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Desastre de Bolsonaro e incapacidade de governar são destaques da nova Política Democrática Online

Revista da FAP analisa o resultado das eleições em direção diferente a da polarização de 2018; acesso gratuito no site da entidade

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

O recado das urnas em direção oposta à da polarização de dois anos atrás, o desastre da gestão governamental de Bolsonaro que gerou retrocesso recorde na área ambiental e a incapacidade de o presidente exercer sua responsabilidade primária, a de governar, são destaques da revista Política Democrática Online de dezembro. A publicação mensal foi lançada, nesta quinta-feira (17), pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), que disponibiliza a íntegra dos conteúdos em seu site, gratuitamente.

Clique aqui e acesse a revista Política Democrática Online de dezembro!

No editorial, a publicação projeta o que chama de “horizonte sombrio”. “Na situação difícil que se desenhou em 2020, é preciso reconhecer que o governo obteve vitórias inesperadas. Conseguiu, de maneira surpreendente, eximir-se da responsabilidade pelas consequências devastadoras, em termos de número de casos e de óbitos, da progressão da pandemia em território nacional”, diz um trecho.

Em entrevista exclusiva concedida a Caetano Araújo e Vinicius Müller, o professor do Departamento de Ciência Política da USP (Universidade de São Paulo), José Álvaro Moisés, avalia que existe, no Brasil, um vácuo de lideranças democráticas e progressistas capazes de interpretar o momento e os desafios do país e que possam se opor com chances reais de vencer Bolsonaro nas eleições de 2022.

Moisés, que é coordenador do Grupo de Trabalho sobre a Qualidade da Democracia do IEA (Instituto de Estudos Avançados) da USP, o grande desafio da oposição para superar o Bolsonarismo é o de se constituir em uma força com reconhecimento da sociedade. Isso, segundo ele, para garantir a sobrevivência da democracia e, ao mesmo tempo, adotar estratégias adequadas para a retomada do desenvolvimento do País.

Outro destaque é para a análise do historiador e professor da Unesp (Universidade Estadual Paulista) Alberto Aggio, que avalia que “o Ano 2 – como dizem os jovens – ‘deu mal’ para Bolsonaro”. Ao final de 2020, diz o autor do artigo, o destino o presidente é cada vez mais incerto, com popularidade declinante e problemas políticos de grande magnitude. “Com a derrota de Donald Trump nas eleições presidenciais norte-americanas, perdeu seu principal referente ideológico”, afirma Aggio.

“O isolamento internacional do País é sem precedentes, depois de desavenças com a China e a União Europeia. Sob pressão, Bolsonaro estará forçado a uma readequação na política externa. Não haverá futuro caso não se supere a redução do Brasil a ‘País pária’ na ordem mundial, admitido de bom grado pelo chanceler Ernesto Araujo”, acrescenta o professor da Unesp.

Ex-ministro da Reforma Agrária, Defesa Nacional e Segurança Pública e ex-deputado federal, Raul Jungmann analisa, em seu artigo, a necessidade de dialogar e liderar as Forças Armadas na definição de uma defesa nacional adequada ao Brasil. Isso, segundo ele, “é um imperativo da nossa existência enquanto nação soberana”.  “Construir essa relação, levar a sério nossa defesa e as FFAA, assumir as responsabilidades que cabem ao poder político e as nossas elites, é também uma questão democrática, incontornável e premente”, assevera.

O conselho editorial da revista Política Democrática Online é formado por Alberto Aggio, Caetano Araújo, Francisco Almeida, Luiz Sérgio Henriques e Maria Alice Resende de Carvalho.

Veja lista de todos os conteúdos da revista Política Democrática Online de dezembro:

  • José Álvaro Moisés: ‘O Bolsonarismo entrou em crise porque ele não tem conteúdo nenhum’
  • Cleomar Almeida: Vítimas enfrentam longa via-crúcis no combate ao estupro
  • Charge de JCaesar
  • Editorial: Horizonte sombrio
  • Rodrigo Augusto Prando: A politização da vacina e o Bolsonarismo
  • Paulo Ferraciolli: RCEP, o maior tratado de livre-comércio do mundo
  • Paulo Fábio Dantas Neto: Em busca de um centro – Uma eleição e dois scripts
  • Bazileu Margarido: Política ambiental liderando o atraso
  • Jorio Dauster: Do Catcher ao Apanhador, um percurso de acasos
  • Alberto Aggio: Bolsonaro, Ano 2
  • Zulu Araújo: Entre daltônicos, pessoas de cor e o racismo
  • Ciro Gondim Leichsenring: Adivinhando o futuro
  • Dora Kaufman: Transformação digital acelerada é desafio crucial
  • Henrique Brandão: Nelson Rodrigues – O mundo pelo buraco da fechadura
  • Hussein Kalout: A diplomacia do caos
  • João Trindade Cavalcante Filho: O STF e a democracia
  • Raul Jungmann: Militares e elites civis – Liderança e responsabilidade

Leia também:

Confira aqui todas as edições da revista Política Democrática Online


RPD || Reportagem Especial: Vítimas enfrentam longa via-crúcis no combate ao estupro

Medo e preconceito desestimulam mulheres a denunciar crime em busca de justiça

Cleomar Almeida

“Fiquei travada. Ele começou a passar a mão em mim e falou para eu ficar quietinha, senão eu seria demitida por justa causa”. A cena permanece na cabeça de uma mulher de 32 anos, que, conta, saiu para confraternização de trabalho e foi estuprada, em 2019, pelo patrão, de 47 anos, no banheiro feminino, onde a entrada dele era proibida. “Quando o vi lá dentro, com a calça aberta, fiquei sem chão. Ele pensou que eu estava bêbada, mas não estava e lembro tudo”, afirma.

Depois do episódio, relata, a vítima foi embora para casa imediatamente e, desesperada, contou o caso a uma de suas amigas de trabalho, que duvidou dizendo que ela estava com “alguma alteração mental”. Enquanto a mulher era estuprada no banheiro, os demais colegas de trabalho sorriam e bebiam à mesa lá fora. Ela pediu para não ter a identidade divulgada e preferiu não divulgar a dele também. Ele foi inocentado, mesmo com imagens de circuito interno provando o momento em que ele entrou no banheiro feminino atrás dela.

Enquanto a mulher era estuprada no banheiro, os demais colegas de trabalho sorriam e bebiam à mesa lá fora.

Ao ser desacreditada pela própria amiga, a vítima iniciaria uma longa via-crúcis para superar um caminho onde haveria mais preconceito e dúvidas de seu relato do que acolhimento. Na manhã do dia seguinte, ela viu o segundo obstáculo em uma delegacia de polícia em Brasília, onde teve que contar o episódio no primeiro balcão para pegar uma senha e, depois, repeti-lo com detalhes para o escrivão, sem receber qualquer acolhimento de psicóloga ou outra profissional especializada. “É uma violência multiplicada, porque a gente é obrigada a se expor e sempre é colocada em dúvida”, lamenta.

A vítima, secretária-executiva, é uma das 66.123 pessoas que registraram boletim de ocorrência de estupro e estupro de vulnerável em 2019, de acordo com a 14ª edição do Anuário Brasileiro de Segurança, lançado em outubro deste ano. Em média, no ano passado, uma pessoa foi estuprada a cada 8 minutos, no país. É um dado maior que o revelado em 2015, quando a média era de um estupro a cada 11 minutos.

Os dados foram compilados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, baseados em informações das Secretarias Estaduais de Segurança Pública e Defesa Social dos Estados. De acordo com o levantamento, no ano passado, 85,7% das vítimas eram do sexo feminino. Em 84,1% dos casos, o criminoso era conhecido da vítima: familiares ou pessoas de confiança, como ocorreu no episódio que abre esta reportagem por se tratar de um patrão da vítima, com o qual ela tinha vínculo de trabalho havia 10 anos.

No Anuário Brasileiro de Segurança Pública, as pesquisadoras relatam que o número de estupro é ainda muito maior do que o registrado. A subnotificação ganha força diante de situações em que as vítimas não procuram as autoridades por medo, sentimento de culpa e vergonha ou até mesmo por desestímulo por parte das autoridades.

Em setembro deste ano, o próprio Judiciário foi palco de um caso que desestimula vítimas.  A jovem promoter Mariana Ferrer, de 23, vítima de estupro, foi humilhada pelo advogado Cláudio Gastão da Rosa Filho, defensor do acusado, o empresário André Camargo de Aranha. “Não adianta vir com esse teu choro dissimulado, falso, e essa lábia de crocodilo”, disse o advogado à vítima, em audiência por videoconferência, sob a vista grossa do juiz Rudson Marcos, da 3ª Vara Criminal de Florianópolis. O promotor Thiago Carriço de Oliveira sustentou a tese de estupro sem intenção. O acusado foi inocentado.

Somente após a repercussão negativa do caso na imprensa, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), que classificou como “grotescas” as cenas da audiência, instauraram procedimentos para investigar as condutas do juiz e do promotor por suposta omissão. A Ordem dos Advogados do Brasil em Santa Catarina (OAB-SC) também abriu investigação para avaliar a conduta de Gastão Filho. A reportagem não conseguiu contato dos três investigados.

“As chocantes imagens do vídeo mostram o que equivale a uma sessão de tortura psicológica no curso de uma solenidade processual", afirma o conselheiro do CNJ Henrique Ávila, no pedido que originou a investigação no órgão. Nenhuma das três apurações internas foi concluída ainda.

CNJ abriu procedimento para investigar condutas do advogado e do juiz no caso Mariana Ferrer após repercussão negativa na imprensa. Foto: Rômulo Serpa/CNJ

“O estupro é o único crime em que a vítima é quem sente culpa e vergonha. Pelas estimativas existentes, esse número pode ser até dez vezes maior, mas nos faltam estudos e pesquisas sobre o problema”, afirmam as pesquisadoras Samira Bueno e Isabela Sobral, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. “O Brasil ostenta números obscenos de violência de gênero”, alertam elas, no documento.

No caso da secretária-executiva desta reportagem, o acusado foi absolvido porque a Justiça entendeu que o exame de corpo de delito não comprovou que a conjunção carnal foi praticada pelo acusado nem identificou qualquer resquício de sêmen na roupa da vítima. No entanto, a lei define que estupro é “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”. Neste caso, o Ministério Público aguarda julgamento de recurso.

