federalismo

Arte: João Rodrigues/FAP

Vinícius Müller: “Novo federalismo pode gerar avanços na educação básica”

João Rodrigues, da equipe da FAP

Na sequência da série de entrevistas sobre o Bicentenário da Independência, o quarto episódio do podcast Rádio FAP propõe a reflexão sobre a forma de partilha do poder do Estado brasileiro. O professor Vinícius Müller, doutor em histórica econômica pela Universidade de São Paulo (USP), explica a importância de um novo federalismo.

Integrante do Conselho Curador da Fundação Astrojildo Pereira (FAP), Vinícius Müller é professor do Insper Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper), da Fundação Escola de Comércio Álvares Penteado (FECAP) e do Centro de Liderança Pública (CLP). Ele também é autor de diversos livros, entre eles “Educação Básica, Financiamento e Autonomia Regional” e a "A História como Presente".



Os maus resultados econômicos, os desafios para descentralização de poder na organização e atuação do Estado e a relação entre a má qualidade da Educação e o desenvolvimento econômico também estão entre os temas do programa. O episódio conta com áudios da BRS Explica, TV Amazônica e CNN Brasil.

O Rádio FAP é publicado semanalmente, às sextas-feiras, em diversas plataformas de streaming como Spotify, Youtube, Google PodcastsAnchorRadioPublic e Pocket Casts. O programa tem a produção e apresentação do jornalista João Rodrigues.

RÁDIO FAP




Aos 200 anos de Independência, Brasil cobra um projeto democrático e sustentável para o século XXI

Texto produzido por integrantes do Conselho Curador e da Diretoria Executiva da FAP

O Brasil que completa 200 anos como Nação independente em setembro de 2022 é um espaço geopolítico notável, consolidado como Estado nacional, sem tensões territoriais importantes, com uma sociedade plural e dinâmica, que se vê como uma mesma comunidade imaginária, reunida sob o sentimento de sermos todos brasileiros.

O momento de comemoração é também um momento de reflexão – e propostas de ação - sobre um país que, ao tornar-se independente, permaneceu escravocrata; e que, apesar do senso de comunidade, carrega ainda traços estruturais que permitem a sobrevivência de um racismo com o qual a sociedade brasileira não pode mais conviver, e que deve ser combatido como prioridade em qualquer projeto nacional a ser levado à frente.

Entramos no século XXI com uma população dez vezes maior e com mais de cem vezes a riqueza nacional - medida pelo Produto Interno Bruto – que tínhamos no começo do século XX. Mas somos, também, um país profundamente desigual.

Segundo o relatório de 2003 do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, o Brasil tinha, ao fim do ano 2000, a sexta pior distribuição de renda do mundo, só melhor que as de países muito pobres, prejudicados pelo passado colonial europeu.  Enquanto não resolvermos essa imensa e persistente desigualdade – e seu corolário, causa e efeito: o absoluto fracasso na educação de massa – seremos, cada vez mais, uma sociedade dividida e pouco competitiva, condenada a ver se ampliar o golfo crescente que nos separa das nações mais prósperas.

Também no combate à desigualdade e na inclusão pela educação, atenção especial deve ser dada ao enfrentamento do racismo estrutural na sociedade, herança do período escravocrata que ainda repercute em diversas instâncias da vida social, política e econômica dos brasileiros, cujas consequências particularmente perversas se refletem nos índices de renda, emprego, escolaridade e violência policial. As políticas afirmativas e a aplicação da lei contra o preconceito e discriminação devem ser prioridade do governo.

É importante lembrar que a busca por igualdade, em uma sociedade democrática, não significa homogeneidade como objetivo; que a justiça social deve assegurar a todos os direitos universais, além de tratar cada um de acordo com suas necessidades específicas, em razão de sua identidade de gênero e como indígena, como negro, ou como pertencente a qualquer outro grupo humano.

A solução deste e de outros problemas brasileiros depende, ainda, de uma forte reação contrária às recentes ameaças à democracia, do repúdio ao golpismo e a todo projeto autoritário de poder, e da defesa intransigente do Estado de Direito, do pluralismo e da liberdade, com a garantia de eleições livres, a salvo de tentativas de interferência de atores políticos sem qualificação para tal.

Em um país com cerca de três quartos de sua população ocupada trabalhando no mercado informal ou em empresas de nano, micro ou pequeno porte, estas últimas responsáveis por cerca de 29% do PIB brasileiro, o combate à desigualdade requer, também, políticas de fomento à produtividade e qualificação para esses empreendimentos, como parte do projeto de um país mais próspero em seu terceiro século como nação independente.

