FAPESP

Estudos: Covid afeta testículos reduzindo a qualidade dos espermatozoides

Apesar de ser um teste inicial, espermograma de pacientes tem indicado que capacidade de espermatozoides se moverem caiu para entre 8% e 12%

Elton Alisson, Agência Fapesp

Ao acompanhar, desde o ano passado, pacientes homens que tiveram covid-19, o andrologista Jorge Hallak, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, começou a observar que os resultados de exames de fertilidade e hormonais deles permanecem alterados por muitos meses após se recuperarem da doença.

Apesar de ser um teste inicial e não ter condições de diagnosticar fertilidade ou infertilidade, o espermograma de vários pacientes tem indicado, por exemplo, que a motilidade espermática – a capacidade de os espermatozoides se moverem e fertilizarem o óvulo, cujo índice normal é acima de 50% – caiu para entre 8% e 12% e permaneceu nesse patamar quase um ano após terem sido infectados pelo SARS-CoV-2. Já os testes hormonais apontam que os níveis de testosterona de muitos deles também despencaram após a doença. Enquanto o nível normal desse hormônio é de 300 a 500 nanogramas por decilitro de sangue (ng/dL), em pacientes que tiveram covid-19 esse índice chegou a variar abaixo de 200 e, muitas vezes, ficou entre 70 e 80 ng/dL

“Temos visto, cada vez mais, alterações prolongadas na qualidade do sêmen e dos hormônios de pacientes que tiveram covid-19, mesmo naqueles que apresentaram quadro leve ou assintomático”, diz Hallak à Agência Fapesp.

Alguns estudos feitos pelo pesquisador em colaboração com colegas do Departamento de Patologia da FM-USP, publicados nos últimos meses, têm ajudado a elucidar essas observações feitas na prática clínica. Os pesquisadores constataram que o SARS-CoV-2 também infecta os testículos, prejudicando a capacidade das gônadas masculinas de produzir espermatozoides e hormônios.

“É muito preocupante como o novo coronavírus afeta os testículos, mesmo nos casos assintomáticos ou pouco sintomáticos da doença. Entre todos os agentes prejudiciais aos testículos que estudei até hoje, o SARS-CoV-2 parece ser muito atuante”, afirma Hallak. “Cada patologia tem particularidades que a prática e a experiência nos demonstram. O SARS-CoV-2 tem a característica de afetar a espermatogênese de formas que estamos descobrindo agora, como motilidade progressiva persistentemente muito baixa, sem alteração da concentração espermática significativa”, diz.

Em um estudo com 26 pacientes que tiveram covid-19, os pesquisadores verificaram por meio de exames de ultrassom que mais da metade deles apresenta inflamação grave no epidídimo – estrutura responsável pelo armazenamento dos espermatozoides e onde eles adquirem a capacidade de locomoção.

Os pacientes têm idade média de 33 anos e são atendidos no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP e no Instituto Androscience. Os resultados do estudo, apoiado pela Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo), foram publicados na revista Andrology.

“Ao contrário de uma infecção bacteriana clássica ou por outros vírus, como o da caxumba, que causa inchaço e dor nos testículos em um terço dos acometidos, a epididimite causada pelo novo coronavírus é indolor e não é possível de ser diagnosticada por apalpamento (exame físico) ou a olho nu”, explica Hallak.

Por isso, segundo ele, seria interessante ensinar o autoexame dos testículos como política de saúde pública no pós-pandemia. “É ideal que os adolescentes, adultos jovens e homens em idade ou com desejo reprodutivo, após serem infectados pelo SARS-CoV-2, procurem um urologista ou andrologista e façam uma consulta com mensuração do volume testicular, dosagem de testosterona e de outros hormônios, além de análises do sêmen com testes de função espermática, seguidos de um exame de ultrassom com Doppler colorido, para verificar se apresentam algum tipo de acometimento testicular que pode afetar a fertilidade e a produção hormonal”, sugere Hallak.

“Esses indivíduos devem ser acompanhados por um a dois anos após a infecção, pelo menos, pois ainda não sabemos como a doença evolui”, aponta.


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Invasão de células testiculares

Outro estudo recém-publicado pelo mesmo grupo de pesquisadores e também apoiado pela Fapesp indicou que o SARS-CoV-2 invade todos os tipos de células testiculares, causando lesões que podem prejudicar a função hormonal e a fertilidade masculina. Por meio de um projeto coordenado pelos professores da Faculdade de Medicina da USP Paulo Saldiva e Marisa Dolhnikoff, foram empregadas técnicas de autópsia minimamente invasivas para extrair amostras de tecidos testiculares de 11 homens, com idade entre 32 e 88 anos, que morreram no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP em decorrência de covid-19 grave.

Os resultados das análises indicaram uma série de lesões testiculares que podem ser atribuídas a alterações inflamatórias que diminuem a produção de espermatozoides (espermatogênese) e hormonal. “O que nos chamou a atenção de imediato nesses pacientes que morreram em decorrência da covid-19 foi a diminuição drástica da espermatogênese. Mesmo os mais jovens, em idade fértil, praticamente não tinham espermatozoides”, conta Amaro Nunes Duarte Neto, infectologista e patologista da Faculdade de Medicina da USP e do Instituto Adolfo Lutz e coordenador do estudo.

Segundo o pesquisador, algumas das prováveis causas da diminuição da espermatogênese nesses pacientes foram lesões causadas pelo vírus nos vasos do parênquima testicular, com a presença de trombos, que levaram à hipóxia – ausência de oxigenação nos tecidos –, além de fibroses que obstruem os túbulos seminíferos, onde os espermatozoides são produzidos.

Uma das razões prováveis para a diminuição hormonal é a perda de células de Leydig, que se encontram entre os túbulos seminíferos e produzem testosterona. “As funções dos testículos de produzir espermatozoides e hormônios sexuais masculinos são independentes, mas há uma interconexão entre elas. Se a produção de hormônios pelas células de Leydig estiver prejudicada, a fertilidade também será diminuída”, afirma Duarte Neto.

Alguns dos sintomas da deficiência de testosterona (hipogonadismo) são perda muscular, cansaço, irritabilidade, perda de memória e ganho de peso, que podem ser confundidos como efeitos de longo prazo da covid-19. “Uma parte importante desse quadro clínico seguramente está relacionada a uma baixa função testicular. Mas isso ainda não tem sido abordado porque os pacientes não têm dor e não se costuma dosar os hormônios e nem fazer análise dos espermatozoides após eles se recuperarem da covid-19”, alerta Hallak.

Os pesquisadores pretendem realizar um estudo de acompanhamento de pacientes homens que tiveram a doença com o objetivo de avaliar em quanto tempo as lesões testiculares causadas pelo SARS-CoV-2 podem ser revertidas naturalmente ou por meio da administração de medicamentos. “Ainda não sabemos se essas lesões testiculares poderão ser revertidas e quanto tempo levará para isso acontecer”, afirma Hallak.

As principais preocupações do pesquisador são em relação a homens em idade reprodutiva, adolescentes e pré-púberes, sobre os quais ainda não há dados sobre lesões testiculares causadas pela covid-19. Não se sabe quais serão os impactos na puberdade em relação à capacidade fértil, se a produção de hormônios será afetada de forma transitória, prolongada ou definitiva e qual o grau de lesão residual irreversível.

Como não há dados de pré-infecção pelo SARS-CoV-2 de cada indivíduo, os estudos prospectivos deverão incluir um grupo controle para efeitos de comparação, sugere Hallak. “Esses indivíduos podem ter problemas de infertilidade e alterações hormonais no futuro e não saberem que isso pode ter sido causado pela infecção pela covid-19, porque apresentaram sintomas leves ou foram assintomáticos”, pondera.

Pesquisador estima que a covid-19 poderá causar um aumento na infertilidade masculina. Foto: Breno Esaki/Agência Saúde

Aumento da infertilidade masculina

O pesquisador estima que a covid-19 poderá causar um aumento na infertilidade masculina. Atualmente, entre 15% e 18% dos casais enfrentam dificuldades para conceber – por problemas masculinos em 52% dos casos.

Esse cenário pode desencadear uma busca maior por técnicas de reprodução assistida que, de acordo com ele, é realizada por vezes de forma apressada no Brasil para causas masculinas, sem avaliação inicial adequada e padronizada e, muitas vezes, sem que seja estabelecido o diagnóstico causador inicial e sem tempo hábil para se propor condutas com base em melhor custo-benefício e a aplicação de tratamentos específicos que podem curar a causa ou restabelecer a capacidade fértil natural.

“Será preciso tomar muito cuidado com a reprodução assistida pós-pandemia de covid-19, pois não se sabe as consequências disso nos meses subsequentes à infecção”, ressalta Hallak.

Uma vez que o SARS-CoV-2 tem sido detectado em todos os tipos de células dos testículos, que participam de todas as etapas da espermatogênese, não se sabe se o vírus também pode estar presente em espermatozoides de pacientes que tiveram covid-19 meses depois de terem se recuperado da doença.

Esses espermatozoides podem ter sido afetados pelo vírus e, idealmente, deveria preventivamente se esperar, no mínimo, um ciclo de espermatogênese – ao redor de 90 dias – para que seja feita nova avaliação investigativa andrológica, indica Hallak. “Temos visto lesões de DNA causadas pelo novo coronavírus altíssimas, ao redor de 80%, enquanto o normal é de até 25% e, o aceitável, até 30%”, compara.

Outra preocupação do pesquisador é com a reposição de testosterona nesses pacientes que tiveram covid-19 e queda hormonal, que, segundo ele, é uma medida desnecessária. “A reposição de testosterona em um paciente já afetado vai inibir ainda mais a função testicular. Os testículos têm mecanismos de reparação para voltar a produzir hormônios e existem tratamentos medicamentosos que aumentam a produção natural dos hormônios esteroidais, restabelecendo progressivamente a função testicular intrínseca do indivíduo. Isso também vai depender se houve lesão às células de Leydig e em qual grau, que é algo que não sabemos ainda”, pondera.

Fonte: O Estado de S. Paulo
https://saude.estadao.com.br/noticias/geral,sars-cov-2-afeta-testiculos-reduzindo-hormonios-e-a-qualidade-dos-espermatozoides-apontam-estudos,70003830650


Eugênio Bucci: A propaganda, a ciência, o imbróglio e o ano novo

Fapesp corre o risco de perder 30% de sua verba e Bandeirantes aumenta a de publicidade em 70%

No gran finale de 2020, o governo paulista deu um jeito de aumentar os recursos para fazer propaganda de si mesmo e, na outra ponta, deu outro jeito para, em plena pandemia, ameaçar o orçamento da ciência. O ano que começou mal termina muito pior.