Em linhas gerais, a violência sexual pode ser definida como qualquer ato ou contato sexual onde a vítima é usada para a gratificação sexual de seu agressor sem seu consentimento, por meio do uso da força, intimidação, coerção, chantagem, suborno, manipulação, ameaça ou aproveitamento de situação de vulnerabilidade, seja em ato tentado seja em ato consumado.

No Brasil, a seção do Código Penal que trata dos crimes relacionados à violência sexual é denominada “Dos crimes contra a dignidade sexual”. Essa nomenclatura foi garantida pela Lei 12.015, de 2009, que substituiu a terminologia “crimes contra os costumes”. Além da mudança no nome, a lei trouxe um conjunto de importantes avanços no entendimento sobre os crimes relacionados à violência sexual no país.

O primeiro deles é a junção do crime de atentado violento ao pudor ao crime de estupro, conforme prevê o artigo 213. Esta modificação incluiu outros tipos de “ato libidinoso” ao conceito de estupro, antes restrito à conjunção carnal. Outra alteração foi a mudança na redação do artigo 213 do Código Penal, de forma que não se especificasse o gênero da pessoa passível de sofrer um estupro. Pela redação original, o crime de estupro podia ser praticado somente contra mulheres. Além disso, a lei incluiu o artigo 217-A, o estupro de vulnerável, entendido como a conjunção carnal ou ato libidinoso com qualquer pessoa menor de 14 anos.

Apesar dos avanços na lei, especialistas entendem que ainda pesa na sociedade uma perspectiva moralizante em torno das vítimas, muitas vezes culpabilizadas pela violência sofrida por causa do tipo de roupa que usavam e o fato de estarem na rua em determinado. Além disso, o machismo também tem reflexos sobre as relações conjugais, como se não fosse possível a uma mulher casada recusar uma relação sexual com seu cônjuge, como se o sexo fosse uma obrigação do matrimônio.

Na avaliação das pesquisadoras do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o combate ao crime de estupro deve ser alçado, com urgência, não só a uma prioridade governamental, mas incluído efetivamente no rol de ações reconhecidas pelas polícias como integrantes de suas missões e tarefas. “As polícias não podem continuar a achar que este é um tema privado ou que pouco podem fazer”, afirmam. Quem se sentir em risco ou for vítima pode ligar para o 180, número da Central de Atendimento à Mulher. A ligação é gratuita e sigilosa.


Ataques às vítimas são frequentes, criticam advogadas

Ataques às vítimas em julgamento de estupro têm sido cada vez mais frequentes no Brasil, segundo advogadas ouvidas pela Política Democrática Online. Muitas vezes, ressaltam, a própria investigação caminha para culpar as mulheres, fazendo a Justiça desacreditar delas, e os criminosos atribuem as acusações a alguma situação mal resolvida entre eles.

A advogada Jéssica Póvoa, que há 15 anos atua em defesa de mulheres estupradas no Paraná, diz ser comum a tentativa de desconstrução da imagem das vítimas. “Normalmente, questiona-se a roupa ou o comportamento delas, na tentativa de convencer o juiz de que elas consentiram com o ato”, afirma. “A vítima, infelizmente, se vê em uma situação em que é constrangida e obrigada a se defender, já que passa a se sentir acusada e não mais uma vítima", diz ela.

“A vítima, infelizmente, se vê em uma situação em que é constrangida e obrigada a se defender, já que passa a se sentir acusada e não mais uma vítima"
Jéssica Póvoa, Advogada

Em outros casos, segundo a advogada Aline Ribeiro, de uma organização não-governamental (ONG) em defesa de mulheres vulneráveis na Bahia, o acusado e os seus advogados exploram características pessoais da vítima que nada tem a ver com o processo criminal, numa tentativa de desviar o foco do Judiciário. “É uma excrescência jurídica porque, muitas vezes, a vítima, de fato, sai como errada ou louca”, lamenta a defensora.

Professora de Direito Penal e advogada há 22 anos, Maria do Socorro Cruz diz que, infelizmente, é comum advogados usarem a estratégia de desmerecer a vítima para endossarem tese de defesa em julgamento de crimes sexuais. "Sem qualquer escrúpulo, busca-se inverter o ônus da prova, sempre para intimidar a vítima ainda mais, fazendo-a acreditar que ela viu muita coisa ou que nada ocorreu”, critica.

“Em geral, o Brasil é muito punitivista, acusatório, um país que prende muito, mas, quando se fala de crimes contra a mulher, toda essa preocupação com a inocência do acusado aparece. Principalmente quando o que se tem como prova é a palavra da vítima”, observa o advogado Raimundo Sabino, de Goiás.


‘Estupro é normalizado em nosso país’, diz jornalista em livro recém-lançado

“Estupro é crime, mas é algo tão comum e normalizado em nosso país, que quem o sofre acha que é culpado por ele, uma vez que a sociedade em si também alimenta essa mentalidade.” A afirmação é da jornalista Ana Paula Araújo, em seu recém-lançado livro Abuso: a cultura do estupro no Brasil (320 páginas, Globo Livros). Na obra, a autora aborda o medo e a vergonha das vítimas, que muitas vezes são julgadas e culpabilizadas pela sociedade e pelo poder público, o que, frequentemente, dificulta as denúncias.

Ana Paula Araújo realizou mais de 100 entrevistas para o livro. Foto: TV Globo

Para detalhar como a cultura do estupro está enraizada no país, a jornalista – apresentadora do telejornal Bom dia, Brasil – realizou mais de cem entrevistas com vítimas, familiares, criminosos, psiquiatras e diversos especialistas no assunto. “Vi homens que acham o estupro absurdo, mas pensam que o que fizeram foi só um momento. Não se dão conta de que são estupradores”, afirmou à imprensa.

Foram quatro anos de pesquisa sobre o tema. Ela observou que, além de muitas vítimas não relatarem os casos às autoridades, as que conseguem forças para denunciar precisam lidar com um processo doloroso, que inclui desde os exames até o preconceito de médicos, policiais, parentes e amigos.

Na obra, Ana Paula mostra como os abusos sexuais são naturalizados no Brasil e de que forma as mulheres são vistas na sociedade depois que são violentadas. “As vítimas são ainda mais inibidas quando os casos ocorrem dentro da própria casa com pessoas próximas, como pais, padrastos e tios”, conta. Em muitos desses casos, os abusos sexuais são tão normalizados dentro do ambiente familiar, a ponto de a vítima se questionar sobre se o que aconteceu realmente foi um crime.

A própria jornalista perdeu a conta das vezes em que foi apalpada em locais lotados. Em um desses casos, tinha 18 anos e estava saindo da faculdade, em Niterói, região metropolitana do Rio de Janeiro, rumo à casa da tia, na Vila da Penha, na Zona Norte, quando acordou no ônibus com a mão de um passageiro em sua coxa. E o rosto do homem quase colado ao seu. Sua reação foi xingá-lo e mandá-lo viajar em pé.

“As vítimas são ainda mais inibidas quando os casos ocorrem dentro da própria casa com pessoas próximas, como pais, padrastos e tios”
Ana Paula Araújo, Jornalista

"Contei esse episódio porque é bem trivial na vida de todas as mulheres que usam o transporte público ou por aplicativo", disse a apresentadora carioca à imprensa. Formada em comunicação pela Universidade Federal Fluminense (UFF), destacou-se, em 2010, durante a cobertura da ocupação do Complexo do Alemão, quando ficou por oito horas ininterruptas no ar. Esse trabalho rendeu a ela e à equipe de jornalismo da Globo o prêmio Emmy Internacional.

Ana Paula afirma que cresceu ouvindo que deveria tomar cuidado e ficar atenta com homens. No entanto, segundo ela, a vida a ensinou que os homens é que precisam respeitar as mulheres e aprender o que é consentimento.


RPD || José Álvaro Moisés: 'O Bolsonarismo entrou em crise porque ele não tem conteúdo nenhum'

As eleições municipais de 2020 passaram o recado que vai na direção oposta da polarização ocorrida em 2018, que permitiu a eleição de Bolsonaro: Guinada ao Centro e criação de frente democrática progressista como itens necessários para vencer o Bolsonarismo em 2022

Por Caetano Araújo e Vinicius Müller

O professor do Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo (USP) e Coordenador do Grupo de Trabalho sobre a Qualidade da Democracia do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP, José Álvaro Moisés, avalia que existe hoje, no Brasil, um vácuo de lideranças democráticas e progressistas capazes de interpretar o momento e os desafios do País, e possam se opor com chances reais de vencer o presidente Jair Bolsonaro nas eleições de 2022.

Entrevistado especial desta 26a edição da Revista Política Democrática Online, o cientista político é especialista em temas como transição política, democratização, cultura política e sociedade civil. Publicou diversos livros de análises políticas como “Os brasileiros e a democracia” (Ed. Ática, SP 1995) ,"Democracia e confiança: Por que os cidadãos desconfiam das instituições públicas?" (edUSP), “O papel do Congresso Nacional no presidencialismo de coalizão” (2011), e "Crises da Democracia: O Papel do Congresso, dos Deputados e dos Partidos (2019), entre outros.

Para José Álvaro Moisés, o grande desafio da oposição para superar o Bolsonarismo - tanto os partidos de centro-esquerda como os da esquerda - é o de se constituir em uma força com reconhecimento da sociedade para garantir a sobrevivência da democracia e, ao mesmo tempo, adotar estratégias adequadas para a retomada do desenvolvimento do País. De acordo com o cientista político, isso envolve o enfrentamento das desigualdades sociais e a necessidade de promover o crescimento econômico.

Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista do cientista político José Álvaro Moisés à Revista Política Democrática Online:

Revista Política Democrática (RPD): Os resultados das eleições municipais apontam para uma transferência da liderança e das bandeiras carregadas historicamente por Lula e pelo PT aos candidatos de uma 'nova esquerda', como Boulos e Manuela D´Ávila?  

