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Governo militar do Centrão
Carlos Andreazza, O Globo
Braga Netto, ministro da Defesa (e um dos grandes salários de Brasília), mandou avisar que, sem o “voto eletrônico auditável”, não haverá eleições em 2022. O recado destinara-se ao presidente da Câmara. Assim informou o Estadão; que também descreveu a forma como Arthur Lira recebera a mensagem: movimento grave, em função do qual procurou Bolsonaro para lhe dizer que iria até o fim com o presidente, mesmo que para perder a eleição, mas que não contasse com ele para qualquer ato de ruptura institucional.
A leitura do episódio propõe fotografia fácil: o presidente da Câmara impondo limites ao general golpista. (Voltaremos a isso.)
As reações à publicação da notícia a confirmaram. Lira, que em off negava a ameaça, publicamente ensaboava-se de nem-nem para declarar que, independentemente de qualquer intimidação, votaremos no ano que vem — um velho expediente de quem não quer ser desmentido. A foto estava boa para o deputado. A nota de Braga Netto a nos comunicar que ele, assumindo-se como agente político, move-se de maneira ainda mais ostensiva, que não precisa de intermediários para falar a outros Poderes e que é isto mesmo, asseverado por escrito: à vontade para disparar manifestos políticos e fazer carga sobre o Parlamento, com o peso de quem controla o paiol, por uma pauta — do populismo autoritário bolsonarista — que atribui ao governo federal e que, não havendo mais fronteiras entre Planalto e instituições impessoais de Estado, estende às Forças Armadas. Uma demonstração de musculatura. Estava bom para o general.
Braga Netto é o panfleto circunstancial a defender uma compreensão viciada que circula desde o tuíte em que o general Villas Bôas advertiu o Supremo (à véspera de o tribunal deliberar sobre habeas corpus de Lula, em 2018), que contaminou o Exército e que avança por Aeronáutica e Marinha: que as Armas, autorizadas por leitura doente da Constituição, comporiam espécie enviesada de poder moderador — a serviço de Bolsonaro para tutelar Legislativo e Judiciário.
O subserviente Braga Netto expressa o comando golpista do presidente. Bolsonaro não manda recado por terceiros e está diariamente dizendo, a quem quiser ouvir, que, sem a contagem de votos como deseja, não haverá eleições. (Como é intelectualmente desonesto e depende do conspiracionismo para existir, o bolsonarismo acusará fraude de qualquer maneira, com ou sem voto impresso.) Nada pode ser mais grave; o general sendo somente mais um estafeta muito bem aquinhoado para dispor as Forças Armadas aos interesses autoritários do mito.
Voltemos a Arthur Lira. Saiu bem na fotografia do episódio. Como democrata, garantidor da República contra a ameaça de golpe. Contra a ameaça de um golpe que é a mais perfeita impossibilidade. Lira reagindo a um golpismo do século XX, com tanques na rua para desfechar a tal ruptura — o que, por absoluta falta de meios, não haverá. Lira reagindo, pois, a um inimigo artificial, a um espantalho, fantasia que talvez ele próprio tenha criado, enquanto se cala — mui bem acolhido pelo golpista — ante os modos do verdadeiro ataque de Bolsonaro, aquele executado progressivamente, num investimento constante para minar, por dentro, o equilíbrio institucional, para esgarçar o tecido social, para destroçar a guarda constitucional, para enfraquecer a confiança no sistema eleitoral, para dilapidar, carcomendo os fundamentos, a democracia representativa e, mais amplamente, a democracia liberal; para o que colabora o presidente da Câmara, passador agressivo de boiada, atropelador dos instrumentos de defesa regimental das minorias legislativas.
Golpe, aquele (impossível) com ruptura institucional modelo 1964, é ruim para os negócios. Lira não aceita. Mas não só compõe com o populismo autoritário, esse (real) que golpeia por desgaste, sem tirar-lhe a fartura das tetas do Estado, como é sócio do governo militar de Bolsonaro. Não apenas alguém que mama, mas que controla o destino e o ritmo da ordenha. Governo militar do Centrão. Ou, como preferiria o professor Wilson Gomes, já que Centrão seria figura amorfa que não se poderá punir nas urnas: governo militar do Progressistas, com Ciro Nogueira, com general Heleno, com tudo. Sócios.
Prudência, portanto, antes de olhar para arranjo eventual do governo e logo supor que os militares perdem espaço para Lira e turma. São sócios. E só reforçam a sociedade. O governo é militar; e são os militares, os generais ramos e outros com teto duplex para remuneração, os primeiros a compreender a importância do orçamento secreto e da necessidade objetiva de ter a operação de um profissional tocada desde o Planalto. Os generais investiram as próprias Forças Armadas no sucesso do governo. Precisam da reeleição em 2022.
Nada mais representativo deste momento decisivo do que o presidente falando — ocorrência raríssima — a verdade. Sim, o capitão é — sempre foi — do Centrão. Um militar condicionado pela cultura do Progressistas. Mas não da gema do Centrão. Bolsonaro é das bordas, catador de migalhas, de rachadinhas. Um marginal do Centrão. Do Centrão ressentido. Assentado — imaginemos uma daquelas pizzas gordurosas que levam recheio na borda — dentro da casca, aboletado no catupiry da extremidade, condição ideal para que constituísse bem-sucedida empresa familiar. Nunca esteve sozinho.
Se gritar “pega Centrão”, Ricardo Barros corre com Pazuello (e Elcio Franco) no colo.
Radiografia das ‘lives’ e discursos de Bolsonaro mostra escalada de autoritarismo e desinformação
Análise do vocabulário do presidente feita pela Lagom Data para o EL PAÍS expõe aumento de falas contra o sistema eleitoral, maior simbiose com Exército e informações erradas sobre vacinas. YouTube retirou do ar vídeos do presidente com dados médicos incorretos
No primeiro semestre de 2021 Jair Bolsonaro subiu o tom de suas falas, intensificando a frequência a referências autoritárias. A 14 meses das eleições presidenciais, reforçou a campanha de desconfiança sobre o sistema eleitoral brasileiro. Passou também a usar com mais frequência em suas lives no YouTube expressões como “meu Exército” e “minhas Forças Armadas”, em que evoca simbiose com os militares e se apropria para uso pessoal da atribuição constitucional de que foi incumbido. E se finalmente o Governo Bolsonaro abraçou a campanha de vacinação contra a covid-19, nas transmissões nas redes sociais o presidente seguiu difundindo informações errôneas sobre a doença. É o que aponta uma análise dos padrões de falas e discursos do presidente, feita com exclusividade para o EL PAÍS pelo estúdio de inteligência de dados Lagom Data. É esse discurso que molda as decisões políticas e sanitárias do Governo, ainda que as ideias afrontem a democracia e a ciência.
Vários dos vídeos em que Bolsonaro espalha desinformação sobre a covid-19 foram tirados do ar pelo YouTube na última quarta (21), numa decisão inédita. “Nossas regras não permitem conteúdo que afirma que hidroxicloroquina e/ou ivermectina são eficazes para tratar ou prevenir a covid-19, garante que há uma cura para a doença; ou assegura que as máscaras não funcionam para evitar a propagação do vírus”, explicou o canal. O vocabulário desses vídeos entrou na análise antes que ela saísse do ar. As regras do YouTube batem em cheio sobre o conteúdo produzido pelo presidente, arma poderosa para amalgamar o apoio de seus eleitores, que multiplicam quase instantaneamente as informações divulgadas por Bolsonaro.
