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O que caracteriza a mentalidade bolsonarista? João Cezar de Castro Rocha responde

Em artigo publicado na revista mensal da FAP, professor da Uerj cita narrativa conspiratória do Orvil

Cleomar Almeida, assessor de comunicação FAP

A mentalidade bolsonarista é caracterizada, por meio da guerra cultural, a ponta de lança de um projeto autoritário, com base no resgate insensato da Doutrina de Segurança Nacional, no alinhamento cego à matriz narrativa conspiratória do Orvil e na adesão náufraga ao sistema de crenças Olavo de Carvalho. A análise é do professor Titular de Literatura Comparada da Uerj (Universidade Estadual do Rio de Janeiro) e ensaísta João Cezar de Castro Rocha, em artigo publicado na revista Política Democrática Online de setembro.

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A publicação mensal é produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), que disponibiliza, gratuitamente, todos os conteúdos em seu site para os internautas. Rocha observa que a ascensão da direita é anterior à emergência do bolsonarismo, o que, segundo ele, favoreceu sua possibilidade de êxito.

“Em boa parte dos estudos acerca do fenômeno, o efeito é tomado como causa. O bolsonarismo não possibilitou o triunfo eleitoral da direita, mas, pelo contrário, a ascensão paulatina da direita, articulada desde meados da década de 1980, preparou a vitória do Messias Bolsonaro no segundo turno em 2018”, analisa o professor da Uerj.

O ensaísta lembra que as manifestações de rua da direita explodiram em março de 2016, depois de se iniciarem em março de 2015, e ampliadas em abril, agosto e dezembro do mesmo ano. Os atos, de acordo com o analista, revelaram ao país uma organização sólida de grupos conservadores, com destaque para movimentos articulados nas redes sociais, que, com grande desenvoltura, tomaram os céus de assalto, não para defender a revolução, porém, todo o oposto, para derrubar o único partido de esquerda que chegou à presidência do Brasil.

Rocha explica que O Orvil é o modelo narrativo adotado pelo bolsonarismo. “Trata-se de documento-chave que oferece o relato de uma permanente ‘ameaça comunista’, fortalecendo o discurso da atual extrema-direita no Brasil, pois se trata do livro de cabeceira da família Bolsonaro”, afirma o professor da Uerj.

O livro, conforme observa o autor do artigo, foi preparado pelo Exército entre 1986 e 1989, cujo objetivo era denunciar a “ameaça comunista”. “A ascensão da direita, um movimento de duas décadas, explodiu em 2015 e 2016, porém sua intensidade foi preparada lentamente por meio da criação de uma linguagem própria, saturada de clichês anticomunistas com ressonâncias anacrônicas da Guerra Fria, ademais do recurso a uma moldura narrativa com base nas tentativas de tomada do poder por parte da esquerda brasileira, “naturalmente” em acordo com o movimento comunista internacional, numa vasta trama de proporções apocalípticas.

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‘Lista de perdedores é imensa’, diz Everardo Maciel sobre propostas de reforma tributária

Em entrevista à revista online e mensal da FAP, especialista lembra que até o livro pode ser prejudicado

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

As propostas de reforma tributária não são nada animadoras para a população em geral, conforme avalia o consultor jurídico e professor do IDP (Instituto Brasiliense de Direito Público) Everardo Maciel, ex-secretário da Receita Federal. “A lista de perdedores é imensa”, alerta o especialista, em entrevista que concedeu à revista Política Democrática Online de setembro, produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), sediada em Brasília.

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Existem hoje três propostas de reforma tributária, em tramitação no Congresso Nacional: uma oriunda da Câmara dos Deputados (PEC nº 45); outra apresentada no Senado (PEC nº 110), e, por fim, a proposta de criação de uma Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), encaminhada pelo Poder Executivo, para a qual se solicitou tratamento de urgência no Congresso Nacional.

“[A lista de perdedores] começa com os mais de 850 mil contribuintes, tributados no regime do lucro presumido do IRPJ e cumulativo do PIS/COFINS, alcançando pequenos e médios prestadores de serviço, comerciantes e industriais”, afirma. “Nesse contingente, incluem-se os serviços de educação e saúde, o que inevitavelmente implicaria elevação dos preços das mensalidades escolares e das consultas médica”, ressalta. 

Na avaliação de Maciel, para justificar o aumento da tributação dos serviços de educação e saúde, argumenta-se que quem faz uso desses serviços são ricos, desconhecendo a imensa demanda da classe média. “De mais a mais, essa oneração haveria de sobrecarregar o SUS e a rede pública de ensino, gerando custos para o setor público”, analisa.

Na longa lista de perdedores, até o livro foi incluído. “Desde 1946, o livro é desonerado de tributos. A remuneração de um escritor corresponde a 10% do preço de capa. A CBS pretende taxar os livros com uma alíquota de 12%, o que equivale a confiscar aquela remuneração”, critica ele. Além disso, os livros didáticos representam cerca de 50% do total comercializado, sendo que grande parte é adquirida pelos governos. Trata-se, portanto, de uma ideia estapafúrdia. Mais grave, sem nenhum valor arrecadatório.

Outro alvo desse aumento de carga tributária, segundo o ex-secretário da Receita Federal, é o agronegócio, precisamente o setor quem tem sustentado o modesto desempenho do PIB brasileiro. “Pretende-se tributar o setor pesadamente, na contracorrente do que se faz no resto do mundo”, afirma.

No Brasil, 98% dos produtores rurais são pessoas físicas equiparadas a jurídicas, que produzem e vendem para a indústria processadora sem transferir crédito. Segundo o consultor jurídico, a indústria processadora de produtos de origem animal e vegetal toma um crédito presumido, na apuração do PIS/COFINS, que varia de 40 a 60%. 

“No projeto da CBS, o crédito presumido é reduzido para 15%, e se elimina a isenção dos insumos. Em decorrência, haveria redução da margem do produtor ou da indústria ou então elevação dos preços para o consumidor final, o que é lamentável. 

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Pós-doutor em comunicação publicou análise na revista Política Democrática Online de setembro

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

A guerra de narrativa na internet abre um grande campo de atuação para “robôs militantes”, principalmente, no período das eleições. “São eles os novos cabos eleitorais. E nós, eleitores, amamos os robôs, porque eles defendem nossos desejos, mas que os fatos insistem em atrapalhar”, analisa o pós-doutor em comunicação e diretor da AP Exata – Inteligência Digital, Sergio Denicoli, em artigo publicado na revista Política Democrática Online de setembro.