José Álvaro Moisés (JAM): Muito obrigado pela questão que aborda um tema de grande importância. Certamente, é uma perspectiva que se abre para os próximos anos e, nesse sentido, entender esse processo é muito importante para nos. Não tenho certeza se a liderança do Boulos tem solidez suficiente para substituir o que foi a do Lula. Isso se deveria, se ocorresse, ao envolvimento do PT e do próprio Lula com corrupção, ainda que saibamos pouco sobre como foi isso? Quando foi? Quais as provas, etc. Penso que parte do eleitorado brasileiro já deu uma resposta a essa questão. Por isso, emergiram Boulos e algumas outras lideranças jovens de esquerda, com algum conteúdo novo. Mas não acho ainda inteiramente claro qual é o rumo que vão tomar.  

A pergunta projeta para o futuro uma possibilidade que não sei se já temos suficientes elementos para responder com clareza. Será que é sólido? Penso que essa possibilidade está vinculada ao fato de que eleitores jovens e uma parte da classe média tem, digamos assim, uma atitude de rejeição em relação às políticas do PT, ao seu hegemonismo, à questão da corrupção e a todas as questões que ficaram sem resposta em tempos recentes, e que podem ter encontrado na liderança de Boulos em São Paulo, Manuela D'Ávila em Porto Alegre e, no caso de Recife, em nomes como de João Campos e da Marília Arraes, uma possibilidade alternativa em relação a esquerda representada pelo PT.  

RPD: Após a polarização que se consolidou no país a partir de 2013, parece haver um reajuste do processo eleitoral e político que mostra certo esgotamento desta polarização, algo como um refluxo. Haveria, assim, uma crise dupla, tanto do bolsonarismo quanto da 'esquerda'?  

JAM: Primeiro, acho sim que o bolsonarismo entrou em crise. O eleitor passou um recado que vai na direção oposta à polarização de 2018. Não quero entrar no mérito do impeachment da Dilma, mas creio que a polarização começou ali e que, de alguma maneira, se consolidou no resultado de 2018 com a ideia de que o Bolsonaro ocuparia um vazio que tinha sido deixado não só pela esquerda, mas também por todos os líderes democráticos. Vejo, assim, a adesão à candidatura de Boulos e à dos outros jovens líderes de esquerda que mencionei mais como resposta à ansiedade e ao espaço que uma parte da classe média e segmentos esclarecidos abriram em relação ao que aconteceu com o PT.  Contudo, o processo eleitoral de 2020 não fez um debate sobre a natureza dessa nova esquerda; muitos aderiram a ela porque foi uma alternativa que pareceu se contrapor ao que está aí, ao bolsonarismo.  

"O bolsonarismo entrou em uma crise que tem a ver com o fato de que ele não tem conteúdo nenhum, afora as questões clássicas de defesa da ditadura, de uma mentalidade autoritária, de uma visão exagerada em relação à questão da segurança"

À luz dessas considerações, não consigo responder com segurança à pergunta. Quer dizer, não vejo com clareza o que esta nova esquerda vai projetar, ou mesmo até onde é possível falar de uma nova esquerda. Creio, no entanto, que ela não vai encarnar o contraponto que permitiria que o bolsonarismo se reconstituísse. Acho que o bolsonarismo entrou em crise porque não tem conteúdo, afora as questões clássicas de defesa da ditadura, da tortura e de expressão de uma mentalidade autoritária, de uma visão radicalizada em relação à questão da segurança e tudo o mais que sabemos.

RPD: Neste novo arranjo, mais ao centro e produzido por um certo refluxo, quais seriam os principais temas e atores políticos que se destacam?  

JAM: O bolsonarismo refluiu da posição de extrema direita para o centro porque teve muitas derrotas no Congresso e por causa da crescente rejeição de parte dos eleitores. Está tentando migrar para um centro-direita para se salvar.  

Quanto as forças democráticas, também fomos, em certo sentido, mais para o centro. Os resultados da eleição apontaram nessa direção pelo lado das forças democráticas e progressistas. Agora, no caso do bolsonarismo - que está tentando ir para o centro - o problema consiste em saber onde ele vai encontrar um possível ponto de solidez ou de consolidação no conjunto dos partidos. A candidatura mais clara quanto a isso, como sabemos, são os partidos do Centrão, especialmente o Progressistas, o Republicanos e talvez o PSD.  

Mas o grande risco que vejo nesse quadro é o de o setor democrático e progressista, incluindo a esquerda democrática, não perceber inteiramente a natureza desse jogo. Não podemos cometer o equívoco de eventualmente deixar que o DEM seja atraído para o lado de Bolsonaro, o DEM e algumas outras forças, como o PSD de Gilberto Kassab - um caso mais difícil -, mas no caso do DEM, a possibilidade de se reposicionar em torno do bolsonarismo seria péssimo para o objetivo de levar o governo a uma derrota em 2022.  

Assim, não tenho dúvidas quanto ao refluxo do bolsonarismo na direção de um centro-direita. E, por isso, agir para trazer os liberais para o diálogo com o campo da perspectiva progressista é parte do objetivo de derrotar o bolsonarismo, um desafio seríssimo para os democratas.  

Nesse sentido, temo que a nova esquerda não seja capaz de perceber a natureza desse desafio e tente, a reboque de uma alegada solidez ao se supor capaz de substituir a figura de Lula, constituir uma alternativa para disputar diretamente com Bolsonaro, o que não acredito que teria sucesso. Creio que a média do eleitor brasileiro não aceitaria uma solução desse tipo.  

"O grande desafio que eu vejo é se o setor democrático progressista, a esquerda democrática, de alguma maneira não perceber, nós não podemos cair no risco de jogar eventualmente o DEM para o lado do Bolsonaro"

O ideal seria sermos capazes de compor uma frente democrática de setores liberais - a centro-direita liberal - com a centro-esquerda e, assim, construir uma solida alternativa capaz de enfrentar o bolsonarismo com sucesso. O bolsonarismo buscará sua solidez em torno do Centrão, vale dizer, do PP, Republicanos e talvez o PSD, mas seria bom que não fosse ajudado a ir além disso.  

RPD: Qual espaço para partidos tradicionalmente do centro, principalmente da centro-esquerda -  como o PSDB - neste novo centro político que parece se consolidar a partir de uma inclinação mais à centro-direita?  

JAM: Acho que o papel do PSDB é exatamente o de construir essa alternativa. Quer dizer, alguém na centro-esquerda, que esteja fora da centro-direita, tem, de alguma maneira, de fazer isso, levantar a bandeira de que é importante trazer o DEM para esse campo. Aliás, como disse o Rodrigo Maia, o centro não é um ponto único, o centro são vários pontos, e se nós quisermos trabalhar esse campo teremos de buscar o que você chamou de um equilíbrio capaz de unificar esses pontos do centro. Esse é o grande desafio que está posto tanto para uma parte da esquerda democrática, como para o PSDB. O papel da esquerda progressista, nesse sentido, é levantar o tema da frente para enfrentar Bolsonaro, insistir no tema e chamar para o diálogo as outras forças, e mostrar o quanto isso é fundamental para vencermos o bolsonarismo. A meu ver, esse é o caminho que nós deveríamos propugnar para que a esquerda democrática e progressista desempenhe sua missão nessa conjuntura.  

RPD: A construção de uma ampla frente democrática contra Bolsonaro continua na ordem do dia para as forças de oposição?  

JAM: Minha premissa é que o bolsonarismo não vai se desmilinguir por conta própria. Isso é uma presunção em relação a um governo que, em realidade, não tem rumo, tem muitos defeitos e muitas vezes comete crimes de responsabilidade que quase potencializam seu impeachment. Mas se desmilinguir por conta própria seria como se eles abrissem mão de governar. Isso não vai acontecer. E é por isso que o projeto da frente democrática tem de ser mantido.  

Algo que me surpreendeu nas eleições municipais deste ano foi o recado passado pelos eleitores. Rejeitaram as polarizações extremas e as perspectivas que preconizavam raciocinarmos politicamente com dois extremos. Além disso, também chamaram a atenção para a existência de um espaço de diálogo alternativo situado no centro. Deste ponto de vista, recolocaram o tema da frente na ordem do dia, como o revelam, de um lado, a sinalização de Ciro Gomes em relação ao DEM e, de outro, as conversações de Luciano Huck com algumas lideranças, inclusive com Sergio Moro. Um dos desafios dessas iniciativas é não qualificá-las de partida como sendo de esquerda ou de seu contrário, ainda que em política muito dependa da identidade dos atores que conduzirão as bandeiras.  

"Um dos aspectos do desafio de se constituir ou não essa frente é se a esquerda, inclusive a nova esquerda, insistir na ideia de que pode necessariamente sair sozinha"

Afora isso, a frente não poderá ser estritamente eleitoral. Terá de ser suficientemente abrangente para estabelecer as pontes que permitam construir uma alternativa de sentido positivo em torno de temas que os eleitores priorizam. Um deles é o enfrentamento da corrupção, o compromisso dos partidos com o seu combate. Outro é o enfrentamento das desigualdades, ou seja, quais desigualdades e como enfrenta-las? Será preciso buscar a maneira de mobilizar e interpelar o eleitor nessa direção. Desse ponto de vista, quem pode desempenhar esse papel são as forças democráticas progressistas. Esse é o desafio que teremos de enfrentar, e é preciso ter clareza de que esse é o problema fundamental da constituição da tão mencionada frente democrática.  

RPD:  Qual o papel do PSDB como operador da frente democrática, considerando seu movimento recente em direção à direita do espectro político?  

JAM: Penso que a coalisão que se formou em torno da candidatura do Bruno Covas indica um caminho e teve sucesso porque apontou na direção de uma aliança possível, em face de um esforço de alguns dos partidos de se reformularem, não tanto no sentido de uma recuperação de suas práticas tradicionais, mas no sentido de uma reacomodação em relação ao sentimento critico dos eleitores, ainda que um ponto débil do processo tenha sido a escolha do vice. Mas Bruno fez uma campanha clara e a coalisão o projetou como uma nova liderança no PSDB.  