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Para a análise, o Lagom Data coletou a íntegra do texto dos 406 discursos de Bolsonaro disponíveis no site oficial do Planalto, além das legendas automáticas de 89 das 110 lives do presidente, entre sua vitória eleitoral, em 2018, e o final do primeiro semestre de 2021. Destas, ao menos 10 lives parecem ter sido removidas pelo YouTube, em uma nova análise feita nesta quarta pelo estúdio de inteligência de dados. Ao todo, 14 vídeos ao vivo foram retirados do canal do presidente.
“Se eu levantar minha caneta Bic e falar ‘Shazam’, eu vou ser ditador. Vou ficar sozinho nessa briga? O meu exército que tenho falado o tempo todo é o povo. Sempre digo que eu devo lealdade absoluta ao povo brasileiro, e esse povo está em toda sociedade, inclusive o Exército fardado”, disse na transmissão ao vivo do YouTube em 11 de março de 2021. Em 20 de maio, o presidente utilizou a expressão novamente para criticar as medidas de isolamento impostas pelos Governos locais por conta da pandemia. “Eu já falei várias vezes que o meu exército jamais irá às ruas para manter o povo dentro de casa, como as forças policiais de alguns governadores”.
Quando menciona a caserna, Bolsonaro gosta de fazer reminiscências do seu passado militar (ele foi capitão do Exército), afirmações grandiloquentes sobre sacrificar a própria vida e soberania do povo e elocubrar sobre “o inimigo”, uma referência velada ao combate ao “comunismo” muitas vezes tratado como sinônimo de esquerdismo ou petismo. Presidente que mais empregou militares na administração pública desde o fim da ditadura, Bolsonaro, desde a posse, já falou em 31 formaturas de academias militares e policiais ―23 das Forças Armadas, 8 de polícias militares, uma frequência de participação que não era comum a outros presidentes.
“Quando estava no Exército, Bolsonaro era um estorvo que foi afastado por motivos políticos em 1988. Em 2014, 2015, ele foi transformado num mito. No poder, virou um cavalo de troia, para que esse grupo ocupasse os espaços de poder. Cabeça, tronco, membros, entranhas e alma do Governo”, afirmou ao repórter Afonso Beniteso coronel da reserva do Exército Marcelo Pimentel, que enxerga no comando do país um “Partido Militar”.
Caos nas eleições e vacinas
Em março de 2020, um ano e cinco meses após ser declarado vencedor da eleição presidencial, Bolsonaro prometeu em Miami apresentar supostas evidências de que, devido a uma fraude, não conseguiu vencer no primeiro turno as eleições de 2018. Desde então, tem se esquivado de apresentar essas tais provas às autoridades competentes, o que não o impede de voltar a fazer as mesmas acusações.
A análise do seu vocabulário mostra que as eleições de 2022 têm presença constante no seu discurso desde os primeiros meses do seu mandato. Essas menções vêm se avolumando desde outubro de 2020, e cresceram no primeiro semestre de 2021. Desde janeiro, as expressões “voto impresso” e “voto auditável” também aparecem com mais frequência na fala do presidente. Nas lives, elas já apareceram 27 vezes. Em discursos, 16.
Na live de 25 de junho, o alvo foi a campanha contra o sistema eleitoral: “Ministro [Edson] Fachin, o mesmo que proibiu policiais militares do Rio de Janeiro de entrar na comunidade atrás de vagabundo, o mesmo que proibiu que helicópteros façam operações dentro de comunidades, agora disse que quem luta pelo voto auditável comete um ato de violência contra a Constituição. Dá para entender? Dando palpite. Palpiteiro!”, disse Bolsonaro.
Se nos discursos, geralmente em ocasiões solenes, o presidente usa um vocabulário mais comedido e muitos cumprimentos, é nas lives, destinadas a sua base mais fiel e radicalizada, que ele afrouxa a gravata e faz a maior parte das menções distópicas. Em média, Bolsonaro fala durante 49 minutos em suas transmissões ao vivo semanais. Seus discursos, por sua vez, tendem a ser mais curtos. A live mais longa, de 1º de julho deste ano, teve quase uma hora e cinco minutos. Com isso, o conjunto completo de falas analisadas forma uma massa de vocabulário mais extensa do que a Bíblia: são 871.412 palavras ―sites religiosos estimam que o texto completo da Bíblia tenha até 810.000 palavras, dependendo da tradução.
Essas diferenças entre discurso formal e o feito sob medida para mobilizar para seus seguidores também fica claro no manejo discursivo da pandemia de covid-19. No segundo semestre de 2020, a bala de prata favorita de Bolsonaro para enfrentar a covid-19 era a cloroquina, ou hidroxicloroquina, remédios prescritos para malária que o Governo transformou em política de Estado pela qual agora nenhum ministério se responsabiliza, como mostrou o EL PAÍS.
As menções ao fármaco se reduziram a quase nada no final do ano, quando a busca pelas vacinas se tornou o principal assunto do Brasil. As citações ao remédio voltaram, agora de maneira defensiva, após a abertura da CPI da Pandemia, no final de abril. Neste mês, o órgão técnico que assessora o Ministério da Saúde finalmente enviou documento à CPI no qual afirma que os remédios do chamado “kit covid” promovido pelo Planalto, mas também por clínicas privadas, não têm qualquer efeito para mitigar a covid-19. E e o YouTube tomou sua primeira reação oficial contra esses vídeos, o que pode culminar com a suspensão do próprio canal pessoal do presidente.
As falas de Bolsonaro sobre a vacina neste ano flertam com contradições o tempo inteiro: numa mesma live, ele pode questionar a eficácia e a segurança das vacinas num momento para, minutos depois, afirmar que por virtude sua o Brasil é um dos países que mais vacinam no mundo. Na live de 24 de dezembro, por exemplo, ele disse que a eficácia da Coronavac ―de tecnologia chinesa e fabricada ao Brasil pelo Instituto Butantan por iniciativa do Governo de São Paulo― seria “lá embaixo”.
Mesmo depois de fazer um discurso em cadeia de rádio e TV em março defendendo a imunização, Bolsonaro segue sabotando a campanha pela vacina com informações equivocadas, como a de quem já teve covid-19 não precisa se vacinar: “Todos que contraíram o vírus estão vacinados, até de forma mais eficaz que a própria vacina porque você pegou o vírus para valer. Então, quem contraiu o vírus, não se discute, esse está imunizado”, afirmou Bolsonaro em live em 17 de junho.
Antes da iniciativa desta semana do YouTube, outras dez lives já haviam sido retiradas do ar, especialmente quando afirmações feitas por Bolsonaro tiveram consequências jurídicas. É o caso do vídeo de 14 de janeiro, dia em que faltou oxigênio em Manaus ―mais de 30 pessoas morreram na capital amazonense em dois dias de falta de oxigênio. Ao lado do então ministro Eduardo Pazuello, foram feitas oito afirmações checadas pela Agência Lupa. O presidente louvou, mais uma vez, os medicamentos sem eficácia comprovada contra a doença e o ex-ministro disse não saber se o distanciamento social funciona. Também desapareceu a live de 26 de março de 2020, logo no início da pandemia, quando ele dizia que a covid-19 não seria problema porque brasileiro mergulha no esgoto e não acontece nada.
Limitação de dados e transparência
Além dos vídeos retirados do ar, há uma limitação importante nos dados das lives, o que remete a mais uma questão de falta de transparência do Governo Bolsonaro. Se os discursos oficiais são transcritos rotineiramente pelo cerimonial da Presidência e publicados no site oficial do Planalto desde o Governo Fernando Henrique Cardoso, as transmissões em rede social, embora contem com infraestrutura oficial, são tidas iniciativa pessoal do presidente. Algumas chegaram a ter meio milhão de espectadores. De todo modo, como estão publicadas no YouTube, foi possível extrair a transcrição automática da maioria delas.