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A publicação é produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), sediada em Brasília, e todos os conteúdos podem ser acessados, gratuitamente, no site da entidade. Em seu artigo, o especialista destaca como as narrativas ganham cada vez mais destaque e poder, principalmente, com a estratégica de mimética, reforço das repetições, provocados pelo conhecidos memes. T

“Há uma pandemia? Basta os robôs dizerem que não é verdade a gravidade da situação, e está decretado o fim da quarentena. A Amazônia está em chamas? Chamem os robôs e os orientem a dizer que isso é uma mentira baseada em um complô internacional, para nos roubar a floresta. Cientistas têm provas? Os robôs não acreditam nelas, porque tudo pode ser contestado com os mais básicos e convincentes argumentos”, exemplifica

Ele pondera que essa história de amor com os robôs pode levar, certamente, a um final “infeliz”. “Enquanto estivermos encantados pelos robôs, estaremos cegos de paixão. E, como Aristóteles mesmo nos disse, ‘a lei é a razão livre da paixão’. Ou seja, ainda estamos muito longe de voltarmos a avistar a firme terra do racional”, afirma. “Mas, quando a paixão acabar, sobrarão os corações despedaçados, ávidos pela verdade, que irá florescer em meio à terra arrasada, onde um dia os sofistas imperaram”, continua.

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O que está por trás do poder catártico do cinema? Confira o artigo de Lilia Lustosa

Em nova edição da revista online e mensal da FAP, crítica de cinema cita ‘estado hipnótico’

“Ao sentar-se em uma sala escura, com a atenção totalmente voltada para a tela, o espectador entrava em uma espécie de estado hipnótico, revivendo sensações do passado, seguidas de um certo alívio ao final da sessão”, observa a crítica de cinema Lilia Lustosa, em artigo que produziu para a edição de setembro da revista Política Democrática Online. A publicação é editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), que disponibiliza todos os conteúdos, em seu site, gratuitamente.

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De acordo com Lilia, cinema e psicanálise nasceram praticamente juntos. “Muito cedo percebeu-se que a nova arte tinha um poder catártico semelhante ao da nova corrente psicológica que surgia naquele final de século 19”, afirma ela, em seu artigo. Toda essa mistura pode provocar um sentimento que, segundo ela, muitas vezes, terminava por converter-se em ação ou em transformação.

Em sua análise, a crítica de cinema cita um episódio que viveu em Buenos Aires, onde, conforma ressalta, teve a oportunidade de constatar esse poder do cinema ao assistir ao filme Refugiado (2014), de Diego Lerman, em uma comunidade, fruto de uma ação promovida pelo Pnud (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento), em conjunto com uma ONG local.

O objetivo, de acordo com Lilia, era incentivar mulheres vítimas de violência doméstica a se pronunciarem sobre o mal que vinham sofrendo, quem sabe até criando coragem para denunciar seus agressores.

Segundo a crítica de cinema, o filme, que conta a história de uma mulher grávida que foge de casa e do marido, levando consigo o filho de 7 anos, despertou sentimentos profundos na plateia. “Uma senhora, acompanhada do filho pequeno, declarou haver-se identificado muito com a protagonista, afirmando que o que viu na tela era exatamente o que vivia em seu dia a dia”, destaca.

“A verdade é que, apesar de já ter lido mil vezes sobre a força catártica do cinema, sobre sua capacidade de sensibilização ou mesmo de persuasão, características tão exaltadas pelos vanguardistas russos ou mesmo pela Igreja Católica com suas encíclicas Vigilanti Cura e Miranda Prorsus, nada se compara a vivenciar seu efeito na vida real”, acentua.

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Mundo de riscos e desafios é tema de webinar da FAP com Elimar Nascimento

Professor da UnB debaterá assunto, abordado em livro de sua autoria, diretamente com internautas

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

Leitores poderão conversar diretamente com o autor do livro Um mundo de Riscos e Desafios (216 páginas) para debaterem o assunto, durante webinar da FAP (Fundação Astrojildo Pereira), editora da obra, no dia 6 de outubro, das 19h às 20h30. Na sala virtual, o sociólogo e professor da UnB (Universidade de Brasília) Elimar Pinheiro do Nascimento discutirá, entre outros assuntos, sustentabilidade e democracia. A transmissão será realizada por meio do site e da página da entidade no Facebook.

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O livro está à venda na internet. Ao longo de sete capítulo, o autor aborda os seguintes assuntos: sustentabilidade; crise ambiental e democracia; possibilidade de recriar a democracia; modernidade, globalização e exclusão social; a dinâmica dos que ficam dentro e fora, no contexto da globalização e exclusão; o pluralismo da sociedade; e os excluídos necessários e os excluídos desnecessários.

Assista ao vivo!

A degradação ecológica, provocada pelo crescimento da produção e do consumo, conforme abordado no livro, deve ser abordada durante o webinar, que se torna ainda mais essencial no momento em que o Brasil e o mundo passam por uma intensa destruição do meio ambiente.

A discussão online também vai analisar a degradação moral, que é provocada pela intensificação da desigualdade social. Isto porque o autor considera que a sociedade vive em um mundo perigoso, com crises de múltiplas naturezas e incertezas crescentes.

“Uns se preocupam com o vazio e a falta de futuro dos humanos, o consumismo e o aumento de doenças como depressão, câncer e crescimento das taxas de suicídio. Outros, com a degradação ambiental, com o aumento da perda da biodiversidade e riscos crescentes dos eventos críticos climáticos”, escreve o sociólogo.


Reforma tributária, estupros e paixão por robôs são destaques da Política Democrática

Produzida pela FAP, revista mensal tem acesso totalmente gratuito no site da entidade

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

Impactos da reforma tributária, estupros contaminados por guerra ideológica e a crescente relação das pessoas com robôs na internet, em meio a um intenso conflito de narrativas, são destaques da edição de setembro da revista Política Democrática Online, lançada nesta quinta-feira (24). Todos os conteúdos podem ser acessados gratuitamente no site da FAP (Fundação Astrojildo Pereira), sediada em Brasília e que produz e edita a publicação.

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No editorial, a publicação destaca a defesa da democracia e o combate à corrupção. “A defesa da democracia exige a preservação da fronteira entre decisões da política, nas quais vigora o princípio da maioria, e decisões da justiça, que dependem da aplicação das leis por um corpo de funcionários qualificado”, diz. “A resposta democrática às falhas da Justiça é a reforma das regras, não a contestação das sentenças”, continua.

Na economia, a revista destaca entrevista exclusiva com o consultor jurídico e professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP) Everardo Maciel, que foi secretário da Receita Federal durante os anos de 1995 a 2002, no governo de Fernando Henrique Cardoso. Ele analisa as três propostas de reforma tributária, em tramitação no Congresso Nacional: uma oriunda da Câmara dos Deputados (PEC nº 45); outra apresentada no Senado (PEC nº 110), e, por fim, a proposta de criação de uma Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), encaminhada pelo Poder Executivo, para foi solicitado tratamento de urgência no Congresso Nacional.

“A lista de perdedores é imensa”, critica Maciel. “Começa com os mais 850 mil contribuintes, tributados no regime do lucro presumido do IRPJ e cumulativo do PIS/COFINS, alcançando pequenos e médios prestadores de serviço, comerciantes e industriais. Nesse contingente, incluem-se os serviços de educação e saúde, o que inevitavelmente implicaria elevação dos preços das mensalidades escolares e das consultas médicas”, analisa o consultor.