Nos derradeiros ajustes da Lei Orçamentária Anual (LOA), na Assembleia Legislativa, o Palácio dos Bandeirantes conseguiu incluir uma elevação de 69% na sua verba publicitária (como noticiou este jornal na primeira página, dia 20, com reportagem de Brenda Zacharias). O montante, que ficou na casa dos R$ 90,7 milhões em 2020, saltará para R$ 153,2 milhões no exercício de 2021.

Na mesma LOA aparece um corte de 30% na receita da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). A entidade tradicionalmente conta com 1% da receita tributária do Estado. Em 2021 poderá ficar com apenas 0,7%. Traduzindo em graúdos, estamos falando de meio bilhão de reais a menos.

Por enquanto, dinheiro ainda não foi retirado, de fato, mas a Fapesp corre o risco de perdê-lo. O corte aparece no texto final da LOA (publicado no Diário Oficial de ontem), com todos os números e vírgulas, mas talvez não venha a ser efetivado. Mas como assim?, há de se perguntar o improvável leitor. Se a lei manda cortar, como é que podemos ter a expectativa de que o corte talvez não se consume?

Para entender o capcioso imbróglio, pelo qual o malfeito se insinua enquanto finge não ser o que é, precisamos conhecer um pouco mais desse novo gênero artístico-orçamentário de dissimulação, tão em voga na política: a técnica legislativa de ordenar uma coisa e, ato contínuo, ordenar o seu contrário.

A mesma LOA que corta “descorta”. Numa das inumeráveis tabelas que a acompanham, consta um valor para o orçamento da Fapesp que equivale claramente à redução de 30% de suas receitas. Para isso a LOA se apoia lógica que prevaleceu nas emendas à Constituição federal que preveem a Desvinculação de Receitas da União (conhecida pela sigla de DRU) e a Desvinculação de Receitas de Estados e Municípios (Drem). Essas desvinculações constitucionais permitiram que as chamadas “receitas vinculadas”, tanto na União como nos Estados e nos municípios, fossem diminuídas. Logo, se a Drem valer para a Fapesp, ela perderá um terço do tamanho que tem hoje.

Acontece que o destino ainda não está selado, pois, como já foi dito, a mesma LOA que corta “descorta”. Em seu artigo 11, ela manda cumprir o que está escrito no artigo 271 da Constituição estadual de São Paulo – e esse artigo, o 271, determina de forma expressa, inequívoca, a destinação de 1% da receita tributária do Estado à Fapesp.

Em resumo, a LOA paulista para o ano de 2021 é uma contradição em termos, um oxímoro legislativo. Em suas previsões numéricas, impõe o corte da Fapesp. Em seu artigo 11, impede o corte da Fapesp.

O que vai acontecer? As apreensões estão lançadas. Há juristas que entendem que o orçamento da Fapesp não provém de uma receita “vinculada”, como as outras, e, portanto, a Drem não se aplica a ela. Mas há os que dizem que a Drem, um dispositivo da Constituição federal, deve prevalecer sobre as Constituições estaduais.

Não vai ser fácil. Só o que se sabe até agora, com segurança, é que o futuro da ciência paulista, que já era ruim, piorou um pouco mais. É a primeira vez que um ataque tão frontal contra os recursos da Fapesp ganha forma de lei. As forças tecnocráticas que, no curso de vários governos tucanos paulistas, vêm se articulando contra a pesquisa e contra a universidade pública marcaram seu tento, desfecharam sua pirraça e instalaram no horizonte próximo essa incerteza cabulosa.

A integridade da Fapesp nunca esteve tão vulnerável. Para o ano que vem, a manutenção de seu orçamento normal vai depender da assinatura do governador do Estado, a quem cabe expedir, por decreto, os termos da execução orçamentária. Quando for pagar as pesquisas que financia, muitas delas sobre tratamentos contra a covid-19, no Instituto Butantan e em outras instituições, precisará contar com a boa vontade do chefe do Executivo – que assegurou, publicamente, mais de uma vez, que não implementará corte algum.

Podemos acreditar nele? Em nota divulgada agora em dezembro, a instituição diz que sim: “A Drem não será aplicada à Fapesp em 2021 e há um compromisso claro do Governador João Doria e do Vice-governador Rodrigo Garcia, que também não será aplicada nos próximos anos”. Ao que se sabe, essa confiança na palavra do político em questão não tem bases científicas, mas é o que temos para o réveillon. Se cortes vierem, só vai restar aos dirigentes da Fapesp entrar na Justiça, o que trará mais desgastes e mais incertezas.

De sua parte, o mesmo Palácio dos Bandeirantes, que alega falta de recursos para fragilizar o financiamento da ciência e do conhecimento, não vê obstáculos para majorar em 70% a sua verba publicitária. É que estamos em tempos de pandemia e, você sabe, o poder acredita que a propaganda salvará vidas – de governantes.

Feliz ano novo.

*Jornalista, é professor da ECA-USP


Maria Hermínia Tavares: Nem tudo é desastre; na pandemia, temos capacidade de fazer boa ciência

São inaceitáveis as idas e vindas na discussão dos recursos destinados à Fapesp

Há mais de duas décadas, o historiador José Murilo de Carvalho usou dados de pesquisas de opinião para refletir sobre o que os concidadãos se orgulhavam. No artigo “O motivo edênico no imaginário brasileiro”, concluiu que apenas a natureza grandiosa —os céus, mares, rios e florestas— gratificava a sociedade. Nada do que os humanos haviam legado ou estivessem construindo causava admiração: o povo era visto, antes, com ceticismo e desprezo.

Com efeito, há muito de negativo a apontar nessa obra perversa que, ao longo do tempo, produziu uma nação de iniquidades e injustiças; predação e violência; ignorância e superstição; notável insensibilidade (das elites) pela sorte alheia (a dos mais vulneráveis); de promiscuidade entre interesses privados e órgãos estatais; de apropriação patrimonialista de recursos e agências públicas.

Mas nem tudo é desastre. Na pandemia, o país descobriu a virtude de ter atendimento de saúde universalizado por meio do SUS, a importância de contar com o aconselhamento de cientistas bem formados e com um robusto sistema de produção de conhecimentos e suas aplicações.

É na Fundação Oswaldo Cruz e no Instituto Butantan que estão sendo desenvolvidas —em parceria com empresas e instituições acadêmicas internacionais— as vacinas que nos ajudarão a enfrentar em melhores condições a crise sanitária.

Essa capacidade não brota da noite para o dia. Requer, além de muito investimento, a segurança de que estará garantido por décadas e a gestão competente de sua utilização.

Como é feito pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de S. Paulo (Fapesp), instituição modelar que sustenta o sistema paulista de pesquisa, permitindo a formação de quadros para as universidades, as empresas e a administração pública; a geração de saberes em todas as áreas e a criação de startups inovadoras.

Todos os pesquisadores em atividade aqui residentes tiveram algum apoio da Fapesp —quando não foram por ela financiados durante toda a carreira profissional.

Eis por que são inaceitáveis as idas e vindas que marcaram a discussão dos recursos destinados à fundação, durante os meses em que estiveram em pauta, primeiro as medidas de ajuste fiscal, e agora o orçamento do próximo ano no estado. Mesmo que o governador, pressionado, tenha enfim se comprometido a repor os R$ 454,6 milhões subtraídos à entidade no PL 627/2020.

Em momento de aperto fiscal e futuro incerto, financiar ciência é prioritário. A ponto de definir se, mais adiante, os brasileiros poderão se orgulhar de algo além da natureza —vá lá o ufanismo— dadivosa.

*Maria Hermínia Tavares, professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap.


Folha de S. Paulo: Vamos sofrer menos se nos basearmos na ciência, mas ela não faz mágica, diz Brito Cruz

Mais longevo diretor científico da Fapesp, engenheiro deixa o cargo após 15 anos

Gabriel Alves, da Folha de S. Paulo

O engenheiro Carlos Henrique de Brito Cruz, 63, o mais longevo diretor científico da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo), deixa neste mês o cargo em um momento em que as evidências científicas para guiar políticas nunca foram tão importantes e em que boa parte das esperanças quanto à resolução da pandemia de Covid-19, de vacinas a tratamentos, estão depositadas na ciência.

Ele diz, porém, que é importante que autoridades governamentais e cientistas não prometam soluções de curto prazo que não possam ser cumpridas.

“Todos vamos sofrer menos se basearmos mais as respostas na ciência. Mas a gente não pode dizer que ela vai resolver tudo magicamente”, diz.

Ele faz uma avaliação positiva da resposta atual de cientistas, assim como aconteceu à época da zika, cinco anos atrás.

“A gente tem que entender que, mesmo com altos e baixos, o esforço que o Brasil inteiro tem feito nos últimos 60 anos para criar um sistema de pesquisa e para formar pessoas mostra que somos capazes de oferecer algumas respostas em momentos como o de agora.”

A Fapesp investe anualmente mais de R$ 1 bilhão em bolsas e em auxílio à pesquisa. Mais de 19 mil propostas foram analisadas em 2019.

Em sua década e meia de gestão na maior agência estadual de fomento à pesquisa do país, Brito Cruz deixou marcas na no sistema de ciência e tecnologia, como um grande estímulo à colaboração entre universidades e institutos de pesquisas com empresas e à internacionalização da pesquisa, com parcerias com grandes centros internacionais, como os Institutos Nacionais de Saúde (EUA), o British Council (Reino Unido) e o Centro Alemão de Ciência e Inovação.

O que considera que deixou pendente é melhorar a vida dos pesquisadores com relação à burocracia na qual são imersos, seja na hora de fazer a prestação de contas ou preencher formulários para importação de reagentes.

“Os pesquisadores de Unicamp, USP e Unesp estão competindo com os colegas de Stanford, Cornell e de Oxford, mas o grau de apoio institucional que esses pesquisadores têm é 50 vezes melhor do que os que existe por aqui.”

Carlos Henrique de Brito Cruz nasceu em 19 de julho de 1956, no Rio de Janeiro. Formou-se em engenharia eletrônica pelo ITA e fez mestrado e doutorado em física pela Unicamp. Foi pesquisador nos Laboratórios Bell, da AT&T, entre outras entidades. É professor titular no departamento de eletrônica quântica da Unicamp. Foi reitor da universidade de 2002 a 2005 e presidente da Fapesp entre 1996 e 2002. Assumiu a diretoria científica em 2005 e fica no cargo até abril de 2020.

Ele passa o bastão para o médico e neurocientista Luiz Eugênio Mello, professor titular da Unifesp.

