feminicidio
Cristina Serra: 'Quem ama não mata'
Permanece atualíssimo o lema do movimento feminista mineiro, lançado há 40 anos
A lei do feminicídio foi resultado de uma CPI do Congresso que investigou a violência contra mulheres. A comissão fora instalada em 2012 sob o impacto de um estupro coletivo na Paraíba. No caso, conhecido como a "Barbárie de Queimadas", cinco mulheres foram atraídas para uma festa de aniversário e estupradas por dez homens. Duas foram assassinadas porque reconheceram alguns dos criminosos.
A lei entrou em vigor em 2015, e a partir da tipificação do crime —quando envolve violência doméstica e familiar, menosprezo ou discriminação à mulher— foi possível dimensionar uma carnificina. Estatísticas mostram que uma mulher é morta a cada nove horas no Brasil. O fim do ano registrou mais um banho de sangue, com seis feminicídios na véspera e no dia de Natal.
O feminicídio é cometido, na maioria dos casos, por maridos, namorados ou ex-companheiros. É um crime de ódio, evidente até na forma como os assassinos desfiguram suas vítimas. A juíza Viviane Vieira do Amaral foi assassinada pelo ex-marido, Paulo José Arronenzi, com 16 facadas, sendo dez no rosto.
Lembra o caso Ângela Diniz, 44 anos atrás. Dos quatro tiros que levou, três foram no rosto. É preciso entender que não existe crime "passional", resultado de um desequilíbrio momentâneo ou de um rompante do assassino sob violenta emoção. O feminicídio arrasta um acúmulo de violações que o antecipam.
O caso da juíza Viviane é exemplo típico de relação abusiva. Conforme as investigações, Arronenzi, que estava desempregado, era agressivo e passara a exigir cada vez mais dinheiro da ex-mulher. Ela decidira se separar após episódio em que ele machucou uma das filhas do casal. Combater o feminicídio requer não apenas mecanismos de prevenção, proteção da mulher e coerção. É necessária uma mudança cultural complexa, que exige a participação do Estado e da sociedade. Permanece atualíssimo o lema do movimento feminista mineiro, lançado há 40 anos: "Quem ama não mata".
El País: Mulheres testam as ruas em protestos por direitos, pelo fim da cultura do feminicídio e contra Bolsonaro
Atos estão marcados em 70 cidades contra retrocessos na pauta feminista, que avança em países vizinhos. Legislação de proteção à mulher avançou no país mas assassinatos subiram
Heloísa Mendonça, do El País
As mulheres no Brasil ainda não conseguiram encher as ruas na mesma proporção que suas pares na Argentina, no Chile, ou nos Estados Unidos e Espanha, quando o assunto é luta por direitos femininos – ou feministas. Mas neste domingo, 8 de março, atos convocados em mais de 70 cidades do país pretendem marcar a posição das brasileiras identificadas com a pauta feminista que se veem ameaçadas pelo retrocesso do atual Governo. As críticas às políticas do presidente Jair Bolsonaro serão um dos motes de vários atos convocados por movimentos, como Mulheres contra Bolsonaro, Marcha Mundial das Mulheres e o coletivo Juntas. O protesto marca também um grito contra o aumento do feminicídio do Brasil, o quinto país que mais mata mulheres no mundo. Apesar da taxa total de homicídios estar em queda, a violência contra as mulheres cresceu no último ano. Dados compilados pela Folha de S. Paulo apontam que o feminicídio avançou 7,2% em 2019. No total, foram 1.310 vítimas de violência doméstica ou por sua condição de gênero. Em 2018, o feminicídio já tinha aumentado 4% , segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública. A cada hora, quatro meninas de até 13 anos são estupradas no país.
Em São Paulo, o ato acontece às 14h na Avenida Paulista. O ataque ostensivo do presidente Bolsonaro a jornalistas mulheres, como Patricia Campos Mello e Vera Magalhães, também entrou na pauta, assim como demandas específicas das mulheres negras, que sofrem de uma situação ainda mais vulnerável no âmbito sócio-econômico. “Não há como negar que há pautas específicas das negras já que no Brasil existe uma desigualdade entre as próprias mulheres. São as negras que mais morrem, as que são mais encarceradas, as com menos acesso à saúde e as que ganham menos”, explica Juliana Gonçalves, uma das organizadoras da marcha das mulheres negras de São Paulo. As mulheres pretas ou pardas continuam na base da desigualdade de renda no país. Em 2018, elas receberam, em média, menos da metade dos salários dos homens brancos (44,4%), que ocupam o topo da escala de remuneração.
Falar das especificidades das mulheres negras foi, por muito tempo, visto como algo que não agregava à luta ou dividia o movimento feminista, segundo Gonçalves. “Mas quando a gente não fala, tornamos invisível as condições mais precárias e de vulnerabilidade que estão mais intensas na vida de uma mulher negra”, afirma. Ela explica, no entanto, que nos últimos anos, esse diálogo vem melhorando. “As mulheres brancas tem aumentado muito a escuta. É um avanço, em 2018, as mulheres indígenas negras vieram para frente do ato”, diz.