Reduzir a desigualdade, meta nacional prioritária

A redução da desigualdade deve ser a meta nacional prioritária para o século XXI | Foto: Gustavo Mellossa/Shutterstock

Num mundo onde o avanço tecnológico é acelerado e abrangente, nossa precariedade educacional nos é fatal. Os problemas graves enfrentados pelo Brasil têm, na falta de projeto nacional e consistente para a educação, uma face particularmente perversa e danosa. O acesso universal e em condições de igualdade a bens públicos como educação, saúde e segurança é condição essencial para o exercício da cidadania e a consolidação da democracia no país. Ainda estamos longe dessa meta, e não faltaram recuos nesse campo nos últimos anos.

Essa desigualdade é responsável por gastos extraordinários e desnecessários na segurança pública, na saúde, na assistência social; e desorganiza a formação de um movimento que possa alavancar o conhecimento no país. Ela convive com a insuficiência na capacidade brasileira de garantir a todos seus cidadãos, especialmente às vítimas do racismo e outras formas de preconceito, os direitos humanos básicos. A adoção de um programa de renda mínima universal, e a reformulação, em bases sustentáveis e coerentes, dos programas existentes é uma tarefa inadiável.

Em 2021, segundo o Ministério da Saúde, apenas pouco mais de ¼ das crianças do país faziam três refeições diárias, por exemplo. Conquistas civilizatórias convivem com misérias insuportáveis, que exigem maior compromisso por sua erradicação, tarefa com prioridade sobre todas as outras na gestão pública do Brasil que queremos.

Pobreza e desigualdade não são sinônimos, e a persistência de ambos no país têm a ver com a incapacidade de direcionar nosso sistema educacional para um projeto realmente modernizador e de superar os erros de políticas nacional-desenvolvimentistas ou de soluções pretensamente liberais do passado, que fracassaram na tarefa de ampliar com qualidade a inserção do Brasil no mundo globalizado e interdependente.

É preciso ter a consciência de que não será apenas o aumento do consumo ou do acesso aos bens materiais que fará a desigualdade cair de modo sustentável em qualquer país. Superar a pobreza tem sua relação principal com a capacidade produtiva. Nela se encontram tecnologia e trabalho, entre outros. Já a desigualdade guarda relação íntima com instituições informais e valores morais. Para ir além do combate à pobreza e criar de fato uma política de redução da desigualdade, o Brasil precisa ampliar equitativamente a capacidade de trabalho, educacional e tecnológica de sua população.

Desde a inclusão da educação como direito do cidadão e dever do Estado, pela Constituinte de 1988, o país assistiu a avanços pontuais, porém significativos nesse setor, que devem ser analisados e, na medida do possível, replicados nacionalmente, sem otimismo ingênuo, incentivando experiências de sucesso comprovado na alfabetização e no ensino básico, promovendo a reforma do ensino médio e o ensino integral, que começa a adquirir tração em todo o país.

 A ênfase na educação e na cultura deve se justificar não só pelos seus efeitos na produtividade e competitividade econômicas do país, mas também pela necessidade de universalização dos valores e bens imateriais que trazem, fundamentais para um projeto humanista de país, que vença a cultura de violência e exclusão alimentada também pelo racismo estrutural.

Brasil, ator responsável na esfera internacional

Foto: Black Layer Creative/Shutterstock

A falta de avanços e, pior, os retrocessos nas conquistas sociais no país prejudicam e podem inviabilizar um importante patrimônio histórico que sustentou a relevância do Brasil na região e na sociedade internacional.

Dono do maior e ainda diversificado parque industrial da América do Sul, o país é plural em seus relacionamentos com os grandes atores globais e comprometido, em sua Constituição,  com o respeito aos direitos humanos, à autodeterminação dos povos, aos princípios de não intervenção e de Igualdade entre os Estados.

O Brasil deve zelar por sua história diplomática de defesa da paz, da solução pacífica dos conflitos, do repúdio ao terrorismo e ao racismo e cooperação entre os povos para o progresso da humanidade. No caso do racismo, particularmente, é necessário um esforço para superar os erros do passado, e promover com maior ênfase a diversidade e o repúdio ao racismo, não só nas pautas e ações de nossa política externa como na formação do próprio corpo diplomático.

Estes são princípios constitucionais, essenciais. São importante conquista diplomática na conjuntura global em que se desenha um novo mundo multipolar, com o recesso da hegemonia norte-americana; a emergência da China como grande potência global, econômica e bélica; a consolidação do bloco europeu; e o grande ativismo de atores relevantes em busca de protagonismo, como a Rússia e os países do bloco europeu.

