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FAP Entrevista: Paulo Fábio Dantas
Esperar unificação ou até mesmo impermeabilidade política da Justiça brasileira neste ano de eleições parece algo distante da realidade, acredita Paulo Fábio Dantas
Por Germano Martiniano
A insegurança no meio jurídico decorrente da politização do Judiciário neste ano de eleições presidenciais - com exemplos como a tentativa de soltura do ex-presidente Lula por meio de uma ação do desembargador Rodrigo Favreto (TRF-4), numa manobra política liderada por três deputados petistas - aliada à ausência de uma alternativa concreta do centro democrático brasileiro na disputa do principal cargo do executivo brasileiro foram os principais temas discutidos com o cientista político Paulo Fabio Dantas na entrevista da semana da série FAP Entrevista. A série, que a Fundação Astrojildo Pereira está publicando, aos domingos, com intelectuais e personalidades políticas de todo o Brasil, tem o objetivo de ampliar o debate em torno do principal tema deste ano: as eleições.
Com mestrado em administração pela UFBA (1996) e Doutorado em Ciências Humanas/Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro/IUPERJ (2004), Paulo Fábio Dantas acredita que é ingenuidade se esperar unificação da Justiça brasileira. “Isso não me parece realista e mesmo em tempos de calmaria, é um conto da carochinha. Como seria possível (caso fosse desejável) que o STF, cimo de um Poder, ficasse alheio à temperatura política? O que é anormal é se permitir que ele exerça poder normativo para além da Constituição”, avalia.
Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista:
FAP Entrevista - Como o senhor avalia essa sistemática insistência do PT em desmoralizar a justiça brasileira para soltar Lula?
Paulo Fábio Dantas - Factualmente o problema é anterior à prisão de Lula e não envolve apenas o PT. Desde o final da década passada acumulam-se, lentamente, sinais de alteração da tradição política brasileira, marcada pela adoção do entendimento e da conciliação como método preferencial para a prevenção ou resolução de conflitos. Antes da crise dávamo-nos ao luxo de especular se isso era bom ou ruim e as avaliações variavam, tendentes a sopesar aspectos em uma e em outra direção, crendo todos que as mudanças eram processuais, das políticas sociais ao combate à corrupção. Mesmo após o processo do Mensalão, ao país aparente parecia bastante a prisão de José Dirceu se ela permitia seguir crendo que Lula não sabia de nada. Mas desde 2013, com a não resposta da elite política (governo e oposição) às manifestações de rua e, principalmente, após a entrada em cena da Lava-Jato, em diferentes pontos do espectro político e dos ambientes institucionais prospera a subversão daquela tradição. Sistema político e sistema de Justiça estão em aberto conflito desde que ficou claro, de um lado, que a PF, o MPF e setores do Judiciário optaram pelo caminho de uma faxina ao molde de uma “revolução moral” como base para uma “refundação da República”, encontrando para tanto uma ampla cobertura midiática que potencializou predisposições moralistas presentes na sociedade; por outro lado também ficou claro que, como seria de esperar, o sistema político não se deixaria abater sem luta.
A situação tornou-se mais grave porque essa reação da elite política não foi politicamente articulada e até aqui assume a feição de um salve-se-quem-puder. E aí sim, o PT assume protagonismo, seja por ter sido o alvo inicial da operação moralizante, seja porque tem alta expertise em matéria de construção e desconstrução de inimigos. Sua vocação política, desde o berço, é a da combatividade a partir da auto referência, como de resto é a vocação de parte amplamente majoritária da esquerda brasileira, que ainda não assimilou historicamente, o golpe de 1964 e vive parada naquela estação, em busca de desforra. Não consegue enxergar o imenso passo à frente, o virar de página histórico dado pela transição democrática dos anos 70 e 80. A velha esquerda populista e o PT entraram em simbiose há duas décadas e o resultado é esse aí: um misto de voluntarismo, corporativismo, hegemonismo e ressentimento a que se dá o nome de “resistência”. Lula solto ou Lula preso passou a simbolizar a resiliência ou a ultrapassagem dessa agenda retrô. Penso que o pronunciamento do eleitorado é crucial nesse instante para decidir como sair do ponto morto em que entramos esse ano, desde que tanto o Fora Temer quanto a agenda positiva do governo Temer perderam a vez e o sentido. O fim do Fora Temer convoca o PT às urnas, por mais que Lula tente desviar o partido desse caminho. E o fim da agenda do governo reduz o horizonte da pinguela a um juntar de cacos. Foi assim, está sendo assim. O que se pode fazer? Tocar a vida como ela é, porque por enquanto temos o principal: democracia.
O Judiciário, por sua vez, também não está unificado, como se pode ver por meio de ações de ministros e desembargadores, por exemplo, que se valem de seus ofícios para beneficiar certos políticos e partidos. Aonde chegará essa politização da Justiça?
Penso que chegará até onde a política como vocação (profissão) permitir, pela ação ou pela omissão. E isso está ligado à confecção do cardápio eleitoral (missão da elite política), ao modo de servi-lo aos eleitores (missão dos candidatos e suas campanhas) e ao efeito digestivo pós eleitoral, que é sempre uma interação entre o que se come, como se come e a saúde precedente de quem come. Nos intestinos do eleitorado abundam maus sinais, tanto de constipação por má digestão, quanto de diarréia verbal. Isso torna ainda mais cruciais as missões da elite política de um modo geral (oferecer cardápio leve) e dos candidatos em particular (não vender gato por lebre). Se mal sucedidos ou omissos nesses místeres, podemos esperar que a porta do Judiciário continuará sendo assediada por demandas políticas crescentes.
No mais, não creio que se deva esperar unificação ou mesmo impermeabilidade política da Justiça. Isso não me parece realista e, mesmo em tempos de calmaria, é um conto da carochinha. Como seria possível (caso fosse desejável) que o STF, cimo de um Poder, ficasse alheio à temperatura política? O que é anormal é se permitir que ele exerça poder normativo para além da Constituição. Nesse caso, assumindo (se voluntariamente ou não, pouco importa) papeis que numa democracia são dos políticos, não há como esperar que seus agentes ajam senão como políticos, isto é, estrategicamente. E como são amadores, o fazem desastradamente e permitem vazamentos da sua autoridade para baixo, isto é, não aparentando a isenção que devem sempre aparentar estimulam que a mesma conduta se difunda na base do Judiciário. Em resumo, ao atuarem, inapropriadamente, como elite política “para fora” deixam de sê-lo “para dentro”, como seria preciso.
O senhor disse em seu último artigo "Factoide golpista na ressaca da Copa", que 'é inaceitável que se queira corrigir um suposto erro cometendo um erro induvidoso maior' em relação ao ex-presidente brasileiro. Por que Lula não deveria ter sido preso agora?
Porque a Constituição conserva o direito do condenado provisório ao trânsito em julgado. O STF relativizar esse direito é algo muito polêmico (e se já temos polêmicas de sobra, penso que o Judiciário não deveria provocar novas) mas enfim, o STF criou nova jurisprudência então, paciência, em respeito às suas prerrogativas e também em nome da minimização de controvérsias, deve-se aceitá-la. Mas não seria mais fácil fazê-lo se o STF decidisse de uma vez? E por que diabos a sua presidente não coloca o assunto em pauta e em vez disso permite/fomenta a estabilização da incerteza? Mas ainda que se resolva definitivamente pela possibilidade de prisão em segunda instância (e não vejo nisso problema), possibilidade não seria jamais obrigatoriedade da prisão, como quer a mídia (a “grande” e boa parte das redes sociais), a PF e a parte militante do MPF. E se ao juiz deve ocorrer um juízo de razoabilidade em cada caso, penso que no de Lula ele aconselharia não prender, seja pela ausência de pacificação dos juízos, seja por respeito a uma percepção de senso comum que não deveria ser ignorada. Lula não deve ser candidato pois a Lei da Ficha Limpa impede. Mas por que impedi-lo de se expor na campanha como cabo eleitoral e condenado provisório? Talvez se esteja subtraindo ao eleitor brasileiro a chance de virar a página do lulismo sem margem a esperneio de revanchistas. Pessoalmente ajudaria com meu modesto voto. Seria arriscado? Sim, mas democracia é (também) risco, desde que corridos dentro da lei.
Em seu artigo, o senhor também citou que a ordem democrática ainda não encontrou uma convergência contra os discursos populistas e extremistas. Por quê?
Não tenho essa resposta e duvido que alguém a tenha. Quero antes de discutir isso esclarecer duas coisas: primeiro, que populismos e extremismos também fazem parte da ordem democrática. No caso dos populismos eles são em geral fenômenos cultivados no chão da democracia, embora possamos considerar que muitas vezes, quando predominam, conduzem-na a impasses. E mesmo os extremismos (inimigos da democracia) precisam ser tolerados ainda que sempre vigiados pela lei. É essa tolerância que distingue uma democracia e ela não tem nada a ver com bom mocismo e sim com uma reflexão realista: os preços da não tolerância costumam ser mais nocivos ao ambiente político e social do que as ameaças extremistas à ordem democrática quando essa ordem está legitimamente assentada. Então qualquer posição ou opinião pode ser livre desde que tente prevalecer por meios democráticos, isto é, dispute eleições. O segundo esclarecimento vem do primeiro: se todos (inclusive extremistas) podem disputar eleições dentro da ordem então não tem sentido falar em convergência da ordem democrática. Numa eleição o confronto é salutar. A unidade que na minha opinião deve se buscar – e vem sendo concretamente buscada embora com resultados ainda parcos – é em torno de uma candidatura competitiva capaz de gerar governo e não mais crise. É por isso que tem de ser moderada. O caminho para isso até aqui está bloqueado e isso tem a ver com a perda de fôlego do governo federal a partir das investidas feitas a partir de 2017 para derrubá-lo. Salvou-se mas perdeu força porque várias forças políticas essenciais à sua sustentação retiraram-lhe apoio com os olhos postos no imediatismo eleitoral. Pragmatismo eleitoralmente improdutivo, porque fica no eleitorado a sensação de que as promessas do impeachment não foram cumpridas e isso deu algum fôlego novo ao PT. Era (e ainda apesar do tempo perdido) de se esperar que os partidos e lideranças que se apresentaram ao país como fiadoras daquela solução estivessem juntas em outubro próximo.
Na Conferência Nacional A Nova Agenda do Brasil, organizada pela FAP no início deste ano, teve uma discussão 'acirrada' em sua mesa sobre o papel do Estado brasileiro, que deveria ser mais enxuto, mais regulador do que provedor e até se falou de uma aliança de uma centro-esquerda com os liberais. Não parece contraditório esquerda e liberalismo econômico?
Convergência através de alianças políticas práticas tem havido e não é de hoje, no Brasil e fora dele. A questão naquela discussão foi convergência de pensamento, algo mais perene e capaz de interpelar certezas dos dois campos. O centro não é liberalismo econômico (embora uma agenda comum deva incluí-lo, sem fundamentalismos) e sim a democracia política (com fortalecimento do pluralismo e da representação e com ampliação da participação política), um reformismo social assumidamente incremental e uma perspectiva cosmopolita e amplamente liberal quanto à cultura. Devemos dizer de qual liberalismo se fala. Penso num corpo de ideias que durante muito tempo existiu, conforme a imagem de Raymundo Faoro, como “corrente subterrânea”, um corpo de ideias não convertido em pensamento político conectado de modo feliz com a ação. Conforme a interpretação faoriana esse liberalismo teria sido “arredado” da história política brasileira, com as decisões na política real sendo tomadas ao seu largo. Nabuco?
Na esquerda, ou seja, no mundo das contra elites, parece ter ocorrido algo similar com uma corrente específica dentro da “linhagem” de pensamento que Gildo Marçal Brandão chamou de marxismo de matriz comunista. Essa corrente, que trocou a perspectiva revolucionária pela do reformismo democrático e social, é deslocada no interior da esquerda desde a emergência, nos anos 60, da contestação nacional-popular (à qual se incorporou), depois pela resistência armada à ditadura, e, por fim pela interação desde o final do século passado e, mais tarde, numa estrutura de poder, do nacional-popular com uma concepção iliberal de democracia que crescera no petismo. É um link dos ideários do nacional desenvolvimentismo e da democracia de “alta intensidade” com perspectivas identitárias “pós modernas”, emergentes na sociedade civil. Isso tem levado a esquerda brasileira para ainda mais longe da perspectiva cosmopolita, institucional e incremental do reformismo democrático. Em que isso resultará? Difícil dizer mas uma das hipóteses é que essa esquerda arredada encontre, no campo liberal, a interlocução interditada na esquerda canônica. Afinal o liberalismo, ao contrário, parece “desarredar-se” a cada dia num país em que o acerto de contas com a Era Vargas parece caminhar para um estágio decisivo.
O que o senhor espera do novo presidente brasileiro?
Espera-se que a consciência da improdutividade do pragmatismo raso que ajudou a enfraquecer a pinguela apresse as tratativas políticas para que alguma candidatura moderada e reformista ainda tenha chance de chegar ao segundo turno. Se chegar, minha suposição é a de que vencerá as eleições. Se vencer espera-se que tente implementar a agenda que defendeu na campanha mas com o realismo político de flexibilizá-la para que as políticas sejam aprovadas pela via normal da democracia representativa. Se perder, espero que a agenda siga sendo defendida mesmo na oposição porém que estejamos atentos à necessidade – que é de toda a sociedade - do governo eleito governar.
FAP Entrevista: André Gomyde
É preciso que haja uma total revolução no nosso sistema educacional para que o país possa se adaptar às novas realidades do mercado de trabalho, acredita André Gomyde
Por Germano Martiniano
O constante avanço tecnológico e a consequente robotização do mercado de trabalho têm colocado em risco a existência de diversas profissões tradicionalmente conhecidas. Segundo a PricewaterhouseCoopers (PWc), uma das maiores consultorias do mundo, o percentual de vagas vulneráveis até 2030 é de 21% no Japão, 30% no Reino Unido, 35% na Alemanha e 38% nos Estados Unidos. Não foi feita estimativa para o Brasil, no entanto, os brasileiros também serão afetados, uma vez que, profissões como de pilotos de aviões, analistas de investimento, contadores, analistas financeiros, jornalistas e outras, poderão ser feitas por robôs.
Essa nova realidade, ainda que exija um forte investimento do governo brasileiro em infraestrutura tecnológica, não é algo tão assustador quanto parece, acredita André Gomyde, presidente da Rede Brasileira de Cidades Inteligentes e Humanas. Gomyde é o entrevistado desta semana na série FAP Entrevista. Mestre em Administração de Empresas pela Florida Christian University, em Orlando (EUA), e doutorando pela mesma instituição, ele também conversou com a Fundação Astrojildo Pereira sobre o conceito de cidades inteligentes, que são aquelas que estão aderindo às evoluções tecnológicas e melhorando a vida de seus cidadãos.
A entrevista integra uma série que a FAP está publicando, aos domingos, com intelectuais e personalidades políticas de todo o Brasil, com o objetivo de ampliar o debate em torno do principal tema deste ano: as eleições.
Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista:
FAP Entrevista - Em debates, o senhor sempre discorre sobre as mudanças que estão ocorrendo no mercado de trabalho, que várias profissões atuais deixarão de existir. O sistema educacional brasileiro está preparado para essas mudanças?
