminicídio avança no Brasil
Thalia Ferraz, 23 anos, celebrava o Natal com parentes em sua casa em Jaraguá do Sul, Santa Catarina, quando recebeu por celular uma mensagem perguntando se ela gostava de surpresas. Momentos depois, um homem apareceu e a matou a tiros na frente de todo mundo. A polícia suspeita que foi o ex-companheiro dela.
Na mesma noite, a 3.204 quilômetros dali, no Alto do Mandu, na Zona Norte do Recife, um sargento reformado da Polícia Militar, de 53 anos, matou sua mulher, a cabeleireira Anna Paula Porfírio dos Santos, 45 anos, com dois tiros de revólver. Eram casados há 20 anos e tinham uma filha de 12 que testemunhou o crime.
Horas antes, na Barra da Tijuca, no Rio, a 2.297 quilômetros do Recife, Viviane Vieira do Amaral Arronenzi, de 45 anos, havia sido assassinada a facadas pelo ex-marido, Paulo José Arronenzi, de 52 anos. Um vídeo registrou os gritos de suas três filhas crianças que imploravam ao pai para que parasse de esfaquear a mãe.
Viviane era juíza. E foi por isso que o Supremo Tribunal Federal, o Conselho Nacional de Justiça, o Tribunal de Justiça do Rio e a Defensoria Pública manifestaram seu horror com o que lhe aconteceu. O ministro Luiz Fux, presidente do Supremo, prometeu desenvolver ações para erradicar a violência contra mulheres.
“Enquanto nos preparávamos para nos reunir com nossos familiares e agradecer pela vida, veio o silêncio ensurdecedor. A tragédia da violência contra a mulher, as agressões na presença dos filhos, a impossibilidade de reação e o ataque covarde entraram na nossa casa na véspera do Natal”, escreveu Fux.
Claudio de Mello Tavares, presidente do Tribunal de Justiça do Rio, distribuiu nota onde diz que “o gravíssimo assassinato” da juíza “mostra que o feminicídio é endêmico no país: não conhece limites de idade, cor ou classe econômica. O combate a essa forma bárbara de criminalidade contra as mulheres deve ser prioritário”.
Palavras ao vento se algo de muito drástico não for feito para de fato frear os casos de feminicídio que só aumentam no país. No período colonial e até o século 19, era lícito no Brasil ao homem casado matar a mulher em flagrante delito com base no argumento da defesa da honra. Assim, maridos assassinos eram absolvidos.
Só a partir de 2015 o Código Penal Brasileiro incluiu a Lei 13.104 que tipifica o feminicídio como homicídio, reconhecendo o assassinato de uma mulher em função do gênero. O crime prevê pena de 6 a 20 anos de reclusão. Se caracterizado o feminicídio é considerado hediondo e a punição parte de 12 anos de reclusão.
O Brasil teve um aumento de 7,3% no número de casos de feminicídio em 2019 em comparação com 2018. Foram 1.314 mulheres mortas pelo fato de serem mulheres – uma média de uma a cada 7 horas, segundo levantamento feito pelo site G1 com base nos dados oficiais dos 26 estados e do Distrito Federal.
Dados levantados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública revelam que quase 90% das vítimas de feminicídio no Brasil são mulheres mortas por ex-maridos ou ex-companheiros. Facas são as armas mais usadas nesse tipo de assassinato (53,6). Em seguida, as armas de fogo (quase 20% das vezes).
No Rio de Janeiro, segundo o Monitor da Violência Doméstica e Familiar contra Mulher, o número de crimes graves cometidos contra mulheres dentro de suas casas cresceu desde o início da pandemia. Cabe perguntar: Quantas juízas precisarão ser mortas para que se trate o feminicídio com a gravidade que ele requer?