A representante do movimento das mulheres negras pondera, entretanto, que ainda há um longo caminho a ser percorrido, já que muitas mulheres brancas que se autodenominam feministas, reproduzem um discurso machista. “No próprio Big Brother está acontecendo uma situação racista contra o Babu. Não há como ser feminista e não ser antiracista”.
Em um momento, que segundo Gonçalves, o líder de uma nação legitima o discurso homofóbico, racista, que sempre esteve na sociedade isso, é hora de ir às ruas. “Participar do 8 de março é uma forma de gritar é o nosso combate. É uma forma de reafirmar os valores democráticos que estão em risco. Nós também marcharemos no dia 25 de julho, dia internacional da mulher negra latina-americana, e no dia 14 de março quando o crime bárbaro de Marielle Franco completa dois anos sem ter sido solucionado”, diz.
Feminicídio
Desde 2015, quando a lei do feminicídio foi criada, o número de assassinato de mulheres apresenta uma trajetória ascendente. Para alguns especialistas, os feminicídios aumentaram de fato, enquanto outros defendem que apenas o número de registros subiram. Para Gabriela Mansur, promotora de justiça e especialista em direito das mulheres, apesar da violência contra a mulher estar aumentado, a alta dos registros de feminicídios acontece porque a polícia está mais familiarizada com a lei e tratando os casos corretamente.
“Mas não podemos fechar os olhos para essa situação. Quanto mais voz e poder as mulheres estão adquirindo, mais violência elas estão sofrendo também. Precisamos transformar toda a sociedade. É necessário mais investimento em educação e investimentos em políticas públicas voltadas para a igualdade”, afirma Mansur, que alerta que o tema deve ser uma pauta prioritária no país e não apenas levantado no dia internacional das mulheres ou quando um caso grave acontece”, diz ela. O assassinato de Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes, por exemplo, é uma das bandeiras que estão puxando protesto – há outro marcado para o dia 16, quando a execução da vereadora da Maré e de Gomes completam três anos.Mansur avalia que o país tem hoje uma legislação avançada de proteção à mulher, com a criminalização do assédio, a criação do feminicídio, lei Maria da Penha (contra a violência doméstica) e uma nova lei que obriga profissionais da saúde a comunicar à polícia, em 24 horas, indícios de violência contra mulheres. “Felizmente, hoje vemos um engajamento maior da sociedade no tema. Em São Paulo, temos o exemplo do programa Tem Saída, que conta com o apoio de empresas privadas que viabilizam vagas para mulheres em situação de violência doméstica para gerar autonomia financeira. Estamos cada vez mais unidas ocupando nossos espaços”, explica.
Luiza Eluf, advogada criminal e autora de livros jurídicos sobre crimes sexuais e passionais, concorda que o país progrediu muito nos últimos anos na proteção das mulheres, mas as lei precisam ser mais respeitadas. “Temos noções muito claras e legislações muito precisas que impõem os direitos das mulheres. Falta obedecer”, diz a procuradora de justiça aposentada. Luiza lamenta que o padrão do comportamento do Governo de Jair Bolsonaro seja de desrespeito à mulher e que ataques, como os promovidos a jornalistas mulheres (Partícia Campos Mello e Vera Magalhães) sejam tão constantes. “O presidente utiliza as mulheres como objeto de uso e não se preocupa em ofendê-las em sua sexualidade”, diz. A advogada vê como um forte retrocesso o tratamento de subordinação atribuído às mulheres pelos integrantes do Governo. “A senhora [ministra da Mulher, da Igualdade e dos Direitos Humanos] Damares Alves, que cuida das políticas públicas das mulheres, ainda não percebeu a necessidade de considerar a mulher um ser humano completo e com direito a sua autodeterminação. Ela tem uma visão da mulher subalterna ao marido ou ao homem que esteja ao seu lado”, diz. Damares tem sido questionada sobre os ataques de Bolsonaro a mulheres, como a jornalista Patricia Campos Mello, mas a ministra acaba sempre justificando o que o presidente faz.
Apesar do esforço em aumentar a presença nas ruas, o movimento feminista no Brasil hoje está mais identificado com pautas abraçadas pela esquerda no país, o que tem afastado mulheres que confundem o protesto por direitos reprodutivos, garantias trabalhistas ou pela mesma democracia como atos de política partidária. Um desafio para as feministas brasileiras, que veem nos movimentos de países vizinhos um modelo. Chilenas e argentinas se tornam cada vez mais protagonistas dos movimentos de rua. Nos últimos meses, protestos multitudinários pelos direitos das mulheres avançaram em vários países da região, focados na igualdade de direito e contra a violência de gênero. No Chile, a performance “Un violador en tu camino”, do coletivo LasTesis, rompeu barreiras e deu a volta ao mundo. No Brasil, a luta feminista também pulsa forte com mudanças por dentro do sistema legal, mas ainda não ganhou uma expressão de porte nas ruas como no exterior. Este domingo será um novo teste.