O que levou o sr. a ser diretor científico da Fapesp e por que ficou tanto tempo no cargo?
Em 2004, me interessei em ser diretor científico porque, conhecendo bastante sobre a Fapesp [já havia sido presidente da entidade entre 1996 e 2002], achei que eu poderia contribuir para o desenvolvimento científico e tecnológico do estado de São Paulo. E me pareceu, naquela época, que assumir essa posição me daria alegria, satisfação. E isso aconteceu. Acho que consegui fazer coisas relevantes para melhorar o sistema e foram 15 anos muito interessantes e desafiadores.

Se o senhor tivesse que destacar uma ou duas realizações do senhor nesse período, quais seriam?
Uma foi incentivar e conseguir que a comunidade de pesquisa em São Paulo se engajasse em mais pesquisas colaborativas, seja entre universidades, entre universidade e empresa, seja no Brasil ou com colaboradores de fora.

Antes havia um sistema de pesquisa muito bom, muito forte no estado de São Paulo, mas ele interagia pouco com outros sistemas no Brasil e no mundo e pouco também com empresas. Não se trata de incentivar a colaboração pela colaboração, mas como instrumento para aumentar a qualidade da pesquisa.

Outra contribuição foi o aperfeiçoamento com o qual a Fapesp analisa e seleciona projetos de pesquisa, tornando-o mais capaz de avaliar a qualidade e de interagir com a comunidade científica de forma que essa mesma comunidade considere a avaliação legítima, mesmo quando seus projetos não são aprovados.

Havia falhas?
Não é que havia falhas. Toda organização sempre precisa melhorar. Tenho certeza de que quem virá depois de mim vai melhorar ainda mais o sistema. O sistema era bom para o começo dos anos 2000 e nós o aperfeiçoamos usando a experiência de organizações estrangeiras, por causa da interação que criamos, para torná-lo melhor.

A maneira como o público enxerga a ciência mudou nesses 15 anos. Ao mesmo tempo em que a divulgação científica ganhou espaço, nunca vimos tanta pseudociência em evidência. Estamos melhorando ou piorando no fim das contas?
Nesse período eu vi no Brasil e no mundo pelo menos dois movimentos importantes. Um é que aumentou o grau de ceticismo e de crítica com relação à ciência, chegando perto ou ultrapassando o ponto em que isso é saudável. Dois exemplos que ilustram isso são as alucinadas teorias terraplanistas e o movimento contra as vacinas, que, de alguma maneira, agridem a ciência e suas conquistas.

O primeiro é negativo, mas o segundo é positivo e tem ajudado a aproximar a ciência das pessoas que pagam impostos.

A resultante dessa combinação de forças é positiva?
Muito, sem a menor dúvida.

Num cenário de pandemia, quando as pessoas não estão só preocupadas com a saúde mas também com ter dinheiro para se alimentar, a credibilidade da ciência aumenta ou diminui?
Eu acho que há, de novo, duas tendências. Por um lado aumenta a expectativa do público sobre como a ciência poderá contribuir para o melhor enfrentamento desta crise terrível. Por outro, a crise é grande e pode gerar uma impaciência do público sobre a velocidade com a qual a ciência pode responder ao desafio.

É importante que a comunidade científica e suas lideranças sejam cuidadosas para não prometer solução a curto prazo em situações em que não se pode dizer isso. O que a gente sabe é que todos vamos sofrer menos se nos basearmos mais na ciência, mas a gente não pode dizer que a ciência vai resolver tudo magicamente.

O senhor avalia que as ações dos governos estão embasadas em ciência?
O que eu tenho visto até agora, no estado de São Paulo e no Brasil, na atuação do Ministério da Saúde, é que foi criada uma estratégia de enfrentamento da crise fortemente baseada em conhecimento científico, o que é muito bom.

Ao mesmo tempo, vemos que, mesmo quando a ciência nos dá orientações, há um caminho entre conhecê-las e implementá-las na sociedade que não depende só da ciência, mas da política. Essa é uma das razões pelas quais não dá para dizer que a ciência resolverá tudo.

Em São Paulo há maior previsibilidade com financiamento para a pesquisa, mas no país não. Há muitos anos ou o orçamento cai ou fica na mesma, sendo corroído pela inflação. Qual a importância dessa previsibilidade para responder a crises?
Aqui em São Paulo construiu-se nas últimas décadas um sistema de ciência e pesquisa e tecnologia que tem certa capacidade de resposta. No resto do Brasil, também houve essa construção, mas às vezes essa resposta é menos ágil porque o problema de financiamento existe especialmente desde 2014.

A questão do financiamento passado é importante, mas não é determinante para a resposta que pode vir agora. O determinante dessa resposta é se o governo brasileiro vai priorizar e apoiar pesquisadores em universidades, hospitais, empresas no Brasil inteiro que querem contribuir num regime de emergência para a crise que se apresenta.

Aí é possível fazer muita coisa, como vemos na UFRJ, na UFRGS. São organizações que sofreram muito com a crise de financiamento, mas, mesmo assim, têm capacidade de oferecer ideias e contribuições importantes.

O principal elemento é a gente entender e valorizar que, mesmo com altos e baixos, o esforço que o Brasil inteiro tem feito nos últimos 60 anos para criar um sistema de pesquisa e para formar pessoas, mostra que somos capazes de oferecer algumas respostas em momentos como o de agora. A permanência, a resiliência desses pesquisadores e dessas instituições compensam a crise financeira recente que tem acontecido, em certa medida.

Como os pesquisadores devem se organizar para dar essa resposta? No nível estadual, nacional ou internacional?
Precisa acontecer em todos os níveis. Se houver iniciativas nos três, nossa vida será melhor no futuro. À medida que um dos níveis se enfraquece, nossa vida fica um pouquinho pior.

No Brasil, uma das grandes deficiências do desenvolvimento do sistema de ciência e tecnologia é um grau irregular e limitado de colaboração ou de cooperação entre iniciativas federais e estaduais. Digo irregular porque houve épocas em que essa interação foi boa e em outras foi ruim.

Em vez de usar o esforço federal para mobilizar recursos locais, muitas vezes se usou recurso federal para substituir recurso local. Em vez de somar, subtrai.

Como o senhor compara a resposta científica dada durante a crise da zika, em 2015, à do novo coronavírus, em 2020?
A crise de agora é muito maior do que aquela. No final dos anos 1990, com o assunto do genoma em voga, pesquisadores sugeriram fazer uma rede sobre diversidade genômica dos vírus. Quando chegou a zika, aqueles mesmos da rede de genômica dos vírus foram capazes de oferecer estratégias para se tratar de alguns aspectos da crise trazida pelo vírus. Agora, esses mesmos e outros estão se envolvendo na resposta contra o coronavírus.

Em cada crise, a instituição aprende com as anteriores e faz, acho eu, um pouquinho melhor.

Como está sendo a resposta à crise atual?
A Fapesp fez um edital para selecionar projetos de pesquisa para tratar do coronavírus com o conceito de rede de acionamento. A crise é tão séria que a gente precisa que os pesquisadores dediquem mais tempo para tratar desse problema atual. E a resposta tem sido excelente.

Não vamos esperar todos os projetos chegarem, mas vamos analisar à medida que eles entram, já que se trata de uma emergência. São R$ 10 milhões para projetos de pesquisa envolvendo universidades e institutos de pesquisa e R$ 20 milhões para os que envolvam empresas.

As parcerias com empresas foram uma marca da sua gestão.
Sim. Uma iniciativa são os centros de Pesquisa em Engenharia, ou Centros de Pesquisa Aplicada. São iniciativas bem mais abrangentes do que projetos curtos que duram dois ou três anos. São centros de pesquisa que podem durar até dez anos se tudo der certo.

Trata-se de um cofinanciamento entre Fapesp, empresa e as universidades onde os pesquisadores estão lotados. O programa foi anunciado em 2014 e está dando muito certo. E olha que desde então só teve crise no Brasil. Nós vamos chegar no número de 14 centros.

Esse programa é o maior programa no Brasil de pesquisa colaborativa entre universidade e empresa. Tem de tudo. Por exemplo, tem o centro com a GlaxoSmithKline, sediado no Instituto Butantan, para descobrir moléculas para fazer remédios; outro é o anunciado no fim do ano passado, com a IBM, sobre inteligência artificial, o primeiro do país.

É um programa ousado, não só em questão de dinheiro (ao todo já são R$ 1,2 bilhão comprometidos) mas porque todos eles tratam em pesquisa avançada. Não é centrinho de consultoria, é para descobrir coisas importantes para o futuro daquela empresa. Foi algo que gostei de fazer.

E tem algo que o sr. gostaria de ter feito e não fez?
Uma coisa que eu gostaria de ter avançado mais é na questão de apoio das instituições aos pesquisadores. É preciso cobrar e exigir que universidades e institutos de pesquisa ofereçam aos pesquisadores serviços profissionais de apoio para preparo, envio e gestão de projetos, incluindo prestação de contas, relatórios e reuniões de equipe.

É um dos pontos em que a gente avançou bastante. Quando comecei, deveria ter uns dez escritórios que apoiavam os pesquisadores de forma profissional e séria. Agora deve ter uns 180, mas precisaria ter muito mais.

Os pesquisadores da Unicamp, USP e Unesp estão competindo com os colegas de Stanford, de Cornell e de Oxford, mas o grau de apoio institucional que esses pesquisadores têm é 50 vezes melhor do que os que existe por aqui.

Quais são seus próximos passos? Volta para a academia? Entrará para a política?
Virar político eu sei que não vou. Vou avaliar as oportunidades e voltar para meu laboratório na Unicamp, trabalhar com meus colegas de lá.

O que o sr. faz para tentar chegar bem até os cem anos?
Atualmente, lavar as mãos [risos]. Antes a gente precisava correr, comer direito etc. Agora precisamos de tudo isso e também lavar as mãos toda hora.


Folha de S. Paulo: Fapesp libera R$ 30 milhões a startups e pesquisadores com projetos sobre coronavírus

Cada projeto empresarial aprovado receberá R$ 1,5 milhão para escalonar produtos ou serviços

A Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo), do governo de São Paulo, vai destinar R$ 30 milhões a startups e pesquisadores que estejam desenvolvendo produtos ou serviços relacionadas ao combate do novo coronavírus.

O edital será publicado nesta sexta-feira (20) no site da Fapesp.

Em uma primeira chamada, R$ 10 milhões serão destinados a projetos de pesquisa sobre compreensão, redução de risco, gestão e prevenção ao vírus que já estejam em andamento, de acordo com o governo do Estado.

Os projetos devem ter duração de 24 meses e o valor máximo de cada proposta será de R$ 200 mil. O prazo para submissão vai até 22 de junho de 2020.