Para análise, essas transcrições foram mantidas como vieram, sem revisão. O algoritmo de reconhecimento de voz depende da clareza da dicção, o que não é uma marca constante das falas de Bolsonaro. Com isso, é possível que algumas menções a palavras de interesse possam ter ficado para trás porque o presidente gaguejou ou embaralhou sílabas. Palavras pouco comuns também podem ser transcritas com erro. É o caso do ministro Edson Fachin, do STF, cujo sobrenome a transcrição automática do YouTube compreende como “Faquinha”. Também não é possível automaticamente separar o que Bolsonaro diz do que seus convidados falam ―por isso, não foram analisadas palavras como “presidente”, que podem indicar uma saudação do interlocutor.
Outras transmissões ao vivo estão sem a legenda gerada pelo computador. Todas as lives de dezembro de 2020 estão nessa situação. Uma consulta ao noticiário sobre as lives do período mostra que foram nessas transmissões que Bolsonaro mais fez senões às vacinas contra a covid-19. O período coletado tampouco abrange as revelações que surgiram em julho na CPI da Pandemia sobre os negócios suspeitos que teriam sido endossados por autoridades do Ministério da Saúde para comprar vacinas tendo empresas improvisadas como atravessadoras.
“Parte da imprensa”
É nas lives, de longe, que Bolsonaro faz a maior parte dos seus ataques à imprensa. Menções genéricas às palavras “imprensa” e “mídia” se avolumam ao sabor das críticas recebidas pelo presidente, e tiveram seu ápice em junho de 2020. Foi naquele mês, logo após a entrada de Eduardo Pazuello no Ministério da Saúde, que o Governo tomou medidas para tentar ocultar dados de mortes causadas pela covid-19.
Desde meados de maio, a divulgação dos dados atrasava um pouco mais a cada dia, até que, questionado por jornalistas, Bolsonaro estourou: “Acabou matéria do Jornal Nacional”. Os dados eram propositalmente atrasados para que não fossem mostrados em horário nobre. Naquele dia, o Jornal Nacional entrou com boletim urgente na TV assim que os dados foram anunciados. Na semana seguinte,numa decisão que teve a participação do empresário Carlos Wizard, aliado de Bolsonaro e agora alvo da CPI da Pandemia, o Ministério da Saúde deixou temporariamente de publicar os dados diários sobre a covid-19 até que o Supremo Tribunal Federal ordenou que voltasse a publicá-los.
As menções à imprensa também se avolumam ao longo do primeiro semestre deste ano. As palavras Folha e Globo, nomes de duas das maiores empresas de comunicação do Brasil, foram mais citadas neste semestre do que em todo o segundo semestre de 2020. Em 2020, tem destaque o uso da expressão fake news por parte do presidente, tanto para defender a si e a aliados de processos por atos democráticos e desinformação quanto para acusar empresas de comunicação de mentir.
Em diagrama que mostra a estrutura do discurso, chamada de árvores de palavras, é possível ver estatisticamente a frequência com que outras palavras acompanham os termos de interesse na fala de Bolsonaro, em lives e em discursos. É mais fácil ele fazer referências à “grande mídia” e “parte da imprensa” em lives do que em situações formais, por exemplo.
Golpe? Que golpe?
Demorou, mas finalmente as instituições se mexeram e foi criada a CPI da Covid
Vai ter golpe? Não. Já teve. Não sei se você lembra, mas foi em 2016, contra Dilma Rousseff. Como o espaço é curto, eu vou resumir. Teve o tuíte golpista do general Villas Bôas ao Supremo, Lula foi preso, não pôde participar da eleição e Bolsonaro foi eleito, enquanto as instituições, claro, funcionavam normalmente. Sim, teve o Moro, hoje, sabe-se, um juiz suspeito.
Tudo ia muito bem para essa gente. Mas, no meio do caminho tinha uma pandemia. Demorou, demorou, mas, ufa, finalmente, as instituições se mexeram e foi criada a CPI da Covid. Eis que os senadores descobrem fortes indícios de corrupção na negociação para comprar vacinas! As suspeitas envolvem coronéis e o general da ativa que foi ministro --e também encostam em Bolsonaro.
Ele despenca nas pesquisas. O que faz, então, o presidente enfraquecido? O arauto do caos intensificou a pregação golpista contra a urna eletrônica e as eleições, contando, agora, com o reforço escancarado do ministro da Defesa, Braga Netto, conforme revelou o jornal O Estado de S. Paulo. A ameaça do general foi direcionada ao presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), o mesmo que com seus poderes hipertrofiados se recusa a analisar os pedidos de impeachment contra o presidente.
Ocorre que Bolsonaro foi buscar apoio justamente no centrão de Lira. Na rapina do dinheiro público, a turma de Lira faz assim: escalpela, dilacera as vísceras e termina o repasto triturando os ossos até o tutano. O híbrido de governo miliciano, centrão, liberais defensores do Estado esquelético e militares saudosos da ditadura ainda vai produzir muitos sobressaltos.
Mas o Brasil que irá às urnas em 2022 é muito diferente daquele que votou com ódio em 2018. E tudo o que os generais herdeiros de Ustra conseguirão com seus arreganhos é se parecer cada vez mais com um bando de "maria fofoca", metidos num disse me disse de golpe. Generais, vistam o pijama e devolvam-nos o país que vocês destruíram. Não estão satisfeitos com 550 mil mortos?
Está só começando o assalto do Centrão ao governo Bolsonaro
Para pelo menos completar o mandato, o presidente entrega os anéis, os dedos e o que mais for necessário
Fosse bem o governo, o presidente Jair Bolsonaro não precisaria abrir a porta para a entrada do Centrão, o que ele sempre negou que faria. Como o governo vai mal e o sonho da reeleição cada vez mais distante, restou-lhe dar o dito pelo não dito.
Não foi o Centrão que meteu o pé na porta, foi o presidente que lhe estendeu o tapete vermelho e pediu que entrasse. Nada tem a ver com um lance de ocasião do tipo ceder os anéis e preservar os dedos. Haverá de ceder os dedos e muito mais.
Consentido por Bolsonaro, o assalto do Centrão ao governo está só começando. Uns tantos quintos colunas ali já estavam instalados, mas perdiam de longe para os militares em matéria de influência. Em breve, o placar deste jogo será invertido.
A chefia da Casa Civil não é um cargo qualquer, é o mais importante do governo depois do cargo de presidente. Foi por isso que do México, onde ainda se encontra de férias, o senador Ciro Nogueira (PP-PI) apressou-se a dizer sim ao convite para ocupá-lo.
Nogueira não é simplesmente um senador, é presidente do seu partido, um dos maiores, e um dos líderes do Centrão. Em 2006, indicou a senadora Ana Amélia para vice de Geraldo Alckmin, candidato do PSDB a presidente contra Dilma Rousseff (PT).
Antes da eleição, abandonou Alckmin, Ana Amélia e apoiou Dilma. Ele e a mãe posaram para fotos com adesivos da campanha de Dilma. Em vídeo gravado em 2017, chamou Bolsonaro de fascista e Lula de o maior presidente da história do país.
Bolsonaro está sendo obrigado a explicar aos seus devotos por que convidou para ser o seu segundo não só um nome do Centrão como justamente o daquele que o tinha como má companhia. E tem respondido que no passado disse coisas que hoje não repetiria.