Contudo, para se entender o papel que esse partido pode jogar em um plano mais amplo temos de pensar que há um problema aí. Qual é o problema? É que, por uma parte, o PSDB está sob algum efeito de hegemonia do governador João Dória, que não se caracteriza propriamente como uma opção progressista, está mais no campo de uma direita um pouco mais civilizada que Bolsonaro, mas que não tem preocupação, por exemplo, de manter a identidade social democrata do PSDB. Ao passo que, de seu lado, Bruno fez questão, na campanha, não só de fazer referência a lideranças históricas do PSDB, mas também a atores que precisamente representam esse conteúdo social-democrático. Não sabemos se isso levara a algum conflito, e tampouco se prosperarao as iniciativas de diálogo com o DEM com vistas a formação de uma frente democrática de conteúdo progressista. Nem mesmo sabemos, enfim, se o PSDB vai organizar-se para enfrentar Bolsonaro. Ainda é cedo para termos uma resposta em um sentido ou outro. Mas o importante é que as possibilidades estão abertas, quer dizer, inclusive a possibilidade de se constituir uma alternativa que vá na direção de uma aliança do PSDB com o DEM, incluindo, quem sabe, o MDB, como se fez no passado. A pergunta, portanto, é se em 2022 vai-se repetir o cenário de 2018, com candidaturas isoladas, ou se vai -se trabalhar na perspectiva de uma nova coalisão. Mas ainda não temos elementos suficientes para responder com segurança essas questões.    

"Ainda não vi, na personalidade destas lideranças que estão aí, nenhum elemento capaz de criar esse consenso que nós tanto necessitamos para enfrentar o bolsonarismo"

RPD: Até que ponto é possível supor que o debate ancorado em temas haverá de se sobrepor à tradicional “fulanização” das disputas eleitorais?  

JAM: Eu não sei se estamos, digamos assim, colocando mais ênfase nos temas fundamentais e menos nos personagens, ou na chamada “fulanização”. Não sei se temos suficiente material para dar uma resposta certa sobre isso. Acho que ambos aspectos estão se misturando nesse momento. O grande tema segue sendo o da formação da frente capaz de derrotar Bolsonaro. Nesse sentido, a temática da fulanização indaga, de alguma maneira, se temos um fulano - ou um nome ou alguns nomes - que unifique as forças democráticas, mas não vejo isso colocado. Desse ponto de vista, um dos desafios mais importantes que teremos será selecionar e definir quem poderá oferecer a alternativa capaz de construir a frente democrática com as características que precisamos que ela tenha, ou seja, de enfrentamento de Bolsonaro e seu conteúdo e, ao mesmo tempo, de enfrentamento da questão central dos progressistas, relativa a questão das desigualdades abismais que caracterizam a sociedade brasileira.

No momento, ainda não temos os nomes que se encaixam nesse projeto. O que indica, portanto, que parte do nosso desafio, além de construir a frente, além de enfrentar os divisionismos tradicionais de nossas forças e as tentativas de hegemonismo, implica em definir os critérios necessários para permitir indicar quem será capaz de mobilizar a sociedade e oferecer suficiente credibilidade para que os eleitores digam: "Nesse contexto, com essa experiência, com as características da coalisão formada, podemos depositar confiança nessa pessoa". Mas nenhum movimento político cria uma liderança em um curto espaço de tempo. Em certo sentido, esse processo terá de se dar com as lideranças que estão se apresentando nessa fase em torno dos nossos desafios, mas ainda não está claro quem construirá o consenso necessário para conduzir a empreitada de enfrentar o bolsonarismo. É tarefa das forças democráticas encontrar essa pessoa.    


RPD || Editorial: Horizonte sombrio

Na situação difícil que se desenhou em 2020, é preciso reconhecer que o governo obteve vitórias inesperadas. Conseguiu, de maneira surpreendente, eximir-se da responsabilidade pelas consequências devastadoras, em termos de número de casos e de óbitos, da progressão da pandemia em território nacional. Colheu os frutos do programa de transferência de renda decidido no âmbito do Congresso Nacional, na forma de elevação do percentual de aprovação junto aos eleitores. Finalmente, operou com sucesso a mudança radical de uma estratégia de confronto das instituições, que teria o golpe como único corolário possível, para o funcionamento novo, na forma de “governo parlamentar”, com apoio dos partidos classificads como “centrão”. 

Ao fim do ano, contudo, dois contratempos relevantes para os projetos governamentais emergiram. Em primeiro lugar, a derrota de Trump nas eleições americanas, retirando de cena o único contraponto possível aos retrocessos procurados deliberadamente nas relações com a China e a União Europeia. Em segundo lugar, a derrota contundente da grande maioria dos candidatos que obtiveram o apoio presidencial explícito nas eleições municipais de novembro. Aparentemente, em muitos casos o apoio declarado do Presidente teria funcionado como “beijo da morte”, afundando candidaturas até promissoras até aquele momento. 

Ambos os revezes acontecem às vésperas da passagem para um ano que promete elevar os problemas do país e do governo a outro patamar. No que respeita ao enfrentamento da pandemia, tudo indica que a incapacidade do governo federal para obter vacinas em quantidade suficiente e planejar sua aplicação ordenada no conjunto da população será desvelada. A situação que se avizinha é a de comparação cotidiana, completamente desfavorável para nós, com países que conseguirão vacinar a tempo sua população.  

Na perspectiva econômica, por sua vez, a situação inspira cuidados. O fracasso em conter a pandemia impede uma retomada consistente. Por outro lado, não é viável manter o auxílio no montante atual e a comparação nesse caso acontecerá entre o cidadão de 2020 que recebia um tanto e o de 2021, que passará a receber uma fração desse montante. 

Comparações desfavoráveis geralmente são fonte de insatisfação, com potencial para evoluir para rejeição e fúria no plano da política. Num quadro com essas características, índices de popularidade são os primeiros a desaparecer e, na sua ausência, o debate sobre o abreviamento do mandato presidencial pode tomar assento na agenda da política. À luz da experiência recente, esse é o cenário mais provável, num cenário de aprofundamento das diversas crises. No entanto, na perspectiva da experiência mais antiga, que anima setores relevantes do governo, a situação de tempestade poderia, paradoxalmente, reunificar os defensores da ordem a qualquer custo em torno do fortalecimento político do Presidente da República. 


RPD || Rodrigo Augusto Prando: A politização da vacina e o Bolsonarismo

Alheio às mais de 177 mil mortes por conta da pandemia e já em campo pela reeleição em 2022, Jair Bolsonaro politiza uma questão eminentemente de saúde pública em uma disputa com o Governador João Doria, seu concorrente direto

“Todavia não se pode dizer que haja virtude em exterminar concidadãos, trair os amigos, não ter fé nem piedade nem religião; pois é possível conquistar o poder por esses meios, mas não a glória”
Nicolau Maquiavel – O Príncipe

Provavelmente, o ano de 2020 seja palco não apenas de cenas dramáticas de uma pandemia que levou à enfermidade e à morte milhares de pessoas, mas, também, de uma das maiores evoluções no campo da ciência ao se permitir uma vacina em menos de um ano. Em 08/12/2020, na Inglaterra, foi iniciada a imunização de sua população. E nós, brasileiros, como estamos?

Em nosso país, houve uma conjugação de crises. Crise sanitária, advinda do coronavírus; crise econômica, consequência direta da pandemia; crise política e de liderança, cujo fulcro está nas ações e discursos de Jair Bolsonaro e dos bolsonaristas. Já sabíamos, desde os idos de 2018, que o então deputado Jair Bolsonaro trilhava o caminho sinuoso das redes sociais, especialmente, alicerçado sobre clima de ódio, medo e rejeição – todos característicos da eleição de 2018 – mas, ainda, seguia lépido e à vontade junto às fake news, negacionismos, pós-verdade e teorias da conspiração. Bolsonaro foi eleito, mas não governou nesta primeira metade do mandato.

Situação, provavelmente, inédita de um presidente que, por dois anos, confronta as instituições da democracia, os atores políticos e a própria sociedade e que, nos próximos dois anos, buscará sua reeleição. No bojo de seu presidencialismo de confrontação, Bolsonaro e os bolsonaristas foram, como todos nós, jogados numa situação pandêmica que suspendeu a normalidade de nossas vidas cotidianas. Estamos, todos (ou quase), em compasso de espera pela vacina capaz de nos imunizar, já que não há tratamento comprovadamente eficaz para os quadros mais graves da Covid-19. Desafortunadamente, a pandemia encontrou um presidente sem liderança, um governo que não governa e uma sociedade fraturada politicamente, quase em estado de anomia.  

A ciência, os especialistas, os intelectuais públicos, os jornalistas e a Política foram, nestes tempos de bolsonarismo, atacados e, inicialmente, muitos atribuíam às declarações de Bolsonaro uma perspectiva anedótica, caótica. Em Os engenheiros do caos (2019), Giuliano Da Empoli, asseverou que: “No mundo de Donald Trump, de Boris Johnson e de Jair Bolsonaro, cada novo dia nasce com uma gafe, uma polêmica, a eclosão de um escândalo. Mal se está comentando um evento, e esse já é eclipsado por outro, numa espiral infinita que catalisa a atenção e satura a cena midiática” (p.18). Segundo o autor, esse carnaval populista não é desprovido de método e tem, nos bastidores, os “engenheiros do caos”, cientistas especializados em Big Data, ideólogos e consultores políticos que sabem – e muito bem – o porquê de tensionar as regras da democracia e desacreditar a ciência e o jornalismo profissional.

O Brasil, com cerca de 177 mil mortos, como outros países, aguarda, em compasso de espera, uma vacina ou várias capazes de nos devolver à normalidade. O governo federal abençoa a parceria da Fiocruz com a Universidade de Oxford e o Laboratório AstraZeneca, mas ainda não estendeu apoio ao Estado de São Paulo, cujo Instituto Butantan vem desenvolvendo junto com laboratório chinês Sinovac a Coronavac. Uma questão eminentemente de saúde pública está sendo politizada no altar da disputa política que o Presidente Bolsonaro, já em campo pela reeleição em 2022, vem travando com o Governador João Doria, seu concorrente direto.

Doria acaba de desfechar golpe maquiavélico no Chefe de Estado. Anunciou que, a partir de 25 de janeiro próximo, São Paulo começará a vacinar profissionais da saúde, indígenas, quilombolas e todos aqueles, residentes ou não no Estado, demandaram as dezenas de postos de saúde especialmente montados para atender aos brasileiros. Quanto à autorização da Anvisa, o governador informa que, já este mês – dia 15, mencionou – passará à agência toda as informações e os protocolos necessários para assegurar que, no espaço de 40 dias, a autorização para a vacinação seja concedida, a não ser que haja obstrução política, vale dizer, do Planalto.  