Já a reportagem especial destaca histórias e dados de vítimas de estupro no país. A cada hora, quatro crianças e adolescentes de até 13 anos são estupradas no país, segundo o Anuário de Segurança Pública 2019, produzido pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública com informações de todas as unidades da Federação. Outro levantamento, baseado no Sistema de Informações Hospitalares do Sistema Único de Saúde (SUS), mostra que, por dia, o Brasil registra seis abortos em meninas de 10 a 14 anos estupradas. 

Outra abordagem de comportamento humano é analisada em um artigo sobre a relação das pessoas com robôs na internet. “Há uma pandemia? Basta os robôs dizerem que não é verdade a gravidade da situação, e está decretado o fim da quarentena. A Amazônia está em chamas? Chamem os robôs e os orientem a dizer que isso é uma mentira baseada em um complô internacional, para nos roubar a floresta”, analisa o pós-doutor em comunicação Sérgio Denicoli, diretor da AP Exata – Inteligência Digital.

Já a mentalidade bolsonarista é assunto para análise do professor titular de Literatura Comparada da UERJ (Universidade Estadual do Rio de Janeiro) e ensaísta João Cezar de Castro Rocha. “Trata-se de reduzir o outro ao mero papel de adversário, inimigo a ser eliminado. Por isso, muito mais importante do que somente derrotar o Messias Bolsonaro é superar o próprio bolsonarismo”, alerta.

A revista Política Democrática Online de setembro de também tem artigos sobre política e cidadania, proposta de reforma administrativa, recessão, perspectivas da economia, cinemateca brasileira, cinema argentino, história política do Chile e as eleições dos Estados Unidos.

A publicação é dirigida pelo embaixador aposentado André Amado e tem o conselho editorial formado por Alberto Aggio, Caetano Araújo, Francisco Almeida, Luiz Sérgio Henriques e Maria Alice Resende de Carvalho.

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RPD || Reportagem Especial: Estupros aterrorizam vítimas e inflam guerra ideológica

A cada hora, quatro crianças e adolescentes de até 13 anos são estuprados no país; especialistas veem aborto como questão de saúde pública

Cleomar Almeida

“Ele me colocou no colo, passou a mão em mim e, depois, tirou a roupa e começou a me acariciar na minha cama”. A declaração é de uma menina de 11 anos de idade que foi estuprada, aos 9 anos, em casa, pelo padrasto, enquanto a mãe estava no supermercado, na região do Gama, a 35 quilômetros de Brasília. “Ele me machucou muito, mas depois pediu para ficar calada porque senão minha mãe iria me bater”, conta.

Os nomes não são divulgados para preservar a identidade da criança e da família, conforme prevê o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). A menina foi obrigada a conviver com o agressor durante quatro anos, período que durou o relacionamento da mãe com o padrasto. Ele foi embora depois da separação, no ano passado. A família disse que não registrou o caso na polícia por medo de ameaças.

“Ele me levou pra cama outras cinco vezes para colocar [o órgão genital] em mim, mas também passava a mão nas minhas partes toda vez que ia na minha casa. Eu não falava nada porque tinha muito medo de ele me matar”, conta a criança. “Hoje tenho medo de ficar sozinha em qualquer lugar”, acrescenta.

A cada hora, quatro crianças e adolescentes de até 13 anos são estuprados no país, segundo o Anuário de Segurança Pública 2019, produzido pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública com informações de todas as unidades da Federação. Outro levantamento, baseado no Sistema de Informações Hospitalares do Sistema Único de Saúde (SUS), mostra que, por dia, o Brasil registra seis abortos em meninas de 10 a 14 anos, estupradas.

EM AGOSTO DESTE ANO, RELIGIOSOS CONSERVADORES E GRUPOS DE EXTREMA DIREITA NO PAÍS PERSEGUIRAM UMA MENINA DE 10 ANOS QUE TEVE AUTORIZAÇÃO DA JUSTIÇA PARA REALIZAR ABORTO, NO ESPÍRITO SANTO. ELA FICOU GRÁVIDA APÓS SER ESTUPRADA PELO TIO, POR QUEM ERA VIOLENTADA DESDE OS 6 ANOS. O CRIMINOSO ESTÁ PRESO.

Estupro e aborto ainda são tabus no país, embora se permita a interrupção da gravidez em caso de estupro, ao lado de duas outras situações: anencefalia e risco de morte para a mãe. Ao arrepio das disposições legais, grupos extremistas se aproveitam para aprofundar suas batalhas ideológicas contra vítimas, deixando-as ainda mais vulneráveis, como ocorreu com a menina do Espírito Santo, que teve o nome divulgado indevidamente.

Só no primeiro semestre deste ano, o Ministério da Saúde registrou 642 internações de vítimas de estupro. Além disso, o Brasil tem média anual de 26 mil partos de mães com idades de 10 a 14 anos. Os dados são do Sistema de Informações Hospitalares do SUS. É crime fazer sexo com menor de 14 anos no país.

“Qualquer gravidez de uma menor de 14 anos é um estupro presumido. Isso significa que essa gravidez é resultado de uma violência sexual”, afirmou a antropóloga Débora Diniz, fundadora do Instituto Anis de Bioética. “Obrigar menina, tão miudinha, a se manter grávida é um ato de tortura do Estado brasileiro”, disse.

Em geral, os dados de crimes sexuais são subnotificados, já que nem todas as vítimas registram o caso na polícia ou procuram socorro de profissionais de saúde. Muitas vezes, nem dá tempo, já que também há casos de vítimas de estupro assassinadas pelos criminosos.

"Há uma naturalização desta violência. O pessoal já nem presta mais atenção em menina de 13 ou 14 anos grávida. O pessoal está começando a prestar atenção na gravidez de 10, 11 anos de idade", afirmou a advogada Luciana Temer, presidente do Instituto Liberta, que atua no combate à exploração sexual de crianças e adolescentes.

Em 2018, de acordo com o Anuário de Segurança Pública, o Brasil registrou mais de 66 mil casos de violência sexual, o que corresponde a mais de 180 estupros por dia. Entre as vítimas, 54% tinham até 13 anos. Foi a estatística mais alta desde 2009, quando houve a mudança na tipificação do crime de estupro no Código Penal brasileiro. O atentado violento ao pudor passou a ser classificado como estupro.

Naquele ano, o aumento nos casos de estupro teve sua maior parcela entre vítimas do sexo feminino (82%) e acompanhava uma alta em outras modalidades de crime contra mulheres, como feminicídio e agressão doméstica.

Nos últimos dez anos, o Brasil registrou, em média, uma interrupção de gravidez por razões médicas por semana envolvendo meninas de 10 a 14 anos. Em 2020, foram ao menos 34 ocorrências nesta faixa etária e, considerando mulheres de todas as idades, o número salta para 1.022.
“Enquanto o aborto não for tratado sob a perspectiva da saúde, enquanto houver julgamentos moralistas ou ele for abordado pelo viés religioso ou individual, vamos dificultar que meninas e mulheres tenham acesso à interrupção da gestação, que é um passo importante para sair deste ciclo tão traumático da violência sexual”, disse a defensora pública Paula Sant'Anna, coordenadora do Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher da Defensoria Pública de São Paulo.