País destino de grande parte dos escravizados trazidos do continente africano, o Brasil tem uma dívida histórica com os países da África, e interesses comuns refletidos por sua forte presença com embaixadas na maioria das capitais, sua fronteira marítima, sua experiência de cooperação em diversos setores, como saúde e agricultura, e sua relação comercial, que já foi mais relevante.

Embora tenha reduzido sua atuação diplomática nos tempos recentes, o Brasil não pode resolver sozinho boa parte dos dilemas que enfrenta neste início do século XXI. É preciso ter em vista, permanentemente, que o Brasil se situa num quadro comum de problemas globais, entre eles os desafios permanentes da consolidação da democracia e da inserção ativa do país na globalização, com um propósito irrecusável de defesa e afirmação da sustentabilidade econômica e ecológica.

À complexidade de seus problemas internos, o Brasil soma urgentes desafios na esfera internacional, entre os quais a defesa da paz e do princípio de não-intervenção, que desautoriza e condena ações como a recente invasão russa na Ucrânia, é um dos exemplos. Também recente é o combate à pandemia da COVID-19 (e à recente emergência da chamada Varíola dos Macacos),  exemplo, aliás, ligado aos desequilíbrios provocados pela humanidade no meio ambiente, que resultaram no que seja, talvez, o principal e prioritário problema a ser enfrentado em escala global, por ameaçar a própria vida no planeta: o aquecimento global e a perda da biodiversidade terrestre.

Aquecimento global, desafio premente

Foto: Sepp photography/Shutterstock
Foto: Sepp photography/Shutterstock

As emissões de gases de efeito estufa, com suas consequências para a mudança do clima e o aquecimento global, são uma questão mundial que se sobrepõe a qualquer outra. Se não enfrentado imediatamente, esse desafio dará lugar a um cenário de terror, e provocará uma imprevisível mudança civilizacional.

Essa ameaça impõe mudanças de hábitos e valores e, como outros temas que se imaginava mais que estabelecidos pela ciência (a importância das vacinas, entre eles), tem sido recebida com negacionismo alimentado por líderes populistas e grupos mal informados ou mal-intencionados.

Apesar da irresponsabilidade desse “novo reacionarismo”, as manifestações do fenômeno já estão aí: novas endemias e pandemias provocadas pelo deslocamento de animais de seu habitat natural e seu encontro com povoações humanas; eventos climáticos extremos e inéditos, como inundações, secas, ondas recordes de calor, tempestades e derretimento do gelo em regiões polares.

Ainda que com preocupante lentidão, os principais atores globais têm promovido, desde 1992 (ano da Convenção do Clima, na ECO-92), iniciativas que devem ser apoiadas e reforçadas para lidar com esse problema e seus desdobramentos.

Oportunidades na Revolução Verde

Foto: Sarayut_sy/Shutterstock

Mais importante: em diversos países, o avanço tecnológico aponta para soluções que, somadas e articuladas, podem reduzir os danos já contratados pela população global com o volume de carbono já lançado na atmosfera.

Abrem-se, com isso, enormes oportunidades de buscar uma economia próspera e sustentável com essas iniciativas – do aumento da eficiência da energia renovável (principalmente solar e eólica) à substituição de combustíveis fósseis, adoção de novos materiais, técnicas e processos na construção e na produção global, novos processos de produção de alimentos e métodos de captura do estoque de carbono na atmosfera.

Assim como o investimento em tecnologias militares apoiou revoluções tecnológicas e econômicas, este novo paradigma econômico e tecnológico tende a criar um novo fosso entre os desenvolvedores dessas tecnologias - e de novos setores e processos - e o restante dos países.

Não à toa, a competição por aquisição de capacidades e influência mundial também se dá nesse campo. Nos Estados Unidos, o governo Biden, apesar da equivocada oposição do Partido Republicano, lançou o que chama de New Green Deal; a Europa amplia seus recursos orçamentários em iniciativas para garantir emissão de zero carbono; e a China tornou-se líder em energia fotovoltaica, tecnologias de ponta em transporte ferroviário e no reflorestamento. Busca-se, nessas economias de ponta, aproveitar o que esses avanços trazem de dinamismo e aumento da eficiência. E não é só na disputa pela liderança da Revolução Verde que o cenário internacional vem sendo redesenhado, e exige do Brasil novas estratégias e projetos de parcerias e posicionamento na esfera global.