 O cenário que se desenha é bem promissor para o Estado de São Paulo A vacina Fiocruz/Oxford apresentou problemas em seus testes, especificamente no que tange às doses aplicadas nos voluntários, e isto demandará mais estudos, atrasando a conclusão dos testes. Além disso, a produção desta vacina, segundo noticiado, dependerá da construção de uma fábrica, ou seja, de mais recursos financeiros do governo federal. Tal fato demonstra que os investimentos e a logística envolvidos não permitirão que vacinas estejam disponíveis em curto prazo, como a Coronavac em São Paulo. Governadores e prefeitos – há muito descrentes de qualquer liderança presidencial – já se articulam junto ao Butantan e ao Governo de São Paulo para garantir acesso à “vacina do Doria”.  

Não se descartam atos extremados, como a judicialização do tema via Supremo Tribunal Federal, com vistas a forçar o governo federal, em última instância, Bolsonaro, a adotar a Coronavac para todo o país.

O cenário em tela será, por anos, capaz de gerar estudos de caso sobre a liderança (ou falta de) na condução do combate à pandemia, estudos que, banhados em ironia, se poderão enriquecer com a leitura de Maquiavel e suas reflexões em O Príncipe.

*Professor e Pesquisador da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Graduado em Ciências Sociais, Mestre e Doutor em Sociologia, pela Unesp. 


RPD || Paulo Ferraciolli: RCEP, o maior tratado de livre-comércio do mundo

Acordo que permitiu a criação da Regional Comprehensive Economic Partnership (RCEP) deve consolidar o comércio e as cadeias de valor da Ásia e será maior que a União Europeia e o Acordo Estados Unidos-México-Canadá. Membros somam quase um terço da população mundial e 29% do Produto Interno Bruto (PIB) do planeta

A Parceria Econômica Regional Abrangente (ou Regional Comprehensive Economic Partnership - RCEP, na sigla em inglês), assinada em 15 de novembro, tem sido considerado um marco nas relações econômicas e na geopolítica dos países asiáticos. A impressão inicial é que estas relações serão cada mais determinadas por processos intra-asiáticos, o que ainda não significa, até agora, o completo afastamento das potências externas que atuam na região. Alguns aspectos e consequências deste acordo merecem ser conhecidos para facilitar seu acompanhamento futuro.

Um primeiro aspecto diferenciador do acordo é a liderança do processo, exercida pela Association of South East Asian Nations – ASEAN, composta atualmente por 10 membros com economias de dimensões bastante variadas. Dentre eles, apenas a Indonésia se destaca pelo tamanho de sua economia (maior do que a brasileira), seguida pela Tailândia com um PIB, medido em PPP, cerca de três vezes menor. Porém, o dinamismo econômico da região é notável. Por exemplo, a quinta maior economia da ASEAN, o Vietnã, após a adoção da política de “doi moi” (renovação), com aspectos semelhantes às políticas chinesas, vem crescendo a taxas anuais elevadas, sendo que, de 1990 até 2019, apenas em 1999 a taxa de crescimento anual foi inferior a 5%. São ainda membros da ASEAN, listadas por tamanho de suas economias, Malásia, Filipinas, Singapura, Myanmar, Camboja, Laos e Brunei.  

"Uma consequência deverá ser a expansão de cadeias regionais de valor. A RCEP surge num momento em que a concentração de grande parte das etapas das cadeias globais em um único país está sendo questionada"
Paulo Ferraciolli

Os seis participantes das negociações não membros da ASEAN - China, Índia, Japão, Coreia do Sul, Austrália e Nova Zelândia – se interessaram em participar do projeto, apesar de que os três primeiros tenham, cada um deles, economias muito maiores do que a de qualquer país do sudeste asiático. Ao final das negociações, a única defecção foi a da Índia que, em 2019, informou que o acordo não seria favorável a seus interesses e não se tornou signatário do RCEP. Duas razões ajudam a explicar a decisão de não participar: a falta de competitividade dos produtos indianos vis-à-vis os chineses e o aumento das tensões geopolíticas com a China. Contudo, esta segunda explicação fica enfraquecida, visto que estas tensões não impediram Narendra Modi de participar, com Xi Jinping, em novembro, da última Cúpula da Organização de Cooperação de Shanghai, na qual China e Índia são membros.  

Para o comércio, o RCEP é importante, ainda que muitos dos países participantes já tenham acordos entre si, pois cada um deles possui regras próprias. O RCEP buscou alterar esta situação, avançando na unificação de regras comerciais dentro do bloco. Por exemplo, as “regras de origem”, essenciais no comércio internacional e que eram diferentes nos acordos já existentes, passaram por um esforço de unificação para que as exportações se beneficiem das vantagens conferidas pelo RCEP a todos os participantes.

O capítulo sobre comércio de serviços apresenta regras mais liberais que as encontradas (quando existem) em outros acordos regionais. Um capítulo trata do “movimento temporário de pessoas naturais” necessárias à prestação de serviços, à venda de bens ou a investimentos, tema sempre espinhoso por sua correlação com políticas migratórias. Dentre muitos outros, merece destaque o capítulo sobre comércio eletrônico (e-commerce), que incentiva seu uso e encoraja aprimorar processos a ele relacionados, incluindo proteção de dados individuais e dos consumidores via e-commerce, além de manter a prática de não usar tarifas em transmissões eletrônicas.

Uma consequência deverá ser a expansão de cadeias regionais de valor. A RCEP surge num momento em que a concentração de grande parte das etapas das cadeias globais em um único país está sendo questionada, e a dicotomia “eficiência x resiliência” ganhou importância no processo decisório sobre a localização de novos investimentos. Um acordo que unificará mercados com bilhões de consumidores, onde há países com mão de obra barata, países tecnologicamente avançados e com a infraestrutura em expansão graças a grandes projetos de investimentos, como os da Belt and Road Initiative chinesa, torna a região bastante atrativa para empresas de todo o mundo.

 Notável é que a RCEP seja o primeiro acordo comercial que inclui os três principais países do leste asiático: o Japão não tinha acordos com a China e com a Coreia do Sul. Apesar das questões geopolíticas, os três consideraram relevante sua participação conjunta no acordo liderado pela ASEAN. Há outra tentativa de acordo trilateral entre os três países cujas negociações foram iniciadas em 2012, mas ainda não estão concluídas, esperando-se sua aceleração a partir da participação dos três na RCEP. Ao final de novembro, os ministros de relações exteriores da China e do Japão tiveram negociações por dois dias seguidos, o que indica tentativa de redução das tensões entre os dois países.  

Finalmente, vale destacar a posição dos EUA, que tentaram ditar as caraterísticas dos acordos comerciais asiáticos com sua liderança no TPP, o Trans Pacific Partnership, o tão citado “mega-acordo do Pacífico”, negociado por 12 países, no qual a China tentou participar, mas foi excluída por decisão de Obama. O TPP chegou a ser assinado por Obama em 2016, mas, antes de ser ratificado, Trump retirou os EUA do acordo em janeiro de 2017, o que reduziu muito de sua importância econômica e estratégica. Os 11 membros restantes aproveitaram parte significativa do que fora negociado num novo acordo, a CPTPP, Comprehensive and Progressive Trans Pacific Partnership, retirando do texto temas que haviam sido incluídos por pressão norte-americana, como cláusulas sobre propriedade intelectual e proteção a investimentos.  

A RCEP, ao que tudo indica, será fator de mudança da economia e da geopolítica da Ásia. Após a assinatura da RCEP, a grande novidade é que Xi Jinping anunciou que a China cogita em pedir adesão à CPTPP. O interessante é que este tema deverá ser tratado pelo Japão, que assumiu a liderança do acordo, após a saída dos EUA, e que tem na China seu principal parceiro comercial, além de ser membro da RCEP, como a China. Certamente, dado o relacionamento entre Japão e EUA, este novo posicionamento da China exigirá profundas reflexões estratégicas de Biden e seus assessores. 

*Engenheiro, mestre em economia e especialista em Relações Internacionais. Professor-convidado da FGV desde 2005. Membro de Conselhos da FIESP, FIRJAN e AEB, e membro do GT Manufaturas do CEBRICS. 


RPD || Paulo Fábio Dantas Neto: Em busca de um centro - Uma eleição e dois scripts

Eleições municipais mostraram que, para vencer Bolsonaro no pleito de 2022, será necessário uma candidatura capaz de dialogar embaixo e partidos que tenham papel aglutinador

Lemos e ouvimos sempre que eleições municipais têm lógica diferente de eleições para Executivos nacional e estaduais. Fenômenos comuns a 2016 e 2018 arranharam um pouco essa convicção. O sucesso do discurso anti-política, a força da onda lavajatista, o antipetismo como coalizão de veto e por aí vai, tudo isso se desdobrou e radicalizou entre 2016 e 2018. Agora, um ponto em discussão é em que medida 2020 reverteu 2016. Deve-se considerar o insucesso eleitoral dos discursos de polarização ideológica, da “nova política” como antipolítica, a menor relevância nas urnas do tema da segurança e a pouco peso do da corrupção. Também que o eleitorado valorizou eficácia nas gestões municipais, fator cuja importância foi potencializada pelo contexto da pandemia.

Mas não se pode excluir da análise importante elemento de continuidade entre 2016 e 2020: o fortalecimento eleitoral da chamada centro-direita, em sua diversidade. Aqui cabe distinguir uma centro-direita pragmática que recebe o apelido, muitas vezes impróprio, de centrão, e aquela que há tempos tem o DEM como sua expressão programática, postura que manteve esse partido, por mais de uma década, na oposição.  

Da análise desses fatores depende a resposta à seguinte questão: a reversão que tenha havido, em 2020, do “espírito” de 2016 restabelecerá o antigo grau de autonomia de eleições municipais, deixando supor que 2022, apesar da sinalização contrária de 2020, possa reiterar o quadro inóspito de 2018 ou o padrão de desconexão que vigorou dos anos 90 até 2016-2018 seguirá sendo violado, tornando 2020 capaz de prenunciar 2022 como 2016 prenunciou 2018?  

Analiticamente, é possível admitir as duas hipóteses. Politicamente, é interessante ver como reforçar a segunda. Uso aqui a chave toquevilleana que abre possibilidades a escolhas políticas, em condições gerais postas por um processo que os atores não controlam. Mas reforçar qual script de 2020? Há mais de um a delinear um realinhamento de forças. Uma bifurcação liga-se a diferenças persistentes de idioma entre a política de São Paulo e do resto do país.  