Na segunda chamada, a Fapesp e a Finep (Financiadora de Estudos e Projetos) vão liberar R$ 20 milhões a startups ou empresas de até 250 funcionários que consigam escalonar produtos de combate ao Covid-19.

O financiamento pode ser destinado a produtos como kits de diagnósticos e ventiladores pulmonares a soluções de tecnologias digitais e inteligência artificial para os serviços de saúde ou atendimento aos pacientes.

O prazo de submissão dessa etapa é 6 de abril, podendo ser prorrogado por 15 dias. Cada projeto aprovado terá R$ 1,5 milhão de apoio.

"As pesquisadoras que decodificaram o genoma do coronavírus no Brasil estavam desenvolvendo um projeto de outro tema. Esbarraram nessa possibilidade e pediram recurso adicional. A ideia é que façamos isso não no varejo, mas no atacado", disse a secretária de Desenvolvimento Econômico, Patricia Ellen.

O programa é uma antecipação do Ideia Gov, que seria lançado mais tarde pelo governo estadual para incentivar startups a corrigirem gargalos públicos.

"Nunca precisamos tanto de pesquisa como agora. Esse é o momento de acelerar, e não de postergar. Precisamos de pesquisa aplicada agora", disse o vice-governador de São Paulo, Rodrigo Garcia.


Agência Fapesp: Cientistas brasileiros estão desenvolvendo vacina contra o coronavírus

Pesquisa financiada pela Fapesp utiliza estratégia diferente da indústria farmacêutica e de outras equipes do exterior. Meta é começar testes em animais já nos próximos meses

Pesquisadores do Laboratório de Imunologia do Instituto do Coração (Incor) da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM-USP) estão desenvolvendo uma vacina contra o coronavírus causador da síndrome respiratória aguda grave, o Sars-CoV-2.

Por meio de uma estratégia diferente da adotada por indústrias farmacêuticas e grupos de pesquisa em diversos países, os cientistas brasileiros esperam acelerar o desenvolvimento e conseguir chegar, nos próximos meses, a uma candidata a vacina contra o novo coronavírus que possa ser testada em animais.

“Acreditamos que a estratégia que estamos empregando para participar desse esforço mundial para desenvolver uma candidata a vacina contra a Covid-19 é muito promissora e poderá induzir uma resposta imunológica melhor do que a de outras propostas que têm surgido, baseadas fundamentalmente em vacinas de mRNA”, disse à Agência FapespJorge Kalil, diretor do Laboratório de Imunologia do Incor e coordenador do projeto apoiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo.

Utilizada no desenvolvimento da primeira vacina experimental contra o Sars-CoV-2, anunciada no fim de fevereiro nos Estados Unidos, a plataforma tecnológica de mRNA se baseia na inserção na vacina de moléculas sintéticas de RNA mensageiro (mRNA) ― que contêm as instruções para produção de alguma proteína reconhecível pelo sistema imunológico.

A ideia é que o sistema imunológico reconheça essas proteínas artificiais para posteriormente identificar e combater o coronavírus real. Já a plataforma que será utilizada pelos pesquisadores do Incor é fundamentada no uso de partículas semelhantes a vírus (VLPs, na sigla em inglês de virus like particles).

As VLPs são estruturas multiproteicas que possuem características semelhantes às de um vírus e, por isso, são facilmente reconhecidas pelas células do sistema imune. Porém, não têm material genético do vírus, o que impossibilita a replicação. Por isso, são seguras para o desenvolvimento de vacinas.

“Em geral, as vacinas tradicionais, baseadas em vírus atenuados ou inativados, como a do influenza [causador da gripe], têm demonstrado excelente imunogenicidade, e o conhecimento das características delas serve de parâmetro para o desenvolvimento bem-sucedido de novas plataformas vacinais”, afirmou Gustavo Cabral, pesquisador responsável pelo projeto.

“Mas, neste momento, em que estamos lidando com um vírus pouco conhecido, por questões de segurança é preciso evitar inserir material genético no corpo humano para evitar eventos adversos, como multiplicação viral e possivelmente reversão genética da virulência. Por isso, as formas alternativas para o desenvolvimento da vacina anti-Covid-19 devem priorizar, além da eficiência, a segurança”, ressaltou Cabral.

A fim de permitir que sejam reconhecidas pelo sistema imunológico e gerem uma resposta contra o coronavírus, as VLPs são inoculadas juntamente com antígenos ― substâncias que, ao serem introduzidas no corpo humano fazem com que o sistema imune produza anticorpos.

Dessa forma, é possível unir as características de adjuvante dos VLPs com a especificidade do antígeno. Além disso, as VLPs, por serem componentes biológicos naturais e seguros, são facilmente degradadas. “Com essa estratégia é possível direcionar o sistema imunológico para reconhecer as VLPs conjugadas a antígenos como uma ameaça e desencadear a resposta imune de forma eficaz e segura”, explicou Cabral.

Plataforma de antígenos
Especialista em imunologia, Gustavo Cabral fez nos últimos cinco anos pós-doutorados nas universidades de Oxford, na Inglaterra, e de Berna, na Suíça, onde desenvolveu candidatas a vacinas utilizando VLPs contra doenças, como a causada pelo vírus zika. Por meio de um projeto apoiado pela Fapesp, retornou ao Brasil onde iniciou no laboratório de imunologia do Incor, no começo de fevereiro, um estudo voltado a desenvolver vacinas contra Streptococcus pyogenes ― causador da febre reumática e da cardiopatia reumática crônica ― e chikungunya utilizando VLPs. Com a pandemia do Covid-19, o projeto foi redirecionado para desenvolver uma vacina contra o novo coronavírus.

O projeto também teve a participação de Edécio Cunha Neto, professor do Incor e pesquisador do Laboratório de Imunologia da instituição, que participou da decisão da abordagem do Covid-19 no projeto de Cabral e do delineamento experimental da vacina. “O objetivo é desenvolver uma plataforma de entrega de antígenos para células do sistema imune de forma extremamente fácil e rápida e que possa servir para desenvolver vacina não só contra a Covid-19, mas também para outras doenças emergentes”, ressaltou Cabral.

Os antígenos do novo coronavírus estão sendo produzidos a partir da identificação de regiões da estrutura do vírus que interagem com as células e permitem a entrada dele, as chamadas proteínas spike. Essas proteínas, que são protuberâncias pontiagudas ao redor do envelope viral, resultam um formato de coroa que conferiu o nome corona a esse grupo de vírus.

Após a identificação dessas proteínas spike, são extraídos fragmentos delas que são conjugadas às VLPs. Por meio de testes com o plasma sanguíneo de pacientes infectados pelo novo coronavírus é possível verificar quais fragmentos induzem uma resposta protetora e, dessa forma, servem como potenciais candidatos a antígenos. “Já estamos sintetizando esses antígenos e vamos testá-los em soro de pacientes infectados”, afirmou Cabral.

Após a realização dos testes em camundongos e comprovada a eficácia da vacina, os pesquisadores pretendem estabelecer colaborações com outras instituições de pesquisa para acelerar o desenvolvimento. “Após comprovarmos que a vacina neutraliza o vírus, vamos procurar associações no Brasil e no exterior para encurtarmos o caminho e desenvolver o mais rápido possível uma candidata a vacina contra a Covid-19”, disse Kalil. O pesquisador é coordenador do Instituto de Investigação em Imunologia, sediado no Incor – um dos Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia (INCTs) apoiados pela Fapesp e pelo CNPq no Estado de São Paulo.


Agência Fapesp: Tecnologia que sequenciou coronavírus em 48 horas permitirá monitorar epidemia em tempo real

Karina Toledo, da Agência FAPESP

Apenas dois dias após o primeiro caso de coronavírus da América Latina ter sido confirmado na capital paulista, pesquisadores do Instituto Adolfo Lutz e das universidades de São Paulo (USP) e de Oxford (Reino Unido) publicaram a sequência completa do genoma viral, que recebeu o nome de SARS-CoV-2.

Os dados foram divulgados nesta sexta-feira (28/02) no site Virological.org, um fórum de discussão e compartilhamento de dados entre virologistas, epidemiologistas e especialistas em saúde pública. Além de ajudar a entender como o vírus está se dispersando pelo mundo, esse tipo de informação é útil para o desenvolvimento de vacinas e testes diagnósticos.

“Ao sequenciar o genoma do vírus, ficamos mais perto de saber a origem da epidemia. Sabemos que o único caso confirmado no Brasil veio da Itália, contudo, os italianos ainda não sabem a origem do surto na região da Lombardia, pois ainda não fizeram o sequenciamento de suas amostras. Não têm ideia de quem é o paciente zero e não sabem se ele veio diretamente da China ou passou por outro país antes”, disse Ester Sabino, diretora do Instituto de Medicina Tropical (IMT) da USP.

De acordo com Sabino, a sequência brasileira é muito semelhante à de amostras sequenciadas na Alemanha no dia 28 de janeiro e apresenta diferenças em relação ao genoma observado em Wuhan, epicentro da epidemia na China. “Esse é um vírus que sofre poucas mutações, em média uma por mês. Por esse motivo não adianta sequenciar trecho pequenos do genoma. Para entender como está ocorrendo a disseminação e como o vírus está evoluindo é preciso mapear o genoma completo”, explicou.

Esse monitoramento, segundo Sabino, permite identificar as regiões do genoma viral que menos sofrem mutações – algo essencial para o desenvolvimento de vacinas e testes diagnósticos. “Caso o teste tenha como alvo uma região que muda com frequência, a chance de perda da sensibilidade é grande”, disse.

Vigilância epidemiológica

Ao lado de Nuno Faria, da Universidade de Oxford, Sabino coordena o Centro Conjunto Brasil-Reino Unido para Descoberta, Diagnóstico, Genômica e Epidemiologia de Arbovírus (CADDE). O projeto, apoiado por FAPESP, Medical Research Council e Fundo Newton (os dois últimos do Reino Unido), tem como objetivo estudar em tempo real epidemias de arboviroses, como dengue e zika.

“Por meio desse projeto foi criado uma rede de pesquisadores dedicada a responder e analisar dados de epidemias em tempo real. A proposta é realmente ajudar os serviços de saúde e não apenas publicar as informações meses depois que o problema ocorreu”, disse Sabino à Agência FAPESP.

Segundo a pesquisadora, assim que o primeiro surto de COVID-19 foi confirmado na China, em janeiro, a equipe do projeto se mobilizou para obter os recursos necessários para sequenciar o vírus assim que ele chegasse no Brasil.