Seria o caso de perguntar-lhe que coisas foram essas que hoje não mais diria. E de perguntar a Nogueira por que há três anos e meio ele considerava Bolsonaro um fascista. É de supor que não considere mais. Foi Bolsonaro quem mudou ou foi Nogueira?
Os militares sempre serão o maior contingente de quadros do governo Bolsonaro – algo entre 6 mil e 8 mil, da reserva e da ativa, distribuídos por todos os escalões. Mas a entrada de Nogueira os afetará, bem como a Paulo Guedes, ministro da Economia.
Sob o seu comando, Guedes reuniu meia dúzia de antigos ministérios rebaixados à condição de secretarias. Acaba de perder Trabalho e Previdência Social e corre o risco de perder o Planejamento. Por mais que negue, está em declínio.
Em time que vence não se mexe. Bolsonaro conformou-se em mexer no seu para não perder a última e decisiva batalha, a de completar o mandato.
PP de Nogueira, chefe da Casa Civil, recusa o passe de Bolsonaro
Além de ser um fardo pesado, o presidente atrapalharia alianças do partido nos Estados
O convite para que Ciro Nogueira (PI) ocupe a chefia da Casa Civil do governo está sendo celebrado por deputados federais e senadores do Progressistas (PP), mas a possibilidade de que o presidente Jair Bolsonaro se filie ao partido, não.
“Tentei e estou tentando um partido que eu possa chamar de meu e possa, realmente, se for disputar a Presidência, ter o domínio do partido. Está difícil, quase impossível”, disse, ontem, Bolsonaro em uma entrevista à rádio Grande FM, de Mato Grosso do Sul.
Por ora, a resposta do PP ao presidente é: “Aproxime-se para lá, me inclua fora dessa”. Foi a mesma resposta que lhe deram o Patriotas e outras siglas. Há mais desvantagens do que vantagens em abrigar Bolsonaro e toda a sua trupe, onde se incluem os filhos.
Vão querer mandar no partido onde entrarem, e todos os partidos já têm donos. A empreitada de Bolsonaro para criar um partido só dele fracassou. Ele ficou sem nenhum e não sabe qual será o seu destino a 14 meses das eleições do ano que vem.
Além de donos, os partidos ambicionados por Bolsonaro preferem não ter candidato próprio a presidente da República para se dedicarem à eleição de deputados e senadores, e isso passa por alianças diversas nos Estados, à direita e à esquerda.
O PT governa a Bahia junto com o PP. Bolsonaro admitiria que, ali, o PP apoiasse Lula ao invés dele? De Nogueira, tão logo assuma a Casa Civil, seus liderados esperam que os ajude a se reeleger, e não o contrário; e que os deixe sem amarras para isso.
Esquerda auxilia Bolsonaro sempre que apoia ditaduras
Militantes de esquerda ficam muito irritados quando seus políticos são questionados por jornalistas sobre Cuba ou Venezuela. Acreditam que esse tipo de pergunta é capciosa, uma espécie de espantalho que busca amedrontar o eleitorado e desviar a atenção dos temas substantivos de políticas públicas.
O antigo mal-estar foi reavivado agora quando diversos políticos de esquerda, entre eles o ex-presidente Lula, deram declarações apoiando a ditadura cubana, que enfrenta uma onda de protestos.
A esquerda não gosta de ser comparada a Bolsonaro em sua falta de compromisso com a democracia. Em parte tem razão: nos 13 anos de governos petistas não houve nenhum movimento relevante de esmorecimento da ordem democrática. Apesar de declarações criticando a imprensa ou ataques a movimentos de protesto, não houve nenhuma ação dos governos de esquerda que minimamente se aproximasse das rotineiras ameaças de Bolsonaro à integridade das eleições, à independência dos Poderes ou à liberdade de imprensa.
Por isso mesmo, é bastante surpreendente a incapacidade das maiores lideranças de esquerda de marcar distância dos regimes autoritários em Cuba ou na Venezuela. Essa recusa em condenar ditaduras alimenta o medo de setores da direita, e mesmo do centro, que pode empurrá-los outra vez para Bolsonaro na busca do mal menor.
A esquerda precisa escapar da lógica binária segundo a qual o injusto e excessivo embargo americano contra Cuba autoriza ações repressivas como a que vimos na semana passada, com a prisão em massa de dissidentes e a suspensão da internet. A ditadura de um só partido, a limitação da liberdade sindical e a restrição da liberdade de imprensa não podem ser defendidas como o preço a pagar pelas boas políticas de saúde e educação cubanas.
O mesmo vale para a Venezuela. A perseguição à oposição e o cerceamento à liberdade de imprensa, de um lado; e, de outro, a falta de independência entre os Poderes, com o estrito controle do Executivo sobre a Corte constitucional e o redesenho de distritos eleitorais para manter o controle do Legislativo, não pode ser defendida porque a oposição tentou dar golpes de Estado ou porque o governo americano ameaça intervir no país.
No caso da Venezuela, para além das questões democráticas, é preciso uma reflexão profunda sobre os graves equívocos da política econômica, que levaram o país a uma inflação anual de 3.000% e a uma queda no PIB de 30% em 2020 —esse desastre todo não se explica apenas pelas sanções americanas e por um suposto locaute do empresariado.
A esquerda, se quer se apresentar como contraponto ao autoritarismo de Bolsonaro, precisa melhorar muito suas credenciais democráticas. Não pode tomar posições que sugiram que, se a oportunidade surgir, poderá sacrificar a democracia na busca pela justiça social. Sempre que a oportunidade surgir, é mais do que pertinente que o jornalista pergunte ao candidato da esquerda: “E a Venezuela?”.
O cheiro do golpista
Braga Netto tem sotaque de golpista, cacoete de golpista e é amigo e subordinado do golpista-mor da República. Só por um milagre ele próprio não seria um golpista potencial
Pode não ser verdade, mas é bem provável que seja. O episódio golpista que envolveu o general Braga Netto, ministro da Defesa, tem traços genuínos e cheiro de verdade. Só o “Estadão”, que publicou a matéria em que conta a ameaça às eleições feita pelo general, pode garantir a veracidade da informação. E o jornal não só garantiu como reafirmou sua convicção na correção da matéria. Todos os demais podem afirmar que ela é bem provável, ou muito provável, ou mais do que provável. O general tem sotaque de golpista, cacoete de golpista e é amigo e subordinado do golpista-mor da República. Só por um milagre ele próprio não seria um golpista potencial.
Braga Netto é também subserviente ao presidente de maneira absoluta. Parece um cão de guarda, com a diferença que o militar age por vezes por imitação. O cachorro só se manifesta se ordenado pelo dono. A ameaça do general teria ocorrido depois de inúmeras declarações de Bolsonaro no mesmo sentido. No dia 8 deste mês, o presidente reafirmou que poderia não haver eleição se ela não fosse auditável (que na linguagem golpista significa voto impresso). Bolsonaro falou no cercadinho do Alvorada ao grupo de cegos apoiadores que aplaudem e riem de todas as suas tolices. No mesmo dia, Braga teria mandado alguém avisar o presidente da Câmara que se a eleição não for com voto impresso e auditável não haverá eleição em 2022. Alguma dúvida?
Um acinte. Um abuso. Uma violência típica de generaleco de republiqueta. Pode não ter ocorrido, mas Braga já deu outras demonstrações de seu afeto ao golpismo. Na posse do comandante do Exército, no dia seguinte à sua própria posse na Defesa, o general disse que as Forças Armadas estariam prontas para garantir a manutenção do projeto escolhido nas urnas pelos brasileiros. Seria o mesmo se dissesse que os militares não aceitariam um revés que ameaçasse o mandato de Bolsonaro, o presidente que cometeu mais de 30 crimes de responsabilidade pelos quais poderia ser legalmente afastado. Sob qualquer ângulo que se veja, aquela declaração só poderia ser feita por um general golpista, querendo entrar com o seu coturno pesado num jogo para o qual não foi convidado.