Adré Gomyde - É um sistema obsoleto. Em todos os rankings internacionais, o Brasil está sempre entre os últimos colocados. Uma variação aqui, outra ali, mas nada consistente. É preciso que haja uma total revolução no nosso sistema educacional, olhando-se para uma realidade que já está na nossa porta: muito em breve serão poucos postos de trabalho, e os que existirem serão de profissões que ainda não conhecemos. Como preparar nossas crianças para isso? Acredito que seja necessário trabalhar competências diferentes das que trabalhamos hoje. Não sou da área de educação e não vou ousar dar algum palpite, mas posso dizer que com essa política educacional que temos não iremos muito longe. Já tentamos fazer esse diálogo no governo, mas as mentes que hoje ali estão não tem muita vontade de ousar novos caminhos. Torcemos para que essa realidade mude.
Como o Brasil deve se preparar para este novo mundo em que a tecnologia impera?
O Brasil precisa investir em infraestrutura tecnológica para começar a caminhar e para não ficar refém das grandes empresas transnacionais. Cuidar dos nossos dados e informações é essencial. Vide o que está ocorrendo com o dono do Facebook lá nos EUA. Eles se apropriam dos dados e informações, que são o ouro do século XXI, e agora respondem a processo. O que estamos fazendo no Brasil para nos blindar disso? Muito pouco. Infelizmente, o “lobby” dessas grandes empresas é forte e pesado. Não pode dar coisa boa. Há mais de quatro anos que se discute sobre isso, são reuniões e mais reuniões, eventos e mais eventos, projetos e mais projetos, muita informação colhida e debatida e até agora não temos um programa nacional adequado para que o País consiga avançar rumo ao século XXI. É a velha política, com a velha agenda, quem ainda ditam os (des)caminhos do Brasil.
Certamente essas mudanças no mercado de trabalho afetarão as relações sociais. Como o senhor imagina as relações sociais no futuro?
Faço parte de alguns grupos de pesquisadores que pensam o futuro, os chamados futuristas. Vejo que há um lado que é mais pessimista e que acha que entraremos em um colapso social, com guerras civis para todos os lados, as pessoas lutando pela sobrevivência, enfim, o verdadeiro caos. Outro lado, mais otimista, acredita que as pessoas não trabalharão e serão simplesmente felizes, vivendo do que a natureza lhes oferece e compartilhando criações, fazendo atividades lúdicas em rede, enquanto as máquinas trabalham. Seria um mundo muito mais bacana e justo. Eu fico com a segunda turma, dos otimistas. Que as máquinas trabalhem, para a gente ser feliz! Mas entendo que o mundo assim somente acontecerá daqui a uns cinquenta anos ou mais.
Até que ponto o senhor enxerga como evolução o robô tomar o lugar do ser humano em muitas atividades?
É uma evolução. Ela é perigosa, por conta da inteligência artificial, mas é uma evolução. Acredito que estejamos vivendo uma acentuada elevação de consciência em todo o mundo e que cada vez mais as pessoas tomarão os cuidados necessários para que os robôs estejam a nosso serviço e não para que sejam nossos inimigos, como profetizou Stephen Hawking antes de morrer. Mas é preciso debater o tema cada vez mais, para não corrermos riscos.
Estamos em ano eleitoral. O que esperar do novo presidente sob o aspecto das cidades? Elas precisam de mais autonomia?
O novo governo precisará compreender que não podemos mais esperar resolver a agenda do século XX, para somente depois entrarmos na agenda do século XXI. Teremos que dar um salto. É preciso entender, também, que a solução está nas cidades e nas pessoas. O Governo Federal precisará acelerar programas que facilitem o financiamento de infraestrutura tecnológica para as cidades e que permitam às cidades trabalhar suas vocações locais, sem as atuais amarras que existem na legislação, permitindo que se conectem com mercados do mundo todo.
O que é a Rede Brasileira de Cidades Inteligentes e Humanas? Qual o objetivo?
A Rede Brasileira de Cidades Inteligentes e Humanas é um grande movimento nacional que reúne secretários municipais de ciência, tecnologia e inovação; pesquisadores das principais universidades brasileiras; e lideranças dos setores produtivos. O objetivo é trabalhar o conceito de Cidades Inteligentes e Humanas dentro das idiossincrasias brasileiras, ajudando os administradores das cidades nessa tarefa de colocar nosso país no século XXI, em termos de desenvolvimento econômico e de ampliação de mercado.
Trata-se de um projeto apenas nacional, ou é alicerçado junto a outros projetos internacionais?
O movimento das cidades inteligentes e humanas é um movimento internacional que teve início quase simultâneo nos EUA e na Europa. Chegou no Brasil em 2013, quando começamos a entendê-lo para, a partir daí, aprofundar nossas pesquisas para que pudéssemos “tropicalizar” conceitos. Hoje temos parcerias e alianças com diversas instituições internacionais que tratam do tema.
A cidade inteligente seria aquela que coloca o cidadão em primeiro lugar? Como funciona isso?
Não adianta termos cidades inteligentes se seus benefícios não servirem para seus cidadãos. Temos uma grande parte de nossa sociedade ainda excluída tecnologicamente e com muita dificuldade de compreender essa nova era que se apresenta no século XXI. É fundamental que os dirigentes brasileiros implementem ações de divulgação, de treinamento e de preparação da sociedade para a nova realidade. Há um movimento muito forte de empresas estrangeiras querendo tomar conta desse mercado, apenas implantando suas tecnologias. Temos que entrar firmes nisso, alertando as instituições para que tenham como foco principal as pessoas e não somente os interesses dessas empresas. Por isso o nome de Cidades Inteligentes e Humanas.
Como o senhor avalia que em algumas cidades brasileiras se pode discutir projetos futurísticos, porém em outras nem o saneamento básico chegou? Como tratar essa discrepância?
O Brasil perdeu o trem da história no século XX e agora tenta encaixar essa agenda do século passado no novo século XXI, pretendendo primeiro resolver os problemas antigos para depois buscar avançar como muitos países já estão fazendo. Não será possível fazer isso. Precisamos entrar na agenda deste século imediatamente, ainda que paralelamente a gente tenha que resolver nossas deficiências. Portanto, entendo que podemos ver nossos problemas de uma nova forma: já que temos que fazer saneamento básico, por que não fazer isso utilizando a tecnologia existente, para termos um saneamento básico inteligente e do século XXI?
Como o senhor imagina as cidades no futuro?
O futuro já chegou e são as cidades inteligentes, humanas, criativas e sustentáveis. Minha esperança é de que as cidades, especialmente no Brasil, possam ser protagonistas das ações que elas precisam fazer, baseadas nas suas vocações, sem ter que ficar nessa dependência dos Estados e da União. Sou um municipalista convicto e espero que nossas cidades sejam inteligentes e livres para acessar um mercado mundial de mais US$ 1,3 trilhão, da forma como bem entenderem e que ajude no empreendedorismo local.
FAP Entrevista: Renan Ferreirinha
Formado em Harvard, Renan Ferreirinha é co-fundador do movimento suprapartidário Acredito e luta para que a educação seja pauta prioritária no país
Por Germano Martiniano
Único jovem a integrar a roda de debates durante o Ato do Polo Democrático e Reformista, manifesto promovido pela Roda Democrática com o intuito de fortalecer o centro democrático brasileiro contra candidaturas extremistas, realizado na última quinta-feira (28/06), em São Paulo, Renan Ferreirinha destacou a importância da juventude no processo político do país. Co-fundador e líder nacional do Movimento Acredito e do Mapa-Educação, ele chamou atenção do público presente com um discurso firme e transparente.
Natural de São Gonçalo (RJ), filho de professora e ex-aluno do Colégio Militar do Rio de Janeiro, Ferreirinha formou-se recentemente em Economia e Ciências Políticas na Universidade de Harvard, onde foi presidente da Associação Brasileira (HUBA) e membro fundador da Brazil Conference. Em 2016 trancou a faculdade e passou um tempo no Brasil para se dedicar ao Mapa Educação, manifesto criado em 2014, que objetiva tornar a educação pauta prioritária no país.
Nesta entrevista ao portal da Fundação Astrojildo Pereira (FAP) na série FAP Entrevista, além da questão educativa, Renan Ferreirinha também falou sobre os movimentos suprapartidários que estão surgindo no país e da participação do jovem na política, tal como destacou durante o Ato promovido pela Roda Democrática em São Paulo. “Mais do que falta de interesse dos jovens com a política é a falta de espaço, a falta de canais para se manifestarem. A provocação que faço é para as estruturas tradicionais abrirem mais espaço para os jovens terem voz, eles necessitam apenas serem escutados”, disse.
A entrevista integra uma série que a FAP está publicando, aos domingos, com intelectuais e personalidades políticas de todo o Brasil, com o objetivo de ampliar o debate em torno do principal tema deste ano: as eleições. Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista:
FAP Entrevista: Renan, o que é o Movimento Acredito? O que ele defende e quais as pretensões?
Renan Ferreirinha - O Movimento Acredito é um movimento de renovação política suprapartidária nacional que defende uma renovação de princípios, práticas e pessoas. Queremos trazer uma nova geração para o poder legislativo, que atue por um país mais justo, desenvolvido e eficiente com dignidade e igualdade de oportunidades.
Como co-fundador do movimento, como foi esta sua inserção no campo político?
Eu sou um dos cinco co-fundadores e liderança regional do Movimento no Rio de Janeiro. Já atuo com políticas públicas há um bom tempo através da educação. Também criamos um outro movimento chamado Mapa Educação, que objetiva que a educação seja pauta prioritária no país e que todos brasileiros e brasileiras tenham acesso a uma educação de qualidade. Atuamos em diversas esferas, inclusive pressionando os políticos com suas promessas eleitorais para educação. Desta forma, estamos sempre em Brasília dentro das comissões de educação da câmara e do senado.
Você foi estudante em Harvard, chegou a terminar os estudos por lá ou voltou para criar o Mapa Educação?
Sim, terminei meus estudos em dezembro de 2017, em Harvard, onde fiz Economia e Ciências Políticas. Durante a faculdade cheguei a trancar o curso para trabalhar no Mapa Educação em 2016 no Brasil, mas depois retornei aos EUA para finalizar a graduação. Em relação ao Mapa Educação, foi um movimento criado em 2014 a partir do manifesto Mapa do Buraco, que elencava os principais “gargalos” e buracos da educação brasileira e apontou alguns casos de sucesso como Sobral, no Ceará e Foz do Iguaçu, no Paraná. Depois, tivemos bastante repercussão nas eleições de 2014 e criamos o movimento Mapa Educação para permitir que novas iniciativas como essa pudessem existir. Portanto, nosso papel é fiscalizador na área educativa e de empoderamento do jovem líder em educação, que faz projetos em nível local de bastante impacto, através de workshops, conferências e redes de apoio.
Estão surgindo vários movimentos não partidários no Brasil até em decorrência de um sentimento de repúdio à política. Como você analisa essa situação?
Tudo isso ainda é reflexo das manifestações de 2013. Neste ano, tivemos um “boom” de engajamento cívico no país através daquela “primavera brasileira”, em junho. No entanto, as ideias das pessoas estavam muito dispersas, não estavam sendo canalizadas. Depois disso, acabaram surgindo alguns movimentos e, recentemente, acredito que tenham surgido movimentos mais convergentes que não estão nos extremos. Infelizmente, tivemos e ainda temos movimentos mais extremistas, seja do lado A ou B, que não contribuem para um debate saudável e apenas aumentam a polarização desnecessária no país. Mas, a partir do momento que surgem movimentos como o Acredito, Agora e outras iniciativas políticas, se tem uma maior qualificação do debate, uma busca de projeto de país que seja mais interessante a todos. Então, acredito que estamos num momento de transição, no qual os partidos políticos têm sentido este repúdio à política e precisam mudar esta realidade, pois toda democracia forte perpassa por partidos políticos fortes.
Você participou na última quinta-feira do Ato do Polo Democrático e Reformista em SP e na mesa de debate você era o único jovem. O que acontece? Falta interesse pela política ou não se abre espaço para a juventude se apresentar?
Mais do que falta de interesse é a falta de espaço, falta de canais para o jovem se manifestar. A provocação que faço é para as estruturas tradicionais abrirem mais espaço para os jovens terem voz. Eles necessitam apenas serem escutados. O espaço foi muito importante, porém ainda muito reduzido. Precisamos ter mais jovens. Existem, assim como eu, diversos outros jovens, de vários cantos do país, atuando e lutando pelo protagonismo social. Temos que acreditar na juventude!
Daqui a alguns meses os brasileiros irão escolher seu novo presidente. Qual sua avaliação dos pré-candidatos à presidência?
É triste ver que as pré-candidaturas não possuem ainda um projeto de país claro. Muita coisa ainda vai acontecer até 07 de outubro, mas não teremos um nome outsider (e não estou emitindo juízo de valor quanto a isso), mas serão praticamente estes nomes e acredito que temos que ir além dos extremos. Tenho bastante preocupação com o extremo fascista e o populismo, independentemente, da ideologia. Temos que rechaçar sempre o populismo.
O Movimento Acredito irá apoiar alguma candidatura?
O Movimento Acredito não apoiará nenhuma candidatura no Executivo, nem a presidente e nem a governadores. Apenas apoiaremos candidaturas ao Legislativo. Nós temos um processo de prévias, de líderes cívicos que virão como candidatos a deputado estadual e federal e, provavelmente, teremos um piloto ao senado em Sergipe. Então, apoiaremos, aproximadamente, trinta candidaturas ao redor do país, porém só para o poder legislativo.
Quais as plataformas políticas o Movimento Acredito espera de um candidato?
Nossos cinco temas prioritários são: reforma política, acreditamos em um modelo distrital misto; educação; inovação e empreendedorismo; reforma da previdência e segurança pública.
E quais são as suas pretensões políticas?
Como líder do Acredito e do Mapa Educação, pensamos coletivamente que em um futuro bem próximo possa ser interessante concorrer a algum cargo eletivo. Entretanto, essa decisão deve ser coletiva. Vamos aguardar os próximos capítulos.
Amanhã tem Brasil na Copa, está confiante? O Hexa vem?
Estou extremamente confiante e o Hexa vem. Cansei de ser penta e segue abaixo o link de um artigo meu para o Estadão, no qual eu falo como o título pode nos ajudar a renovar o país! https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/como-o-hexa-pode-ajudar-a-renovar-o-pais/
FAP Entrevista: Gilvan Cavalcanti de Melo
O país precisa aglutinar as frentes democráticas para superar os extremismos políticos neste ano eleitoral, avalia Gilvan Cavalcanti de Melo
Por Germano Martiniano
Em plena Copa do Mundo, é quase impossível não falar de futebol, mesmo que o país se encontre em um turbilhão politico com a proximidade das eleições presidenciais. Gilvan Cavalcanti de Melo, editor do blog Democracia Política e Novo Reformismo, aceitou o desafio de relacionar política e futebol. Ele é o entrevistado desta semana da FAP Entrevista, série que está sendo publicada aos domingos com intelectuais e personalidades políticas de todo o Brasil, com o objetivo de ampliar o debate em torno do principal tema deste ano: as eleições. “Sou suspeito para falar sobre essa distinção - política e futebol-, desde criança gostava de futebol, joguei no infantil do principal time da minha cidade, no interior de Pernambuco. Depois, cheguei a jogar no juvenil do Sport Recife, fomos campeões invictos sem levar um só gol”, avisa.