“Começamos a trabalhar em parceria com a equipe do Instituto Adolfo Lutz e a treinar pesquisadores para usar uma tecnologia de sequenciamento conhecida como MinION, que é portátil e barata. Usamos essa metodologia para monitorar a evolução do vírus zika nas Américas, mas, nesse caso, só conseguimos traçar a origem do vírus e a rota de disseminação um ano após o término da epidemia. Desta vez, a equipe entrou em ação assim que o primeiro caso foi confirmado”, contou Sabino (leia mais em: agencia.fapesp.br/25356/).

Quebra de barreiras

O primeiro caso de COVID-19 no Brasil (BR1) teve diagnóstico molecular confirmado no dia 26 de fevereiro pela equipe do Adolfo Lutz. Trata-se de um paciente infectado na Itália, possivelmente entre os dias 9 e 21 deste mês. O sequenciamento do genoma viral foi conduzido por uma equipe coordenada por Claudio Tavares Sacchi, responsável pelo Laboratório Estratégico do Instituto Adolfo Lutz (LEIAL), e Jaqueline Goes de Jesus, pós-doutoranda na Faculdade de Medicina da USP e bolsista da FAPESP.

“Já estávamos prevendo a chegada do vírus no Estado de São Paulo e, assim que tivemos a confirmação, acionei os parceiros do Instituto de Medicina Tropical da USP. Já estávamos trabalhando juntos há alguns meses no uso da tecnologia MinION para monitoramento da dengue”, contou Saccchi à Agência FAPESP.

“Conseguimos quebrar algumas barreiras com esse trabalho. A universidade treinou equipes e transferiu tecnologia para que o sequenciamento pudesse ser feito no lugar certo, que é o centro responsável pela vigilância epidemiológica. É assim que tem de ser”, disse Sabino.

Além do Lutz e da USP, participam do Projeto CADDE integrantes da Superintendência de Controle de Endemias (Sucen) e do Centro de Vigilância Epidemiológica (CVE), ambos ligados à Secretaria de Estado da Saúde.

Plano de contenção

O infectologista e professor da FM-USP Esper Kallás tem auxiliado a Secretaria de Estado da Saúde, desde meados de janeiro, a elaborar a estratégia de atendimento de pacientes eventualmente infectados pelo SARS-CoV-2. O Instituto de Infectologia Emilio Ribas e o Hospital das Clínicas da USP foram escolhidos como instituições de referência para atender os casos graves no Estado.

“O HC segue um protocolo para contenção de catástrofe chamado HICS [sistema de comando de incidentes hospitalares, na sigla em inglês], que já foi acionado no atendimento a vítimas do massacre escolar em Suzano [ataque que deixou dez mortos em 2019] e durante a epidemia de febre amarela de 2018. Agora, sabendo que possivelmente há uma epidemia de coronavírus a caminho, já estabelecemos todos os fluxos de atendimento”, contou.

Ainda segundo Kallás, foi criado um grupo de trabalho para discutir protocolos de estudos clínicos que serão feitos com os pacientes diagnosticados e atendidos na rede pública estadual.

“Esse planejamento estratégico e a rápida publicação do genoma viral são indicadores da capacidade que o Estado de São Paulo tem de responder com ciência de alta qualidade e de contribuir para o entendimento das ameaças à saúde da população”, afirmou.

Este texto foi originalmente publicado por Agência FAPESP de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original aqui.


Revista Política Democrática Online || Entrevista: “Apoiar a pesquisa e a inovação é fundamental para o país”, diz Carlos Henrique Brito Cruz

Para o físico e diretor científico da Fapesp, o país precisa mudar a forma como trata a pesquisa científica, acabando com um sistema distorcido de incentivos e recompensas que mata a inovação

Por Caetano Araujo e Aldo Pinheiro da Fonseca 

O mundo inteiro, atualmente, se beneficia de ciência e tecnologia feitas em muitos lugares. O Brasil não foge a essa regra. "Somos um país praticamente autossuficiente em energia para o transporte, gasolina e etanol, porque investiu-se muito em ciência, tecnologia e engenharia para achar petróleo no alto-mar e criar um substituto para o petróleo, o etanol, que vai nos automóveis. Essa história do etanol é uma das maiores realizações que o Brasil logrou no campo da ciência, tecnologia e engenharia. E os brasileiros não valorizam isso", diz Carlos Henrique Brito Cruz, engenheiro eletrônico e físico, diretor científico da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), entrevistado especial desta 11ª edição da Revista Política Democrática Online.

Ex-reitor da Unicamp, Carlos Henrique Brito Cruz está há 13 anos à frente da Diretoria Científica da Fapesp, instituição de fomento que, em geral, sofre menos com as intempéries de Brasília. Seu orçamento anual corresponde a 1% da receita tributária de São Paulo.

Brito Cruz destaca que, em todos os países onde se consegue criar desenvolvimento econômico e social usando ciência e tecnologia, há parte expressiva de recursos investidos na pesquisa, tanto pela universidade quanto por institutos de pesquisa governamentais e por empresas. "No Brasil, há quem ache que o único lugar onde tem pesquisa é nas universidades; nem é assim nem é para ser assim. Nos Estados Unidos, o laboratório de pesquisa da Google tem mais cientistas de computação do que qualquer departamento de universidade americana. O mesmo ocorre com o laboratório da Microsoft. Na Boeing, Airbus, Embraer, a quantidade de engenheiros é impressionante. É desse jeito que funciona. A empresa está conectada com um mercado e com as demandas do consumidor", diz.

Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista de Carlos Henrique Brito Cruz à Revista Política Democrática Online.

Revista Política Democrática Online (RPD): Por que a ciência, a tecnologia são fundamentais para o desenvolvimento de um país?
Carlos Henrique Brito Cruz (BC): Por um lado, porque um número enorme dos facilitadores da nossa vida atual é facilmente conectado com ciência e tecnologia criadas no passado. Telefone celular, vacina, automóvel, drogas e remédios, técnicas usadas nos hospitais, a própria ideia de agricultura eficiente, como se tem no Brasil, a preservação do meio ambiente... Inúmeros exemplos mostram como a ciência e a tecnologia têm ajudado a viver melhor. A gente se beneficia de ciência e tecnologia feitas em muitos lugares do mundo e, também, da ciência e tecnologia feita no Brasil. Por exemplo, hoje o Brasil é um país praticamente autossuficiente em energia para o transporte, gasolina e etanol, porque investiu muito em ciência, tecnologia e engenharia para achar petróleo no alto mar e criar um substituto para o petróleo, o etanol, que vai nos automóveis. Essa história do etanol é uma das maiores realizações que o Brasil logrou no campo da ciência, tecnologia e engenharia. E os brasileiros não valorizam isso.
Todos os países industrializados têm procurado maneiras de substituir a gasolina por algum combustível que produza menos emissão de gás carbônico. O único que conseguiu fazer isso, em escala nacional, grande, é o Brasil, com o programa do álcool. Este é um exemplo de como a ciência e a tecnologia, desenvolvidas pela universidade, pela empresa, pela usina de etanol, pelo agricultor, possibilitaram nossa conquista.
As várias vacinas que são usadas no Brasil: o Butantã e a Fiocruz são entidades que investem pesado em atividade de pesquisa. O Butantã agora vai produzir 90 milhões de doses de vacina contra gripe. Não existe no mundo quem produza 90 milhões de doses de vacina contra gripe, levando-se ainda em conta que, dada a variação constante do vírus da gripe, a pesquisa não pode ser interrompida: uma vacina é boa para um tipo de vírus; se mudar, tem-se de descobrir outra vacina.
A eficiência e a produtividade da agricultura no Brasil também são resultado de ciência e tecnologia, tanto quanto a organização de sistema de saúde, o SUS. Numerosos pesquisadores, liderados pelo saudoso Sergio Arouca, montaram essa ideia: “olha, vamos fazer no Brasil um sistema único de saúde que vai atender a todos os brasileiros”. Os americanos até hoje não conseguem ter um sistema de saúde pública nacional.
Quer dizer, ciência e tecnologia têm sido superimportantes para o Brasil. Não consigo explicar por que certas pessoas no Brasil não entendem isso.

RPD: Há interação entre o setor privado e o governo para se incentivar a pesquisa nos setores de ciência e tecnologia?
BC: Em todos os países onde se consegue criar desenvolvimento econômico e social usando ciência e tecnologia, há parte expressiva de recursos investidos na pesquisa, tanto pela universidade quanto por institutos de pesquisa governamentais e por empresas. No Brasil, há quem ache que o único lugar onde tem pesquisa é nas universidades; nem é assim nem é para ser assim. Nos Estados Unidos, o laboratório de pesquisa da Google tem mais cientistas de computação do que qualquer departamento de universidade americana. O mesmo ocorre com o laboratório da Microsoft. Na Boeing, Airbus, Embraer, a quantidade de engenheiros é impressionante. É desse jeito que funciona. A empresa está conectada com um mercado e com as demandas do consumidor. Sabe, portanto, identificar problemas que precisa resolver para fazer sua economia funcionar melhor, coisa que uma universidade provavelmente não saberia.

A pesquisa na universidade também é importante, fundamental. Primeiro, para manter uma base de conhecimento suficientemente ampla, conseguir tratar dos problemas novos que vão aparecer e que a gente ainda não sabe que vão aparecer. Por exemplo, há 15 anos, as pessoas não sabiam aqui no Brasil que haveria uma epidemia de Zika. Onde estava o estoque de pessoas capazes de tratar disso? Nas universidades. Quando houve a epidemia, existia gente capaz de orientar as ações e contribuir para minorar o problema.

A universidade precisa também treinar as novas gerações de pesquisadores que vão trabalhar na empresa, no governo, na própria universidade e em institutos de pesquisa orientados a problemas ou temas específicos. Estes últimos, no Brasil, seriam os casos da Embrapa, para elevar os índices de produtividade da agricultura; do Instituto Butantã, para melhorar a saúde dos brasileiros, ou do INPE, de observação da terra, da floresta, das atividades espaciais.

Quem financia essas atividades? Empresas, governos e universidades. Em geral, no mundo desenvolvido, o maior financiador são as empresas. Mas elas investem quase tudo em pesquisa delas mesmas. Pouco vai para financiar a pesquisa em universidades ou institutos. Nos Estados Unidos, por ano, as empresas gastam US$ 370 bilhões em pesquisa. Desse total, menos de 1% destina-se a contratar pesquisa em universidades. Olhando de dentro da universidade, esse repasse nunca superou 7% do custo da pesquisa acadêmica. Então, quem financia a pesquisa nas universidades americanas? É o governo federal, o governo estadual e a própria universidade. Não conheço exemplo em lugar nenhum do mundo em que o dinheiro privado financie a totalidade ou a maior parte da pesquisa na universidade. Há dinheiro privado que financia a pesquisa, é bom que haja, só que esse dinheiro sempre é a menor parte do financiamento.