Na avaliação da assistente social Nathália Diorgenes, que pesquisa aborto e racismo na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e atua na Marcha Mundial das Mulheres, o estupro está enraizado na estrutura social. “O estupro é um crime social. Um homem comete, mas toda a sociedade legitima. Quando essas coisas acontecem, você diz que o estupro nesse país é bem-vindo. Esse é o recado do fundamentalismo religioso”, lamentou.

Em meio a toda guerra ideológica, a educação sexual é o melhor caminho na prevenção da violência sexual, segundo a advogada Luisa Lins, que é integrante da Rede Nacional de Feministas Antiproibicionistas (Renfa) e da Frente Nacional Contra a Criminalização das Mulheres e pela Legalização do Aborto. “Não existe outra forma de proteção senão a educação sexual. Punir, prender e castrar não são formas de prevenção. A educação sexual é responsabilidade do Estado e de toda a sociedade para cuidar das crianças”, destacou.

No caso da vítima do Gama, citada no início desta reportagem, a família tenta agir para amenizar o trauma da criança com auxílio de professores da educação regular, que foram informados sobre o seu caso após ela apresentar muita dificuldade de interação social quando as aulas ainda eram presenciais. Um psicólogo também faz seu acompanhamento. “Meu sonho é me tornar advogada para defender quem não tem força”, conta a menina.


Propostas querem tornar crimes imprescritíveis e inafiançáveis

Mulheres se mobilizam para aprovação das Propostas de Emenda à Constituição (PECs) 64/2016, referente ao estupro, e 75/2019, que torna imprescritível e inafiançável também o feminicídio. O objetivo é tornar imprescritíveis e inafiançáveis, sujeitos à pena de reclusão, os crimes de racismo, estupro e feminicídio.

Por causa das limitações impostas pelo instituto da prescrição é possível que algumas vítimas não consigam ver punido criminalmente o agressor nem recebam a indenização por dano moral que lhes é devida. Vítimas de estupro têm até 20 anos após a prática dos crimes para denunciarem o agressor. Após esse prazo, o crime prescreve e o criminoso não pode mais ser punido. Em regra, na área cível, o prazo de prescrição é de 3 anos.

A PEC 64/2016 já foi aprovada no Senado e está em tramitação na Câmara dos Deputados desde agosto de 2017. Em sua justificativa, o texto observa que "o estupro é um crime que deixa profundas e permanentes marcas nas vítimas, sendo que a ferida psicológica dificilmente cicatriza". Além disso, de acordo com o texto, “a coragem para denunciar um estuprador, se é que um dia apareça, pode demorar anos”. Já a PEC 75/2019 segue a mesma linha da primeira e já foi aprovada pelo Senado, mas também ainda está em análise na Câmara dos Deputados.

“As vítimas continuam clamando por justiça e buscando formas de receber o devido ressarcimento pelos danos físicos e morais sofridos”, explica a advogada Luiza Nagib Eluf, que foi promotora e procuradora de Justiça do Ministério Público de São Paulo e secretária nacional dos Direitos da Cidadania do Ministério da Justiça, no governo de Fernando Henrique Cardoso.

Autora de sete livros, dentre os quais A paixão no banco dos réus (Editora Saraiva), Luiza escreveu um artigo e fez um apelo ao Congresso Nacional para aprovação das duas PECs. “A realidade dos fatos, no Brasil, não deixa dúvidas de que a Constituição Federal precisa ser aperfeiçoada para que a proteção aos direitos da mulher se torne, finalmente, uma realidade”, afirmou.


País terá cadastro de pessoas condenadas

Em sessão remota, o Senado Federal aprovou, no dia 9 de setembro, a criação do Cadastro Nacional de Pessoas Condenadas por Crime de Estupro, que deve conter, obrigatoriamente, características físicas, impressões digitais, perfil genético (DNA), fotos e endereço residencial da pessoa que recebeu condenação judicial. O texto seguiu para sanção do presidente Jair Bolsonaro (sem partido).

O Projeto de Lei 5.013/2019, de autoria do deputado federal Hildo Rocha (MDB-MA), também prevê que, em caso de condenado em liberdade condicional, o banco de dados deverá conter os endereços dos últimos três anos e as profissões exercidas nesse período. Na avaliação dos parlamentares, o cadastro é um avanço importante para frear "uma estatística assustadora no Brasil".

Para viabilizar o cadastro, o texto prevê a cooperação entre União, Estados e municípios para validação, atualização dos dados e acesso ao banco de informações. Os recursos para o desenvolvimento e a manutenção do cadastro serão do Fundo Nacional de Segurança Pública. As informações do cadastro devem simplificar e agilizar a investigação dos casos de estupro, além de servirem como instrumento de prevenção.

Código Penal
O crime de estupro é definido no Código Penal como "constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso". A pena é de reclusão de 6 a 10 anos.

A lei também define como crime de estupro de vulnerável "ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 anos" ou com "alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência". A pena é de reclusão de 8 a 15 anos.

O estupro e o estupro de vulnerável são crimes hediondos (Lei 8.072, de 1990). Por isso, são inafiançáveis e não alcançados pelos benefícios de anistia, graça ou indulto.

*Cleomar Almeida é jornalista, assessor de comunicação da FAP


RPD || Entrevista especial - Ex-secretário da Receita critica reforma tributária: 'Juntar tributos não é simplificar'

Entrevistado especial desta 23ª edição da Revista Política Democrática Online, Everardo Maciel avalia que a proposta de reforma tributária apresentada pelo governo Bolsonaro tem a intenção de cobrar mais do setor de serviços, que sofrerá com o aumento da carga

Por Caetano Araujo e José Luiz Oreiro

A reforma tributária voltou à pauta do Congresso Nacional neste segundo semestre de 2020. Além das propostas em tramitação na Câmara dos Deputados (PEC 45/2019) e no Senado Federal (PEC 110/2019), o governo Jair Bolsonaro enviou aos parlamentares um texto próprio para ser analisado. Como essas mudanças podem afetar o cidadão? O ex-secretário da Receita Federal durante os anos de 1995 a 2002 (Governo FHC), Everardo Maciel, responde a essa e a outras questões na entrevista especial desta 23a edição da Revista Política Democrática Online. Everardo Maciel também é consultor jurídico e professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP). Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista.

Revista Política Democrática Online (RPD) - A proposta da reforma tributária do governo não promete harmonização de tendências e, menos ainda, horizonte promissor para o contribuinte. Quais são os problemas centrais dessa proposta?  
Everardo Maciel (EM) -
Existem hoje três propostas de reforma tributária, em tramitação no Congresso Nacional: uma oriunda da Câmara dos Deputados (PEC nº 45); outra apresentada no Senado (PEC nº 110), e, por fim, a proposta de criação de uma Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), encaminhada pelo Poder Executivo, para a qual se solicitou tratamento de urgência no Congresso Nacional. Logo em seguida esse pedido de urgência foi retirado, alegando-se que ele estava obstruindo a tramitação de um projeto de alterações no Código de Trânsito. A alegação é claramente inverossímil.

O projeto de instituição da CBS, por sua vez, seria acompanhado de outras iniciativas, sempre anunciadas de forma imprecisa e jamais encaminhadas. Definitivamente, não sei qual é a proposta do governo. Por aí, já se pode ver a confusão que envolve o assunto.  
 