"O peso de São Paulo nas análises encobre movimentos de fortalecimento de outro tipo de centro moderado em Fortaleza, Recife, Rio e Porto Alegre, convergentes com o ocorrido, no primeiro turno, em Salvador"
Paulo Fábio Dantas Neto

Há duas versões acerca do desfecho do segundo turno das recentes eleições na capital paulista. A primeira, que a reeleição de Bruno Covas foi uma vitória do governador João Dória, o que estimularia uma aliança entre PSDB, DEM e MDB, com posição determinante do primeiro. Ela estaria em dupla polarização com o bolsonarismo e uma esquerda unida que teria encontrado em Boulos uma nova rota de navegação. A segunda versão é que Covas venceu apesar de Doria e que sua vitória pessoal aponta à possibilidade de o PSDB paulista adotar perspectiva mais ao centro e mais nacional, para superar dificuldades de trânsito de Doria, fora da centro-direita.  

O peso de São Paulo nas análises encobre movimentos de fortalecimento de outro tipo de centro moderado em Fortaleza, Recife, Rio e Porto Alegre, convergentes com o ocorrido, no primeiro turno, em Salvador. Nessas cinco cidades, DEM, PSDB, MDB e Cidadania estiveram juntos com o PDT e/ou o PSB, no primeiro e/ou no segundo turno. Em todas, venceram. Em Fortaleza a aliança chegou a englobar, no segundo turno, o PT. Nessas cidades, com diversas peculiaridades óbvias, há um desenho comum, diverso daquele que São Paulo sugeriu.  

Dessa bifurcação surge uma outra questão:  saber se esses movimentos apontam a um tipo de centro moderado que pode atrair São Paulo, em vez de gravitar em torno do contencioso paulista e do PSDB. Sinalizam a chance de uma frente ainda no primeiro turno, situada, de fato, ao centro, aproximando setores da centro-direita e da centro-esquerda. Isso pede uma candidatura capaz de dialogar embaixo e partidos que tenham papel aglutinador. Do nome, ainda estão longe. Quanto a partidos, é preciso conversar a sério sobre o DEM. Ele é tão central para essa rota Brasil-São Paulo como o PSDB e Boulos são para a rota São Paulo-Brasil. Para observá-lo, é preciso uma filmadora que capte seu movimento da centro direita ao centro, não flashs que o flagrem como um ator com “essência” de centro-direita.  

Essas cogitações sugerem balizas para um agir baseado no que aí está: governo relativamente enfraquecido e Presidente relativamente popular. Muito pode mudar se presidente e governo desabarem juntos numa crise econômica e social ou se, por oposto, o capitão surpreender e vier a ser também presidente. É incerteza intrínseca ao processo. Convém as oposições terem pés no chão, para lidar com o que há e olhos abertos para o que pode vir.

*Doutor em Ciência Política, bacharel em Ciências Econômicas e mestre em Administração. É professor da FFFCH/UFBA, onde atua como docente no Departamento de Ciência Política e no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais e, como pesquisador, no Centro de Recursos Humanos (CRH). Foi Vereador em Salvador (1983-1988), deputado estadual (1989) e secretário municipal de Educação (1994).  


RPD || Raul Jungmann: Militares e elites civis - Liderança e responsabilidade

O país convive hoje com um distanciamento entre o poder político, elites civis e as Forças Armadas, avalia Raul Jungmann. Enquanto o poder político se aliena das suas responsabilidades quanto à defesa da nação, os militares, por sua vez, passam a assumir a tutela da existência da nação, inclusive, sem uma liderança civil

Aos 18 dias de novembro de 2016, o Presidente da República, Michel Temer, enviou ao Congresso Nacional a Política e a Estratégia Nacionais de Defesa e o Livro Branco da Defesa Nacional, que nós, à época, tínhamos coordenado na qualidade de Ministro da Defesa que éramos. Dois anos depois, em 18 de dezembro de 2018, o Presidente do Senado e do Congresso, Senador Eunício Oliveira, enviou à Presidência da República os textos, para sanção. Considerando que seu governo estava praticamente findo, o Presidente Temer deixou para seu sucessor a assinatura presidencial que sancionaria os referidos textos.

O Presidente Jair Messias Bolsonaro, entretanto, entendeu que a Política, Estratégia e o Livro Branco eram projetos do governo anterior (e não de Estado, o que eles verdadeiramente são), e não os sancionou. Resultado, até hoje vigem os textos de 2012, até que os projetos em tramitação, referentes ao quadriênio de 2020 a 2024, sejam aprovados. Nós fomos o relator do que hoje é a Lei Complementar 136, que no seu bojo trazia uma novidade histórica. Pela primeira vez, o Congresso Nacional passaria a apreciar e, portanto, a ter o controle das diretrizes, objetivos e rumos da defesa nacional – algo que não consta da nossa Constituição Federal. Ao negociar as emendas à proposta original com o Ministro Nélson Jobim, imaginávamos o potencial que teria a análise das mais elevadas decisões quanto a nossa defesa e segurança por parte do parlamento e o diálogo histórico que se travaria entre o poder político e os militares, num claro avanço democrático. Em vão.

Ao longo de dois anos de tramitação, os textos de 2016 não foram objeto de nenhuma audiência pública. Seu parecer, emitido pela Comissão Mista de Inteligência, e não pelas Comissões de Relações Exteriores e Defesa Nacional das duas casas do Congresso, era, claramente, uma colagem das propostas, sem críticas ou aprimoramentos dignos de nota. Já sua votação, nas duas casas, foi simbólica e não nominal, sem debates ou pronunciamento dos líderes. O “histórico diálogo” e o consequente “avanço democrático” fracassaram melancolicamente...Por quê? São três os motivos principais.

As elites civis e o poder político do pais não vislumbram quaisquer ameaças no horizonte a nos  desafiar. E, vale lembrar, o nosso último conflito interestatal data de 150 atrás, a Guerra do Paraguai, se descontarmos nossa participação nas I e II guerras mundiais. Secundariamente, defesa e as FFAA não dão retorno político-eleitoral, sendo que as Forças, instituições de Estado, são impessoais, e seu efetivo é infenso a indicações políticas. Por fim, as intervenções militares ao longo da nossa história, sendo a última em 1964, e o fato que parte dos quadros dirigentes da política fizeram oposição ao regime militar, não estimulam pontes e diálogos. Em consequência, hoje existe um distanciamento entre poder político, elites civis e FFAA, que nos leva a uma dupla disfunção.

"Criação do Ministério da Defesa é uma exigência da guerra moderna, onde as forças singulares devem estar sob um comando único e superior a elas, como também em razão da complexidade, logística e dimensões adquiridas pelos conflitos bélicos, sobretudo após as duas guerras mundiais"
Raul Jungmann

De um lado, o poder político se aliena das suas responsabilidades quanto à defesa da nação, não a levando a sério. De outro, os militares, cuja “raison d’être” é justamente a defesa nacional, diante do alheamento do poder político sobre a nossa soberania, integridade e independência, passam a assumir a tutela da existência da nação. A segunda das consequências é que a defesa e as FFAA necessitam da liderança civil por bons motivos. Um, que cabe privativamente aos representantes políticos da nação, definir qual defesa necessitamos, seu rumo, estrutura e organização, em face de nossos objetivos nacionais e projeto de desenvolvimento. A segunda é que, sem que líderes civis em diálogo com os militares proponham mudanças, as FFAA, como toda grande corporação, tende a manutenção do status quo. Exemplo disso é o Ministério da Defesa. Sua elaboração levou 5 anos para se concluir, sendo iniciada no primeiro e concluída no segundo governo do Presidente Fernando Henrique Cardoso.

À época, havia forte resistência no meio militar a sua criação. Dentre outros motivos, porque os quatro ministérios militares existente passariam a se tornar comandos militares das Forças, sob a direção superior de um único ministro, que seria um civil. A criação do Ministério da Defesa é uma exigência da guerra moderna, onde as forças singulares devem estar sob um comando único e superior a elas, como também em razão da complexidade, logística e dimensões adquiridas pelos conflitos bélicos, sobretudo após as duas guerras mundiais. Tanto é fato que a maioria dos países desenvolvidos instituíram ministérios da defesa há décadas, inclusive os sul-americanos, a exemplo da Argentina e Chile.  

Cabe notar o que afirmamos: não fora a persistente liderança do poder político, a criação do Ministério da Defesa, uma necessidade militar, ressalve-se, não teria se tornado realidade.

Cabe recordar um outro exemplo. Declarada nossa independência em 1822, as elites Imperiais viram-se a braços com questões estratégicas para a constituição e o futuro do Estado nacional. Elas eram: a manutenção da unidade e integridade do território, a definição das fronteiras e o impedimento que Argentina, Bolívia e Paraguai viessem a formar um polo de poder ao sul, que nos contrastasse e fizesse sombra. Em todas essas complexas tarefas, a elite imperial saiu-se a contento e, em todas elas, fez uso das nossas FFAA.  Isto porque, além de ter um projeto de país a construir, elas tinham clareza quanto ao papel e orientação dar as Forças Armadas – algo que nossas elites atuais não possuem.

Findo o regime militar, as Forças Armadas recolheram-se aos quarteis e, durante um quarto de século, viveram num vazio estratégico, sem que lhes fossem atribuídas competências e rumos na nossa renascente democracia e num projeto nacional de desenvolvimento, o que só começa a mudar em 2008 com a 1ª. Estratégia Nacional de Defesa. Já o vazio de interlocução e de diálogo persiste. Na academia, mídia, sociedade, empresariado e no Congresso, raros são os que conhecem o tema defesa, dele entendem e têm diálogo com as Forças e militares. Os partidos políticos lhes dedicam rarefeitas e precárias linhas “de ofício”, meramente declaratórias. Não possuem especialistas, tão pouco unidades de estudo e proposição de políticas públicas. Nas eleições e debates nacionais, a defesa e FFAA primam pela ausência. Democratas de vários matizes delas guardam distância, com também raríssimas exceções.  