RPD: O que aconteceu com os fundos setoriais concebidos para financiar pesquisas?
BC: Tiveram papel relevante, em termos de volume de dinheiro, mas perderam recursos demais em contingenciamentos. A eficiência do dinheiro federal aplicado em pesquisa acaba sendo diminuída. De um lado, a instabilidade; de outro lado, a falta de autonomia das agências e universidades. Muitas oportunidades, mesmo com quantidades menores de recursos, mas usadas de maneira eficiente, acabam inviabilizadas por causa da maneira como funciona o sistema. Em dezembro aparece dinheiro, e a instrução é: “gastem até o dia 12 ou vão perder tudo”. Aí é uma festa de contratar. Dali a uns meses volta o desespero de como financiar o programa de trabalho.

É o que está acontecendo com as universidades federais, agora, em função do teto de gastos. Se uma universidade federal consegue captar dinheiro de uma empresa, para financiar um pedaço da pesquisa, o Governo Federal tira do orçamento dela a quantidade equivalente do dinheiro extra recebido. É inexplicável e punitivo.

Outra deficiência do sistema de financiamento e definir, de antemão, no orçamento, quanto se poderá gastar com bolsa, fomento, compra de equipamento etc. Se chegar em abril e precisar mudar isso é uma mega complicação para o CNPQ e para a CAPES. Por que não dar autonomia a essas agências? Elas saberão usar os recursos do melhor jeito para fazer o desenvolvimento da ciência e da tecnologia no Brasil.

RPD: Qual é sua avaliação do governo Bolsonaro na área de ciência e tecnologia?
BC: O que se ouve de altos dirigentes, em geral, é horrível. Mesmo que haja um ou outro que fale uma coisa certa – o ministro da Ciência fala que a Terra é esférica. Foi positivo, porque até isso já se punha em dúvida no Brasil. Mas a mensagem geral que passam é que não gostam de educação, ciência e tecnologia. Os atos parecem reforçar essa ideia. Os cortes que anunciaram no orçamento do ano que vem são terríveis. Podem argumentar que o Brasil está falido. Pode ser. Se as coisas que eles dizem fossem mais positivas, se poderia, talvez, ser levado a acreditar que estão tentando fazer o melhor em uma situação difícil. Mas quando se soma o que falam e o que fazem, o quadro é desanimador. Exceções têm sido os presidentes da CAPES e do CNPq, que têm sido prudentes e demonstrado empenho em funcionar de forma republicana.

RPD: O governo deveria ser mais proativo no setor?
BC: O governo tem um papel fundamental. Seja subsidiando P&D em empresas, seja apoiando a pesquisa básica em universidades. Em geral, cabe ao governo investir em pesquisas relevantes e que não serão financiadas pelo setor privado. Projetos de interesse da sociedade, como uma inter-relação entre reforma tributária e desigualdade. É importante, por exemplo, para os brasileiros, entenderem se a reforma do sistema fiscal terá repercussão positiva no combate à desigualdade no país. Tem de haver um equilíbrio no financiamento de pesquisas pelo governo entre aquelas que ajudam a empresa e aquelas que contribuirão para uma sociedade melhor. As duas coisas são importantes.

RPD: Por que a história de êxito da FAPESP não se repete em outros Estados?
BC: O governo paulista segue a Constituição estadual. Disposições semelhantes existem em outras constituições estaduais, mas não se cumprem. No Ceará, o governo local fez um plano de dez anos, para chegar a 100% de cumprimento da Constituição. Resultado: a FUNCAP, a fundação de amparo à pesquisa de lá, está operando favoravelmente e com ideias imaginativas, como a do cientista-chefe nos órgãos do governo. Em Minas Gerais e Rio de Janeiro, as fundações chegaram a operar bem, até que os estados quebraram. A essência do problema é não haver um grau de convicção de que esse recurso é importante para o desenvolvimento. Em São Paulo, de alguma forma, isso se estabeleceu quando o governador Carvalho Pinto criou a FAPESP, em 1962. De resultados em resultados, os paulistas foram entendendo que valia a pena. Tanto que, em 1989, dobraram o percentual.

RPD: Que recomendações o sr. faria para melhorar o gerenciamento do setor de C&T&I?
BC: Em primeiro lugar, cabe reconhecer que o governo atual enfrenta situação econômica extremamente difícil. A economia brasileira está paralisada e o governo enfrenta limites muito claros na capacidade de gasto público. Inclusive por terem gastado ineficientemente em ciência e tecnologia. Para minorar os efeitos da crise econômica, impõe-se uma ação complementar com os estados, buscando-se maneiras de interagir e colaborar, no entendimento de que o sistema de ciência e tecnologia é um sistema nacional, mais do que federal.

Segundo, facilitar a obtenção de financiamento do setor privado, evitando, por exemplo, que o dinheiro repassado pelas empresas implique em corte no orçamento da universidade ou instituto.

Em terceiro lugar, definir e respeitar os recursos de organizações como a CAPES e CNPQ. Isso não significa desconhecer os limites reais, mas garantir que o aprovado em janeiro não se reduza à metade em março.

E quarto, o mais importante: o Governo Federal precisa se dedicar a fazer a economia brasileira voltar a funcionar. Não adianta ficar apenas cortando a despesa – é fundamental aumentar a receita. É preciso reiterar ao mundo que o Brasil é um lugar que pode funcionar, que tem gente bem-educada, para fazer o país progredir. Este seria um caminho para a recuperação econômica, em um prazo médio, tanto quanto do respeito da comunidade internacional. Mas requer que as lideranças do Brasil queiram nos levar a fazer parte do concerto internacional.

Enfim, sejamos otimistas. “Não há mal que dure para sempre”. A conjuntura econômica é difícil, terrível mesmo e não faz sentido estancar as doações ao Fundo da Amazônia que tantas pesquisas poderia financiar sobre a mudança climática global, sobre a Amazônia, buscar formas racionais e efetivas de se evitar desmatamento...

O Brasil abriga uma comunidade científica muito bem qualificada, bem treinada e respeitada mundialmente. Essa comunidade, mesmo nas atuais circunstâncias, consegue extrair e obter resultado das pedras. É desse jeito que a ciência está funcionando no Brasil, mas temo que não consiga funcionar assim por muito tempo.

 


Folha de S. Paulo: Cientistas têm que mostrar eficiência, diz diretor científico da Fapesp

A atual crise de financiamento da pesquisa científica é um dos temas mais discutidos no ambiente acadêmico brasileiro. O orçamento minguou e muitos grupos não têm conseguido manter suas atividades normais.

Por GABRIEL ALVES e  FERNANDO TADEU MORAES

Para o engenheiro eletrônico e diretor da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, maior agência estadual de fomento do país), Carlos Henrique de Brito Cruz, 61, além de lutar por mais recursos, os cientistas deveriam se preocupar também com a eficiência no uso deles. "Quando há escassez cresce a cobrança por resultados imediatos do dinheiro proveniente de impostos."

Em entrevista à Folha, concedida em seu gabinete, ele defende mensurar essa eficiência com, por exemplo, o número de empresas gestadas dentro de uma universidade ou criadas por seus egressos.

*

Folha - Como caracterizar a crise de financiamento da ciência?
Brito Cruz - Há uma crise de financiamento de tudo que depende de arrecadação de impostos no Brasil –ciência, saúde, educação, segurança, rodovias, energia

Há despesas não eletivas, como folha de pagamento e aposentadoria. E a constituição manda gastar um percentual com educação, com saúde. Na área de ciência e tecnologia existe um descompasso entre a grande restrição orçamentária nas despesas do MCTIC com a restrição orçamentária no MEC, menor.

Como a maior parte do gasto federal com ciência e tecnologia vem do MEC, a maior parte desse gasto está menos comprimida, e a menor parte, do MCTIC, mais comprimida.

Do lado do MEC garante-se o salário dos professores de universidades, mas para eles fazerem pesquisa é necessário verba do CNPq ou da Finep. O sistema fica desequilibrado.

Há uma participação importante do setor privado nos investimentos no país, não?
No Brasil, a participação do setor privado no gasto com pesquisa e desenvolvimento é de cerca de 40% do total. Com a crise, porém,ela foi prejudicada: continua 40%, mas são 40% de um valor menor que os R$ 70 bilhões gastos em 2014 (R$ 28 bi).

A crise de financiamento não é uniforme em todas as regiões do país, certo?
No Estado de São Paulo, onde o gasto federal é a menor parte, o efeito da crise é menor. Aqui 60% do gasto é das empresas e 23% do Estado. Só aí já deu 83%.

Nos demais Estados, analisados em conjunto, o gasto federal chega a dois terços. Aí o efeito da crise é enorme.

Há modelos de financiamento que atenuem essa situação?
Em SP, onde o governo tem uma política previdente sobre os gastos estaduais, as crises são atenuadas. Em vez de uma baixa de 30% nos recursos, a queda é de 3% ou 4% –aí é possível acomodar as finanças. Em outros Estados, a responsabilidade fiscal dos governos poderia atenuar a crise. A Fapesp continua recebendo 1% da receita tributária de SP.

O desenvolvimento de parcerias para cofinanciamento também pode ajudar. Um projeto que iria custar X, pode custar a metade disso porque você está fazendo em conjunto com alguma agência de outro país, com uma empresa que vai custear a outra metade.

Essas ideias são medidas paliativas, não soluções. A situação criada no Brasil está gerando sofrimento.

A demanda por recursos deveria vir com uma discussão sobre eficiência no uso deles?
É um ponto muito importante. A ciência merece ser financiada quando é boa, quando tem bom impacto intelectual, econômico, social ou os três.

Está na hora de buscarmos mais qualidade na pesquisa e em seus resultados e caminharmos de métricas baseadas na quantidade para aquelas baseadas na qualidade.

Isso inclui, por exemplo, ter uma discussão sobre quantos doutores precisam ser formados no Brasil por ano e qual é a qualidade da formação que está sendo oferecida.

De que maneiras é possível mensurar essa eficiência?
Você pode medir quantos artigos publicados tem ao menos um autor numa universidade e outro numa empresa. Isso mostra a intensidade dessa interação. Em São Paulo o crescimento desse número nos últimos anos é exponencial.

Outra possibilidade, muito usada por universidades no exterior, é aferir quantos dos egressos criam empresas em setores mais modernos, que poderão ajudar a renovar o ambiente industrial do país. Ao se comparar a Unicamp com universidades americanas nesse quesito, ela não fica mal.