Gilvan Cavalcanti foi militante do Partido Comunista Brasileiro, o PCB. Lutou contra a ditadura, foi exilado no Chile e em Cuba e fez parte da fundação do Partido Popular Socialista (PPS), em janeiro de 1992. Uma das grandes curiosidades da vida política dele foi a prisão do filho, Gilvan Filho, o Giba, durante o período ditatorial. “Nosso filho tinha um ano e quatro meses de idade e era deficiente físico dos membros inferiores, por isso, precisou ficar com a mãe na cela”, relembra Gilvan.
O panorama politico brasileiro neste ano eleitoral e os extremismos políticos do momento também foram temas tratados por ele nesta entrevista à FAP. “Para superar o quadro atual é necessário um esforço de todas as forças democráticas reformistas e aglutinar um bloco amplo que consiga iniciar um novo governo em 2019”, enfatizou Gilvan Cavalcanti.
Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista à FAP:
FAP Entrevista - Gilvan, não tem como fugir da pergunta: o senhor está assistindo os jogos da Copa? Está gostando do desempenho do Brasil até aqui?
Gilvan Cavalcanti de Melo - Sim, estou acompanhando muitos jogos. O Brasil precisa melhorar muito, ter um futebol mais solidário.
O senhor está na militância política há muito tempo. Em 1970 o Brasil foi campeão mundial e no país vivia uma ditadura, com Médici no poder. Como era essa relação entre futebol, militância, torcida, nacionalismo e política na época?
Na época, o tema gerou muita polêmica. As posições políticas das oposições contra a ditadura tentaram vincular a seleção de futebol com a política. Os grupos que se autoproclamaram defensores da política de confronto direto, via sequestros, assaltos a bancos, etc., defendiam a tese que o futebol era um instrumento de propaganda do governo autoritário, portanto, faziam chamados para torcer contra a seleção. E acusavam os grupos que trabalhavam com a política de frente democrática de adesistas ao regime militar. A história é conhecida. Demonstrou a falsidade da teoria do confronto direto sem política.
É possível fazer uma relação entre futebol e política no Brasil, ou são coisas distintas? O senhor faz parte do “time” que pensa que o futebol é um fator de alienação em nossa sociedade?
Sou suspeito para falar sobre essa distinção. Desde criança gostava de futebol, joguei no infantil do principal time da minha cidade, no interior de Pernambuco. Depois, cheguei a jogar no juvenil do Sport Recife. Fomos campeões invictos sem levar um só gol. O goleiro era o Manga que, depois, veio para o Botafogo do Rio e da seleção Brasileira. Esse lado futebolístico em nada me impediu de fazer política, organizando grêmios escolares. Depois, o lado da política venceu e abandonei muito cedo o futebol. Fiz grandes amigos no juvenil do Sport e nos demais clubes do Recife. Na época da ditadura foram solidários comigo.
O senhor teve um filho que também foi preso durante a ditadura. Como foi essa história?
A história foi a seguinte: com o golpe militar de 1964 eu e minha mulher, Graziela, fomos presos. Nosso filho Gilvan Filho (Giba) tinha um ano e quatro meses de idade e era deficiente físico dos membros inferiores. Minha mãe e minha sogra começaram a fazer pressão, via d. Helder Câmara para libertar Graziela. Mais ou menos em junho/julho houve muitas denúncias de torturas em Recife, publicadas na imprensa carioca, principalmente, no jornal Correio da Manhã. O general Ernesto Geisel, então ministro da Casa Militar de Castelo Branco, foi visitar as prisões de Recife. Num dia de visita normal, minha mãe levou nos braços o Giba. Nesse dia o general apareceu por lá e se deparou com a pressão de minha mãe. Em vez de libertar Graziela, autorizou o Giba ficar na cadeia, na cela, com Graziela. O Giba também foi anistiado e recebeu desculpas formais do estado brasileiro.
O senhor também esteve exilado em Cuba. Como era o país na época?
Meu exilio em Cuba ocorreu em virtude do golpe que derrubou o governo de Salvador Allende. Pedimos asilo na Embaixada do Panamá e no Chile. Lá estavam muitos brasileiros, entre os que me recordo: Betinho, Theotonio dos Santos, Marco Aurélio Garcia, Emir Sader, etc. Do Panamá fui para Cuba. Lá trabalhei em Mariel e depois em Havana. Era uma vida difícil, apesar da solidariedade e do carinho da população. Fiquei por lá até dezembro de 1978, quando vim embora para o Brasil, antes da anistia, quando percebi o movimento de abertura do regime militar.
Atualmente, o senhor continua na militância política por meio do seu blog, o Democracia Política e Novo Reformismo. Ou seja, o senhor aderiu a uma linha da esquerda menos dogmatizada, mais atualizada aos novos tempos. Para o senhor, militante do PCB na ditadura, exilado em Cuba e no Chile, quando foi que percebeu que era hoje de mudar, de atualizar-se?
Essa é uma história muito longa. Em primeiro lugar minha formação cultural política sempre foi muito “ocidental”. Desde jovem meus amigos já me chamavam de “reformista” “revisionista”, etc. Na época eram conceitos agressivos, quase um palavrão. Acho que o ponto de ruptura se deu no processo da Primavera de Praga (1968). Colocaram-me o carimbo de “italianista” e “antissoviético” e depois “eurocomunista’.
Como o senhor avalia o nosso panorama político atual, com as proximidades das eleições presidenciais?
É conhecida a profunda crise na qual vivemos. Um legado do período da administração comandada pelo PT. Além da crise econômica, com inflação, juros altos, recessão e uma alta taxa de desemprego herdamos um processo de despolitização da sociedade, o aparelhamento das agências estatais e a corrupção sistêmica.
O senhor acredita que o centro emplacará uma candidatura? O Brasil será comandado por algum político extremista?
Para superar o quadro atual é necessário um esforço de todas as forças democráticas reformistas e aglutinar um bloco amplo, que consiga iniciar um novo governo em 2019. É primordial que se trabalhe para que esse bloco vença as eleições de 2018. A chave é unir essas forças, derrotar o atraso estatista e autoritário, fugindo da armadilha binária. O país é muito mais complexo e não cabe nesse simplismo dicotômico: esquerda x direita.
FAP Entrevista: Arnaldo Jardim
"O Brasil possui uma das legislações mais exigentes do ponto de vista de preservação ambiental do mundo", diz Arnaldo Jardim
Por Germano Martiniano
Ex-secretário de Agricultura e Abastecimento do estado de São Paulo, o deputado federal Arnaldo Jardim (PPS-SP) conversou com a Fundação Astrojildo Pereira (FAP) sobre o tema agricultura, que sempre dividiu opiniões em todo o Brasil. Sabe-se que ela foi o “carro-chefe” do país, começando pela cana-de-açúcar, ainda na colonização, depois o café, que sustentou a transição da monarquia para a República do café com leite (1889-1930), por exemplo. Atualmente, produzindo diversos produtos, da soja a carne, o Brasil continua tendo na produção e exportação de produtos primários uma base relevante de sua economia. Ao mesmo tempo, o setor enfrenta muitas críticas no que concerne à degradação ao meio-ambiente.
Arnaldo Jardim é o entrevistado desta semana da FAP Entrevista, série que está sendo publicada aos domingos com intelectuais e personalidades políticas de todo o Brasil, com o objetivo de ampliar o debate em torno do principal tema deste ano: as eleições. Engenheiro civil de formação, Jardim que há certo “excesso de realismo” em relação as críticas que se fazem sobre agricultura destruir o meio-ambiente. “Organizações internacionais que falam sobre a Amazônia ignoram o fato de que o Brasil ainda tem 50% do seu território de cobertura vegetal nativa”, informa. Na entrevista à FAP, ele também fala sobre o nosso perfil agroexportador: “Não há como pensar em desenvolver todos os setores do Brasil para que todos possuam um processo de industrialização e agreguem valor”.
Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista:
FAP Entrevista - A greve dos caminhoneiros é passado, ou ela ainda deixa "feridas" na economia e população brasileira?
Arnaldo Jardim - A greve dos caminhoneiros, como você citou, deixou feridas na economia e na sociedade brasileira. Primeiro, porque foi uma reação a uma situação que vários fatores se conjugaram: excesso de oferta de caminhões; adequação da política de preços da Petrobras ao mercado, que do ponto de vista do mercado é satisfatória, mas do ponto de vista social se ignorou uma oscilação de preços de acordo com o dólar, que impactou o bolso do consumidor brasileiro; por fim, a maior ferida que fica é a institucional, que revelou um governo absolutamente frágil, incapaz de prevenir, comandar e dar respostas às demandas sociais.
E o setor agroexportador como ficou? Qual foi o real prejuízo ao setor?
A greve causou um impacto muito grande devido à interrupção do fluxo e pelo fato de que com a objetiva elevação de custos do setor não tem exatamente como incorporar estes custos a negociações já feitas de valores das exportações há muito tempo. Portanto, com isso os cálculos variam, falam em perdas de 12 bilhões de reais, porém são números a serem analisados com mais calma. O problema é que isto incorporou uma instabilidade de mercado que os concorrentes internacionais podem se aproveitar e caracterizar como descumprimento de contratos. Ou seja, nossa imagem fica um pouco abatida.
Durante a greve, a discussão do modelo de transporte de cargas e de pessoas voltou à tona no Brasil. Qual sua opinião sobre o nosso atual modelo de transportes baseado em caminhões e carros em detrimento de trens e transportes públicos de qualidade?
A questão da discussão matriz de transportes, modal rodoviário no caso, que é absoluto no Brasil, pode-se dizer que é um meio muito concentrador daquilo que é hoje nossa capacidade de transportar pessoas e cargas. Portanto, existe a necessidade de ampliar, primeiro, a integração de modais e segundo, especificamente, os modais ferroviários e hidroviários.
O senhor acha que nossa "vocação" histórica agroexportadora fez com que deixássemos de produzir produtos de maior valor agregado?
Há uma discussão sendo feita pelos economistas do que significa exatamente um país exportador de commodities ou um país exportador de produtos industrializados ou semi-industrializados. A lógica intuitiva de todos obviamente é de que um país que agregue valor, por exemplo, ao invés de vender a soja venda o farelo ou óleo, isso parece natural e penso que o Brasil deveria pensar em completar cadeias de produção. Contudo, acho que precisamos trazer para o debate, dentro de um projeto nacional, discutir exatamente em quais setores nós temos vantagens competitivas e comparativas internacionais para fazermos toda cadeia, sendo vanguarda de conhecimento nesta área. Não há como pensar em desenvolver todos os setores do Brasil para que todos possuam um processo de industrialização e agreguem valor. Em alguns casos é mais barato comprarmos algo importado do que pensarmos em produzir aqui.
Muitas criticas são feitas ao setor agropecuário devido ao estrago que se faz ao meio-ambiente, desmatamento, desgaste do solo, emissão de CO2, etc. Existem leis e conscientização por parte dos agricultores para se crescer de maneira sustentável?
Aqui no Brasil, às vezes, somos mais realistas do que o rei. Por exemplo, organizações internacionais que falam sobre a Amazônia ignoram o fato de que o Brasil ainda tem 50% do seu território de cobertura vegetal nativa, dados da Embrapa e comprovados por organismos como a Nasa. Ou seja, organismos internacionais proveniente dos EUA ou países europeus, que possuem menos de 10% de cobertura vegetal nativa em seus territórios, querem nos ensinar como cuidar da Amazônia, ou biomas como o do Pantanal. Fato é que o Brasil possui uma das legislações mais exigentes do ponto de vista de preservação ambiental do mundo. O debate em torno da questão ambiental e outras questões assemelhadas não pode ser um debate pseudo-ideológico, mas sim em torno da ciência, como um critério para mensurar a capacidade que temos de inovar e os eventuais malefícios que tivermos serem medidos objetivamente e não serem frutos de um discurso ideológico.
O que está faltando para o centro emplacar um candidato para as eleições?
Todos nós sabemos que a convergência democrática é a melhor resposta para aquilo que sociedade necessita hoje, que não é somente eleger uma pessoa, mas eleger uma pessoa que tenha uma base ampla de apoio, que seja capaz de superar o período de radicalização que vivemos na política nacional. Há uma frase que tenho reiteradamente dito: “chega de gladiadores, é hora dos construtores”. Eu acho que isso sintetiza muito aquilo que o meu partido, PPS, formulou no seu congresso nacional e definiu como estratégia para sua intervenção.
O que o senhor pensa desta polarização política que domina o cenário pré-eleições?
Acho que naturalmente a convergência democrática irá se estabelecer ao longo dos próximos meses e assim minar a polarização política existente. Por isso, devemos trabalhar em cima de um programa de unidade, de pontos de consenso, de um candidato capaz de conduzir as reformas necessárias ao país. Temos que debater permanentemente assuntos como a desregulamentação da economia, retomada da concorrência em diversos setores do mercado, a necessidade de um Estado regulador e não provedor. Desta forma, no plano da convergência democrática teremos também o embate com setores mais liberais que existem por aí e devemos enfatizar a necessidade do compromisso social e não apenas econômico.
Quais devem ser, tanto para agricultura, quanto para os demais setores da economia brasileira, as principais plataformas políticas para o país voltar a crescer e gerar empregos?
Acredito de acordo com o que foi dito, que devemos definir os setores que temos mais competitividade e também ter uma visão mais clara das alianças internacionais que o Brasil deverá desenvolver. Do ponto de vista interno, privilegiar setores de uso intensivo de mão de obra, pois hoje temos quase 13 milhões de desempregados. Considerar que o sistema financeiro deve ter redefinido sua vocação para ser efetivamente um fomentador dos investimentos de longo prazo e não simplesmente um setor que viveu da rolagem de títulos públicos. No mais, forte investimento em inovação e políticas públicas voltadas para educação.
FAP Entrevista: Marcus Pestana
Um dos autores do Manifesto por um polo democrático e reformista, que será lançado nesta terça-feira (05/06) em Brasília, Pestana diz que a iniciativa surgiu da necessidade de se encontrar um caminho entre o “desastre e a catástrofe política”, citando frase do senador Cristovam Buarque
Por Germano Martiniano
Em um ano em que milhões de brasileiros irão eleger um novo presidente da República, a esperança de propostas políticas progressistas e que girem em torno de um ambiente reformista e democrático ainda está assentada no centro democrático, que no atual momento se encontra bastante fragmentado. De Marina Silva ao governador Geraldo Alckmin, nenhum candidato conseguiu emplacar candidaturas fortes. Por quê? E quais propostas devem estruturar e unir o centro democrático para fazer frente ao radicalismo que tem imperado em nossa política? São essas respostas que o “Manifesto por um polo democrático e reformista” busca dar à população brasileira. Sob a iniciativa do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, do senador Cristovam Buarque (PPS-DF), do ministro Aloysio Nunes Ferreira e do deputado federal Marcus Pestana (PSDB-MG), o Manifesto será lançado nesta terça-feira (05/06), em Brasília, às 16h, no Café do Salão Verde da Câmara dos Deputados.
A série FAP Entrevista desta semana é com o deputado federal Marcus Pestana, um dos autores do Manifesto e ex-presidente do PSDB de Minas Gerais. Ele lembra como surgiu a ideia de se criar o Manifesto: “A iniciativa de criar o Manifesto surgiu de uma conversa minha com o Senador Cristovam Buarque", disse. "Decidimos nos movimentar frente à fragmentação das forças democráticas”, concluiu Pestana, citando uma frase do senador pelo PPS-DF para sintetizar a situação: “Precisamos encontrar um caminho entre o desastre a catástrofe, por isso tivemos essa ideia que contou com o apoio entusiasta de FHC, Aloisio Nunes e mais trinta signatários.”