Dialogar e liderar as nossas Forças Armadas na definição de uma defesa nacional adequada ao Brasil, é um imperativo da nossa existência enquanto nação soberana.  Construir essa relação, levar a sério nossa defesa e as FFAA, assumir as responsabilidades que cabem ao poder político e as nossas elites, é também uma questão democrática, incontornável e premente.

*Ex-Deputado Federal, Ministro da Reforma Agrária, Defesa Nacional e Segurança Pública. 


RPD || João Trindade Cavalcante Filho: O STF e a democracia

O Supremo Tribunal Federal é um dos pilares da nossa estrutura democrática, sendo fundmental em temas como a defesa das minorias e no combate à pandemia, por exemplo, mas tem problemas e, em algumas situações, sua atuação rendeu críticas, avalia João Trindade

É conhecido que Ulisses, na Odisseia, pediu a seus marinheiros que o amarrassem ao mastro do barco a fim de que não cedesse ao canto das sereias. Trata-se de uma alegoria sobre renúncia, confiança, sobre a vitória da racionalidade contra o desejo. Também muito conhecida é a aplicação desta metáfora para o papel da jurisdição constitucional: Ulisses seria o povo; as sereias seriam os riscos do autoritarismo, e a tripulação representaria a jurisdição constitucional, os responsáveis pela guarda da Constituição.  

A pergunta que se faz é se, no barco brasileiro, Ulisses ainda confia em sua tripulação.  

O STF é, óbvio, um dos pilares da nossa estrutura democrática. Mas também tem problemas: decide causas demais, os ministros dão muitas decisões monocráticas, a Corte poderia e deveria ter uma jurisprudência mais estável, previsível, além de precisar, de tempos em tempos, praticar as “virtudes passivas”.  

Em algumas situações, o STF, ao invés de garantir a democracia, colocou-a em risco. Destaco a ADPF nº 402, ou “o dia em que um ministro do STF monocraticamente afastou um presidente de poder”, ocasião em que o Plenário da corte teve que, por assim dizer, “apagar o incêndio”, evitando uma crise institucional ainda maior.
João Trindade Cavalcante filho

No combate à pandemia, ao reforçar a descentralização política e assegurar o poder de governadores e prefeitos definirem as medidas sanitárias, o Tribunal evitou que o negacionismo do Governo Federal deixasse ainda mais mortos do que os 177 mil atuais.  

Noutras ocasiões, postou-se em defesa de minorias. Foi o caso da ADO nº 26, quando decidiu pela criminalização da homofobia e da transfobia. Porém, tal decisão é ambígua. Reforçou a defesa de grupos minoritários, mas, ao estabelecer um crime sem lei anterior que o defina, vulnerou um princípio milenar do direito penal (a legalidade). Teria sido melhor para Corte e para a democracia que se tivesse utilizado da técnica do “apelo ao legislador”.  

Em outras situações, o papel concreto do STF não foi tão positivo para a democracia. A Corte acaba de decidir sobre a impossibilidade de reeleição dos presidentes das casas legislativas dentro da mesma legislatura. Não deveria haver qualquer dúvida de que o art. 57, § 4º, da CF, diz o que efetivamente busca dizer. Permitir a reeleição dos dirigentes das casas legislativas por conta do reconhecido papel que desempenharam parece uma espécie de “casuísmo do bem”. Porém, mesmo os que votaram pelo respeito à literalidade do texto constitucional não o fizeram todos por respeito à Constituição, mas sim – alguns – por pressão da opinião pública. A tripulação cumpriu a ordem de Ulisses não por lealdade, mas porque, pega em flagrante pelo olhar do chefe, foi obrigada a retornar às posições.

Em algumas situações, o STF, ao invés de garantir a democracia, colocou-a em risco. Destaco a ADPF nº 402, ou “o dia em que um ministro do STF monocraticamente afastou um presidente de poder”, ocasião em que o Plenário da corte teve que, por assim dizer, “apagar o incêndio”, evitando uma crise institucional ainda maior. No caso do impeachmentde Dilma Rousseff, a polêmica decisão de “fatiar a pena” foi proferida numa sessão sob a presidência de um ministro da Corte. Em contraponto, não se pode esquecer que a Corte, durante todas as outras fases do longo processo de impeachment, cumpriu seu papel de guardião do procedimento, inclusive estabelecendo o “passo a passo” dos atos processuais.

Passamos incólumes por algumas sereias, mas a desconfiança de Ulisses em relação à tripulação não parece ter diminuído.  

Foi preciso que o próprio STF afastasse, por exemplo, interpretações tresloucadas que defendiam a possibilidade de uma “intervenção militar constitucional” (?). Uma leitura quimicamente aditivada do art. 142 da CF precisar de uma negativa expressa do mundo jurídico e da própria Corte já mostra que o canto das sereias é realmente tão atrativo quanto perigoso.

Recentemente, uma sereia chegou a tentar Ulisses oferecendo-lhe amordaçar a própria tripulação com a ajuda de um soldado e um cabo. Felizmente, nesse caso, Ulisses mais achou graça do que ficou tentado. Mas talvez seja o momento de a tripulação se concentrar em cumprir de forma cada vez mais denodada as ordens que Ulisses lhe transmitiu – nada mais, nada menos. Afinal de contas, toda a relação entre Ulisses e a tripulação é baseada na confiança recíproca. A nós, que queremos Democracia acima de tudo e a Constituição acima de todos, resta advertir Ulisses e cobrar da tripulação.

*Consultor Legislativo do Senado Federal. Mestre (Instituto Brasiliense de Direito Público) e Doutorando


RPD || Hussein Kalout: A diplomacia do caos

Política externa sob Bolsonaro se destaca pela irracionalidade, sem responder a interesses concretos do país, se pautando pelo combate frívolo a ameaças imaginárias, além de não refletir interesses ou valores nacionais, avalia Hussein Kalout

Desde a fundação da República, a política exterior do Estado brasileiro tem sido reflexo de consensos nacionais, balizada nos ditames do Direito e executada em conformidade com a dinâmica da ordem internacional. Pela primeira vez em nossa vida republicana, contudo, uma política externa destrutiva e irracional passou a ser implementada por meio de uma antidiplomacia, que, no lugar de buscar soluções, gera conflitos e tensões desnecessários.

Apesar da dissonância de visões ou de ênfases, ao largo dos diferentes governos republicanos, mínimos denominadores comuns uniam aqueles que assumiram a responsabilidade de formular os rumos da política externa nacional. O princípio da não-intervenção, o respeito à soberania do Estados, a defesa da autodeterminação dos povos e o respeito ao Direito Internacional compuseram as linhas mestras do processo decisório de nossa política exterior e guiaram a perseguição do interesse nacional desde pelo menos o Barão do Rio Branco.  

Hoje se assiste a uma ruptura com essa linha de continuidade. Não se trata de uma política externa simplesmente diferente. Trata-se, antes, da irracionalidade erigida como política de governo, uma vez que não responde a interesses concretos do país, mas se pauta pelo combate frívolo a ameaças imaginárias. Ao contrário do que apregoa, não reflete interesses ou valores nacionais, mas generaliza como visão nacional o que não passa de uma linha de pensamento marginal, cujo principal traço distintivo é a crença em teorias conspiratórias.

Essa política levou à destruição da reputação internacional do Brasil por meio da implementação de uma “estratégia” única: contra os perigos ilusórios do globalismo, supostamente refletidos nas instituições multilaterais e na aliança improvável de financistas, progressistas e grande mídia, que seriam os responsáveis últimos pela decadência do Ocidente, só restaria a alternativa da aliança subserviente com o governo Donald Trump. Trata-se de um equívoco monumental que seria risível se não fosse trágico.

Uma relação equilibrada e produtiva com os EUA é desejável e sempre foi o objetivo do Estado brasileiro. Mas o recurso à submissão não coaduna com a vocação de uma nação da envergadura do Brasil. É, na realidade, francamente contrária à vocação universalista da política externa brasileira e sua capacidade de dialogar e estender pontes com diferentes países, tanto desenvolvidos quanto em desenvolvimento, em benefício de nossos próprios interesses.

"Não reflete interesses ou valores nacionais, mas generaliza como visão nacional o que não passa de uma linha de pensamento marginal, cujo principal traço distintivo é a crença em teorias conspiratórias"
Hussein Kalout

Essa subserviência está por trás das posições, ações e omissões desastrosas de nossa política externa, em contradição com os dispositivos da Constituição. Alguns dos exemplos vergonhosos são o apoio a medidas coercitivas em países vizinhos, o voto na ONU pela aplicação de embargo unilateral em desrespeito às normas do direito internacional, o endosso ao uso da força contra Estados soberanos sem autorização do Conselho de Segurança das Nações Unidas, a compra por valor de face da narrativa norte-americana sobre o Oriente Médio.  

O projeto em curso, além de violar flagrantemente a Constituição Federal e seus ditames, impinge ao país custos irreparáveis como o desmoronamento de nossa credibilidade, perdas econômicas e fuga de investimentos.

Na área ambiental, o Brasil que era visto, desde Rio-92, como líder natural no tema do desenvolvimento sustentável, agora é tratado com “pária ambiental”. A medíocre participação na COP-25, em Madri, foi o mais puro retrato da imposição de um auto fracasso diplomático –– e de custos irreparáveis ao nosso país.  

No sistema multilateral, éramos reconhecidos como ícones do respeito a uma ordem internacional baseada em regras, mas hoje somos vistos como um Estado “rejeitado”. Em vez de reformar e fortalecer o multilateralismo, para aprimorar sua capacidade de encontrar soluções comuns para problemas compartilhados, preferimos tecer loas ao unilateralismo, em detrimento de nossos próprios interesses, uma vez que o Brasil, embora seja país grande, conta com o poder suave da persuasão e não com o poder duro da força para influenciar processos decisórios internacionais.

Na América do Sul, de indutores do processo de integração, passamos a apoiar aventuras intervencionistas e antidemocráticas. A relação entre Brasil e Argentina levou duas décadas para que as mútuas desconfianças fossem eliminadas, e a relação, estabilizada. Graças a uma diplomacia presidencial consciente de sua responsabilidade histórica, José Sarney e Raul Alfonsín, ainda nos anos 1980, puseram fim às fricções entre os dois países. A rivalidade deu ligar à cooperação. Como resultado, nasceu o Mercosul. Contudo, a abordagem ideológica e a tensão desnecessária com Buenos Aires podem arruinar as conquistas de uma diplomacia construtiva entre os dois países.