Mais adiante, há duas semanas, publicou nota intimidando o presidente da CPI da Covid. Omar Aziz, para quem não se lembra, disse que a banda podre das Forças Armadas envergonham os bons militares. A nota, assinada por Braga e pelos comandantes militares, afirmou que Exército, Marinha e Aeronáutica “não vão aceitar ataques levianos”. Parecia querer dizer que militar ladrão não incomoda militar honesto, poderia ter acrescentado “somos todos companheiros de farda”. Francamente. Braga Netto terá que se entender ele mesmo com a CPI, afinal era chefe da Casa Civil e coordenador do grupo de combate à Covid quando ocorreram todos os equívocos que vêm sendo relatados na comissão. E que resultaram em milhares de mortes que poderiam ter sido evitadas.
O desmentido do general à reportagem do “Estadão” foi solene, mas não definitivo. Ele deveria ter dito o que disse o vice Hamilton Mourão: “É lógico que vai ter eleição (mesmo sem o voto impresso). Quem é que vai impedir eleição no Brasil? Por favor, gente. Nós não somos uma república de banana”. Não, Braga preferiu manter-se general menor e voltou ao velho lenga-lenga de que as Forças Armadas estão “comprometidas com a estabilidade institucional do país e com a manutenção da democracia e da liberdade do povo brasileiro”, embora essas não sejam atribuições conferidas a elas pela Constituição. Até porque, sabe-se lá o que ele entende por liberdade do povo. Em nome dessa liberdade, outros generais já cometeram inúmeras atrocidades registradas pela História.
Azeitar, operar, negociar
O Congresso reagiu com euforia ao anúncio da nomeação do senador Ciro Nogueira para a Casa Civil no lugar de Luiz Eduardo Ramos, outro general que caminha um passo a mais em direção à rua. Deputados e senadores disseram que o habilidoso Ciro vai azeitar a engrenagem que liga Executivo e Legislativo, que ele sabe negociar melhor do que ninguém, e que vai ser um operador do governo no Congresso. Eufemismos, eufemismos, eufemismos. Azeitar, na linguagem parlamentar, é dar cargos para os aliados. Negociar é distribuir verbas públicas em troca de apoio ou, em bom português, fazer negócios. E operar é a arte de oferecer favores e agrados e atender pedidos, tudo com dinheiro do contribuinte, claro.
Loteamento
Bolsonaro dizia na campanha que governaria com 15 ministérios, tomou posse com 21 e na semana que vem serão 23, com a recriação do Ministério do Trabalho para abrigar o irrelevante Onyx Lorenzoni. Se continuar disparando contra o próprio pé com a mesma pontaria de hoje, chegará ao fim do mandato com uns 40, como Dilma. A conta daquele inchaço, segundo cálculo das repórteres Luiza Damé e Catarina Alencastro feito para O GLOBO em maio de 2013, chegou a R$ 58 bilhões.
O engraçado
Paulo Guedes é mesmo muito gozado. Ao anunciar mais um fatiamento em seu latifúndio ministerial, disse: “Vamos criar empregos, inclusive com uma reestruturação nossa… (trata-se de) uma mudança na direção do emprego e da renda”. Fala sério, ministro, os únicos empregos que Onyx vai criar no Ministério do Trabalho serão os dele e os da sua turma.
Rancho Queimado
Nem toda a turma do interior que apoia Bolsonaro sabe distinguir com clareza um político de esquerda de um de direita. Como são conservadores nos costumes, acabam elegendo políticos de direita, conservadores como eles. Muitos não sabem quanto dura um mandato, como funciona o princípio da reeleição, para que servem o Congresso e o Supremo, ou o que significa um golpe militar. Não se trata de burrice, mas de alienação e desinformação. Os eleitores de Rancho Queimado, citado por Luis Carlos Heinze como a meca da cloroquina, querem que seus negócios prosperem, querem manter seus empregos, querem criar seus filhos adequadamente. O que eles mais precisam, mas não sabem, é de educação política. Se entendessem a gravidade desses dias, o presidente não teria mais do que 5% de apoio. Ficaria apenas com os trogloditas como ele.
Clube do bolinha
A Fiesp divulgou esta semana a lista de membros da sua nova diretoria, do seu Conselho Fiscal e dos delegados da entidade junto à CNI. Foram eleitas 133 pessoas: o presidente, 25 vice-presidentes e mais 108 diretores, conselheiros e delegados. Destes, 131 são homens. Apenas duas mulheres participam do comando da entidade, Mariana Falcão Dalla Vecchia e Silvia Ribeiro de Aquino. Sobra gravata e falta saia na Fiesp.
Castigo
Para não deixar dúvida, sou torcedor do Flamengo, dos chatos, que vê todos os jogos e fica irritado nos dois dias seguintes a uma derrota do mais querido. Mesmo assim, não há como não anotar com satisfação o baixo número de ingressos vendidos para o jogo de Brasília, na quarta-feira passada. Menos de um terço da carga oferecida foi comprada. O preço atrapalhou, mas é claro que o brasiliense aproveitou para dar uma banana ao negacionismo renitente da diretoria do clube.
Barraquinhas
Imaginem como seria a cena proposta por médico do Ministério da Saúde para o laboratório a céu aberto de Manaus no auge da crise de oxigênio. Tendas, ou barraquinhas, seriam montadas em frente aos hospitais da cidade e ofereceriam cloroquina, azitromicina, ivermectina e outros medicamentos ineficazes aos pacientes que chegassem procurando socorro. “Cloroquina aqui, cliente”. “Mulher bonita não paga, ivermectina de graça é aqui”. “Na barraquinha da doutora Mayra você pede uma azitromicina e leva o kit completo”. “Aqui, dona Iolanda, pegue seu kit e leve uma banda”.
Olímpica 1
Excelente exemplo da delegação brasileira que desfilou na abertura dos Jogos de Tóquio com apenas quatro integrantes. Fazer bonito de vez em quando não custa nada e ajuda a diminuir a antipatia global causada pelo capitão. O número reduzido de desfilantes era para mostrar preocupação com a pandemia de coronavírus. No Brasil, os atletas devem ter sido vaiados por você sabe quem.
Olímpica 2
Pelo menos 142 atletas publicamente LGBTQ estão nos Jogos Olímpicos de Tóquio. Esse número é duas vezes maior do que o registrado no Rio, em 2016, segundo a Outsports.com.
Correção
Nota publicada na semana passada dizia que as TVs tinham dado enxurrada de matérias e plantões ao vivo da porta do hospital depois da facada no então candidato Jair Bolsonaro, permanecendo assim depois da recuperação do paciente. A direção de jornalismo da Globo, responsável pelos telejornais da TV Globo e da GloboNews, enviou arquivos de vídeo mostrando que a informação estava errada. O noticiário da TV Globo só alterou o padrão na quinta (6/9), dia do atentado, e nos três dias seguintes. Da segunda (10/9) em diante, a saúde do candidato voltou a ser noticiada dentro do minuto a que tinha direito (como os demais candidatos), com exceção do dia em que sofreu nova cirurgia e do dia em que recebeu alta do hospital. A GloboNews adotou a mesma linha, com tempos maiores nos dias subsequentes ao atentado, e cobertura total de não mais que quatro minutos até o fim da campanha, e nas duas mesmas datas (nova cirurgia e alta médica) como exceção, com tempo de pouco mais de meia hora no total do dia. Com a correção, acrescento meu pedido de desculpas aos leitores.