Desafios da conjuntura de mudanças globais

Foto: Vit-Mar/Shutterstock

A unipolaridade ensaiada com a derrubada do muro de Berlim e o colapso do Império Soviético deu lugar a uma nova situação de clara disputa por influência global, especialmente por parte dos Estados Unidos e China, com momentos de tensão, como os incidentes de agosto em torno de Taiwan e ações hostis e de espionagem no ciberespaço. A necessária equidistância do Brasil em relação a seus mais importantes parceiros comerciais e de investimento impõe uma consistente articulação diplomática, inclusive internamente, do Estado brasileiro.

Em relação à África, continente com vários países de tradição importante para a formação cultural brasileira, população total de mais de um bilhão de habitantes, grande número de migrantes brasileiros e mercados que já foram mais significativos para o Brasil, o país precisa retomar o empenho de aproximação e cooperação, que arrefeceu nos últimos anos.

O setor privado, por meio das grandes empresas globais e da movimentação do capital de risco também atua nesse cenário, para além das fronteiras nacionais e até no mundo virtual, tornando mais complexas as decisões e intervenções dos governos e tomada de decisão por agentes econômicos.

O esforço dos governos para constituir instituições multilaterais sofreu retrocessos nos últimos anos; o uso do comércio e das finanças como arma geopolítica ganhou nova dimensão com as disputas entre potências globais; e um enorme poder hoje é prerrogativa de grandes empresas de tecnologia com acesso incalculável e instantâneo a dados minuciosos sobre os cidadãos em todo o planeta.

O Brasil precisa de uma estratégia clara para orientar sua articulação com outros países no gerenciamento desse desafio transnacional.

A facilidade de conexão no universo virtual e a insatisfação com os resultados econômicos e sociais prometidos pelos líderes políticos levou a uma perda de influência dos partidos políticos tradicionais e à ascensão de indivíduos e grupos populistas com discurso antissistema e pouco apreço às instituições encarregadas de preservar a ordem democrática.

Novo federalismo

Foto: Reprodução/Apex-Brasil

É nesse contexto em que o Brasil se vê, também internamente, frente a múltiplos desafios. Na esfera política, a enorme fragmentação do sistema partidário e a ascensão de um grupo político pouco respeitoso das instituições e dos mecanismos de comando e controle hoje põe a própria democracia em risco e leva a sociedade civil a sair em sua defesa.

Na economia, os maus resultados das políticas voltadas ao crescimento econômico, a desindustrialização, a predominância de serviços de baixa complexidade e o persistente desemprego impõem um redesenho da atuação do Estado para a promoção da prosperidade, de forma robusta e sustentável.

Do ponto de vista do fortalecimento das políticas públicas, a pandemia da COVID-19 mostrou a relevância do modelo tripartite e integrado entre governos federal, estaduais e municipais, com o SUS. Um modelo que deveria inspirar, também nas ações de educação e assistência social, entre outras, um novo federalismo, com a coordenação mediação de conflitos e financiamento (suplementar, quando for o caso) federal, e maior transparência e articulação entre as esferas estadual e municipal.

Esse novo federalismo deveria levar à rediscussão sobre a divisão de atribuições, dando ao governo federal maior responsabilidade sobre a educação básica, por exemplo. Ao mesmo tempo, esse redesenho institucional deve levar a maior participação dos entes subnacionais de forma a garantir medidas de efetiva redução das desigualdades regionais. A descentralização de poder na organização e atuação do Estado traz, ao lado do aumento de eficiência do setor público, um seguro contra tentações de centralização autoritária, tão comum na nossa História.

A modernização do Estado em bases não autoritárias exige também um debate profundo sobre as instituições democráticas, suas falhas, o exercício das competências dos diversos poderes e a relevância do sistema de pesos e contrapesos entre Executivo, Legislativo e Judiciário, que precisa ser defendido contra pressões ilegítimas e ameaças de retorno do arbítrio.

As tentativas recentes de politizar e trazer as Forças Armadas para esferas que não são de sua competência devem ser repudiadas e rechaçadas veementemente, para que possamos ultrapassar definitivamente essa marca do atraso que é a busca de soluções armadas para divergências na esfera da cidadania.

Redesenho para lidar com as transformações

Foto: Thinkhubstudio/Shutterstock

É preciso e urgente fortalecer e equipar as instituições para lidar com os desafios impostos pelo novo cenário tecnológico, que trouxe facilidades para organização de grupos antidemocráticos e ações de desinformação para promover do ódio e minar a capacidade de formação de consensos na sociedade e de enfrentamento de problemas como a corrupção e a captura do Estado para interesses de indivíduos ou segmentos da sociedade.