O PRINCIPAL PROBLEMA TRIBUTÁRIO BRASILEIRO, À LUZ DA MINHA EXPERIÊNCIA, É O PROCESSO TRIBUTÁRIO, QUE COMPROMETE A SEGURANÇA JURÍDICA E INIBE INVESTIMENTOS

RPD: Por que isso?
EM:
A matéria tributária é muito árida, o que faculta muitas especulações, em geral recheadas de chavões e dogmatismos, além de falsas ilações.  

Um chavão recorrente é a pretensão de simplificar o sistema tributário brasileiro. Essa pretensão se traduz, com frequência, em fusão de tributos. Juntar tributos não necessariamente simplifica. Um exemplo disso é a proposta de criação da CBS, a partir da fusão do PIS com a COFINS.  

PIS e COFINS são contribuições regidas por uma mesma legislação e pagas por um mesmo documento de arrecadação. A diferença se dá não no âmbito tributário, mas no da destinação das receitas. O PIS financia o seguro-desemprego, o abono salarial e o BNDES, e a COFINS é uma das fontes de financiamento da seguridade social.  

A determinação do valor a pagar na sistemática cumulativa do PIS/COFINS consiste em mera multiplicação de uma alíquota por uma base de cálculo. Já na CBS, proposta pelo governo, é bem diferente.  Veja o que estabelece o artigo 11 do projeto de lei: "É vedada a apropriação de crédito em relação a bens e serviços vinculados a receitas não sujeita a incidência ou isenta da contribuição...Na hipótese de haver bens e serviços vinculados simultaneamente a receitas que permitam e a receitas que não permitam a apropriação de tais credos, a vinculação a cada tipo de receita será feito por meio da aplicação de um dos seguintes métodos. ... Apropriação direta por meio de um sistema de contabilidade de custos integrado e vinculado com a escrituração". Evidente que não há nenhuma simplificação; ao contrário, a apuração se tornaria bem mais complexa.

A propósito, registro que o modelo cumulativo de tributação do PIS/COFINS, que se pretende extinguir, é justamente o que está sendo adotado para taxação dos serviços digitais em países da Europa e até da Ásia. Não é uma é tributação de consumo, mas de renda. No Brasil, ao tempo em que se diz que tributamos demasiadamente o consumo em comparação com a renda, se propõe, na PEC 45, fundir o PIS/COFINS com os impostos de consumo (ICMS, ISS, IPI).  Afirma-se uma coisa e se faz justamente o oposto, em completo desencontro entre o discurso e a ação.

RPD: Qual sua opinião sobre o imposto de bens e serviços, que seria uma espécie de IVA para a economia brasileira, uma das propostas que está no Congresso Nacional, baseada em estudo do Centro de Cidadania Fiscal? Resolve o problema tributário brasileiro? É uma má ideia?  
EM:
Eu acho uma péssima ideia. Repetem-se chavões. Há de se esclarecer que o IVA não é um imposto, é uma forma de extração. Tributação do imposto de renda no regime do real é um imposto sobre o valor agregado. O primeiro país do mundo que adotou no consumo o imposto do valor agregado até o varejo foi o Brasil, com o ICM, imposto que, entretanto, se deformou muito.  

A intenção é fundir PIS, COFINS, ICMS, ISS e IPI, mediante criação do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), que conviveria com um Imposto Seletivo, cuja base de incidência não é clara.  

Brasília - O ex-Secretário da Receita Federal do Brasil, Everardo de Almeida Maciel, durante audiência pública na CPI do CARF, na Câmara dos Deputados ( Marcelo Camargo/Agência Brasil)

"O MODELO CUMULATIVO DE TRIBUTAÇÃO DO PIS/COFINS, QUE SE PRETENDE EXTINGUIR, É JUSTAMENTE O QUE ESTÁ SENDO ADOTADO PARA TAXAÇÃO DOS SERVIÇOS DIGITAIS EM PAÍSES DA EUROPA E ATÉ DA ÁSIA. NÃO É UMA É TRIBUTAÇÃO DE CONSUMO, MAS DE RENDA"

Ora, o IPI já é um imposto seletivo. Caso se pretenda reduzir sua base de incidência, basta atribuir alíquota zero aos produtos que se pretenda desonerar por meio de um simples decreto. A única explicação para essa esdrúxula solução seria uma agenda oculta, como, por exemplo, acabar com a Zona Franca de Manaus e Áreas de Livre Comércio da Amazônia.

A rigor, as propostas de criação do IBS ou da CBS representam monumental redistribuição de carga tributária entre os setores, com inevitável repercussão sobre o preço dos bens e serviços.

Essa redistribuição não é divulgada. Omite-se convenientemente para interditar o debate, obrigando os estudiosos e os próprios contribuintes a fazerem os cálculos das repercussões, para, em seguida, veiculá-los na mídia e no Congresso.

RPD: Quem ganha e quem perde com essas propostas?
EM:
A lista de perdedores é imensa. Começa com os mais 850 mil contribuintes, tributados no regime do lucro presumido do IRPJ e cumulativo do PIS/COFINS, alcançando pequenos e médios prestadores de serviço, comerciantes e industriais. Nesse contingente, incluem-se os serviços de educação e saúde, o que inevitavelmente implicaria elevação dos preços das mensalidades escolares e das consultas médicas.  

Para justificar o aumento da tributação dos serviços de educação e saúde, argumenta-se que quem faz uso desses serviços são ricos, desconhecendo a imensa demanda da classe média. De mais a mais, essa oneração haveria de sobrecarregar o SUS e a rede pública de ensino, gerando custos para o setor público.

Outro alvo desse aumento de carga tributária é o agronegócio, precisamente o setor quem tem sustentado o modesto desempenho do PIB brasileiro. Pretende-se tributar o setor pesadamente, na contracorrente do que se faz no resto do mundo.  

No Brasil, 98% dos produtores rurais são pessoas físicas equiparadas a jurídicas, que produzem e vendem para a indústria processadora sem transferir crédito.  

A indústria processadora de produtos de origem animal e vegetal toma um crédito presumido, na apuração do PIS/COFINS, que varia de 40 a 60%.  

No projeto da CBS, o crédito presumido é reduzido para 15%, e se elimina a isenção dos insumos. Em decorrência, haveria redução da margem do produtor ou da indústria ou então elevação dos preços para o consumidor final, o que é lamentável.  

Na longa lista de perdedores, até o livro foi incluído. Desde 1946, o livro é desonerado de tributos, por força de um projeto apresentado por Jorge Amado, deputado constituinte eleito pelo Partido Comunista Brasileiro e integrante da bancada da Bahia. A remuneração de um escritor corresponde a 10% do preço de capa. A CBS pretende taxar os livros com uma alíquota de 12%, o que equivale a confiscar aquela remuneração. Além disso, os livros didáticos representam cerca de 50% do total comercializado, sendo que grande parte é adquirida pelos governos. Trata-se, portanto, de uma ideia estapafúrdia. Mais grave, sem nenhum valor arrecadatório.  