Formado em economia, Marcus Pestana iniciou sua vida política como vereador de Juiz de Fora (MG) em 1983. Em 2006, foi eleito deputado estadual, porém se afastou do cargo em 2007, quando se tornou secretário de Estado da Saúde de Minas Gerais. Em 2010 foi eleito deputado federal, reeleito em 2014. Nesta função votou a favor do impeachment de Dilma Rousseff e também da Reforma Trabalhista. Em 2013 foi avaliado pela revista Veja como o segundo melhor deputado federal do país naquele ano. A entrevista integra uma série que a FAP está publicando, aos domingos, com intelectuais e personalidades políticas de todo o Brasil, com o objetivo de ampliar o debate em torno do principal tema deste ano: as eleições.
Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista:
FAP Entrevista - Como surgiu e de quem foi a ideia de realizar o Manifesto “Por um polo democrático e reformista”?
Marcus Pestana - Inicialmente partiu de uma conversa minha com o Senador Cristovam Buarque. Decidimos nos movimentar diante da perspectiva de fragmentação das forças democráticas e reformistas e de um segundo turno nas presidenciais, como disse o Cristovam, entre o desastre e a catástrofe. Esboçamos o Manifesto, como ponto aglutinador, e submetemos ao FHC e ao Aloisio Nunes Ferreira que apoiaram com entusiasmo. A partir daí, consolidamos a lista inicial de 30 signatários para o lançamento no próximo dia 5/6, próxima terça.
O país encontra-se, atualmente, polarizado entre o populismo autoritário de direita e o de esquerda. Onde foi que o centro democrático errou e por que chegamos a tal polarização?
Não conseguimos enraizar a perspectiva democrática no seio da sociedade. Seguimos um modelo de organização partidária tradicional e deixamos brechas pra sobrevivência dos populismos autoritários. A Lava-Jato, ao revelar o submundo do sistema, jogou todos na vala comum. Há um abismo separando a sociedade e sistema político. Neste espaço os populismos nadam de braçada, oferecendo saídas simples, fáceis, boas de serem ouvidas, mas equivocadas para problemas complexos. O quadro político tradicional frustrou a sociedade e aí surgem os aventureiros.
Como será o trabalho do Manifesto após seu lançamento e como fazer com que o mesmo alcance a sociedade?
Vamos procurar todos os pré-candidatos e direções partidárias identificadas com esse campo de ideias, dos liberais aos socialdemocratas e socialistas democráticos. Dialogar para ver como produzir a urgente e essencial unidade política e eleitoral.
O Manifesto visa uma ampla unidade política contrária à disseminação de discursos radicais. Como unir candidatos presidenciais por uma mesma bandeira?
A união pode se dar já nas convenções, com a convergência em torno de um candidato que represente o polo democrático. Pode se dar também ao longo do processo do primeiro turno, com candidatos pior posicionados retirando seus nomes e apoiando quem estiver melhor se o apocalipse se anunciar a 20 ou 15 dias da eleição. Ou a unidade pode se materializar no segundo turno. O problema é se o campo democrático estiver ausente, hipótese que não pode ser afastada, ao contrário, hoje seria a mais provável.
A greve dos caminhoneiros expôs a crise financeira pela qual o Estado brasileiro passa. Para o senhor, quais as mudanças prioritárias para economia brasileira?
Sem equilíbrio fiscal não haverá a manutenção de baixas taxas de inflação e juros. Portanto, sem responsabilidade fiscal não haverá crescimento, investimentos e geração de emprego e renda. A Petrobras é uma empresa de capital aberto, com acionistas minoritários e regras de mercado. Quando se quer subsidiar algo deve ser por meio de subsídio explícito, no orçamento, com custo definido e decisão transparente e democrática. Sem as reformas tributária, fiscal, previdenciária e política, o Brasil não irá longe.
Como o senhor avalia uma possível aliança do governador Geraldo Alckmin com o MDB para disputar a presidência? Não seria continuar com mais do mesmo?
O ex-governador Alckmin tem experiência, competência comprovada, serenidade e capacidade de diálogo. Tem o perfil que o Brasil precisa. Mas isto é uma construção política. O fundamental são as ideias e a unidade do campo democrático. O BLOCO DEMOCRÁTICO é suprapartidário e tem compromisso com uma visão de futuro e não com nomes. O MDB tem uma lógica própria, está no poder e legitimamente quer defender o legado de Michel Temer.
Alckmin poderia ser o nome adequado para realizar as mudanças apontadas no Manifesto?
O perfil é perfeito para liderar o processo de reformas e mudanças. Mas temos que agregar o campo democrático e ganhar as eleições. O Brasil vive tempos sombrios e instáveis. É uma loteria a eleição de 2018.
Existe um clamor na sociedade brasileira por renovação política, por mudanças que o próprio Manifesto apontou. Contudo, muitas das mudanças necessárias ao país esbarram nos interesses dos grandes partidos como PT, PSDB e MDB. A reforma eleitoral e a distribuição desigual dos repasses financeiros é um exemplo. Como quebrar essas velhas estruturas de poder, que desejam deixar tudo como está?
Renovar por renovar não faz sentido. Oxigenar o sistema é ótimo. Mas para os desafios complexos que temos pela frente, experiência é fundamental. Mesclar renovação com experiência é o caminho. O futuro está na mão do cidadão. Não há saída sem democracia. A ameaça autoritária tanto na matriz bolivariana quanto na proto-fascista tem de ser derrotada. O mistério é descobrirmos o caminho da vitória do polo democrático e reformista.
FAP Entrevista: Hamilton Garcia
Crise pela qual passa a república brasileira é um problema de nascença, avalia Hamilton Garcia: a distância existente entre Estado e sociedade, que se explica pelo caráter da colonização
Por Germano Martiniano
A entrevista desta semana da série FAP Entrevista é com o sociólogo Hamilton Garcia de Lima. Formado pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), fez Mestrado em Ciência Política na Unicamp e Doutorado em História Contemporânea na Universidade Federal Fluminense (UFF), se dedicando ao estudo dos partidos de esquerda. Atualmente leciona na Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF) disciplinas de Política e Sociologia Política voltadas para a compreensão dos processos políticos e seus (múltiplos) desenvolvimentos – levando em conta fatores “genéticos" e “mutacionais" produzidos ao longo das formações histórico-sociais que lhes servem de base –, além de colaborar com o portal Gramsci e o Brasil e com a Fundação Astrojildo Pereira (FAP). Esta entrevista integra uma série que a FAP está publicando, aos domingos, com intelectuais e personalidades políticas de todo o Brasil, com o objetivo de ampliar o debate em torno do principal tema deste ano: as eleições.
Em uma semana extremamente difícil para conjuntura socioeconómica e política brasileira, Hamilton Garcia analisa a greve dos caminhoneiros como um “exercício da cidadania”, com o agravante da impopularidade do governo Temer. “O Governo Temer está "pendurado na brocha", sem condições de tocar sua agenda, com irrisório reconhecimento popular e incerto apoio parlamentar; o que se deve, evidentemente, às denúncias que sofreu e a reação que teve, se agarrando ao poder para não ter que se explicar à Justiça”, afirmou o sociólogo.
Hamilton também ressalta que a crise, que o Estado e a sociedade brasileira vivem, é consequência do próprio distanciamento entre essas duas partes. “Nossa República sofre cronicamente de um problema de nascença: a distância existente entre Estado e sociedade, que se explica pelo caráter da colonização – como bem nos mostrou Caio Prado Jr. – e pela ausência de verdadeira revolução burguesa por aqui”, avalia.
Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista:
FAP - Para o senhor, o que representa essa greve em relação ao Estado democrático brasileiro?
Hamilton Garcia - Exatamente o exercício da cidadania, com os excessos aos quais estamos acostumados. É claro que ela se reveste de uma excepcionalidade, que está ligada ao fato de que o Governo Temer está "pendurado na brocha", sem condições de tocar sua agenda, com irrisório reconhecimento popular e incerto apoio parlamentar; o que se deve, evidentemente, às denúncias que sofreu e a reação que teve, se agarrando ao poder para não ter que se explicar à Justiça.
O ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, autorizou as Forças Armadas a desobstruírem as rodovias bloqueadas pelos grevistas. Rodrigo Maia, presidente da Câmara, disse que tal atitude era “coisa de governo fraco”. Temer perdeu a “mão” no governo do Estado brasileiro?
Rodrigo Maia é um dos responsáveis pela “coisa": ajudou a blindar Temer das investigações do MPU – nos deixando um governante frágil num contexto dificílimo – e pleiteia ser reconhecido como uma alternativa à crise; faria papel melhor se ficasse calado. O uso da força será implementado, como prevê a lei, e isso não acarretará grandes problemas, embora não seja garantia de total desarticulação do movimento. A questão é que Temer criou o problema, dando carta branca aos liberistas na Petrobras, e agora tem que remediá-lo.
Luiz Carlos Azedo, jornalista, em um dos seus artigos nesta semana para o Correio Braziliense, Coisa Estranha, lembrou que foi uma greve de caminhoneiros que desestabilizou o governo de Salvador Allende no Chile e abriu caminho para o golpe do general Pinochet. Com o uso das Forças Armadas, você crê em algum risco para nossa democracia?
No nosso caso, creio que o risco que corre a democracia se relaciona mais com fatores estruturais do pacto de poder, do que com a conjuntura política; embora esta seja, evidentemente, decisiva para o desencadeamento das crises. A crise que estamos vivendo, desnudada pela revolta de 2013, nada mais é que o virtual esgotamento do pacto de poder da redemocratização, constituído pelos grandes interesses empresariais, burocráticos, sindicais e partidários, que teceram variadas coalizões políticas baseadas em seus interesses, com menor ou maior ênfase nos “descamisados" – como se referia Collor aos depauperados pelo sistema –, mas sem tocar nos seus privilégios, se limitando a aumentar o acesso de novos grupos a eles; o que já não pode ser mais suportado pela sociedade, que é quem sustenta os custos do Estado e dos monopólios privados – das finanças, da energia, das telecomunicações e das oligarquias políticas. Nesse contexto, as FFAA só podem atuar como última instância – de acordo com nossa tradição republicana – e sempre nos limites do interesse nacional, que, na sua perspectiva, implica na reativação do desenvolvimento industrial, tanto para mantê-las autônomas e bem aparelhadas, como para realizar a "paz social" e garantir o "progresso do país”; como reza o evangelho positivista que faz parte de seu DNA. Se os civis não forem capazes de reformar o regime neopatrimonial , naturalmente, as pressões sobre os militares crescerão. Mas a cúpula militar parece comprometida com seu papel histórico, não com a anomalia de 1964. Tudo, porém, depende do desenrolar dos acontecimentos eleitorais e governamentais por vir.
Qual lição o governo e o povo brasileiro podem tirar dessa greve? Por exemplo, a greve expôs o quanto a sociedade brasileira é dependente de um recurso esgotável como o petróleo.
A incompetência histórica do mercado em diversificar os modais de transporte para benefício da produção patenteia a necessidade de elaborarmos projetos nacionais de longo-prazo, não só neste caso, mas também para a diversificação das fontes de energia, para nossa inserção nas cadeias produtivas globais, etc.. Todas estas questões, nesses 34 anos, estiveram fora das agendas políticas por conta de um sistema político-eleitoral voltado para o atendimento dos grandes interesses particularistas, no atacado, e dos pequenos interesses populares, no varejo.
No seu último artigo, A democratização do Estado, o senhor discorre que o Brasil teve um processo de democratização “falso”, se assim podemos dizer, pois o governo continuava a ser comandado pelas oligarquias latifundiárias. Atualmente, não parece ser diferente com os atuais “coronéis” Jader Barbalho, Eunício de Oliveira, Renan Calheiros, Romero Jucá e outros nomes, que há tempos estão no comando da política brasileira. Como mudar este quadro?
Nossa República sofre cronicamente de um problema de nascença: a distância existente entre Estado e sociedade, que se explica pelo caráter da colonização – como bem nos mostrou Caio Prado Jr. – e pela ausência de verdadeira revolução burguesa por aqui – revoluções estas que, alhures, foram as responsáveis pelo corte do cordão umbilical que atava o Estado Nacional aos interesses particularistas dos velhos estamentos medievais. A solução, portanto, passa pela ruptura radical com as forças político-sociais que sustentam o atual pacto de poder, estejam elas na esquerda, centro ou direita. Ela passa pela constituição de um novo pacto a partir de uma coalizão política comprometida em realizar, com o apoio de forças liberais, socialistas e mesmo conservadoras, um programa mínimo de reformas que contemple a responsabilização dos partidos e seus agentes no poder – coisa que o sistema de Justiça já está nos proporcionando, mas apenas de modo parcial e incerto –, a reforma radical do Estado, com o fim dos privilégios corporativos, da ingerência indevida dos políticos na educação, na saúde, nas penitenciárias, polícias, etc., e uma política de desenvolvimento econômico, em parceria com o mercado, mas sem os vícios atuais de privilegiamento dos monopólios, que nos coloque de novo na rota do desenvolvimento – com ênfase no fator humano pelo trabalho –, entre outras providências para tornar nosso Estado sustentável, nossa economia próspera e nosso povo mais capacitado e participante.
Lula e Bolsonaro, por sua vez, não são estes tradicionais coronéis da política brasileira, no entanto, representam a face do populismo e também do salvacionismo. Lula está preso, mas o senhor acredita que Bolsonaro tem reais chances de vitória nas eleições presidenciais? E o que representaria uma vitória de Bolsonaro?
Bolsonaro surfa no fracasso da esquerda que se associou ao sistema em putrefação, ao invés de reformá-lo. Seu sucesso eleitoral, todavia, não garante sua vitória política. Ele me parece um personagem incapaz de dar conta da refundação que necessitamos, prisioneiro que é de seu próprio passado e suas concepções ideológicas sectárias. Se eleito, todavia, será forçado a realizar importantes reformas, mas não poderá fazê-las a partir de uma perspectiva democrática; o que pode tornar o processo mais rápido, é verdade, mas também bem mais incerto e custoso.
Por que o senhor defende a racionalização do Estado em contraste a opiniões liberais de intervenção mínima?
Os novos liberais estão colocados diante do desafio de pensar o Brasil, não de imitar seus ídolos. Esse problema já nos acometeu no passado, basta ver como os comunistas se submeteram aos ditames do stalinismo, cujo líder era chamado, até a denúncia de seus crimes, de “guia genial dos povos”, com os custos sabidos e pagos. Os liberais precisam se debruçar sobre os erros das suas gerações passadas, mas sem perder de vista as circunstâncias que fizeram delas o que elas foram, inclusive na desconcertante heterodoxia desenvolvimentista que praticaram sob o regime militar – não sem antes expurgarem os pensadores progressistas defensores do planejamento econômico e das políticas de desenvolvimento nacional. Tal heterodoxia, é bom que se diga, não obstante seus erros, nos colocou no clube dos países industrializados, que a democracia não soube, até aqui, nem preservar, nem muito menos desenvolver.
O que o senhor espera das eleições 2018? Quais devem ser as prioridades do novo governo brasileiro?
O cenário não é muito alvissareiro em termos eleitorais. Ninguém chega a uma crise de representação, como a que vivemos, sem ter a atividade política rebaixada e mesmo vilipendiada. A ascensão de Bolsonaro é um indicativo disso, ao mesmo tempo que a candidatura de um Lula corrupto e preso é a evidência de que a ameaça à democracia vem de outro lado. Pena que o PPS, até aqui, tenha aberto mão de ser o articulador da frente ampla para um novo pacto, e tenha elegido como seu principal interlocutor um candidato para a disputa presidencial que representa mais uma tentativa de compromisso com a velha ordem do que uma ruptura.