Dá para saber o prejuízo causado pela atual crise?
As cifras que aparecem são muito desencontradas. Se pensarmos na economia, talvez um número crível seja o PIB per capita do Brasil, que voltou ao valor de 2009 ou 2010.

Não parece que a ciência sempre perde na briga por verba?
É mais difícil para a ciência e tecnologia do que para um hospital demonstrar os benefícios que ela traz.

Hoje se produz mais alimentos porque há anos houve investimento em pesquisa na área da agricultura; se mais impostos são recolhidos porque fabricamos aviões, é porque houve pesquisa que ajudou o país a fabricá-los. Em casos como esses, houve pesquisa e esforço. Se há uma cisão no aporte financeiro, há grandes chances de haver sofrimento no futuro.

Não fica a impressão de que só vale a pena investir em pesquisas aplicáveis, em detrimento da pesquisa básica?
Quando há escassez cresce a cobrança por resultados imediatos do dinheiro proveniente de impostos, inclusive aquele que vai para ciência e tecnologia. É natural.

Um matemático que recebe a medalha Fields, por exemplo, traz orgulho para seu país.
Sim, ele mostra que a gente é capaz. A ciência tem essa complicação, ela não pode ser valorada de uma maneira exclusivamente utilitária.

O fato de existir atividade científica competitiva em nível mundial mesmo em temas nos quais os benefícios não vão aparecer na semana que vem, favorece também pesquisas e treinamentos em áreas mais práticas e imediatas.

Não é "uma causa e um efeito", simplesmente. São causas difusas e efeitos que só virão dali um tempo.

A razão pela qual o contribuinte aceita que se use o dinheiro dele para financiar pesquisa é que ele espera algum tipo de benefício: 1) a pesquisa melhora a vida na sociedade, 2) faz a economia funcionar melhor, e/ou 3) traz conhecimentos que a sociedade brasileira ou internacional valorize, tornando-a mais sábia, por exemplo.

A questão é ter um equilíbrio dessas três coisas, e ele pode ser diferente de acordo com a época.

O que o sr. pensa de iniciativas como as Marchas pela Ciência?
Acho legítimo, como outras várias iniciativas de organizações científicas e de pesquisadores para tornar a atividade científica mais visível.

Mas acho que tem de haver equilíbrio nas ações em defesa da ciência e de seu financiamento público. Não se deve exagerar ou criar uma perspectiva de catástrofe para amedrontar pessoas visando o financiamento.

Pode acontecer o efeito contrário, as pessoas podem dizer: "Se está tão ruim isso aí, para que pôr mais dinheiro?".

Além de evitar o catastrofismo, como esse debate poderia ser conduzido?
Valorizar e demonstrar de maneira eficaz as realizações passadas ajuda. Ajuda mais se isso for feito continuamente –não só na época de crise, mas também na de bonança.

Mas é uma discussão na qual nem sempre os atores conseguem manter equilíbrio e racionalidade. Tem gente vendo o salário não vir e o laboratório ao qual se dedicaram anos e anos ser sucateado sem manutenção. É difícil

Como o sr. vê iniciativas como o Instituto Serrapilheira e o fundo privado recentemente anunciado pelo governo para financiar pesquisas de ponta?
Acho muito positivas. Quanto mais você aumenta a diversidade de fontes de financiamento, mais sólido fica o sistema. Se uma sofre, outra pode compensar.

O Serrapilheira é uma ótima iniciativa. Sobre o fundo da Capes, eu não conheço os detalhes, mas buscar outras maneiras de ter recursos para financiar a pesquisa é sempre uma boa coisa.

Em abril, a Fapesp anunciou que iria bloquear recursos para universidades que não tivessem órgãos dedicados a promover a integridade científica, como está essa questão?
Está avançando. Estabelecemos no documento de financiamento à pesquisa que os pesquisadores e as instituições assinam com a Fapesp o compromisso de que as universidades tenham esses órgãos. Estamos trabalhando com as instituições para incentiva-las e ajudá-las a criar tais órgãos

A UFABC foi a primeira a ter um. A USP acabou de definir uma sistemática muito avançada para esse fim e a Unesp deve anunciar em breve.

Também incentivamos as universidades a criarem escritórios cuja função é ajudar o pesquisador a montar um projeto de pesquisa e a geri-lo quando este for aprovado. A ideia é que o pesquisador não tenha o seu tempo onerado com tarefas que não sejam científicas, que é o que todas as boas universidades do mundo fazem.

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Raio-X

Nascimento
19 de julho de 1956, no Rio

Formação
Graduação em engenharia eletrônica pelo ITA, mestrado e doutorado em física pela Unicamp

Trajetória
Foi pesquisador nos Laboratórios Bell, da AT&T, entre outras entidades. Foi reitor da Unicamp de 2002 a 2005 e presidente da Fapesp entre 1996 e 2002. Desde 2005 é diretor científico da entidade

 


pesquisa e inovação

Mayana Zatz: Em time que está ganhando não se mexe

Com o corte de 120 milhões de reais do orçamento da Fapesp, perde a ciência básica brasileira, capaz de promover revolucionários avanços tecnológicos

A FAPESP – FUNDAÇÃO DE AMPARO À PESQUISA DO ESTADO DE SÃO PAULO – É UM ORGULHO NACIONAL E EXEMPLO A SER SEGUIDO NO MUNDO INTEIRO, contribuindo marcadamente, há várias décadas, para o avanço do conhecimento no Estado de São Paulo e no país. Com a concessão de bolsas e auxílios para a execução de pesquisas científicas e tecnológicas em todas as áreas do conhecimento, a instituição vem apoiando estudos e a divulgação da ciência desde 1962, quando começou a funcionar. Assim, é incompreensível a decisão da Assembleia Legislativa de São Paulo que aprovou uma lei orçamentária desviando 120 milhões de reais da dotação assegurada pela Constituição do estado à instituição, nos últimos dias de 2016 – em outras palavras, um grande corte. Essa decisão não apenas contraria a Constituição estadual, que determina o repasse de 1% da receita tributária para a Fapesp, como causará um prejuízo irreversível à ciência paulista e brasileira. O valor, segundo a decisão, irá para o fortalecimento de institutos de pesquisas estaduais (como o Butantan ou o Biológico), que estariam em penúria. Entretanto a Fapesp sempre apoiou bons projetos independentemente de estarem nas universidades ou nos institutos. O erro abre um precedente perigoso – além de ser o único órgão científico do estado com tradição de independência em relação ao Executivo, tirar recursos de um lado (que funciona) para cobrir outro não pode ser um argumento defensável.

Defensores dessa decisão catastrófica alegam que é preciso investir mais em pesquisas aplicadas. Ledo engano! Os maiores e mais revolucionários avanços tecnológicos foram gerados pelas pesquisas básicas. A eletricidade, por exemplo. Inicialmente, ninguém sabia sua utilidade. Foi a pesquisa básica que desvendou suas características e, assim, possibilitou seu uso. Tente imaginar viver numa sociedade sem eletricidade... Quem poderia acreditar que a teoria da relatividade, proposta por Einstein no início do século XX, seria responsável pelo desenvolvimento de satélites e GPS, viagens espaciais, lasers, impressoras e outras invenções que correspondem a um terço da economia mundial na atualidade?

Descobertas recentes de laboratórios de pesquisa básica em biologia e genética revolucionarão a medicina. Por exemplo, Shinya Yamanaka, pesquisador japonês ganhador do Prêmio Nobel de Medicina de 2012, mostrou que é possível reprogramar células já diferenciadas tornando-as pluripotentes, portanto, capazes de gerar qualquer tipo de célula. Esse conhecimento básico possibilitará um salto gigantesco na medicina regenerativa. Jennifer Doudna e Emanuelle Charpentier descobriram que é possível “editar” genes em bactérias, ou seja, modificá-los, por meio de uma técnica revolucionária chamada CRISPR/Cas9. O conhecimento gerado por esses estudos, realizados em laboratórios de pesquisa básica, já vem sendo utilizado para tratar alguns tipos de câncer. E o prosseguimento dessas pesquisas possibilitará a correção de mutações e o tratamento de inúmeras doenças, inclusive transplante de órgãos. Essa tecnologia, cujo impacto na agricultura, pecuária e medicina serão gigantescos, foi rapidamente incorporada aos nossos laboratórios graças à Fapesp.

"O sucesso do projeto de pesquisa básica apoiado pela Fapesp foi tamanho que ganhou a capa da prestigiosa revista Nature, colocando o Brasil no mesmo patamar dos países desenvolvidos"

No fim da década de 90, a Fapesp financiou um projeto que envolveu trinta laboratórios, o sequenciamento da bactéria Xylella fastidiosa, praga da laranja. O objetivo primário era capacitar um número expressivo de cientistas nessa nova tecnologia de sequenciamento genômico. O sucesso do projeto foi tal que ganhou a capa da prestigiosa revista Nature, colocando o Brasil no mesmo patamar dos países desenvolvidos. Graças a esses avanços, hoje essa tecnologia tem uma aplicação gigantesca na agricultura, pecuária e na medicina.

Em 2004, pesquisadores do Instituto de Biociências da USP, apoiados pela Fapesp, descobriram em famílias brasileiras um gene responsável por uma forma hereditária de esclerose lateral amiotrófica (ELA - a doença do famoso cientista britânico Stephen Hawking). Posteriormente, descobriu-se que esse gene estaria envolvido em outras formas de ELA, o que abriu um novo leque de pesquisas no mundo inteiro na busca por um tratamento. Mais recentemente, também com apoio da Fapesp, foram sequenciados os genomas de cerca de 1 400 pessoas com mais de 60 anos, constituindo o primeiro e maior banco genômico da população idosa brasileira, que contribuirá para a identificação dos fatores genéticos e ambientais responsáveis por um envelhecimento saudável. A Fapesp também apoia e financia projetos importantes relativos ao zika, vírus associado a um número assombroso de casos de microcefalia em bebês no país.

Resultados expressivos em ciência envolvem investimentos contínuos e atualizados, pois a construção do conhecimento depende de estudos e experimentos, infraestrutura adequada e da formação de recursos humanos qualificados para sua realização. Essa concepção norteou a criação da Fapesp, em 1960, levando ao estabelecimento de um porcentual da arrecadação do ICMS do estado para garantir a continuidade do financiamento das pesquisas em São Paulo. Nessa ocasião, o governador Carvalho Pinto declarou: “Se me fosse dado destacar alguma das realizações da minha despretensiosa vida pública, não hesitaria em eleger a Fapesp como uma das mais significativas para o desenvolvimento econômico, social e cultural do país”. A Fapesp tem hoje 57 anos de inquestionáveis contribuições ao desenvolvimento de São Paulo e do Brasil. O corte de 120 milhões no orçamento da Fapesp, associado à redução dos recursos decorrente da própria queda na arrecadação do ICMS, ferirá irreparavelmente esse patrimônio histórico. O investimento no desenvolvimento científico e tecnológico, por meio desse órgão fundamental, é a melhor garantia de desenvolvimento crescimento econômico, social e cultural do país.