No projeto do IBS, as instituições financeiras são as principais ganhadoras, que seriam totalmente desoneradas da vigente tributação do PIS/COFINS, cujo montante anual é de 25 a 30 bilhões de reais.  

Acrescente-se que as propostas do IBS e da CBS preveem cobrança com alíquota única, que é a forma mais regressiva de tributação do consumo, como mostra estudo recente produzido pela OCDE. 

RPD: Existem problemas no ICMS e no ISS?  
EM:
Sim, existem, como de resto em todos os lugares do mundo. Por exemplo, as fraudes no IVA europeu, tão elogiado nestas bandas, chegam a 50 bilhões de euros anuais, de acordo com dados divulgados pela Procuradoria Geral da União Europeia no ano passado.  

O ICMS tem problemas relacionados com a grande diversidade de alíquotas nominais e efetivas, devolução de créditos acumulados. O disciplinamento do ISS é claudicante. E ambos carecem de regras para a prática da competição fiscal e prevenção da guerra fiscal.

A solução dos problemas desses impostos é perfeitamente viável pela via infraconstitucional, mantida a atual competência tributária dos Estados e dos Municípios.

Brasília - O ex-Secretário da Receita Federal do Brasil, Everardo de Almeida Maciel, durante audiência pública na CPI do CARF, na Câmara dos Deputados ( Marcelo Camargo/Agência Brasil)

"PARA JUSTIFICAR O AUMENTO DA TRIBUTAÇÃO DOS SERVIÇOS DE EDUCAÇÃO E SAÚDE, ARGUMENTA-SE QUE QUEM FAZ USO DESSES SERVIÇOS SÃO RICOS, DESCONHECENDO A IMENSA DEMANDA DA CLASSE MÉDIA. DE MAIS A MAIS, ESSA ONERAÇÃO HAVERIA DE SOBRECARREGAR O SUS E A REDE PÚBLICA DE ENSINO"

RPD: Como prevenir a guerra fiscal?
EM:
Aqui, se costuma confundir guerra fiscal com competição fiscal, que é algo inerente à história dos tributos em todo o mundo desde sempre. Guerra fiscal é a competição fiscal ilícita, contra a lei.  

A guerra fiscal do ICMS tomou corpo depois da Constituição de 1988, por dois motivos: primeiro, porque inexiste até hoje a lei complementar para disciplinar a concessão e revogação de benefícios fiscais, conforme previra aquela Constituição, preservando-se o regramento previsto na Lei Complementar nº 24, de 1975, cujas sanções pelo seu descumprimento tornaram-se letra morta em razão de mudanças constitucionais posteriores; segundo, porque a União demitiu de si a responsabilidade pela coordenação do ICMS, com a extinção do órgão por isso responsável, na reforma administrativa do governo Collor.  

Exigência sem sanção e tributação de índole nacional sem coordenação criaram as condições propícias para expansão da guerra fiscal do ICMS. O remédio para esse problema é tão somente editar a lei complementar, fixando os critérios para concessão e revogação de benefícios e as sanções pelo descumprimento, bem como restabelecer a coordenação nacional.

A proposta do IBS veda a concessão de benefícios fiscais, substituindo-os por subsídios consignados na proposta orçamentária anual. Isto é de um irrealismo atroz ou é uma forma dissimulada de extinguir a competição fiscal, indispensável à correção das desigualdades regionais de renda, como preconizado na Constituição. Qual investidor que vai fazer um investimento acreditando que durante dez anos os orçamentos anuais irão consignar subsídio para sua atividade, concorrendo com gastos públicos clássicos, como educação, saúde e segurança pública?   

RPD: E quanto à oportunidade do debate sobre a reforma tributário?
EM:
Creio que é um debate completamente inoportuno, que consome a atenção política e a energia política necessárias ao enfrentamento da pandemia e seus graves desdobramentos, em termos econômicos e sociais.

Afora isso, é uma discussão desabastecida de um diagnóstico do sistema tributário brasileiro, alternativas de soluções e mensuração dos impactos sobre contribuintes, preços e entes federativos.  

Se você quer tributar mais a escola e a consulta médica e reduzir a tributação de geladeiras, que o diga e abra a discussão na sociedade. O que não pode é tratar de matéria tão sensível, com agendas ocultas. Não foi apresentada uma página sequer mostrando as repercussões das propostas.

É completamente desarrazoado discutir reformas estruturais em meio a uma pandemia, com base em apresentações em PowerPoint e videoconferências. 

RPD: Qual é, então, o principal problema tributário brasileiro?  
EM:  
O principal problema tributário brasileiro, à luz da minha experiência, é o processo tributário, que compromete a segurança jurídica e inibe investimentos.

Só no âmbito federal, os litígios tributários, no final de 2018, totalizavam R$ 3,44 trilhões. Os processos de execução da dívida ativa representam 38% dos 80 milhões de processos em tramitação na Justiça brasileira.

Esses litígios têm três fontes: o fisco, o contribuinte e a indeterminação de alguns conceitos.  

A litigiosidade gerada pelo fisco decorre da inexistência de limites para o lançamento. Autos de infração insubsistentes geram custos financeiros e reputacionais apenas para o contribuinte. Não há sucumbência para o fisco. A solução para esse problema consiste em estabelecer a integração entre o processo administrativo e o judicial, como havia sido proposto por grandes tributaristas, como Rubens Gomes de Sousa, Gilberto Ulhoa Canto e Geraldo Ataliba. Essa integração permitiria que a parte vencida no processo administrativo pudesse requerer revisão da decisão em um tribunal do Judiciário.

A segunda fonte de litígio é o contribuinte. A possibilidade de questionamento da matéria tributária no âmbito do controle difuso de constitucionalidade, isto é, perante um juiz de primeira instância, pode gerar desequilíbrios concorrenciais entre contribuintes e insegurança jurídica, pois o tempo médio entre o ingresso da ação e o desfecho no STF é de 20 anos.  É nesse contexto que prospera a indústria das teses, pois a matéria tributária na Constituição tem extensão amazônica. Apenas como exemplo, o número de palavras do capítulo tributário da Constituição Brasileira é o dobro do número de palavras de toda a Constituição americana. É, por conseguinte, enorme a possibilidade de questionamento constitucional da matéria tributária.  

A terceira fonte de litígio são conceitos indeterminados que motivam controvérsias administrativas e judiciais, como planejamento tributário abusivo, dedutibilidade do ágio, interposição fraudulenta no comércio exterior.

Há claramente a necessidade de conferir-se nova construção normativa para esses conceitos, promovendo-se a resolução do contencioso atual por meio de transação.

Na pauta de problemas tributários, deve ser acrescentado o burocratismo, completamente esquecido nos projetos de reforma tributária. Por fim, há os problemas específicos dos tributos, como mencionado.   