*Excepcionalmente a entrevista desta semana está sendo publicada nesta segunda-feira (28/05/2018).
FAP Entrevista: Caetano Araújo
Nos últimos anos faltaram aos outros partidos da esquerda brasileira propostas claras e convincentes de poder que pudessem se sobrepor ao PT, avalia Caetano Araújo
Por Germano Martiniano
A entrevista desta semana da série FAP Entrevista é com o sociólogo Caetano Ernesto Pereira de Araújo. Com graduação, mestrado e doutorado em Sociologia pela Universidade de Brasília (UnB), ele também é consultor legislativo do Senado Federal. Tem experiência na área de Sociologia, com ênfase em Teoria Sociológica e Sociologia Política, atuando principalmente em temas como eleições, rural, parlamento, esquerda, democracia, socialismo e tecnologia. Esta entrevista integra uma série que a FAP está publicando, aos domingos, com intelectuais e personalidades políticas de todo o Brasil, com o objetivo de ampliar o debate em torno do principal tema deste ano: as eleições.
Neste ano em que se celebra 200 anos do nascimento de Karl Marx, Caetano Araújo trouxe a FAP uma reflexão necessária sobre o pensamento marxista: “Como ocorre com todo grande autor, a obra de Marx inspira leituras novas em cada novo momento da história. Certamente alguns aspectos, tidos anteriormente como fundamentais, tenderão a perder espaço para outros menos percebidos até agora”, acredita.
Na entrevista, o sociólogo também comentou o por quê de grande parte da população brasileira restringir o pensamento de esquerda ao PT. Para Araújo, o Partido dos Trabalhadores conseguiu, nas últimas décadas, ser a principal força eleitoral da esquerda. “As potenciais alternativas não conseguiram, até o momento, formular um projeto claro e convincente para os eleitores”, avalia.
Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista:
FAP Entrevista - Fernando Gabeira, em recente artigo, escreveu que o PT, PSDB e PMDB, que são detentores da maior parte do financiamento eleitoral, também seguem em queda por conta da Operação Lava-Jato. Como o senhor analisa este paradoxo frente às eleições 2018?
Caetano Araújo - Gabeira tem razão. Desde a redemocratização há uma desconfiança acentuada dos eleitores face aos políticos, aos partidos e, especialmente, aos legislativos. Essa desconfiança aprofundou-se a cada novo escândalo revelado, até que, nas manifestações de 2013 atingiu um novo patamar: a rejeição difusa ao sistema como um todo e, penso, principalmente às regras de seleção dos mandatários, ou seja, às regras eleitorais. Desde então a Lava-Jato só fez aumentar a rejeição dos eleitores em relação aos eleitos. Num movimento de defesa, os maiores partidos acordaram recentemente novas regras para a disputa eleitoral. Regras que concentram os principais recursos de campanha, tempo de televisão e dinheiro, nas mãos das direções das direções partidárias. Daí o paradoxo aparente: os maiores partidos, que sofrem o maior desgaste junto a opinião pública, apostam no quase monopólio da exposição na mídia e nos recursos financeiros para reverter esse desgaste, tudo isso numa campanha que será de curta duração.
As pesquisas para presidente apontam Bolsonaro na liderança, no caso de Lula não concorrer. Lula, mesmo preso, lidera em todos os cenários. Ou seja, a crença por mudanças ainda está nos extremos. Por que o centro ainda não conseguiu emplacar nenhum nome?
Tenho restrições ao emprego do conceito de centro político. Me parece que esse termo fazia pleno sentido na maior parte do século XX, quando o campo da política era dominado por apenas uma oposição fundamental entre esquerda e direita. Num espaço como esse havia um centro moderado, em antagonismo permanente com a extrema esquerda e a extrema direita extremadas, ambas sempre prontas para sacrificar a ordem democrática a seus objetivos políticos. Hoje, todas as evidências apontam para a relevância de uma segunda oposição que convive com a primeira, aquela entre nacionalismo e cosmopolitismo. Essa segunda oposição está redefinindo os sistemas partidários dos países democráticos e, por vezes, sobrepõe-se à oposição tradicional entre esquerda e direita. A respeito da vantagem de Lula e Bolsonaro nas pesquisas, penso que ambos vocalizam as duas maiores demandas do eleitorado, que hoje são, a meu ver, equidade e segurança, respectivamente. No imaginário popular, Lula permanece, até por falta de concorrentes, como o campeão das políticas de equidade, enquanto o discurso de Bolsonaro sinaliza a disposição de investir tudo, mesmo que com o sacrifício dos procedimentos democráticos, na segurança do cidadão, ou seja, na ordem. Enquanto outros candidatos permanecerem focados na política econômica e não ingressarem nesses temas de maneira articulada e crível, creio que Lula e Bolsonaro continuarão a liderar as pesquisas.
Quando a propaganda eleitoral começar, nos quais os grandes partidos têm mais tempo de televisão, o senhor acredita que este quadro de polarização entre Lula e Bolsonaro se modificará?
Reverter o desgaste político com televisão e dinheiro é a aposta dos grandes partidos. Penso, no entanto, que mais importante do que a concentração dos meios de campanha nas mãos dos maiores partidos será o posicionamento concreto em torno da agenda dos eleitores. Minha hipótese é que, nessa agenda, equidade e segurança ocupam a posição central. Se a estabilidade econômica estivesse nessa posição, a popularidade do Presidente Temer estaria em patamar diferente.
As “fake News” são um outro problema referente às eleições 2018. O senhor enxerga alguma solução a curto prazo?
As fake news já foram um problema grave em 2014 e tudo indica que este ano o problema será mais grave ainda. Vejo dois caminhos para minimizar seu impacto. Primeiro, o aprimoramento da regra de modo a facilitar a responsabilização dos geradores e replicadores, inclusive as empresas responsáveis pelas redes, de notícias deliberadamente falsas. O segundo caminho possível seria a construção de um grande pacto interpartidário contra a violência e a mentira nas eleições. Esse caminho exigiria, no entanto, reverter a tendência à polarização e à radicalização que tem sido dominante na política nacional nos anos recentes.
O sociólogo Zander Navarro, em artigo publicado na semana passada em O Estado de S. Paulo, escreveu que “Marx e o marxismo são encantadores como um movimento de ideias, mas deixaram de ser a arquitetura possível de uma nova sociedade.” O senhor concorda com esse argumento?
Como ocorre com todo grande autor, a obra de Marx inspira leituras novas em cada novo momento da história. Certamente alguns aspectos tidos anteriormente como fundamentais tenderão a perder espaço para outros menos percebidos até agora. Sobre a arquitetura do caminho para uma nova sociedade, creio que a experiência mais relevante do século XX foi a revolução de 1917, intimamente ligada à leitura leninista da obra de Marx. Para falar apenas no plano da adequação entre fins e meios, penso que a história demonstrou de forma cabal a inadequação de um modelo que prescinde da democracia e de qualquer mecanismo de mercado para alcançar os objetivos postos pelo movimento socialista nos séculos XIX e XX.
Por que no Brasil ainda predomina a noção de que a esquerda se resume ao Partido dos Trabalhadores?
Porque, por diversas razões, nas últimas décadas o PT conseguiu constituir-se na força eleitoralmente mais importante da esquerda brasileira. As potenciais alternativas não conseguiram, até o momento, formular um projeto claro e convincente para os eleitores.
O senhor acredita que o governo Michel Temer deixará algum legado?
O principal legado do governo Temer é a manutenção do calendário eleitoral. É claro que a reversão do quadro econômico é relevante, mas as limitações da recuperação que vivemos ficam cada vez mais evidentes. Nesse aspecto, o governo tinha uma agenda de reformas que só conseguiu executar de forma parcial, uma vez que superava em muito sua capacidade de realização. O governo se mostrou vulnerável no que se refere às acusações de corrupção e teve que se submeter ao veto de boa parte de sua base de apoio no Congresso Nacional em diversas votações importantes para sua agenda. Mesmo assim, numa conjuntura em que a questão central fosse a consolidação da estabilidade econômica, seu desempenho em termos de popularidade e de expectativas eleitorais poderia ter sido diferente.
Quais serão os maiores desafios para o próximo presidente do Brasil?
O novo presidente terá tarefas árduas pela frente. Terá que dar resposta às demandas dos eleitores por equidade e segurança, sem descuidar da recuperação econômica, pré-condição necessária para essas respostas. Para tanto, precisará empenhar-se numa agenda de profundas reformas do estado, a começar pela reforma da Previdência. Todas as questões são complexas e da eleição deve resultar um Congresso Nacional ainda mais fragmentado que o atual. Ou seja, o problema é grande e só poderá ser enfrentado por meio da construção de acordos amplos entre os diversos partidos.
* Excepcionalmente a entrevista está sendo publicada nesta segunda-feira (21/05/2018)
FAP Entrevista: Maria Amélia Enríquez
Economista destaca os avanços ocorridos no Brasil em relação aos direitos das mulheres, mas ressalta que ainda estamos distantes do padrão dos países escandinavos
Por Germano Martiniano
A entrevistada desta semana da série FAP Entrevista é a economista Maria Amélia Rodrigues da Silva Enriquez. PhD em desenvolvimento sustentável pelo Centro de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Brasília (UnB), professora e pesquisadora da Faculdade de Economia da Universidade Federal do Pará e ex-presidente e atual Conselheira Fiscal da Sociedade Brasileira de Economia Ecológica (ECOECO), Maria Amélia já publicou cerca de 70 artigos em periódicos, capítulos de livro e jornais nacionais e internacionais. É autora do livro "Mineração: maldição ou dádiva? O dilema do desenvolvimento das regiões de base mineral (2007)”, que tem servido com referência para o debate sobre a temática da mineração e desenvolvimento local, em todo o Brasil. A entrevista faz parte de uma série que a FAP está publicando, aos domingos, com intelectuais e personalidades políticas de todo o Brasil, com o objetivo de ampliar o debate em torno do principal tema deste ano: as eleições.
Neste Dia das Mães, a economista respondeu para a FAP importantes questões sobre o papel da mulher na sociedade brasileira. “O Brasil evoluiu bastante em termos de direito das mulheres, principalmente quando comparamos com o cenário internacional, no caso, com os países asiáticos, africanos e o oriente médio. Porém, estamos longe do padrão dos países escandinavos”, analisa Maria Amélia Enríquez.
Maria Amélia Enríquez também conversou com a FAP sobre o tema da sustentabilidade, no qual é especialista. Na entrevista, a economista ressalta o fato dessa questão ser colocada à margem das principais questões da atualidade brasileira. “Existe uma visão de curto prazo que predomina em nossa política, tanto na pública quanto na privada, pois, de fato, todos ganham quando os princípios da sustentabilidade são respeitados”, avalia. A economista acredita que as mudanças só devem ocorrer com mais investimentos em educação. “Isto apenas será possível se o tema educação virar uma prioridade nacional", acredita. "A curto prazo, deve-se promover campanhas para erradicação do analfabetismo, pois ainda temos milhões de brasileiros iletrados, e também para o aumento da escolaridade de jovens”, avalia.
Confira a seguir, os principais trechos da entrevista de Maria Amélia Enríquez à FAP:
FAP - Hoje, Dia das Mães, como foi possível conciliar todas suas tarefas profissionais, domésticas e ainda ser mãe?
Maria Amélia Enríquez - Desafiador, mas eu seria incompleta se tivesse sido diferente e só tem sido possível por causa do grande apoio que tenho recebido. Primeiramente do meu marido, que sempre me incentivou a seguir na profissão. Logicamente que isto significa compartilhar comigo as responsabilidades com as crianças, mas como ele também é um profissional, a ajuda da avó (minha mãe, a quem sou infinitamente grata), principalmente nas minhas ausências, me deu uma tranquilidade enorme para poder trabalhar em paz. Mas os filhos necessitam da presença da mãe, e daí temos que aprender a 'tocar, simultaneamente, vários instrumentos'. Lembro-me de minha filha mais nova, quando me via ficar por horas trabalhando na tese, sentava na minha perna e dizia “mãe, troca o computador por um colinho”... aí não dá pra resistir. É muito importante ter um tempo de qualidade com os filhos, principalmente, quando são crianças, pois é na convivência que compartilhamos visão de mundo e de valores. Mas quando crescem, a presença atenta não deve ser menor. Daí sempre estarmos envolvidas em um grande dilema: de dar maior atenção aos filhos e ao lar e de focar no trabalho que nos exige tanto, mas que também nos realiza e dá grande prazer. Há que buscar equilibrar e distribuir a energia adequadamente, conforme o momento requeira.
A sociedade brasileira sempre carregou as marcas do paternalismo. Como a senhora avalia este quadro atualmente?
A sociedade brasileira evoluiu bastante em termos de direito das mulheres, principalmente, quando comparamos com o cenário internacional, no caso dos países asiáticos, africanos e o oriente médio, porém estamos longe do padrão dos países escandinavos, por exemplo. Nós, mulheres, somos a maioria da população brasileira (51,6%), estamos elevando significativamente nosso nível de escolaridade (há mais mulheres que homens com ensino superior completo ), mas ganhamos menos (em média, 75% do que os homens ganham); temos pouca expressão política (na Câmara, a representação feminina é de apenas 45 deputadas contra 468 homens e, no Senado, de apenas 11 de um total de 81 senadores, muito aquém da cota mínima estabelecida por lei de 30%). Muito embora esteja comprovado que as mulheres são grandes gestoras, os cargos de alto escalão, públicos ou privados, são predominantemente masculinos. Já assisti (envergonhada) eventos políticos em que a mesa de abertura era composta exclusivamente por mais de vinte homens, quando havia a opção de compartilhar com mulheres igualmente gabaritadas. Sem contar que a mulher ainda é vítima de feminicídio e de violências de toda ordem. Além dessa flagrante desigualdade de gênero, no Brasil, ela é muito mais grave quando esta se alia à diferença racial. A situação das mulheres negras é bem pior do que a das mulheres brancas. Sem dúvidas esse quadro é fruto de nossa herança patriarcal e escravocrata que ainda precisamos superar. É preciso ampliar nossa consciência coletiva sobre esta questão, a fim de que nós mulheres possamos ter mais protagonismo e, por conseguinte, colocar nossa prática em prol da edificação de país mais justo, seguro, bonito e feliz.
Alguns meses atrás, feministas francesas, lideradas pela atriz Catherine Deneuve, criticaram o movimento norte americano #MeToo, uma campanha contra o machismo e o assédio sexual, principalmente, em Hollywood. Segundo as francesas havia certo “puritanismo sexual” no movimento americano e que também colocava a mulher como um ser frágil, indefeso e sempre vítima da sociedade. Qual sua opinião?
O movimento #MeToo tem uma bandeira clara – o assedio sexual, que ficou muito em evidência após os escândalos de celebridades do mundo artístico e esportivo dos Estados Unidos. Não é preciso sofrer este tipo de violência para saber que ela marca para sempre a vida, gerando traumas profundos, o que impossibilita usufruir de uma vida plena. Portanto, não se pode menosprezar este tipo de dor. Creio que a atriz Catherine Deneuve não foi muito feliz em minimizar o problema. Uma coisa é um flerte insistente. Outra é uma pressão emocional e física. Há casos, inclusive, de suicídio, de jovens que não tem resiliência par suportar o assédio.
Quais são as mudanças que devem haver na sociedade brasileira para que as mulheres possam ter direitos realmente iguais? E como fazer para as mulheres ocuparem mais cargos políticos?