O Brasil não pode se furtar a um debate profundo sobre governança pública, inclusão e cidadania digital e limites e garantias da liberdade de expressão nesse contexto. Enfrentamos, como no resto do mundo, uma evidente crise da democracia, anunciada pela perda progressiva de legitimidade das instituições representativas e pela ineficiência das ações públicas, o que tem estimulado a emergência de populismos cibernéticos e de retrocessos autoritários.

O tempo do Estado burocrático se tornou incompatível com o tempo da vida, isto é, não contempla as demandas dos cidadãos na velocidade exigida pelas relações contemporâneas. Por isso, é preciso um redesenho institucional para dar mais celeridade e qualidade às decisões do Estado.

Esse redesenho institucional não pode repetir erros do passado, que mantiveram, para a ação estatal a estrutura burocratizada, centralista – não obstante a pretensa, porém frágil, repactuação do federalismo – que orientou governos tão distintos quanto o de Vargas e os dos militares que impuseram a ditadura ao país.

É preciso evitar que prevaleçam indesejáveis mecanismos de negociação e cooptação entre Executivo e Legislativo e pela captura do Estado por grupos organizados em torno de uma ética que estimula e naturaliza a corrupção. Isso vale para a gestão em todos os seus aspectos, das políticas sociais às decisões de política econômica.

Na economia, o Estado tem dois desafios prementes: retomar o crescimento e a geração de empregos de qualidade, e integrar o Brasil na linha de frente da nova onda de transformação tecnológica, em bases sustentáveis.

É preciso, no entanto, superar a antiga crença na liderança estatal centralizada, burocratizada, protecionista e patrimonialista sobre nosso processo de modernização econômica – equívoco que deu espaço a projetos fracassados de “política industrial” no passado recente. As novas gerações necessitam superar o modus operandi que, no passado, apenas estimulou a aceleração econômica como uma permanente “fuga para frente”.

Está mais do que na hora de se adotar outra orientação, mais universalista, humanista e realista, fundada na autonomia responsável dos sujeitos sociais, individuais e coletivos, na democracia política e em suas instituições, bem como numa economia com novos padrões de sustentabilidade e de valorização do fator humano.

Esta é a lógica do “novo progressismo”, uma chave de interpretação da realidade e da sociedade que nos contrapõe a lógicas tecnocráticas e simplificadoras do capitalismo, da globalização e da revolução tecnológica, num momento em que já não se pode mais diferenciar o destino da humanidade e o da natureza. Trata-se de confrontar e superar as visões corporativas e utilitaristas, além daquelas explicitamente ilusórias e passadistas, para instituir o vetor de um novo reformismo, não mais como expressão de interesses particularistas, mas orientado por valores civilizatórios universais.

O modo como se concebeu nossa industrialização não preparou o setor para enfrentar a abertura comercial e a integração global. Também não foi capaz de promover a diminuição da desigualdade entre as regiões brasileiras. Ao contrário, só as reforçou. E a ascensão do agronegócio nas últimas décadas, que poderá tornar o Brasil o maior exportador de comida do mundo em 2025 e, pouco a pouco, incorpora a preocupação com a sustentabilidade de suas práticas, revela não só a preparação do setor para se integrar à globalização como também a superação de vícios que carregou em sua trajetória, de baixo conteúdo tecnológico e excessiva dependência da baixa remuneração da mão de obra.

As comemorações dos 200 anos de independência do país merecem uma reavaliação profunda tanto das estratégias passadas de enfrentamento dos problemas conjunturais quanto em sua dimensão longa, estrutural. Ao lado das indispensáveis iniciativas para investir em matrizes energéticas mais sustentáveis e não poluentes, esse debate deve tratar da necessidade de reorganização da indústria, de maior e mais eficiente internacionalização da economia, do (re) nascimento da economia primária exportadora como uma oportunidade e não como um retrocesso.

É preciso articular o debate sobre o futuro do agro à questão ambiental. Apesar do conhecido recuo nas políticas ambientais nos últimos anos, o Brasil já foi capaz de mostrar competência e planejamento ao reduzir um dos principais fatores de emissões de gases efeitos estufa, o desmatamento, em escala não atingida por nenhum país na História, no período entre 2004 e 2012, com a queda de 87% na derrubada da floresta, resultando em queda de 67% das emissões do país causadoras de mudança climática.

Essa redução, alcançada com o Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDAm), mostrou ser possível articular medidas essenciais de comando e controle, na repressão a ilegalidades, com iniciativas capazes de tornar a floresta em pé mais valiosa do que sua derrubada. Devemos retomar e atualizar as políticas de sucesso, interrompidas por um governo irresponsável e danoso do ponto de vista ambiental.