*Mayana Zatz é geneticista e diretora do Centro de Pesquisas do Genoma Humano e Células-Tronco da Universidade de São Paulo (USP)

Respeitar a lei e a Fapesp

Ainda que seja grave, a atual crise econômica não é motivo razoável para desmantelar uma instituição de tamanha relevância pública

Em tempos de crise econômica, com a correspondente diminuição das receitas públicas, é imperioso que o governo – nas esferas federal, estadual e municipal – reduza suas despesas. Longe de representar uma opção ideológica, o equilíbrio fiscal é uma necessidade de todo administrador público responsável. Esse corte de gastos, porém, deve ser feito de forma criteriosa, respeitando, em primeiro lugar, a legislação vigente. Tais condições, porém, não foram observadas pela Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp) ao excluir do orçamento estadual de 2017 importantes receitas da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).

O projeto de lei orçamentária para 2017 encaminhado à Alesp pelo Poder Executivo previa um repasse de R$ 1,116 bilhão do Tesouro do Estado para a Fapesp. Pouco antes da votação, no entanto, lideranças partidárias – entre elas a do PSDB, partido do governo, que detém ampla maioria no Legislativo estadual – apresentaram uma emenda para retirar R$ 120 milhões da agência de pesquisa, redirecionando esse valor para “projetos de modernização” dos Institutos de Pesquisa do Estado – um conjunto de 19 instituições, que inclui os Institutos de Botânica, Pesca, Geológico, Florestal, Agronômico de Campinas, Butantan, Pasteur e Adolfo Lutz, entre outros.

Com isso, a Lei Orçamentária Anual (LOA) de 2017 – publicada no Diário Oficial do Poder Legislativo no dia 22 de dezembro e sancionada pelo governador Geraldo Alckmin uma semana depois – estabeleceu que seja destinado à Fapesp o valor de R$ 996 milhões. O montante, no entanto, é inferior ao que, por força da Constituição estadual de 1989, a agência tem direito.

O art. 271 da Carta Magna estadual é claro: “O Estado destinará o mínimo de um por cento de sua receita tributária à Fapesp, como renda de sua privativa administração, para aplicação em desenvolvimento científico e tecnológico”. Segundo cálculo da Academia de Ciências do Estado de São Paulo (Aciesp), o montante previsto pela LOA de 2017 corresponde apenas a 0,89% da receita tributária estadual.

Além de ilegal, a emenda aprovada pela Alesp, com o patrocínio do Palácio dos Bandeirantes, é um tremendo equívoco administrativo. A despeito de tantos casos de ineficiência no setor público, a Fapesp cumpre eficientemente sua missão institucional de promover a pesquisa. Desde o início de seu funcionamento, em 1962, a agência dá inequívoca contribuição ao desenvolvimento científico no Estado e no País.

Ainda que seja grave, a atual crise econômica não é motivo razoável para desmantelar uma instituição de tamanha relevância pública. Além do mais, ela cumpre uma antiga aspiração da população paulista. Basta ver, por exemplo, que a Constituição estadual de 1947, antes mesmo da criação da Fapesp, já previa destinar parte das receitas tributárias a uma agência de amparo à pesquisa.

É de admirar, portanto, que o governador Geraldo Alckmin, com inequívocas intenções presidenciais, tenha consentido com essa medida de restrição orçamentária à Fapesp. Além de alimentar resistências a seu nome, corre o risco de ver relacionado seu estilo de governar a uma visão estreita e de curto prazo, incompatível com as competências requeridas para o exercício do mais alto cargo da República.

A promoção da ciência e da pesquisa exige não pequenos investimentos e quase nunca traz dividendos políticos imediatos. Seus efeitos são lentos, em ritmo diverso daqueles próprios da agenda eleitoral. Tal fato, porém, não pode levar a uma política de desvalorização da pesquisa – como se ela fosse dispensável ou, ao menos, não prioritária –, por meio da redução injustificada de recursos a ela destinados. Ao contrário, a verdadeira relevância social da pesquisa científica está muitas vezes relacionada a essa aparente lentidão e a esse passar oculto aos olhos do grande público. Só assim, despreocupada dos interesses imediatos do governo, a ciência tem condições de produzir resultados isentos e duradouros.


Fonte: opiniao.estadao.com.br


Carlos Henrique de Brito Cruz: Investimento empresarial em P&D no Brasil

Para haver impacto econômico da pesquisa são imprescindíveis empresas inovadoras

Muitas nações conseguem obter substancial impacto econômico com atividades de pesquisa e desenvolvimento (P&D) em ciência e tecnologia (C&T). No Brasil há muitos casos reconhecidos e claramente a economia brasileira sem P&D seria muito mais atrasada e frágil. Exemplos: produção de energia, extração de petróleo, o maior caso mundial de uso extensivo de bioetanol para transporte, equipamentos e sistemas para telecomunicações, aviões, serviços de software e informática, a agricultura e a pecuária, que fazem do País o celeiro do mundo, todos criados por gente que estudou em nossas melhores universidades, trabalhando em empresas inovadoras. Esses sucessos mostram que vale a pena buscar continuamente os caminhos que façam a economia cada vez mais competitiva, pois vários países parecem obter mais impacto econômico de P&D que nós.

Nos países que têm conseguido os maiores efeitos da pesquisa em sua economia há intensa atividade de P&D realizada por empresas. Essa característica é frequentemente esquecida no debate brasileiro, no qual se consideram universidades como o único lugar da pesquisa. Esse engano prejudica as estratégias nacionais, pois desvia o foco do real problema: a debilidade das atividades de P&D em empresas no País.

Nos EUA, dos US$ 456 bilhões aplicados em P&D em 2013, 71% (US$ 323 bilhões) foram executados por empresas. Desse total o governo federal entrou com apenas 9%, o restante foram recursos das próprias empresas. Na Coreia do Sul, dos US$ 68 bilhões (PPP) aplicados em P&D, a fatia empresarial foi 78% (US$ 53 bilhões – PPP). Na Alemanha o porcentual empresarial representou, no mesmo ano, 68% do total; no Reino Unido, 64%; e na China, 77%.

No Brasil, em 2013, a participação de empresas no dispêndio em P&D foi apenas 40% do total nacional, de US$ 40 bilhões PPP (indicadores do MCTI em https://goo.gl/cRveWf). Pior, o porcentual empresarial vem caindo: em 2000 foram 47%. Indicadores de C&T do MCTI mostram que em 2000 havia 44.183 pesquisadores trabalhando para empresas. Em 2010, após uma década de esforços de apoio e incentivos, esse número caiu a 41.317, parecendo refletir a queda precoce da participação da indústria no PIB nacional.

Enquanto cada vez mais lideranças empresariais defendem a necessidade de mais P&D e inovação, as regras da economia brasileira criam um ambiente hostil para tal. Não são só crises ética, fiscal, política e econômica instaladas nos últimos anos. Trata-se, além e antes disso, de protecionismo em excesso, do fechamento da economia, da autoexclusão do Brasil dos grandes acordos comerciais mundiais, dos altos custos trabalhistas, da complexidade tributária, que beira a irracionalidade. O baixo esforço privado em P&D no Brasil não é resultado – como é comum ouvir no meio acadêmico – de certo desvio de conduta das lideranças empresariais; é a resposta lógica a uma economia em que a tecnologia raramente é determinante para a posição da empresa no mercado.

Ao lado do tímido esforço de P&D empresarial, um óbice adicional à realização de mais impacto econômico é a falta de ousadia das empresas, que, em geral, se concentram em atividades adaptativas locais. Veja-se o número de patentes internacionais que as empresas no Brasil obtêm. A revista Pesquisa Fapesp(https://goo.gl/jmkUE7), tratando exclusivamente de patentes obtidas por empresas (não universidades ou institutos), mostra que, de 2011 a 2015, para cada 10 mil pesquisadores empregados as empresas do Brasil obtiveram 32 patentes no Escritório de Patentes dos EUA (USPTO). Para as empresas da China, os mesmos 10 mil pesquisadores criaram 47 patentes; na Coreia do Sul, 519; na Alemanha, 648; e nos EUA, 1.082. No Brasil, entre os 10 maiores solicitantes de patentes há apenas 3 empresas (sendo a primeira uma multinacional), os outros 7 são universidades e institutos de pesquisa. Nos EUA, entre os 10 maiores solicitantes, 10 são empresas; na Alemanha, 9.

Outro equívoco comum no debate brasileiro sobre impacto da pesquisa é supor que a pesquisa colaborativa com universidades será uma peça essencial para superar esse quadro. A colaboração com universidades e laboratórios públicos é importante e tem sido muito estimulada, mas vai bem além da pesquisa colaborativa, seja na formação de pessoal, seja no acesso ao conhecimento público produzido pela pesquisa acadêmica. Nos EUA, dos US$ 270 bilhões gastos por empresas (de seus próprios recursos) para P&D, apenas 1,3% foi dirigido a contratar P&D em universidades. Não é a colaboração com universidades, sozinha, que faz a empresa dos EUA ser inovadora, é o esforço próprio das empresas em seus laboratórios e centros de P&D, onde empregam gente educada nas universidades.

Universidades podem ser determinantes para criar impacto econômico na sociedade e para isso é preciso uma instância mediadora ligada ao mercado, a empresa. Podem ser empresas já bem estabelecidas com vigorosos esforços próprios de P&D ou empresas iniciadas por estudantes ou professores universitários, também com esforços próprios de P&D. Para criar prosperidade empresas precisam de pessoas capazes de ter ideias e de desenvolvê-las – pessoas educadas em universidades com referenciais acadêmicos elevados e atividades intensas de pesquisa, onde desenvolvem sua capacidade intelectual e aprendem a enfrentar problemas usando o método da ciência.

Sem empresas com expressiva atividade própria de P&D o Brasil não conseguirá ser competitivo e criar riqueza com base em conhecimento. Para que as empresas no País possam dedicar-se à inovação é necessário um ambiente econômico que favoreça a competição. Não se trata apenas de haver incentivos explícitos, subvenções e financiamentos, trata-se de algo bem mais sofisticado e complexo: criar no País, para o bem do interesse público, um ambiente estimulante à inovação empresarial.

*  Carlos Henrique de Brito Cruz - Diretor Científico da Fapesp


Fonte: http://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,investimento-empresarial-em-ped-no-brasil,10000090668