A principal mudança a ser feita é a cultural, principalmente, na mente de homens e também de mulheres, que tem perpetuado a cultura machista explícita ou implicitamente. Todavia, isso requer mudanças profundas que, necessariamente, só amadurecem no longo prazo, muito embora devam começar já. Mas, enquanto esta mudança não se materializa, é importante adotar mecanismos concretos que indiquem à sociedade qual o rumo deve tomar, por exemplo, a exigência do cumprimento e, inclusive, de expansão das cotas na política (chapa, cadeiras, fundo partidário, fundo eleitoral). É também importante conscientizar às empresas privadas sobre a importância de ampliarem a participação das mulheres em seus quadros também.
Elimar Nascimento, especialista em Desenvolvimento Sustentável, em entrevista à FAP disse que o tema da sustentabilidade ainda tem pouca força no debate político perto de temas como segurança, saúde, educação, emprego, por exemplo. Por que isso acontece, mesmo sabendo da importância da discussão?
Por causa da visão de curto prazo que predomina em nossa política, tanto a pública quanto a privada, pois, de fato, todos ganham quando os princípios da sustentabilidade são respeitados. Todavia, no curto prazo, mudar o atual modelo predatório implica em custo e requer a imposição de limites para não exaurir os recursos ecossistêmicos. Para criar e implantar tecnologias e sistemas de gestão adequados, que minimizem os impactos ambientais, tem de haver investimento, o que significa que o financiamento disto deve sair de algum ganho pretérito, que, por seu turno, vai conflitar com algum interesse. Originalmente considerado como “bens livres”, os recurso naturais tem sido, por séculos, a base do modelo de crescimento brasileiro, o que tem gerado um histórico de degradação ambiental. Para alterar essa lógica é necessário impor algum tipo de limite, como, por exemplo, restringir a expansão de áreas de pastagem, proteger biomas, limitar a expansão do cultivo de grãos e, ainda, restringir a emissão de gases poluentes, etc. O que, da mesma forma, gera enormes conflitos de interesses. O desafio então é ampliar a consciência para a superação da visão de curto prazo, que apenas vê o ganho imediato e é míope em relação às perdas que a insustentabilidade gera. É preciso ressaltar os benefícios da sustentabilidade, pois não tem como haver crescimento e tampouco desenvolvimento econômico sem a preservação da base da vida.
A economia brasileira, historicamente, caracterizou-se pelo seu papel global de exportadora de commodities de baixo valor agregado, concentradora de rendas e que agride de modo intenso a natureza. Como mudar este quadro?
Como premissa é preciso que fique claro que depender exclusivamente da exportação de commodities não é uma estratégia inteligente de desenvolvimento, por vários motivos: 1) porque a dinâmica econômica está fora do controle da economia nacional – qualquer mudança tecnológica, dos mercados globais e da política internacional pode afetar preços e provocar profundas crises do dia para noite; 2) a única forma de inovar produzindo commodities é no processo e na redução de custo, o que não favorece a demanda interna por ciência e tecnologia e, por conseguinte, pela demanda de pessoal qualificado, de talentos, de mente inovadora; 3) há muitos custos sociais e ambientais que não estão embutidos no preço final da commodity, restando à economia nacional arcar com essas externalidade negativas (impactos sociais e ambientais) e, o pior, sem a contrapartida de receitas tributárias, já que o Brasil isenta de impostos a exportação de produtos básicos e semi-elaborados (as commodities). Fico impressionada de ver como há defensores fervorosos deste modelo, sob a argumentação de que o Brasil deve aproveitar suas vantagens comparativas, já que tem vocação para isto, e tais exportações são indispensáveis para as contas externas do país. Mais uma vez, essa é uma visão míope, de curto prazo, que está presa nas garras dos superávits comerciais, a qualquer custo.
O que precisa ser feito, então? Que estratégia deve ser priorizada?
Assim, primeiramente, é preciso ter vontade politica para induzir a diversificação para uma economia que, além de commodities, vise a produção de bens e serviços de maior valor agregado, já que, em todo o mundo, é isto que constitui a chave para um autêntico desenvolvimento econômico. É preciso deixar claro que o modelo de commodities somente é hegemônico porque é altamente subvencionado. Se igual tratamento tributário fosse concedido à produção de bens de valor agregado, certamente o quadro seria distinto. Desta forma, é necessário fortalecer uma nova economia sustentável e baseada em conhecimento, com maior valor agregado, inclusão social e renda. É preciso transitar a uma estratégia que perceba o potencial de desenvolvimento endógeno para ampliação das oportunidades por meio do incentivo ao potencial de crescimento local. É preciso reduzir os custos e a burocracia para quem produz, gera empregos e recolhe impostos no país e investir maciçamente em capital humano e no fomento ao empreendedorismo inovador.
Em relatório do seminário “Desenvolvimento Sustentável e Inclusão Social”, realizado pela FAP em Brasília, foi destacado o papel da educação como meio e fim para uma sociedade mais sustentável. No entanto, mudanças estruturais na educação brasileira levam tempo. Existem mudanças que podem ser feitas a curto prazo, que possam criar mais sustentabilidade e inclusão social?
Há exemplos louváveis de mudanças nas formas de gestão e nos métodos de ensino, em todos os níveis e escalas da educação. Há que se apoiar e evidenciar esses exemplos para que possam adquirir escala. Vários Estados criaram seus planos, uns avançaram mais e outros menos. Porém estamos muito longe de ter uma educação de qualidade, e também em quantidade, que o país tanto necessita. Isto apenas será possível se o tema Educação virar uma prioridade nacional. No curto prazo, deve-se promover campanhas para erradicação do analfabetismo, pois ainda temos milhões de brasileiros iletrados, e para o aumento da escolaridade de jovens. É inaceitável que dois terços dos brasileiros na faixa etária de 15 e 29 anos não estudam; 1,5 milhão são jovens de 15 a 17 anos que deveriam estar cursando o Ensino Médio, mas estão fora da escola. O que podemos esperar de nossa juventude, quando permitimos que mais de 10 milhões de jovens entre 14 a 29 anos fiquem numa situação de “nem-nem”, nem estudam, nem trabalham? Pare estes jovens é preciso programas específicos de formação, mas que também os qualifiquem rapidamente tanto para inserção no mercado de trabalho como para o empreendedorismo inovador.
Qual dos candidatos a presidente até agora apresenta, em sua plataforma política, propostas consistentes para a questão da sustentabilidade?
Há uma profusão de candidatos, tanto figuras já conhecidas da política, quanto pouco conhecidos. Creio que apenas no debate poderemos avaliar melhor. Lamento que meu candidato, o Senador Cristóvam Buarque (PPS-DF), não vá concorrer às eleições para presidência da República, pois considero que suas propostas são as mais coerentes e necessárias, principalmente, neste momento atual que o país atravessa. Todavia, além do compromisso com os valores democráticos, com a justiça social e com a luta incessante contra a corrupção, é importante que o futuro presidente tenha claro uma agenda mínima que o país requer: 1) seriedade no trato com as finanças públicas, a crise econômica recente foi uma demonstração cabal de que não se pode baixar a guarda nesta área. O desequilíbrio fiscal gera inflação, consome o poder de compra, inibe investimentos, resulta em aumento do desemprego e da desigualdade, pois contas desequilibradas geram insegurança sobre a capacidade de financiamento das políticas sociais; 2) prioridade com a educação de qualidade, em todos os níveis, de Norte a Sul, com monitoramento permanente, sistema de avaliações, premiações e punições para os casos de não cumprimento das metas; 3) compromisso com a sustentabilidade e com o avanço de uma economia assentada no conhecimento, que é a real fonte de riqueza de qualquer sociedade. Para isso tem de aumentar os recursos para a área de Ciência, Tecnologia e Inovação, assim como promover maior aproximação da ciência com a produção e a gestão, além de 4) um sistema integrado de segurança pública que tenha o poder de minimizar a escalada da violência pela qual passa o país. É inconcebível que, entre 2005 a 2015, a vida de 318 mil jovens brasileiros tenha sido ceifada por assassinatos. Enfim, é preciso uma atitude ousada, mas franca e responsável, que possa mobilizar corações e mentes na edificação dos novos rumos que o pais deve seguir.
FAP Entrevista: Sérgio C. Buarque
O principal desafio que o próximo governo terá de enfrentar será a crise fiscal, com o déficit da Previdência como sua principal causa, avalia Sergio C.Buarque
Por Germano Martiniano
O entrevistado desta semana da série FAP Entrevista é o economista Sérgio C. Buarque. Com mestrado em sociologia, professor da FCAP/UPE, consultor em planejamento estratégico com base em cenários e desenvolvimento regional e local, sócio da Multivisão-Planejamento Estratégico e Prospecção de Cenários e da Factta-Consultoria, Estratégia e Competitividade; atualmente, Buarque também é fundador e membro do Conselho Editorial da Revista Será? - http://revistasera.ne10.uol.com.br. Defensor enfático da reforma da Previdência, ele acredita que, sem ela, será difícil o Brasil avançar em outras áreas se não resolver este problema. “Se não houver uma mudança radical das regras, a previdência vai implodir o teto de gastos, vai reduzir disponibilidade para as outras despesas e tende à falência”, avalia. Esta entrevista faz parte de uma série que a FAP está publicando, aos domingos, com intelectuais e personalidades políticas de todo o Brasil, com o objetivo de ampliar o debate em torno do principal tema deste ano: as eleições.
O economista acredita, também, que o país vive um dilema, que é a cobrança por soluções rápidas para os problemas emergenciais, que demandam tempo para se resolverem. “Ninguém está disposto a esperar reformas estruturadoras que geram dúvidas sobre o presente e prometem melhorias em prazos longos”, disse o economista.
Sérgio Buarque avalia que o governo Temer ousou ao tentar realizar algumas reformas fundamentais para a sociedade brasileira, contudo, o caráter antipopular destas reformas associadas à limitada legitimidade política do atual presidente - consequência agravada de seguidas denúncias de corrupção -, atrapalharam o país no avanço dessas mudanças. “Considerando estas circunstâncias, o presidente Temer conseguiu fazer avanços importantes na economia brasileira. Mas, a continuidade desta tímida recuperação econômica é duvidosa se o próximo governo não avançar na reforma da Previdência”, completa o economista. Na entrevista à FAP, Buarque também tratou de questões pontuais, como a restrição à regra do foro privilegiado e o desabamento do edifício Wilton Paes de Almeida, em São Paulo. Confira, seguir, os principais trechos da entrevista:
FAP Entrevista - O STF decidiu, nesta semana, restringir a regra do foro privilegiado para deputados federais e senadores. Como o senhor avalia essa decisão?
Sérgio C.Buarque - O foro privilegiado tornou-se um problema no Brasil apenas por duas razões que são incomuns: o tamanho da corrupção, que leva aos tribunais dezenas de parlamentares, abarrotando o Supremo de processos; e o desvio de função do STF que se envolve com número e tipos de processo que não têm nada a ver com sua missão de protetor da Constituição. Por isso, o STF não tem capacidade para processar e julgar os que têm foro privilegiado, gerando impunidade: excesso de processos e disperesão do Supremo. Em tese, não acho que parlamentares possam ser julgados e condenados por juizes de primeira instância, com risco de instabilidade política, o que me levaria a defender o foro privilegiado. Nas condições atuais do Brasil, com rara (espero) avalanche de corrupção, preferível suspender. Mas não acho nenhum absurdo que exista tratamento diferenciado para os parlamentares no processo judiciário.
O desabamento do edifício Wilton Paes de Almeida, ocorrido em São Paulo, evidencia a degradação das cidades brasileiras, conflitos sociais e a ocupação predatória do espaço urbano. Como o senhor avalia esse caso?
O desastre das cidades brasileiras, que teve um momento doloroso no desabamento deste edifício, é o resultado de décadas de equívocos e irresponsabilidades políticas que deram origem à persistência da pobreza e das desigualdades sociais. Somos todos culpados do desleixo dos governantes com a educação e capacidades humanas, origem última das desigualdades e da pobreza. Agora, estamos tendo que desativar uma (na verdade, mais de uma) explosiva e dramática bomba social, lidar com um enorme passivo social que se formou pelo imediatismo dos brasileiros e governos. A história seria totalmente diferente se, ao longo das últimas décadas, como fizeram outros países, tivessemos promovido educação em larga escala para esta população que hoje padece de pobreza, totalmente incapacitada de construção de um domicílio. Quando milhões de brasileiros se veem obrigados a viver em prédios degradados e abandonados e em favelas (estima-se em 7,7 milhões de moradias o déficit habitacional), a sociedade e os governos estão obrigados agora a enfrentar uma emergência e, em condições muito desfavoráveis, por conta da desconfiança geral entre os atores e agentes públicos e graves restrições fiscais.
Como o senhor avalia o governo Temer na economia, com o controle da inflação e retomada, mesmo que minimamente, do crescimento econômico?
Michel Temer ousou implementar uma importante reforma fiscal para conter o ciclo de expansão de gastos correntes e avançou com uma agenda de reformas fundamentais para preparar o Brasil para o futuro. A limitada legitimidade política, agravada pelas denúncias de corrupção, impediram a realização da Reforma da Previdência, a mais urgente das reformas, pelo déficit crescente e inercial. O governo Michel Temer carrega uma grande contradição: combina uma base parlamentar que permitiu aprovar medidas impopulares, como o Teto de Gastos e a Reforma Trabalhista, com quase ausência de apoio popular. Considerando estas circunstâncias, o presidente Temer conseguiu fazer avanços importantes na economia brasileira. Mas, a continuidade desta tímida recuperação econômica é duvidosa se o próximo governo não avançar na reforma da Previdência.
O economista Everardo Maciel criticou, em artigo publicado nesta semana, intitulado “Insegurança Tributária”, o excesso de normas constitucionais e carência de normas infraconstitucionais que criam um clima hostil aos negócios. O senhor concorda?
Não tinha pensado nisso até ler o artigo de Everardo Maciel que é muito bem fundamentado. Pelo excesso de detalhes e de especificidades, a Constituição de 1988 é um documento jurídico e normativo datado, refletindo as condições econômicas e sociais da época e, principalmente, uma visão de mundo que não corresponde mais à realidade brasileira, que foi atropelada pelas profundas mudanças estruturais. O que Everardo mostra é que, contraditoriamente, no nível infraconstitucional, existe uma carência de normas que comprometem os negócios e cria uma grande insegurança jurídica no Brasil.
O senhor acredita que o excesso de tributos e burocracia dificulta a ação empreendedora no Brasil e, consequentemente, a geração de empregos e o crescimento econômico?
O Brasil tem uma carga tributária elevada, comparável a países altamente desenvolvidos, como a Alemanha. Mas acho que não se deve reduzir esta carga porque o Brasil precisa de muita capacidade financeira para cuidar das emergências, e ainda apostar nos fatores estruturadores de mudança, principalmente educação e inovação. O problema do Brasil não é esta elevada carga tributária, mas o fato de que, apesar disto, não ter recursos para investimentos públicos de porte que promovam o desenvolvimento do país. O Brasil tem uma carga tributária de 35% do PIB, muito acima da Coréia do Sul, com apenas 24,4% do PIB e, no entanto, tem um IDH-Índice de Desenvolvimento Humano de 0,754, contra 0,901 da Coréia do Sul. Com um Estado muito mais leve que o brasileiro, a Coréia do Sul tem alto nível de educação, competitividade e qualidade de vida. Na avaliação do PISA, que mede a qualidade da educação no mundo, o Brasil ficou em 65º, numa lista de 70 países, e a Coréia do Sul é o 7º melhor. Para onde estão indo os enormes recursos que o Estado arrecada? Estão saindo pelo ralo, numa mistura de apropriação indébita, super-salários, insolvência do sistema de previdência, ineficiência, desperdício, custos exorbitantes (principalmente, nas Prefeituras), e corrupção.