Aman, a ‘fábrica de oficiais’ por onde passa a política brasileira dos militares
A AMAN é responsável pela formação militar e pelos valores do presidente Bolsonaro e dos principais ministros que estão hoje no poder. A “tutela” da República é um dos princípios que guiam os generais
Às margens da rodovia presidente Dutra, em seu quilômetro 306, um imponente portão dá acesso a uma rua que se estende por 700 metros, como se fosse um corredor, cortando um imenso gramado em direção a um edifício branco e largo de poucos andares que se assemelha a uma fábrica. Neste caso, uma fábrica de oficiais do Exército brasileiro, como é conhecida a Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN). A grandiosidade das instalações contrasta com a pacata cidade de Resende (RJ), onde a academia está situada. O município de 132.000 habitantes serve de dormitório tanto para a grande maioria dos 12.000 militares que circulam pela AMAN diariamente como para os trabalhadores da indústria automobilística instalada nos arredores. Mas por esse lugar, afastado dos grandes centros urbanos, a cerca de três horas de São Paulo e duas horas do Rio de Janeiro, passa a política brasileira de hoje. E talvez a do futuro.
Mais de 400 cadetes se formam todos os anos na AMAN, depois de quatro anos intensos cursando Ciências Militares —curso reconhecido como graduação universitária—, e iniciam uma carreira militar que pode levá-los ao Alto Comando do Exército. De lá saíram o presidente Jair Bolsonaro, em 1977, o vice Hamilton Mourão, em 1975, e seus principais ministros. O titular da Defesa, general Braga Netto, que ficou em evidência esta semana, formou-se em 1978. “É na AMAN que, além do treinamento militar, se incutem os valores da disciplina, hierarquia, patriotismo e honradez, além das convicções políticas”, explica o historiador José Murilo de Carvalho. “Entre essas últimas estão as que são repetidas com frequência pelos comandantes: defesa externa e interna do país, garantia dos poderes constitucionais e da lei e da ordem”, completa. “É o que está na Constituição, cujo artigo 142 dá margem à interpretação de que as Forças Armadas têm um poder moderador sobre os outros poderes. Chamo a isso de tutela sobre a República”.
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Bolsonaro não perde a chance de confraternizar com os formandos desde seus tempos de deputado. No final de 2014, lá estava o então deputado para saudar os cadetes que concluíam sua estadia na academia. “Nós temos que mudar este Brasil, tá ok? Alguns vão morrer pelo caminho, mas estou disposto em 2018, seja o que Deus quiser, a tentar jogar para a direita este país”, disse aos formandos que celebravam o então deputado federal pelo Rio de Janeiro, logo após ser reeleito naquele ano com 464.000 votos. A promessa virou realidade nas eleições seguintes, em 2018.
Já como presidente, Bolsonaro também participou das formaturas em 2019 e 2020 ao lado de ministros e parlamentares. No ano passado, houve inclusive transmissão ao vivo da TV Brasil e comentários em tempo real de um coronel, como se fosse a cerimônia do Oscar ou de abertura das Olimpíadas. “Todos nós sabemos que o papel do militar, além daquela garantida e definida na nossa Constituição, é a nossa soberania e garantir a nossa liberdade, tão ameaçadas nos últimos tempos”, discursou na última cerimônia.
O EL PAÍS solicitou uma visita à AMAN, mas teve o pedido negado por conta das restrições da pandemia. O ambiente político dentro do complexo militar é uma incógnita, mas alguns fatos relevantes dos últimos anos dão algumas pistas do que pensam os futuros coronéis e generais do Exército.PUBLICIDADE
As últimas visitas de Bolsonaro e de seus ministros são recordadas em Resende, que o elegeu com 64,74% dos votos no primeiro turno e 74,28% no segundo. “Alguns ministros vieram almoçar aqui no restaurante”, conta o garçom Junior, que trabalha num local especializado em comida italiana. Em 2020, o prefeito —bolsonarista— Diogo Balieiro (DEM-RJ) foi reeleito com 82,57% dos votos, um recorde histórico. Se em 2017 Balieiro tomou posse no tradicional Colégio Salesiano, neste ano a cerimônia aconteceu em um teatro da AMAN —um sinal não só da importância da academia para a cidade, mas também de seu papel político. “Eu vim pra cá há 20 anos e demorou até que eu fizesse amigos. Não é como no Rio ou em São Paulo. Por conta do militarismo, as pessoas são muito fechadas”, explica o mesmo garçom, sobre a influência dos militares na vida da cidade.
Nas ruas do centro de Resende, construído às margens do rio Paraíba do Sul, a cinco minutos da rodovia Presidente Dutra, é possível ver os fardados circulando a partir de 18h, quando terminam o expediente. Eles são discretos, geralmente andam em grupo e muitas vezes são desconfiados ao conversar com alguém, segundo relatos ouvidos por este jornal. Como muitos são de cidades distantes, acabam alugando um apartamento ou dividindo residência com outros colegas do Exército. Para os cadetes, as restrições são maiores. Eles vivem em alojamentos na AMAN e, no primeiro ano, só podem deixar a academia nos finais de semana. Conforme avançam de ano, ganham mais liberdade para deixar o complexo militar. “Durante a semana eles vão ao shopping para comer algo. Nos dias de folga, muitos aproveitam para dormir, porque a rotina é muito puxada, ou para sair com familiares que chegam até a cidade para visitá-los”, afirma uma recepcionista. “Quando eles saem para um bar ou se divertir, ficam todos juntos numa mesa grande”, afirma a comerciante de um shopping.
O principal ponto de encontro dos cadetes nos finais de semana é o Resen Bar, um boteco de mesas vermelhas na calçada também conhecido como o “bar da tia”. A tia é uma senhora que se chama Rose e que vive há 14 anos em Resende. “É um momento deles de relaxar. Mas são muito disciplinados até na hora de se divertir. Nunca vi falarem de política, mesmo em eleições”, conta ela, que garante nunca ter tido nenhum tipo de problema com os frequentadores do local. A farda não é permitida em local como bares, mas, mesmo assim, eles não interagem muito com outras pessoas. “Estão sempre juntos, em grupo”, afirma Rose, repetindo a frase dita por outros moradores escutados pelo EL PAÍS. Querida entre muitos jovens na cidade, não apenas os militares, ela conta que oferece todo fim de ano um almoço para os cadetes que estão se formando. Nas paredes de seu bar estão mensagens de agradecimento deixadas pelos que se tornam aspirante a oficial. “Me escolheram, não sei por quê. São como meus filhos, me identifico muito com eles”.
A “bolha” da AMAN
A “fábrica de oficiais” foi instalada em Resende em 1944, há 77 anos, com o intuito de afastar os futuros oficiais da agitação política da capital Rio de Janeiro. Pelos 67 quilômetros quadrados da AMAN circulam cerca de 12.000 pessoas por dia. A estrutura inclui vilas militares com mais de 500 casas para oficiais e seus familiares, além de alojamentos para 1.800 cadetes. Características de uma pequena cidade, como tratamento de esgoto, igrejas e hospitais, convivem com os elementos básicos de uma academia militar, como um complexo de tiro para o treinamento de atiradores de elite e áreas para o treinamento militar.