RPD - Em relação aos perigos de expansão, fortalecimento, dos paraísos fiscais no mundo e o que isso pode trazer muitos problemas para nós, quais seriam as diretrizes do governo de forma a enfrentar esse problema?  
EM -
O Brasil foi o primeiro país do mundo que conceituou, objetivamente, paraíso fiscal. Em legislação de 1996, ficou estabelecido que paraíso fiscal é um país ou dependência que tributa imposto de renda da pessoa jurídica com alíquota igual ou inferior a 20%. Além disso, estabeleceu contramedidas para os negócios com paraísos fiscais, ao elevar de 15 para 25% a retenção na fonte nas operações de remessa e tornar obrigatório o ajuste por preços de transferência ainda que o negócio fosse realizado por empresas não vinculadas.

Somente em 1918, a União Europeia estabeleceu critérios para qualificar uma jurisdição tributária como paraíso fiscal. Ainda que tenha admitido a possibilidade de adoção de contramedidas, nenhum país as implementou, sem que fosse surpreendente, porque, na União Europeia, se encontram vistosos paraísos fiscais, como Luxemburgo e Irlanda.  

A erosão das bases tributárias, como deslocamento de lucros para paraísos fiscais, é seguramente o maior tributário contemporâneo. Dois exemplos dessa patologia: os investimentos diretos em Luxemburgo são equivalentes aos efetivados na China e nos Estados Unidos; os investimentos em empresa de fachada no mundo são maiores que o PIB da Alemanha e da China.

Esse problema é tão grave que, em 2013, o G-20, reunido em Moscou, decidiu conferir mandato à OCDE para desenvolver um programa chamado BEPS (Base Erosion and Profit Shifting), com o objetivo de indicar soluções para esse problema. Apesar de muito ambicioso, o programa não apresentou, até agora, nenhum resultado concreto.  

"A EROSÃO DAS BASES TRIBUTÁRIAS, COMO DESLOCAMENTO DE LUCROS PARA PARAÍSOS FISCAIS, É SEGURAMENTE O MAIOR TRIBUTÁRIO CONTEMPORÂNEO. DOIS EXEMPLOS DESSA PATOLOGIA: OS INVESTIMENTOS DIRETOS EM LUXEMBURGO SÃO EQUIVALENTES AOS EFETIVADOS NA CHINA E NOS ESTADOS UNIDOS"

RPD: Você considera os problemas da centralização tributária um óbice à reforma? E a progressividade dos nossos tributos é uma outra questão problemática?  
EM
: Começo com a centralização. É difícil falar se há ou não centralização tributária, quando sequer temos um federalismo fiscal bem estruturado. Não se sabe com clareza a repartição de responsabilidades públicas entre os entes federativos. Então como se falar em centralização? A precisa partilha de receitas coexiste com uma imprecisa e lacunosa repartição de encargos públicos.  

A previsão constitucional (art. 23, parágrafo único) para regulamentar por lei complementar o federalismo cooperativo jamais prosperou.  

Quanto à progressividade no sistema tributário, a verdade é que não existe estudo consistente sobre a matéria no Brasil. Os trabalhos divulgados estão assentados em hipóteses frágeis e juízos de valor questionável.

Cada vez se fortalece a convicção de que a progressividade melhor se efetiva pelo lado do gasto público.  

A despeito disso, há situações específicas de evidente regressividade no sistema tributário, como a extinta dedutibilidade da correção monetária do patrimônio líquido das empresas no âmbito do IRPJ. Por conta dessa regra, grandes empresas em circunstâncias de inflação elevada praticamente não recolhiam aquele imposto.  

A eliminação dessa dedutibilidade, em 1995, abriu espaço para adoção de inúmeras medidas, como a redução das alíquotas nominais do IRPJ, a adoção dos juros remuneratórios do capital próprio, a isenção na distribuição de resultados, a ampliação do limiar do lucro presumido, a instituição do Simples para as pequenas e microempresas, etc. Como consequência dessa reforma, entre 1996 e 2002, o IRPJ, como proporção do PIB, cresceu, 50% e a arrecadação teve um aumento de 117% acima do IPCA. Portanto, funcionou, deu certo.  


RPD || Editorial: Defesa da democracia e combate à corrupção

Sabemos todos que a saúde das democracias depende diretamente da eficácia na identificação de episódios de corrupção e na punição dos responsáveis, assim como na capacidade de prevenir a recorrência desses casos. Afinal, ordenamentos institucionais que se revelam impotentes nesses quesitos tendem a ter sua legitimidade junto aos eleitores corroída.

A história recente no Brasil demonstrou o acerto dessa premissa. Entre nós, a revelação progressiva das regras ocultas do financiamento da política levou à desconfiança crescente nas instituições, em particular nos principais partidos políticos do país e suas lideranças mais significativas. Em termos eleitorais, contudo, o resultado desse processo, até o momento, não foi a renovação das forças do campo democrático, a partir de novas regras e práticas, mas a vitória de uma coalizão retrógada, com componentes francamente autoritários, engajada no desmonte do tipo de Estado erguido a partir da Constituição de 1988.

Essa conjuntura delicada exige clareza das forças empenhadas na defesa da democracia em torno de pontos fundamentais.

Em primeiro lugar, cumpre reafirmar que a defesa da democracia permanece no centro da agenda política do País. Até porque, sempre, o grau de corrupção de um país é inversamente proporcional à qualidade de sua democracia. Não há serviço de inteligência nem tecnologias de informação e controle capazes de competir com a imprensa livre e plural, o Judiciário independente e a autonomia do Ministério Público.

Em segundo lugar, é preciso sempre lembrar que a contrapartida dos atores políticos face à independência do Judiciário é o acatamento de suas decisões, uma vez esgotada a possibilidade de recurso no interior de suas regras. Ou seja, a única atitude democrática em casos de denúncia de ilicitudes por parte de mandatários, candidatos ou dirigentes partidários é deixar com a Justiça a palavra final. E, no caso de a Justiça mudar de posição, passa a ser dela também a penúltima, além da última palavra.

Em outras palavras, a defesa da democracia exige a preservação da fronteira entre decisões da política, nas quais vigora o princípio da maioria, e decisões da Justiça, que dependem da aplicação das leis por um corpo de funcionários qualificado. A resposta democrática às falhas da Justiça é a reforma das regras, não a contestação das sentenças. A alternativa, obviamente indesejável, é a velha ilusão autoritária: a maioria, representada no chefe de Poder Executivo, não deve encontrar limites à imposição de sua vontade.

Decisões da Justiça não devem, portanto, ser obstáculo ao processo de convergência política das forças empenhadas na defesa da democracia. De outro lado, urge avançar no debate em torno da reforma necessária para combater a morosidade e maximizar a transparência e impessoalidade do Judiciário.


RPD || Rogério Baptistini Mendes: Política e cidadania em defesa da civilidade e da democracia

Governo Bolsonaro, como nenhum outro desde a redemocratização, atua despudoramente em função de seu grupo e entrega o destino dos demais membros da sociedade política à própria sorte, avalia Rogério Baptistini Mendes

O substantivo feminino civilidade diz respeito, entre outras coisas, às formalidades que os cidadãos adotam entre si para demonstrar respeito mútuo. Seu oposto, a incivilidade, remete à barbárie, à selvageria. Na obra O processo civilizador (1939), Norbert Elias aponta que civilização costuma designar a consciência do Ocidente em relação a seu tempo, de forma que outros tempos e outros povos, com outros costumes e práticas, seriam não civilizados. A confusão entre cultura e civilização, consolidada na modernidade, chega a seu ápice com a cultura de massas e parece emprestar sentido aos temores manifestados por Alexis Tocqueville quanto aos riscos do despotismo e do insolidarismo de uma massa de homens semelhantes em busca de pequenos prazeres, mas estrangeiros ao destino dos demais.