Durante o seminário “Novo pacto entre o estado e a sociedade brasileira”, realizado pela FAP no início deste ano, o senhor defendeu enfaticamente a Reforma da Previdência, sem a qual o senhor avalia que não há como o Brasil avançar economicamente e realizar outras reformas estruturais necessárias. Por que a Reforma da Previdência é tão importante?
O sistema de Previdência já tem hoje um déficit elevado (mais de R$ 600 bilhões) que compromete cerca de 42% das despesas correntes da União (INSS e Previdência do servidor público), para distribuição de benefícios a pouco mais de 31 milhões de pessoas. Os outros 60% das despesas correntes devem cobrir todas as outras áreas, como educação, saúde, segurança, inovação, etc. Com as regras atuais, o número de beneficiários da Previdência, principalmente dos servidors públicos, deve crescer continuamente, acompanhando o processo de envelhecimento da população. Nas próximas décadas, a população com 60 anos e mais deve crescer cerca de 3% ao ano. Em 2050, segundo projeção do IBGE, o Brasil terá muito mais idosos que jovens; serão 66 milhões de pessoas com 60 anos e mais, e apenas 43,6 milhões com até 19 anos. Como diz Mansueto Almeida, o Brasil envelheceu antes de ficar rico e vai envelher mais e de forma mais rápida, nas próximas décadas. Se não houver uma mudança radical das regras, a previdência vai implodir o Teto de Gastos, vai reduzir disponbilidade para as outras despesas e tende à falência.
O país necessita realizar reformas no campo econômico e político. No entanto, a mesma população que clama por mudanças reage com certo conservadorismo às transformações necessárias. Por que isso ocorre?
A população cobra, com razão, resultados rápidos e soluções para os problemas emergenciais. Ningúem está disposto a esperar reformas estruturadoras que geram dúvidas sobre o presente e prometem melhorias em prazos longos. O Brasil está tão afogado por emergencias que é muito difícil convencer a sociedade que as soluções estruturais e efetivas amadurecem muito lentamente. Um exemplo: pode ser muito bom que os governos arranjem dinheiro para construir 7 milhões de casas para atender ao enorme déficit habitacional. Mas os seus moradores vão continuar pobres, se não avançarmos na educação e na formação profissional que aumente a empregabilidade dos pobres e, portanto, sua capacidade de melhoria da renda. A população prefere Bolsa Família à Escola e os políticos tendem a oferecer o que o imediatismo da população demanda. Este é o grave dilema do Brasil.
Na economia, quais devem ser as prioridades do próximo presidente do Brasil?
A questão mais urgente que o governo terá que enfrentar é a crise fiscal, que tem como principal determinante o déficit da Previdência. Desta forma, considerando o fracasso deste ano, o futuro governo deve iniciar o mandato com um projeto de reforma profunda do sistema previdenciário. Sem essa, não terá recursos para fazer mais nada de relevante. Não dá nem para conversar. Supondo que o Estado consiga recuperar a capacidade de investimento, o governo terá a difícil missão de enfrentar as emergências, como o desastre urbano, ao mesmo tempo em que investe nos fatores estruturais de mudança. A principal prioridade emergencial é o enfrentamento do estado de violência nas cidades, com territórios dominados por grupos criminosos. Não existe qualidade de vida nem competitividade com cidades dominadas pelo crime organizado. Em termos estruturais, o futuro governo teria que concentrar todas as energias na educação, desde a primeira infância, com pesados investimentos na educação pública de qualidade para enfrentar as desigualdades sociais e a pobreza e, ao mesmo tempo, garantir a competitividade da economia brasileira.
FAP Entrevista: Elimar Nascimento
Especialista em Desenvolvimento Sustentável, Elimar Nascimento critica o fato do tema estar fora das discussões neste ano de eleições no Brasil
Por Germano Martiniano
O entrevistado desta semana da série FAP Entrevista é o sociólogo Elimar Pinheiro do Nascimento, professor permanente do Programa de Pós-Graduação de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Brasília (UnB) e do Programa de Pós-Graduação Ciências do Ambiente e Sustentabilidade na Amazônia, da Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Com doutorado na Universidade Rene Descartes e pós-doutorado na Ecole des Hautes em Ciências Sociais na França, Elimar também foi professor em Moçambique e no Equador. Participou dos governos de Zamora Machel (Moçambique), Miguel Arraes e Cristovam Buarque. Atualmente, também escreve artigos para o site Política Brasileira (http://blogdapoliticabrasileira.com.br/autor/elimarnascimento/). Esta entrevista faz parte de uma série que a FAP está publicando, aos domingos, com intelectuais e personalidades políticas de todo o Brasil, com o objetivo de ampliar o debate em torno do principal tema deste ano: as eleições.
Elimar tratou de temas que se destacam quando o assunto é o ensino superior no Brasil: aliciamento ideológico, avanço tecnológico e o mundo do trabalho, além do controverso curso “O Golpe de 2016”, referência ao Impeachment de Dilma Rousseff. “A Universidade é um espaço de diálogo, de controvérsias, de confrontos de visões e interpretações diferentes", avalia. "Por minhas impressões, cursos desta natureza não são bons”, destaca Nascimento, sobre o curso que foi ministrado na UnB.
Além das questões relacionadas às universidades brasileiras, o sociólogo também conversou com a FAP sobre o atual momento da política brasileira. Especialista em Desenvolvimento Sustentável, ele analisa com preocupação o momento atual em nosso país, por ver que o tema não faz parte do centro das discussões políticas. “A questão do Desenvolvimento Sustentável é marginal aqui no Brasil, como o é nos Estados Unidos, na França e na maioria dos países democráticos. Ele é muito genérico, pouco palpável para as pessoas”, afirma Nascimento.
Confira abaixo os principais trechos da entrevista:
FAP Entrevista - Qual a opinião do senhor sobre o curso “O Golpe de 2016”, que também será ministrado em outras reconhecidas universidades brasileiras, como a Unicamp, por exemplo?
Elimar Nascimento - Minhas impressões sobre um curso desta natureza não são boas, porque desde o título ele revela uma visão muito ideologizada e partidária, que não deveria ter espaço na Universidade. Nenhuma instituição de ensino, sobretudo pública, deveria ser espaço de um partido, mas o fórum de muitas visões partidárias, de muitas ideologias, e não de uma única. Os partidos podem ter suas escolas de formação doutrinária, como têm as religiões. A Universidade é um espaço de diálogo, de controvérsias, de confrontos de visões e interpretações diferentes. Como um aluno, que tem a interpretação de que o impeachment foi legal, pode ter lugar em um curso desta natureza? Se o título fosse uma pergunta e não uma afirmação teria sentido. Se fosse uma escola de partido, também. Embora mesmo neste caso, quando o ensino é muito doutrinário não vale de nada. Já fui professor de marxismo na Universidade Eduardo Mondlane de Maputo, Moçambique. Mas mesmo neste caso utilizava textos de Marx, Engels, Lenine, mas também de Mao Tse Tung e Trotsky, além de outros. Os alemães levaram uma denúncia contra mim, por causa disso. E a secretária geral do MEC chamou todos os professores de marxismo da Universidade e disse: “A divergência sino-soviética vocês deixam no aeroporto, aqui ensinamos o marxismo em todas as suas versões. O camarada Elimar está certo”.
Carlos Maurício Ardissone, doutor em Relações Internacionais da PUC/RJ, disse em artigo para o Estado de São Paulo, publicado nesta semana, que existe um aliciamento ideológico nas universidades brasileiras. As quais, em sua maioria, estão dominadas por uma esquerda dogmática. O senhor concorda com esta avaliação?
Plenamente não. Creio que nas universidades públicas existe um conjunto de docentes muito dogmatizado, muito ideologizado, sobretudo nas Ciências Sociais. Mas, existem docentes com visões diferentes, que têm compromisso com as metodologias científicas, valorizam os dados empíricos e estão abertos a examinar os fatos de maneira mais abrangente, em suas diversas dimensões. Professores pesquisadores que têm conhecimento das mudanças que ocorrem no mundo, e da riqueza da produção científica internacional e recente, com abordagens distintas. Outros, muitos dos quais não estudaram o marxismo realmente, ficam repetindo frases de efeito, algumas das quais eles mesmos não compreendem plenamente. Quantos desses professores leram O Capital? A explicação primária do marxismo é fácil e cômoda. Não precisa trabalhar muito, as repostas já estão dadas. O capitalismo é o responsável por tudo que de mal acontece no mundo. Nem se dão conta que a proposta socialista morreu com a queda do Muro de Berlim, em 1989. E agora está sendo enterrada em Cuba. Preguiçosos, não trabalham para construir uma outra alternativa. Vivem olhando o retrovisor, como muitos dos candidatos a presidente no Brasil, atualmente.
O mundo do trabalho se modifica a cada dia de acordo com o avanço tecnológico. Existem estudos que indicam que, dentro de pouco tempo, profissões tradicionais deixarão de existir. As universidades brasileiras estão se atualizando para acompanhar as mudanças que ocorrem em todo o mundo?
O problema é que quando falamos de Universidade no singular. Necessariamente ocorremos em erros de avaliação. Não existe uma Universidade, existem departamentos, faculdades, institutos, centros, laboratórios dos mais diversos. Existem professores e pesquisadores de todos os tipos. Desde os mais produtivos até os mais improdutivos. Existem doutores de ponta e existem doutores semianalfabetos. Existem professores que estão a par do que se passa em sua disciplina e em seu campo de pesquisa, mas também o que se passa no mundo em geral; e outros, que sabem apenas o que se passa em seu campo de pesquisa, pois são superespecialistas. E outros, nem isso. A profunda disciplinaridade que nos orienta faz com que parte dos professores pesquisadores não saiba o que está acontecendo no mundo das tecnologias disruptivas. Não os condeno, foram formados na especialidade e seus méritos e reconhecimentos nascem dos novos conhecimentos que produzem em suas áreas respectivas. Por isso, não posso fazer afirmações genéricas, nem acho que todos os professores deveriam estar a par destas tecnologias. Mas, sei que existem professores e pesquisadores que trabalham com estas questões e estão assustados com alguns de seus efeitos possíveis.
A Segunda Turma do Superior Tribunal Federal (STF) decidiu, nesta semana, retirar do juiz Sergio Moro as delações da Odebrecht no processo do sítio de Atibaia contra o ex-presidente Lula. Qual sua opinião em relação à essa decisão do Supremo?
Há mais de um ano defendo a tese de que os interesses contra o combate à corrupção serão maiores na medida em que as investigações se aprofundam e os candidatos à punição se ampliam. Portanto, em um certo momento operações investigativas deveriam sofrer duros golpes. Os atores contra o combate à corrupção se ampliam, suas alianças se fortalecem, assim como a ousadia de seus atos. As investigações estiveram, inicialmente, concentradas em empresário, diretores de empresas e políticos sem mandato. A maioria ligados aos PT porque era o partido que estava na Presidência. Por isso, Palocci, Vaccari, José Dirceu e Lula foram presos. Aos poucos, personalidades importantes do MDB também foram atingidas como Cunha; e do PSDB ameaçadas, como Aécio e Azeredo; e do PP, Ciro e cia. Enfim, o mundo do câmbio, dos dirigentes de empresas estatais, das empreiteiras, da comunicação de campanhas eleitorais e dos políticos do PT foram profundamente atingidos. Começou agora a vez dos outros partidos. Mas, outros “mundos” estão, também, na mira das investigações, como o do setor bancário e outros estão apenas no começo como o “mundo” dos TCs, e o mundo do Judiciário? Será que não será atingido?
A Lava-Jato corre riscos de ser minada por essas decisões?
Assim como a Operação Mãos Limpas na Itália foi derrotada, a Operação Lava Jato está sendo minada. Lá, a partir do Legislativo, aqui a partir do Judiciário. Não sabemos ainda se será derrotada, mas os interesses contrários são muitos, e que vão da direita à esquerda. E divide o STF. Sob as mais diversas alegações ministros se colocam contra, mudam regras, soltam suspeitos, fazem de tudo para desmoralizar a Operação e enterrá-la. Interesses de amigos estão sendo atingidos. E têm outros que ainda não sabemos? É impressionante que um partido que se diz de esquerda seja contra a prisão após condenação em segunda instância, que favorece apenas aos ricos e corruptos. Concluindo: os interesses contra o combate à corrupção estão aumentando, incorporando não apenas políticos ameaçados, mas também juízes, artistas e intelectuais (alguns afirmam que o problema da corrupção é um problema de menor importância)
Demétrio Magnoli, em seu último artigo, “O partido que não temos”, falou sobre o esgotamento ideológico do PT e PSDB. Você acredita que, não somente nessas próximas eleições de 2018, mas pensando no futuro da política brasileira, chegou ao fim essa bipolarização?
A polarização que conhecemos de 1994 a 2014 acabou. No momento ela dá lugar a outra polarização, entre o populismo retrógrado e o populismo autoritário. Mas não sabemos se esta polarização prevalecerá nos próximos meses. Os tempos atuais são de muitas mudanças e incertezas.
Como o senhor analisa a candidatura do ex-ministro do STF Joaquim Barbosa à Presidência? Ele seria um nome capaz de unir o centro democrático brasileiro?
Qualquer candidato de centro, que tiver muitas intenções de voto e não estiver nos polos populistas, deverá atrair interesse, mas não será capaz de unir o centro. Caso o ministro Joaquim Barbosa decida ser candidato, deverá ter uma expressiva intenção de voto, mas isso não fará Marina Silva desistir de sua candidatura. E se a direção do PSDB não se manifestar, Alckmin deverá ser manter, na esperança que o tempo de TV lhe proporcione a oportunidade de reverter a fraca intenção de voto que tem hoje. Portanto, a dispersão eleitoral deverá se manter. Embora, aos poucos, se revele que apenas três, no máximo quatro, terão condições de estar no segundo turno.
Pesquisas apontam que a principal pauta das eleições 2018 para os eleitos é o combate à corrupção. Pautas como a do Desenvolvimento Sustentável, que o senhor defende, têm sido colocadas às margens do debate político?
O tema do Desenvolvimento Sustentável é marginal aqui no Brasil como o é nos Estados Unidos, na França e na maioria dos países democráticos. Ele é um tema muito genérico, pouco palpável para as pessoas. Perderá sempre de temas mais prementes como segurança, saúde, educação, emprego etc. O tema da corrupção será importante, mas menos do que dizem as pesquisas – pelo defeito intrínseco que elas carregam. Lula está preso, e muitos de seus eleitores acreditam que ele transgrediu a lei, mas o que fez pelo povo justifica os “poucos deslizes” que cometeu. Nós temos uma cultura muito permissiva. Há discursos que são fundamentais de serem pronunciados porque são “politicamente corretos”, mas nem sempre são fatores decisivos em nossas decisões. Nas redes sociais todos os candidatos serão corruptos, inclusive a Marina. Para isso foram construídos os Fake News. Ninguém vota em um candidato, mas na imagem que se construiu do candidato. Como na vida real, o que importa não são os fatos, mas as suas versões.
O que o próximo presidente deve priorizar para que a economia brasileira cresça de maneira sustentável?