O avanço do agronegócio deve ser visto como oportunidade e não um retrocesso. Para isso, devemos criar um ambiente político favorável ao predomínio das características virtuosas do setor vistas nas últimas décadas (tecnologia, produtividade, cuidado ambiental e incorporação dos elementos da economia verde), sobre elementos arcaicos que, embora hoje menores, insistem em se perpetuar.

É importante lidar corretamente com as demandas desse setor, sem ceder a pressões voltadas aos ganhos de curto prazo,  para garantir  a defesa dos interesses nacionais de longo prazo, por exemplo, na incorporação de tecnologias, exercendo o poder de Estado na fiscalização e autorização de produtos e processos, de forma a que as práticas agrícolas se deem de maneira responsável – revertendo medidas que afrouxaram ou desmontaram órgãos e mecanismos de controle no passado recente.

A evolução dos conceitos e práticas na criação de animais para consumo deve ser levada em conta, desde seus aspectos sanitários ao debate contemporâneo sobre o bem-estar dos animais, que traz vantagens em matéria de qualidade e sanidade das criações.

Dessa associação entre economia verde e agronegócio sairão as oportunidades para o país nas próximas décadas. Este avanço pode ser o motor de uma nova indústria nacional, menos amparada em proteção e subsídio, e mais na relação com os setores nos quais temos maiores vantagens produtivas.

Novo paradigma para a Amazônia

Foto: Curioso.Photography/Shutterstock

Um projeto nacional tem de levar em conta as expectativas de uma vida mais próspera para os quase 30 milhões de brasileiros, 14% da população brasileira, que vivem na Amazônia, o que torna inviável, iníquo e ineficaz tratar toda a floresta como parque intocável.

Ao lado de medidas para impedir a exploração insustentável e pouco produtiva da pecuária e mineração na região, devemos investir em criar tecnologia e conhecimento para aproveitar o potencial incalculável de descobertas farmacológicas e químicas a partir da biodiversidade da floresta amazônica. Trata-se de criar uma economia da floresta, gerando produtos, tecnologias e externalidades.

A Amazônia deve ser vista como oportunidade para o Brasil se inserir no novo paradigma tecnológico que traz a chance de uma eficaz redução da desigualdade de renda, aproveitando, inclusive mecanismos e disposição nas nações mais ricas de remunerar a contribuição do país para mitigar e eliminar o maior problema da humanidade.

A manutenção da floresta atende a pelo menos três objetivos estratégicos: contribuição no combate às mudanças climáticas (que deve ser remunerada pela comunidade internacional); preservação da biodiversidade - com potencial incalculável de produtos a serem desenvolvidos a partir dela; e o futuro do agronegócio e das cidades no Sul e Sudeste (para o quê a umidade criada e transportada pela cobertura de vegetação é vital e indispensável).

Preparar o Brasil para o protagonismo do século XXI

Foto: Natanael Ginting/Shutterstock

As demandas do século XXI, nesse terceiro século de Brasil independente, são muitas e diversificadas, como se vê acima; e a resposta a elas é crucial para o país como novo ator político, ainda em formação, em busca de seu lugar no mundo.

Há ainda os ajustes e criação de regras necessários para garantir respostas adequadas às mudanças trazidas pelo mundo digital e de alta tecnologia, da proteção à privacidade e novas normas de segurança jurídica à regulação dos usos da robótica, da inteligência artificial, da manipulação genética e da gestão de riscos globais. O uso da tecnologia para avanço e democratização da educação e da saúde também devem constar nos programas a serem executados pelos próximos governos.

Todas essas questões postas para a sociedade brasileira devem ser tratadas sob uma nova orientação federalista, que fortaleça as regiões e entes federativos, com o reequilíbrio entre esses atores políticos e a melhoria das condições econômicas locais. Esta melhoria tem como pilar principal o avanço da educação básica, como já se dá em algumas regiões do país.

Qualquer projeto que pretenda pensar o futuro do Brasil a partir de sua experiência de 200 anos independente, ou de quase 40 de nova República, deverá buscar uma necessária articulação entre a visão de mais longo prazo e o enfrentamento dos desafios conjunturais.

Terá de partir da crítica dos conceitos obsoletos ainda incorporados nossa mentalidade, de equívocos dos diagnósticos passados, resultados bons e ruins de nossas experiências anteriores.

E, principalmente, enfrentar tabus relacionados aos nossos modelos explicativos e nossos parâmetros analíticos, a fim de incentivar um debate mais amplo e arejado em favor de um ambiente econômico e social de real sustentabilidade.