“É uma bolha. Como os cadetes estão longe de suas famílias, eles ficam muito imersos naquele mundo da academia, no convívio com outros cadetes e com os oficiais, que são seus instrutores”, explica Mauricio Santoro, professor de Relações Internacionais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Em 2008, ele ajudou a implantar a disciplina na AMAN e deu aula para os cadetes nos anos seguintes. “Isso é preocupante, eu acho. Acabam tendo ali um nível de isolamento nesses anos decisivos”, completa. Uma possível solução para isso seria promover uma maior interação entre militares e civis desde os primeiros anos de formação, abrindo a possibilidade de que futuros oficiais possam fazer sua graduação em universidades brasileiras ao invés de somente a AMAN.
Para o coronel da reserva Marcelo Pimentel Jorge de Souza, que nos últimos tempos vem criticando o envolvimento das Forças Armadas na política, os militares da ativa e da reserva que ocupam cargos no Governo Bolsonaro —e que um dia também foram instrutores na AMAN— passam “um mau exemplo” para os jovens cadetes. “Infelizmente, essa juventude que está na academia já começa a sofrer os efeitos dessas influências negativas”, diz Pimentel. “Não porque aprendem isso lá dentro, mas porque observam o comportamento político das lideranças militares, que até ontem dirigiram as Forças Armadas, e passam a torcer por elas”, explica. Ele cita uma conversa com um jovem tenente em que mostrava onde estavam posicionados no Governo os oficiais de sua geração. Eram companheiros de turma, pessoas que ele comandou ou que o comandaram. Hoje estão em ministérios, autarquias, agências reguladoras... “Ele concordou que havia ali um aparalhamento, mas que o ‘outro lado’, quando governava, fazia o mesmo”. A conclusão é a de que o jovem já se considerava como parte de um grupo político que havia subido ao poder. Mas Pimentel reitera que o problema não está nas baixas patentes, onde “todos são muito bem formados e disciplinados”, mas sim entre os superiores. “São os generais que estão causando crises disciplinares”, afirma.
Apesar de não ter notado um ambiente político carregado em seus anos dando aula na AMAN, Santoro respalda essa ideia do “mau exemplo” que vem de cima: “Os cadetes olham para os ministérios e veem muitos militares, alguns inclusive da ativa. Isso por si só já cria uma série de expectativas, de valores, de possibilidades de carreira”, explica. Mas há outras evidências do que pensam os cadetes que se formam na academia. Em sua tese de mestrado sobre a “construção da identidade oficial do Exército”, publicada em 2012, o coronel Denis de Miranda mostrou que, entre as baixas patentes, 63,5% dos entrevistados para sua pesquisa concordam com a ideia de que “cabe ao Exército agir, mesmo que politicamente, quando a Pátria estiver em perigo”. O índice vai caindo nos setores com mais anos de serviço na corporação, chegando a 48,7% entre os mais velhos —uma cifra ainda alta.
Posteriormente, em sua tese de doutorado sobre o processo de socialização militar, publicada em 2019, o mesmo coronel descreve a academia como “uma escola que segue princípios conservadores, necessariamente, porque o Exército assim espera”. A mudança, explica ele, existe, mas deve ser bem lenta. Por exemplo, somente a partir de 2016 a instituição passou a aceitar mulheres. “É desde o berço da formação do oficial que os profissionais combatentes adquirem o espírito militar e suas marcas conservadoras”, explica.
Para entrar na academia é preciso prestar um concurso nacional dificílimo com o objetivo de, primeiro, ingressar na A Escola Preparatória de Cadetes do Exército (EsPCEx), em Campinas (SP). Somente depois de um ano, em que devem apresentar boas notas e um bom rendimento acadêmico e físico, é que iniciam a graduação em Ciências Militares na AMAN. A pesquisa do coronel também demonstrou que a maioria dos cadetes que ingressaram na academia em 2016 era branca (56,53%) e vinha de famílias com rendimento mensal de quatro a 15 salários mínimos (69,39%). Entre 2016 e 2019, 76% deles eram provenientes, em média, das regiões Sul e Sudeste. Cerca de 40% possuem militares na família e buscam, ao entrar no Exército, estabilidade na carreira para o resto da vida.
Santoro, o professor da UERJ que deu aulas na AMAN, destaca que o Exército “nunca se considerou uma força politicamente neutra”, e que os oficiais sempre se viram com um papel de destaque muito grande na formação da sociedade brasileira. “Existe essa ideia de que são guardiões de um conjunto de valores, de que a sociedade civil perdeu valores que os militares conservam”, explica. “O que vimos ao longo dos últimos cinco anos, com uma série de crises políticas no Brasil, foi que uma taxa muito grande da população comprou essa ideia de messianismo”, acrescenta. Havia um processo de profissionalização das Forças Armadas desde o fim da ditadura militar que foi cortado. Elas voltaram a ter um papel político. E, para o professor, isso impacta na formação dos cadetes mesmo que Bolsonaro não comparecesse em suas formaturas.
Como esses elementos se refletem em suas opiniões sobre o Governo Bolsonaro? Entre parte dos oficiais de baixa patente que dão expediente nos quartéis de Brasília, onde ficam os principais postos de comando do Exército, o mandatário é visto como um dos poucos capazes de evitar que o petismo volte ao poder. Por essa razão, ainda tem tanto suporte. “Nós o apoiamos não é por ser militar. Ele é mais político do que militar, mas ao menos ele não é corrupto como os petistas”, disse um tenente ouvido pela reportagem.
Como não podem conceder entrevistas sem autorização de seus superiores, tampouco emitir opinião política, todos os oficiais ouvidos na capital federal pediram para manter seus nomes sob sigilo. Um capitão e um major que tomavam uma cerveja em um bar nas proximidades do quartel onde trabalham, depois de uma pelada de futebol, concordaram com o argumento do colega de farda. “Só uma terceira via seria capaz de fazer com que não votemos no Bolsonaro em 2022”, disse um deles. “Como ela não aparece, vamos nele, mesmo”, completou o outro.
E como avaliam sua gestão? “Ele é um ogro, não tem o mínimo de educação. Mas queremos um presidente honesto, não um marido. Nesse quesito, acho que errou na pandemia, mas tem acertado em outros setores, como na economia”, afirmou o major. “Neste ponto, discordo dele. Acho que nenhum presidente saberia lidar com essa pandemia”, declarou o capitão.
Outro major entrevistado pela reportagem disse que pouco se importa com a política. Para ele, basta saber que o soldo —o salário dos militares— está caindo em dia e que não haja tanta interferência na economia ao ponto de atrapalhar os seus investimentos financeiros. “Sou de uma geração que pensa no futuro. Se o governante não atrapalhar a evolução das ações que invisto, já está bom para mim”. Mas e a consciência social? “Já faço muito pelo meu país servindo ao Exército. Com certeza, é mais do que muita gente”, respondeu o oficial.
Ainda assim, o historiador José Murilo de Carvalho acredita que a possível politização das baixas patentes ainda é uma especulação. Bolsonaro, explica ele, “tenta politizar, fala do ‘meu Exército’, mas o tiro pode sair pela culatra. Nada pior para as Forças Armadas do que a politização de seus quadros, o que leva à quebra da disciplina e da hierarquia. E não há evidência de que isto esteja acontecendo no Exército”.
Com informações de Afonso Benites, em Brasília
O poder, os tiranos e os piores. Não há quem escape de seu fascínio
O poderoso tirânico cerca-se de cópias de si mesmo, incompetentes, ignorantes, vulgares
Seja no Estado, no mercado ou na sociedade civil, o poder arrebata. Ele oferece vantagens e recompensas, mesmo que também traga sacrifício e sobrecarga.
São as recompensas que seduzem. Ver-se obedecido, admirado e elogiado faz brilhar os olhos de muita gente. É o que leva a que se cometam excessos e estripulias, cresçam as ilusões e os autoenganos. O poderoso nunca está sozinho. Seu círculo mais próximo é fonte permanente de intrigas, inveja e cobiça, o que provoca atritos e colisões. O poder não pode tudo. Numa democracia, tem de se haver com o povo livre, a sociedade civil, o sistema de controles, os demais poderes.