A polarização civilização e barbárie demarca grupos e sociedades humanas. Para além do caráter evolucionista da classificação, herdado do século XIX europeu, seu sentido está atrelado aos movimentos históricos e sociais emancipadores do homem, sendo o Iluminismo sua síntese. A construção de uma noção inclusiva e abrangente de humanidade, que daí deriva, não está dissociada das ideias dos antigos, mas as alarga. O cultivo do espírito pela filosofia encontra o método, as técnicas e a disseminação dos saberes contra a ignorância. A razão esclarecida abre seu caminho em meio às trevas e aponta para o reconhecimento mútuo dos seres humanos como portadores do mesmo destino e condição. É o que torna possível a convivência e, repugnante, o assassinato.

Do latim civis, civilização faz referência à cidade - para os gregos, lugar da vida política em oposição ao lugar da vida econômica. A distinção entre pólis (cidade) e oikos (núcleo econômico familiar) não deixa de iluminar a sensação de barbárie que acomete quem vive no Brasil. O governo federal, como nenhum outro desde a redemocratização, atua despudoramente em função de seu grupo e entrega o destino dos demais membros da sociedade política à própria sorte. Os exemplos abundam numa escala que vai do ridículo ao grotesco. E o que parece nonsense é, na verdade, visão de mundo derivada de um estado de coisas no qual negacionismo científico, violência contra adversários políticos, devastação humana e ambiental são interdependentes e complementares.

O processo que conduziu ao alargamento de perspectivas em direção ao Estado Democrático e sua dimensão civilizatória, contraditoriamente, amesquinhou as expectativas do brasileiro médio. Educado para o consumo, hoje ele confunde forma e conteúdo, substitui o longo pelo curto prazo, exagera a dimensão utilitária da vida e reduz a cultura ao entretenimento. Sua conduta é a contraparte do que lhe é cobrado em termos de repressão e desejos insatisfeitos. Numa sociedade na qual populistas de esquerda e de direita prometem e não tem como entregar, o senso de justiça termina subvertido, e a noção de público e de comum se esvanece diante das patologias do ódio e do ressentimento. Do “diferente de tudo que está aí” para o bolsonarismo, o caminho foi trilhado continuamente.

A subversão da pólis pela lógica binária que apostou na pedagogia do conflito, do “nós contra eles”, se fez acompanhar por patologias de um mercado que nunca integrou e se apresenta como lugar de resistência desregrada, incivilizada. Neste contexto, a cidade, lugar da política, é hostil, e os espaços são privatizados. Sob o manto de defesa da ordem, da propriedade e dos direitos do “cidadão de bem”, o bolsonarismo é a versão contemporânea do oikos. Na narrativa, o ambiente familiar, no qual cada um é o senhor, uma autoridade máxima, concorre com o público e o esvazia de sentido, transformando o país num verdadeiro acampamento de estranhos unificado em torno do messias com o qual se identificam.

A história não é uma marcha ascensional e unilinear, estando repleta de dificuldades e incoerências. Mas com ela se aprende. A partir dos ensinamentos do passado, da experiência e da apreciação racional, o homem civilizado e verdadeiramente livre se manifesta, constrói o presente e projeta o futuro. Na civis, no espaço público e em relação aos demais, é que a liberdade esclarecida e verdadeiramente emancipadora é exercida. Neste campo, que é o da cidadania, a democracia se fortalece e os mitos se espedaçam.

*Rogério Baptistini Mendes é sociólogo, pesquisador do LabPol -Laboratório de Política e Governo das Unesp/FCL-CAr.


RPD || Sergio Denicoli: Os robôs que nós amamos e que também nos amam

Na guerra narrativa das redes sociais, robôs militantes são os novos cabos eleitorais numa disputa de argumentos que passa pela repetição do meme. A narrativa que viraliza se sobrepõe às demais e, quanto mais disruptiva for, mais ela impressiona e ganha adeptos

Narrativa é a palavra do momento. Esqueçam memória, ciência, temporalidade. Esqueçam os fatos. Isso tudo foi eliminado pelo mais básico sofismo, que nunca esteve tão na moda. Faríamos inveja a toda a Grécia Antiga, sobretudo a Platão, que dizia que os sofistas não se preocupavam em estar certos, mas apenas em fazer com que todos estivessem de acordo com eles. Nos invejaria também Aristóteles, que definiu os sofismas como argumentos que parecem verdadeiros, mas não são.

Portanto, o que vemos nas redes sociais não é novidade alguma. É algo que há mais de dois mil anos já se sabia. A grande diferença é que hoje as tecnologias nos deram ferramentas de comunicação de grande alcance, que nunca estiveram tão acessíveis aos cidadãos comuns.

As figuras do editor, do professor, do curador, hoje não têm mais tanta importância. Qualquer um desfruta de credibilidade plena dentro de sua bolha de influência, mesmo que ela seja baseada em argumentos que não correspondam aos fatos.

É por isso que, ao analisarmos o que acontece na internet, temos que pensar sempre em guerra narrativa. E a disputa de argumentos passa pela magia da mimética, ou seja, da repetição, do meme. A narrativa que viraliza se sobrepõe às demais e, quanto mais disruptiva for, mais ela impressiona e ganha adeptos.

O problema é que a disrupção, quando chega à política, rompe com simbolismos que garantem a estabilidade baseada na diplomacia. Rompe, então, com a própria política, ao abrir mão dos seus rituais de negociação e sua representatividade democrática, para absorver o senso comum baseado em sofismas.

Em meio a essa guerra de pós-verdades narradas, entram em cena os robôs militantes. São eles os novos cabos eleitorais. E nós, eleitores, amamos os robôs, porque eles defendem nossos desejos, mas que os fatos insistem em atrapalhar. Há uma pandemia? Basta os robôs dizerem que não é verdade a gravidade da situação e está decretado o fim da quarentena. A Amazônia está em chamas? Chamem os robôs e os orientem a dizer que isso é uma mentira baseada em um complô internacional para nos roubar a floresta. Cientistas têm provas? Os robôs não acreditam nelas, porque tudo pode ser contestado com os mais básicos e convincentes argumentos.

E assim seguimos, nessa história de amor, com final certamente infeliz. Enquanto estivermos encantados pelos robôs, estaremos cegos de paixão. E, como Aristóteles mesmo nos disse, “a lei é a razão livre da paixão”. Ou seja, ainda estamos muito longe de voltarmos a avistar a firme terra do racional. Mas, quando a paixão acabar, sobrarão os corações despedaçados, ávidos pela verdade, que irá florescer em meio à terra arrasada, onde um dia os sofistas imperaram.

*Sérgio Denicoli é pós-Doutor em Comunicação e diretor da AP Exata – Inteligência Digital