Este documento pretende ser um ponto de partida para esse debate necessário, e um estímulo para que nós, brasileiros, busquemos a via da negociação responsável, do consenso e da ciência na solução de nossos problemas e dos desafios de nossa inserção na comunidade global. Que seja possível avaliar e aprender com nossos equívocos do passado, desde as soluções equivocadas para a economia até a persistência do racismo estrutural, para não repeti-los, e construir uma estrada segura e sustentável para nosso futuro, com maior prosperidade, renda e igualdade.

Conselho Curador

Luciano Santos Rezende (Presidente)

Bazileu Alves Margarido Neto (Vice-Presidente)

Arlindo Fernandes de Oliveira

Eliana Calmon Alves

Eliseu de Oliveira Neto

George Gurgel de Oliveira

Ivair Augusto Alves dos Santos

Jane Maria Vilas Bôas

Lenise Menezes Loureiro

Ligia Bahia

Luiz Carlos Azedo

Marcus Vinícius Furtado da Silva Oliveira

Maria Terezinha Carrara Lelis

Sergio Besserman

Tibério Canuto de Queiroz Portela

Vinícius de Bragança Müller e Oliveira

Luzia Maria Ferreira

Cezar Rogelio Vasquez

Miguel Arcangelo Ribeiro

Indaiá Griebeler Pacheco

José Maria Quadros de Alencar

Diretoria Executiva

Caetano Ernesto Pereira de Araújo (Diretor Geral)

Raimundo Benoni Franco (Diretor Financeiro)

Ana Stela Alves de Lima

Ciro Gondim Leichsenring

Jane Monteiro Neves

Marco Aurelio Marrafon


Marcos Sorrilha: O Federalismo de Hamilton, o Mourão

Na última quinta feira, 14 de maio, o vice-presidente Hamilton Mourão escreveu um artigo de opinião ao jornal O Estado de São Paulo com algumas observações a respeito do quadro político, institucional e econômico gerado pela Covid-19. Segundo ele, para além de toda a problemática inerente a pandemia, o “Brasil” e seus organismos institucionais estariam contribuindo para agravar a já calamitosa situação sanitária. No bojo de suas considerações, dirigiu recomendações à imprensa, aos presidentes dos três poderes e, também, aos governadores dos estados. Neste ponto, especificamente, observou que o Brasil não era uma confederação e, para discorrer sobre o modelo federativo, ao qual se enquadra nosso país, recorreu à obra clássica da política norte-americana O Federalista escrito a três mãos por: John Jay, James Madison e, seu quase xará, Alexander Hamilton[1].

A menção feita aos pais fundadores dos Estados Unidos é a deixa que eu preciso para pegar carona nas linhas redigidas por Hamilton, o Mourão. Gostaria de concentrar minha intervenção em quatro pontos. O primeiro deles diz respeito a uma imprecisão factual. Ao fazer referência à obra supracitada, o vice-presidente afirma que ela foi concebida com o intuito de persuadir os membros da convenção constituinte para que votassem a favor da nova Constituição, em setembro de 1787. Isso não é verdade. O documento constitucional foi construído ao longo de cinco meses por 55 delegados representando os doze dos treze estados da Confederação Americana, reunidos na Filadélfia[2]. O texto foi aprovado em setembro, mas precisava ser ratificado pelas assembleias estaduais. É só então que aparecem os artigos de O Federalista. A intenção era convencer os estados a abandonarem o modelo de confederação e abraçar o federalismo, fato que se concretizou em 1788.

O segundo ponto a ser destacado diz respeito ao argumento de Mourão sobre a competência da federação em funcionar como um agente centralizador capaz de dar respostas mais adequadas aos problemas nacionais quando comparado à confederação. É aqui que, no texto do vice-presidente, aparece a referência a um dos poucos artigos escritos por John Jay. No entanto, como bem lembrou Leonardo Avritzer, o texto de John Jay trata do papel do executivo em momentos de guerra contra nações vizinhas, afinal, era basicamente essa a função que os federalistas previam ao presidente: cuidar da organização da burocracia do estado, declarar guerra com respaldo do Congresso; tratar de assuntos internacionais; e fazer tratados.

Ou seja, diferente do que apresentou Mourão, o federalismo norte americano não representou um centralismo de governo, ao contrário, como se vê na Constituição, a autonomia dos estados é amplamente respeitada, desde a elaboração e execução de suas próprias leis, até o cultivo de determinados produtos agrícolas e a sua taxação exclusiva. É justamente sob esta prerrogativa que alguns estados americanos possuem pena de morte e outros não; alguns plantam maconha e outros não.