Prevalece, atualmente, o ceticismo em relação à integração regional, além do desprezo a qualquer iniciativa que não seja empreendida por governos afins ideologicamente. Com isso, o Brasil cede terreno a potências extrarregionais e abre mão da capacidade de defender seus interesses, como demonstra a retirada de todo o pessoal diplomático e consular brasileiro da Venezuela, um verdadeiro tiro no pé motivado pelo sectarismo.  

Na Europa ocidental, o Brasil perdeu seu peso gravitacional. Qual é o ganho em confrontar parceiros estratégicos e tradicionais como França e Alemanha? O acordo Mercosul-União Europeia e o projeto de ingresso na OCDE dependem, em boa medida, de amplo consenso entre os países europeus. A antidiplomacia atual somente afasta o país de seus objetivos estratégicos, ao hostilizar países essenciais para a própria implementação da agenda econômica do atual governo.

O papelão de nossa diplomacia diante da maior crise mundial de saúde é estarrecedor. A ausência de liderança, o desrespeito à ciência e às instituições de pesquisa científica e a desnecessária agressividade contra o nosso maior parceiro comercial que é a China, revelam o nível de degradação institucional. Atacar os chineses em um momento em que a nossa economia precisa preservar o escoamento de sua produção e garantir acesso a produto hospitalares é um crime lesa-pátria. O atrito com Pequim somente irá gerar desinvestimentos, declínio da produtividade e aprofundar o fosso do desemprego. É difícil encontrar uma justificava racional mínima para explicar tamanho despautério.  

A reconstrução da política exterior brasileira é urgente e necessária. Não há mais tempo a perder. O resgate dos princípios constitucionais das relações internacionais do Brasil não requer a reinvenção da roda, apenas o retorno à racionalidade e à nossa tradição diplomática, para que deixemos de lado a subserviência e a importação de conflitos que não nos pertencem. E para que o foco volte a ser no que interessa: a segurança, o bem-estar e a prosperidade do Brasil.

Sem os ingredientes do realismo e do pragmatismo não será possível construir qualquer projeto de política externa minimante defensável. Sem abandonar a ideologia, as fantasias e as alegorias fantasmagóricas que atualmente animam nossa “política externa” de corte fundamentalista, não será possível voltar a enxergar a realidade tal como ela é e não através de lentes psicodélicas. É preciso trabalhar para restaurar o corolário doutrinário da política externa. Devemos trazer a política externa ao seu leito tradicional, de Rio Branco a San Tiago Dantas, cujos elementos centrais foram consagrados pela Constituição Federal.  

Homens públicos de diferentes estirpes e crenças legaram ao país, por gerações e gerações, resultados tangíveis e amparados na melhor feição do patriotismo e da decência republicana. Para implementar uma política externa da destruição, ao arrepio dos princípios constitucionais, é preciso que se instale a amnésia diplomática, é imperativo que se desaprenda a fazer diplomacia, entendida como um método racional, implementada com base em memória histórica e institucional, enriquecida por uma tradição consolidada de maneira laboriosa por um corpo diplomático profissional.

Enfim, o que está sendo legado ao Brasil, desde o início da administração Bolsonaro, é a promoção de rupturas paradigmáticas nos cânones da política externa e, consequentemente, a tentativa de fundar um novo corolário doutrinário para expressar o interesse nacional sob o falso trinômio de liberdade, democracia e nacionalismo. Tudo para combater, em suma, o que se erigiu, fantasmagoricamente, de males que ameaçam o Brasil: comunismo, globalismo e autoritarismo. Essa diplomacia do caos e seus tentáculos obscurantistas cedo ou tarde têm encontro marcado com história.  

(*) Cientista Político, Professor de Relações Internacionais e Pesquisador da Universidade Harvard.  Secretário Especial de Assuntos Estratégicos da Presidência da República (2016-2018).  


RPD || Henrique Brandão: Nelson Rodrigues - O mundo pelo buraco da fechadura

Jornalista, contista, romancista e considerado por muitos críticos como o maior dramaturgo brasileiro do século XX, Nelson Rodrigues continua um verdadeiro gigante 40 anos após a sua morte

Há quarenta anos, em dezembro de 1980, morria Nelson Rodrigues. Os jovens talvez não se deem conta da dimensão de seu talento. Foi um gigante.  

Nelson atuou em várias frentes. Sua obra teatral é monumental: deixou 17 peças, algumas delas marco do teatro brasileiro, como Vestido de Noiva, de 1943. É considerado por muitos críticos o maior dramaturgo brasileiro do século XX.  

Autointitulava-se um eterno menino. A abordagem que fazia das relações humanas passava pelo filtro do garoto que observa o mundo de um lugar especial. “Nasci menino, hei de morrer menino. E o buraco da fechadura é, realmente, a minha ótica de ficcionista. Sou (e sempre fui) um anjo pornográfico”.

Antes de mais nada, Nelson Rodrigues era um jornalista. Tudo o que produziu teve no jornalismo sua gênese, até mesmo as peças teatrais. Passou a vida nas redações. O pai, Mario, foi dono de A Manhã – onde Nelson começou a carreira, aos 13 anos – e depois, de A Crítica. Daí não parou mais. Trabalhou em vários veículos da imprensa carioca. Entre os anos de 1950/60, chegou a escrever três colunas diárias em diferentes jornais.  

“Nasci menino, hei de morrer menino. E o buraco da fechadura é, realmente, a minha ótica de ficcionista. Sou (e sempre fui) um anjo pornográfico”
Nelson Rodrigues

Rui Castro, autor de biografia considerada definitiva (Anjo Pornográfico – A vida de Nelson Rodrigues), estima que, em 55 anos de jornalismo, “é provável que nenhum outro escritor brasileiro tenha produzido tanto”. Os números são eloquentes: além das 17 peças, reencenadas várias vezes, escreveu um romance (O Casamento) e oito folhetins, alguns assinados com pseudônimo (Suzana Flag e Myrna), bem como milhares de crônicas, reunidas em diversos livros – tudo produzido nas redações de jornais.  

As adaptações cinematográficas das peças atraiu cineastas de diversos perfis: Leon Hirszman (A Falecida, 1965); Arnaldo Jabor (Toda Nudez Será Castigada, 1973 e O Casamento, 1975); Neville de Almeida (A Dama do Lotação, 1978 e Os Sete Gatinhos, 1980); Bruno Barreto (O Beijo no Asfalto, 1980), entre outros. A mais recente estreou há pouco no circuito cinematográfico, em plena pandemia: uma adaptação de Boca de Ouro, dirigida por Daniel Filho.

Até quem não gosta de futebol se delicia com suas crônicas esportivas. Antológicas, não perderam a atualidade. E por que não, passado tanto tempo? Porque Nelson Rodrigues não se referia a minúcias dos jogos. Ele captava a essência da partida em momentos mágicos, o embate futebolístico como espetáculo único, com seus personagens próprios – um acontecimento que se renovava a cada disputa, mesmo que elas se repetissem todas as tardes de domingo no Estádio Mario Filho (gostava de citar o nome do irmão, falecido antes dele e que dá nome ao Maracanã, por quem Nelson tinha adoração). Inventou, por exemplo, o Sobrenatural de Almeida, “entidade” capaz de modificar bruscamente alguma situação durante uma partida de futebol. Adorava o Fla x Flu: com suas crônicas, ajudou a criar a mística em torno deste clássico do futebol carioca.

Antes do golpe de 1964, Nelson não metia a colher na política. A partir de 1968, contudo, começou a implicar com quem fazia oposição aos militares. Revelou-se anticomunista ferrenho, apesar de ter convivido com jornalistas de credo diferente, como Antônio Callado, a quem chamava de “doce radical”. Dom Helder Câmara e Alceu Amoroso Lima, da linha progressista da Igreja Católica, foram alguns de seus alvos preferidos. Outros, os jovens religiosos católicos que, em trajes civis, participavam das passeatas em oposição à ditadura, rotulados de “padres de passeata” e “freiras de minissaia”. Chamado de reacionário, aceitou a pecha de bom grado, pois adorava uma polêmica. O Reacionário (1977), aliás, é o título de um de seus livros de crônicas. Nos últimos anos de vida, acabou revendo posições e passou a defender a anistia, após a prisão e a tortura do filho Nelsinho pelos militares.  

Suas peças são um primor de denúncia da hipocrisia reinante. Imoral, sem vergonha, tarado, lascivo, pornográfico, são epítetos com os quais, a cada estreia de uma peça, Nelson Rodrigues foi brindado pelos setores defensores da “moral e dos bons costumes” da sociedade carioca – provavelmente proferidos por uma “grã-fina de narinas de cadáver”, uma das criações geniais do cronista implacável.  

Além de dramaturgo, jornalista, contista, romancista e cronista, Nelson Rodrigues era um frasista de mão cheia. Talvez o maior da língua portuguesa. Suas tiradas caíram no gosto do povo. Continuam atualíssimas, sínteses do que há de melhor e pior na alma humana.

Uma breve amostra de suas frases, retiradas do livro organizado por Rui Castro: Flor de Obessão – As 1000 melhores frases de Nelson Rodrigues.

“Dinheiro compra tudo, até amor verdadeiro”

“Toda a unanimidade é burra”  

“Invejo a burrice, porque eterna”  

“No Brasil, quem não é canalha na véspera é canalha no dia seguinte”

“A única nudez realmente comprometedora é a da mulher sem quadris”

“Ou a mulher é fria ou morde. Sem dentada não há amor possível”

“O marido não deve ser o último a saber. O marido não deve saber nunca”

“Todo tímido é candidato a um crime sexual”

“Sem sorte não se chupa nem um chicabon”

“A pior forma de solidão é a companhia de um paulista”

“O FlaxFlu começou 40 minutos antes do nada. E, então, as multidões despertaram”

“No Maracanã, vaia-se até um minuto de silêncio”

“O videoteipe é burro”

“Brasília é outro país, quase outro idioma”

“Não há, no mundo, elites mais alienadas do que as nossas”

“De pé, ó vítimas da fome. Mas aprendi que a fome não deixa ninguém de pé, nunca”

“A fome é o mais antigo dos hábitos humanos”