O próximo presidente precisa compreender que o capital natural é um dos capitais mais importantes no futuro, juntamente com o capital cultural (educação e inovação). Temos mais a ganhar com as florestas em pé do que derrubadas. Precisamos colocar a ciência e tecnologia para trabalhar para nós, no sentido de retirar riquezas da floresta, sem degradá-la. Deverá compreender que a crise ambiental não é algo de menor importância, e que não existe planeta B. Temos um só com a população crescendo a cada dia e uma forma de produzir e consumir absolutamente irracional no ponto de vista da sustentabilidade.
FAP Entrevista: Luiz Sergio Henriques
Um dos grandes males da política nacional brasileira é a atual polarização da sociedade, avalia Luiz Sérgio Henriques
Por Germano Martiniano
O entrevistado desta semana da série FAP Entrevista é Luiz Sérgio Henriques, tradutor e ensaísta. Com uma ampla participação em jornais e revistas associados ao velho PCB, como Voz da Unidade e Presença, na Fundação Astrojildo Pereira dirige a coleção Brasil & Itália, que trouxe para o público brasileiro livros inéditos de Giuseppe Vacca, Silvio Pons e outros. Coeditou, com Marco Aurélio Nogueira e Carlos Nelson Coutinho, as Obras de Antonio Gramsci, lançadas pela Editora Civilização Brasileira. Há vários anos é colaborador regular de O Estado de S. Paulo. Edita o site Gramsci e o Brasil e a página Esquerda Demócratica (que podem ser acessados por meio dos links www.gramsci.org e https://www.facebook.com/esqdemocratica, respectivamente). Esta entrevista faz parte de uma série que a FAP está publicando, aos domingos, com intelectuais e personalidades políticas de todo o Brasil, com o objetivo de ampliar o debate em torno do principal tema deste ano: as eleições.
Para Henriques, um dos grandes males da politica nacional brasileira atualmente é a polarização da sociedade. “Aos poucos perde-se a noção, absolutamente essencial, de que pode haver um bem comum, nutrido, evidentemente, por ideais de liberdade e níveis menos escandalosos (bem menos!) de desigualdade social e regional. A recuperação da ideia de bem comum deveria ser a tarefa essencial de todos os democratas, sem maiores distinções”, avalia.
A democracia está sob ataque, no cenário internacional, acredita Luiz Sérgio Henriques. “A Europa do compromisso social-democrata sofre um assédio dos dirigentes ditos 'populistas', Evidente, ainda, a crispação dos Estados Unidos sob Trump, que parecem recuar desordenadamente para o interior das suas fronteiras e abdicar das instituições multilaterais que ajudaram a formar, em primeiro lugar a ONU”, avalia o especialista em Gramsci.
Confira, abaixo, os principais trechos da entrevista com Luiz Sergio Henriques:
FAP - O jornalista William Waack, nesta semana, escreveu um artigo que analisa a pobreza do atual debate político brasileiro que, praticamente, se restringe ao tema da corrupção, mas que se preocupa muito pouco com outras questões essenciais a sociedade. O senhor concorda com essa visão e quais seriam as questões essenciais a serem debatidas?
Luiz Sergio Henriques - Pode-se evidentemente ter uma visão pobre sobre o problema da corrupção, supondo que ela seja o tal câncer que corrói a nação, superado o qual nos tornaríamos uma Escandinávia dos áureos tempos. Tradicionalmente, a esquerda chamou esta visão de "udenismo", um moralismo convencional e muitas vezes hipócrita. Mas a pegada udenista não é a única possível. Há problemas de moralidade pública quando um partido de governo ocupa a máquina pública com a ideia de se autorreproduzir indefinidamente, pelo menos em princípio. Ou quando, inversamente, um partido de oposição se comporta de modo irresponsável, educando ou deseducando os seus seguidores com exigências radicais, que não poderá satisfazer uma vez no governo. A correta relação com as instituições, o tema do bom governo, o ativismo governamental em favor dos mais desfavorecidos, com boas e eficientes políticas públicas – nada disso é udenismo. Recordo que outrora o petismo se considerava o monopolizador da ética na política. À luz do que aconteceria depois, podemos dizer que se tratava de uma versão particularíssima do udenismo, que não resistiria ao contato com a vida real.
O ex-presidente Lula teve mais um recurso de defesa negado pelo TRF-4, em Porto Alegre, nesta última semana. O Partido dos Trabalhadores e seus simpatizantes continuam com o discurso de que Lula é um preso político. Como o senhor avalia esse discurso?
Saímos de uma ditadura de fato em 1985. Embora haja novas e novíssimas gerações que não viveram aquele pesadelo, todos sabemos muito bem o que é um preso político, o que é a tortura, o exílio, o morto sem sepultura. Acostumamo-nos, por exemplo, a ler os relatórios de ONGs que respeitávamos, como a Anistia Internacional e a Human Rights Watch, que faziam a denúncia global dos crimes e arbitrariedades políticas aqui cometidos. Nada disso está presente hoje. Os relatórios internacionais falam (e devem mesmo falar) das nossas infelizes chagas "costumeiras", como os 60 mil assassinatos anuais, a violência policial, a violência contra os bons policiais, os cárceres desumanos, mas não denunciam nenhum regime ditatorial, nem poderiam. O ex-presidente Lula, tal como Eduardo Cunha ou Sérgio Cabral, é apenas um político preso, por mais que conte com uma massa considerável de adeptos e seguidores mais ou menos convictos que jurem de pés juntos que ele é um perseguido. Existe em nosso país a separação plena de poderes, o Judiciário não é um ramo subordinado a partidos ou governos. Sem fazer qualquer juízo de mérito, constato que o Executivo tem à frente um político extremamente impopular, que não teria a mínima força para dar um golpe ou um autogolpe e instaurar um regime de exceção. As Forças Armadas comportam-se nos termos constitucionais. Elas se atualizaram e até participaram de missões em defesa dos direitos humanos, como no Haiti, sob a bandeira da ONU. Não há mais a guerra fria, apesar da polarização desastrada que atravessa a nossa sociedade. O calendário eleitoral não pode ser rasgado e há plena liberdade de organização partidária, como é natural que haja quando comemoramos os 30 anos da nossa mais avançada Constituição.
Em seu último artigo, o senhor citou que nenhuma sociedade poderia superar suas contradições mais agudas dividida em “metades inconciliáveis”. O Brasil atual, inflamado pelo discurso petista e também de Bolsonaro, vive grande polarização política. Como acabar com essa divisão?
A divisão de uma sociedade ao longo de linhas mais facciosas do que partidárias é uma maldição. Aos poucos perde-se a noção, absolutamente essencial, de que pode haver um bem comum, nutrido, evidentemente, por ideais de liberdade e níveis menos escandalosos (bem menos!) de desigualdade social e regional. A recuperação da ideia de bem comum deveria ser a tarefa essencial de todos os democratas, sem maiores distinções. Como estamos situados numa determinada faixa do espectro político, que é a esquerda, pessoalmente gostaria que esta mesma esquerda, ou sua parte majoritária, assumisse um papel de protagonista na construção e consolidação do terreno comum. Isto simplesmente não foi possível com o lulismo e o petismo, que se articulou em torno de esquemas simplórios, como aquela terrível imagem de “casa grande” e “senzala”. Seriam escravocratas, homofóbicos, xenófobos ou misóginos – em suma, moradores da casa grande – todos os não-petistas e mesmo os antipetistas, o que está muito distante de corresponder à realidade. Ou, para falar a verdade, significa uma monumental distorção dos fatos. Basta olhar ao nosso redor e ver que, fora dos limites estreitos da militância e do fanatismo, há pessoas sensatas, razoáveis, que se preocupam com o futuro delas e do país. E estas pessoas são a maioria. A grande política, hoje, significaria dar voz a elas, na multiplicidade de suas exigências e demandas, relegando às margens os incendiários de todo tipo. Esta maioria abomina a extrema-direita truculenta que alguns hoje querem “normalizar”.
Outro ponto de destaque em seu artigo foi que “nenhuma esquerda podia mais pôr em questão, para se credenciar a um papel dirigente, a dialética democrática”. O senhor acha que o PT, mesmo com a prisão de Lula, ainda representa uma ameaça à esquerda democrática brasileira, e em um sentido mais amplo, à democracia brasileira?
Dirigir um país é ter políticas e programas para todos. É buscar exaustivamente o consenso ativo dos governados, recomeçando a cada dia esta tarefa interminável. É falar a verdade, dar explicações constantes e, de repente, aprender. É preciso ter um alto sentido de Estado e das suas instituições. Agir no parlamento e em todos os demais fóruns como um fator de modernização, participação e transparência. Como, a meu ver, não temos nenhuma outra bússola a não ser a Constituição de 1988, fico incomodado quando em reiterados documentos oficiais o principal partido de esquerda volta a defender assembleias constituintes inteiramente extemporâneas. Há poucos dias um de seus notórios representantes apregoou "o fechamento do STF", o que me parece de um sectarismo sem par, que não ficaria deslocado na boca de algum porta-voz daquela extrema-direita que mencionei. Por ocasião dos acontecimentos de 2005, o "mensalão", houve vozes dentro do PT que falaram em refundação do partido. Vozes fracas, é verdade, mas houve. Nestes últimos meses tenho tentado observar movimentos, mesmo mínimos, na direção de uma autocrítica e de uma vontade de dar início a uma reflexão menos precipitada sobre a política e sobre o nosso país. Em algum momento, o PT terá de enfrentar esta realidade e ver a sua própria cara no espelho, sem condescendência de nenhum tipo. Hoje o partido parece perdido entre a agressividade e o instinto de defesa a qualquer custo. Isto não anuncia nada de bom nem para o partido nem para o nosso país.
Quais partidos políticos representam, atualmente, no Brasil, uma esquerda democrática e qual deve ser o papel dos mesmos?
Não gostaria de citar este ou aquele partido até pelo quadro extremamente caótico do sistema. Praticamente todos os partidos, uns mais, outros menos, estão sendo atingidos pelas múltiplas investigações em curso, o que não deixa de ter o seu lado extremamente perigoso. Afinal, não custa lembrar que não há democracia sem partidos. Agiram e continuam a agir fatores muito potentes de desagregação. Limito-me a citar a espantosa janela de infidelidades, que, efetivada a poucos meses das eleições gerais de 2018, quis “corrigir" o resultado das urnas de 2014, fazendo com que detentores de mandato mudem de sigla até mais de uma vez ao sabor dos leilões do fundo partidário e eleitoral. Há muitas razões, assim, para o cidadão não sentir um vínculo maior com o deputado que deveria ser "seu", mas não é. Há bons deputados espalhados nas várias agremiações de centro-esquerda e centro-direita, e será interessante ver em ação os novos mecanismos "centrípetos" recentemente aprovados, como a cláusula de desempenho e, mais à frente, a proibição de coligações nas eleições proporcionais. Haverá incentivo para que iguais e afins se juntem em grupos mais consistentes, interrompendo a lógica de criação indefinida de simulacros de partidos. Não se consegue implantar um sistema pronto e acabado, como num experimento controlado em laboratório, mas é evidente que ainda estamos longe de resolver o tema crucial do financiamento das atividades partidárias. Ele deve ser público, privado ou uma mistura de ambos? Na época digital, limites de custos de campanha e controle dos recursos empregados se tornam uma imposição. Não é possível que a política seja uma alavanca para a riqueza privada daqueles que vivem da política, não para a política. Já num plano mais substantivo, é de se esperar que as novas agremiações que resistirem ao teste da barreira mínima de votos e da proibição de coligações se tornem menos ideológicas e mais programáticas. Nunca houve nem haverá uma só solução para cada um dos nossos imensos desafios, e é fundamental que os partidos, em número bem mais contido do que os de hoje, saibam elaborar as diferentes soluções possíveis a partir da diversidade de interesses que existem na sociedade. Convém lembrar, contudo, que sairá vencedora aquela condensação de interesses que se elevar até o plano geral, rompendo o egoísmo e o corporativismo. Um desafio para uma futura esquerda renovada.
O conflito na Síria, além de colocar em choque grandes nações, também evidencia ainda mais o advento de governos autoritários, além de discursos hostis. A democracia no ocidente está em risco? O senhor considera a possibilidade de outra grande guerra?
A democracia política é um conjunto de valores e instituições herdados do liberalismo clássico e progressivamente ampliados pela ação de classes e setores subalternos, ao longo de séculos de lutas muitas vezes duríssimas e até cruentas. O sufrágio universal, por exemplo, não foi o resultado de belo sonho de uma noite de verão. Muito menos o sindicalismo autônomo e a própria forma-partido. Por isso, é fácil perceber que a democracia é um patrimônio coletivo que permite o desenvolvimento da política como persuasão, como consenso, como luta social muitas vezes áspera, mas dentro de parâmetros definidos, sem descambar para a guerra de todos contra todos. Este conjunto de regras está hoje sob ataque. A Europa do compromisso social-democrata sofre um assédio dos dirigentes ditos "populistas", com sua capacidade preocupante de dar uma resposta – por mais ilusória e regressiva que possa ser – ao desenraizamento trazido pelo fenômeno perturbador da globalização. Evidente, ainda, a crispação dos Estados Unidos sob Trump, que parecem recuar desordenadamente para o interior das suas fronteiras e abdicar das instituições multilaterais que ajudaram a formar, em primeiro lugar a ONU. Na América Latina, não foram poucas as ameaças trazidas pelo bolivarianismo, cujo projeto de "socialismo do século XXI", essencialmente autoritário, contribuiu para desonrar uma vez mais os conceitos de esquerda e de socialismo. Ao mesmo tempo, vivemos possibilidades imensas, com o avanço da ciência, a transição energética e a revolução nas tecnologias de comunicação e informação. Todo e qualquer progresso traz em si novos dilemas éticos, que nem sempre conseguimos formular e decifrar no calor da hora. A sensação é que os fatos continuam a correr na frente da nossa capacidade de dirigi-los e ordená-los minimamente. No fundo, tudo isso é um conjunto de grandes desafios que podem revitalizar e dar substância à política democrática.
Em Cuba, Raul Castro cedeu a presidência a Miguel Diaz Canel, 57 anos, nascido após a revolução de 1959. Qual o significado e o peso dessas mudanças?
Sob muitos aspectos, Cuba é um legado de um mundo que já passou. Sua revolução, que deixou traços duradouros na imaginação da esquerda, hoje é um mito com reduzida capacidade expansiva além dos círculos irremediavelmente presos ao passado, o que, aliás, é um direito de quem quer se deixar prender desta maneira. No entanto, não creio que se deva pensar o socialismo como contraposição de países ou de "sistemas". Ou como algo que se encarna num país ou noutro e que resiste ao capitalismo dos demais. Este é um caminho que deu em nada no passado e previsivelmente não nos levará longe no futuro. Já houve gente que viu o socialismo realizado na Albânia, contra todo o resto do planeta. Por sinal, mais importante do que Cuba é, seguramente, a China (e a Índia), cujo ritmo de expansão não se deteve nestes últimos anos de crise. E a China é, rigorosamente, um animal que não sabemos classificar, uma espécie de unicórnio do século XXI: sob a roupagem do comunismo tradicional do século XX (haja vista a recente entronização de Xi Jinping à frente do partido-Estado), desenvolve-se um mercado poderoso e omnívoro, ainda não contrabalançado por sindicatos ou outras formas associativas livremente organizadas. Mais uma das múltiplas esfinges que nos espreitam todo o tempo.