Assim, no caso específico da pandemia no Brasil, os artigos dos federalistas atuariam mais a favor de Dória e Witzel do que de Bolsonaro. Isso é tão verdadeiro que é exatamente o que vemos ocorrer nos EUA atualmente. Os embates públicos entre Trump e os Governadores Andrew Cuomo de Nova York e Gretchen Whitmer do Michigan dão a medida de como Trump tem, ou deveria ter, muito pouca margem de manobra sobre os estados. Esta situação se explica, pois, a centralização federativa da qual falavam os pais fundadores não se dava exclusivamente na figura do poder executivo, o que me leva imediatamente ao terceiro ponto a ser analisado no texto de Mourão: a separação dos poderes e dos limites e competências destinadas a cada um dos três.

Para explicar essa proposição federalista, o vice-presidente recorreu a uma citação de James Madison em que o político da Virgínia estabeleceu “como fundamentos básicos que o Legislativo, o Executivo e o Judiciário devem ser separados e distintos, de tal modo que ninguém possa exercer os poderes de mais de um deles ao mesmo tempo”. No entanto, Mourão não esclarece que na Constituição dos EUA o Poder Legislativo tem muito mais preponderância do que os outros dois. Aliás, basta apenas uma leitura rápida sobre a magna carta dos EUA para perceber que a maior parte das discussões empreendidas nos debates da Filadélfia em 1787 foram para delimitar a organização do poder legislativo, desde sua disposição, o formato bicameral, a forma de escolha dos representantes, etc.

Isso se deu, afinal, porque as experiências com a Inglaterra rememoravam aos membros daquela convenção que um executivo muito poderoso resultava em tirania. Esta é outra questão importante a se destacar, uma vez que a Constituição dos EUA, em grande medida visa a criar mecanismos de limitação do poder autoritário com a elaboração de uma série de instituições e organismos de representação que protegessem a jovem nação dos “perigos” da democracia direta e da irresponsabilidade de demagogos. Em grande medida é sobre isso que Madison está falando, sobre a necessidade de se construir instituições sólidas e independentes que consigam responder a políticos irresponsáveis que capturam o poder em prol de suas pautas particulares, colocando em risco o bem comum. De maneira mais ampla, o debate travado é sobre a edificação de uma estrutura capaz de preservar a República e não estritamente sobre a federação. Grosso modo, este é o espírito da Constituição: defender a República da tirania, seja aquela que emana do voto, seja aquela que são impostas pelos déspotas.

O último ponto que gostaria de destacar não está no texto de Mourão, mas no papel desempenhado por George Washington na referida convenção constitucional. Por conta do prestígio acumulado em sua campanha vitoriosa à frente do exército continental, ele ocupou a cadeira de presidente daquela assembleia. Porém, apesar de General, o fez como um civil. Esta posição seria reforçada quando da sua posse como primeiro presidente dos EUA em março de 1789. Naquela oportunidade, Washington vestiu uma roupa simples de “colono”, negando os trajes militares e demonstrando que era um civil que chegara ao poder.

Ao final do segundo mandato, Washington se recusou a se converter em um presidente “eterno”, abdicando de uma segunda reeleição para a surpresa de todos. Com isso, criou uma regra não escrita de que o cargo é maior do que o homem e estabeleceu uma tradição de que o presidente só deveria concorrer a apenas uma reeleição, o que foi respeitado por todos os mandatários da nação subsequentes até Franklin Delano Roosevelt em 1940.

Mourão faz bem em retomar os clássicos da política americana ainda que o faça de maneira desconexa à realidade brasileira. A leitura deveria servir para que ele compreendesse e respeitasse a importância da separação dos poderes e, quem sabe, percebesse que o federalismo brasileiro não funciona como “manda o manual”, pois é muito mais centralizador do que o americano. De qualquer maneira, acho curiosa a predileção que o bolsonarismo tem pelo período da independência dos EUA. Porém, ao mirar para esse momento do passado, sugiro ao vice-presidente que, assim como Washington, desempenhe seu cargo na função de civil. Como no caso do primeiro presidente norte-americano, seria de bom grado que ele deixasse a farda em algum lugar apropriado de seu armário ou, até mesmo, em um aposento glorioso de sua memória.


[1] São 85 artigos no total, escritos entre outubro de 1787 e abril de 1788. Desses John Jay escreveu 5, Madison 29 e Hamilton 51.

[2] Rhode Island não enviou delegados.