O poder fascina anjos e demônios, pessoas com vocação para o bem público e pessoas mesquinhas, agarradas aos próprios interesses. Quando um anjo se deixa seduzir pelo poder, ele perde integridade e pujança reformadora. Seus planos e projetos deixam de ser factíveis e se tornam dependentes de acordos espúrios, batendo às portas da corrupção. Quando um demônio chega ao poder, ele se realiza como excrescência perversa. Exala maldade por todos os poros e trafega pelos becos escuros da sociedade, onde vicejam a boçalidade, a ignorância, a violência, o desregramento. Alia-se a quadrilhas e redes corruptas, na ilusão de conseguir com elas uma base sólida de apoio e financiamento. Apela para manobras populistas para chegar ao povo, mas o seu é um populismo regressista, malévolo, mais nefasto que qualquer outro.
O poderoso tirânico acredita que ser autoritário e impositivo é a principal ferramenta para intimidar subalternos e aliados. É por isso que ele se cerca de cópias de si próprio, pessoas incompetentes, ignorantes e vulgares, dispostas a todo tipo de serviços. A “kakistocracia”, o governo dos piores, é seu modelo de atuação. Ele o faz valer destruindo a política, os partidos, as instituições. Abre os portões para que a mediocridade se imponha em todos os lugares.
A poliarquia confunde e desafia o poderoso. Faz que fique acuado e enverede pelas trilhas obtusas do destempero e da agressão verbal. Quanto mais tosco o poderoso, mais a tirania o atrai, pois não sabe conviver com a diferença, com quem o contrasta e desafia.
Nenhum tirano é democrata. Sempre tende a fugir da realidade. Parafraseando Macbeth, sua desgraça são as loucuras paranoicas da imaginação, mais que os temores do presente. Num Estado democrático, o tirano se dissimula. Diz que segue as regras constitucionais, mas age sistematicamente para burlá-las. Aceita eleições desde que sejam moldadas para referendá-lo. Quando não consegue, passa a atacá-las e ameaça suspendê-las. Boicota o controle entre os Poderes, procura interferir em todos eles. Invade o Congresso e as Cortes judiciárias com atos bombásticos e tropas de ataque. Enxerta amigos nos espaços institucionais para impedi-los de funcionar com independência. Deseja-se absoluto. Seu orgasmo é o exercício coreográfico do poder.
Como em seus antepassados, o poder do tirano moderno pede exibição, na glória e na dor. Ele necessita expor, calculadamente, até mesmo suas entranhas. Mostra-se em trajes de gala ou escrachado, forte e saudável ou estropiado numa maca hospitalar. Tudo para ele é produção de imagem, com a qual pretende chamar a atenção para sua condição de escolhido, vítima, sobrevivente, mito. O objetivo é enfeitiçar os que o seguem. Quer que seu corpo seja visto como imune aos males que afetam as pessoas comuns. Ele é atlético e dinâmico mesmo quando mostra apatia e fragilidade.
Tiranos discretos não são usuais. A marca distintiva deles – sobretudo em nossos tempos de redes hiperativas, identitarismo exacerbado, velocidade tecnológica e informacional – é a estridência, a conduta espalhafatosa: discursos inflamados, frases grosseiras, atos espetaculosos, ameaças. Sua meta é controlar as fontes de informação, calar a imprensa, espalhar boatos. O fermento que os move é o ódio e o ressentimento. Eles adulam os poderosos da economia para alcançarem o poder ideológico.
O poder constrói, mas também destrói. Quando compartilhado democraticamente, é uma alavanca em prol do progresso econômico e social. Mas seu uso abusivo e torpe violenta populações inteiras, desativa direitos adquiridos, amplia a desigualdade e degrada arranjos institucionais consolidados.
Para ser construtivo o poder precisa ser controlado. A democracia representativa madura é a principal invenção para conter o poder, regulá-lo, impedi-lo de transgredir e violentar. O tirano só a aceita quando consegue parceiros que concordem em fazer seu jogo. Ele é inimigo da educação e da escola, pois sabe que cidadãos educados ajudam a que a democracia funcione de modo pleno.
Épocas de política titubeante, de partidos flácidos e sem coerência, de crise permanente, são um convite para que o poder político fique ao alcance não somente dos piores, mas de candidatos a tiranos. Quanto antes acordarmos para isso, melhor.
*Professor titular de teoria política da Unesp
Os dentes e os espaços: As forças armadas e a política partidária
Alon Feuerwerker
Quando você age sobre a realidade, necessariamente a transforma. Mas aí ela também acaba transformando você. Ação e reação. Parece inevitável que a participação cada vez maior, e institucional, das Forças Armadas na política partidária termine abrindo espaço para a explicitação de debates político-partidários no interior mesmo da corporação.
Aliás o vice-presidente Hamilton Mourão já advertiu sobre isso.
Digo “explicitação”, e não “introdução”, pois seria ingenuidade, a qualquer momento, interpretar como apoliticismo a falta de manifestações explícitas de partidarismos no estamento militar.
Dois dos presidentes do período 1964-85 cuidaram com esmero de prevenir esse jogo recíproco, em que as Forças politizam e ao mesmo tempo são politizadas, ou partidarizadas: Humberto de Alencar Castelo Branco e Ernesto Beckmann Geisel. O primeiro operou uma reforma militar também com esse objetivo, e o segundo decapitou a resistência à distensão.
Ações que contribuíram de maneira importante para fechar o ciclo da anarquia militar no Brasil do século 20, cujo marco inaugural havia sido a eclosão do tenentismo. Ter deixado isso para trás era apontado até outro dia como conquista da Nova República. Não parece estar sobrando muito das conquistas da Nova República.
Em parte, os militares têm sido puxados para a política nos anos recentes pelo vácuo nascido da desmoralização e do desgaste das demais instituições nacionais. Isso ganhou nova dimensão quando Jair Bolsonaro, sem um partido para chamar de seu, acabou recorrendo aos fardados, da ativa e da reserva, como estoque de quadros e de doutrinas para tocar o governo.
A realidade é implacável, e o poder não se resume às delícias dele, carrega também os riscos decorrentes das delícias. E aí o noticiário começa a trazer confusões ligando duas coisas: militares e verbas orçamentárias. E agora com números de alto impacto vindos dos recursos destinados pelo governo e pelo Congresso ao combate da Covid-19.
Na falta de eventos de ruptura, a vida segue, e nela sempre chega a hora de ter de dar alguma explicação. Na escalada da politização, as recentes manifestações do Ministério da Defesa e dos comandantes militares vêm reiterando: as Forças estão aí para defender a liberdade e a democracia. Ecoam palavras do próprio presidente da República. Falta, até o momento, dizer se ambas estão sob ameaça.
E falta também, nesse caso, a explicação mais importante: quem ameaça.
Enquanto tal detalhe não fica claro, ao menos segue o baile. No terreno por eles pouco conhecido da política, até agora os militares estão levando uma certa canseira dos políticos. Os lprimeiros andam ocupados em mostrar os dentes, estes últimos preferem concentrar-se em tomar espaços de poder daqueles.
E nem Jair Bolsonaro pode ajudar muito, já que depende dos políticos para se manter na cadeira, inclusive depois de 2022, se se reeleger. O que pelo jeito vai ser decidido mesmo na urna eletrônica, apesar das dúvidas e arranca-rabos. Se bem que neste ponto é sempre adequado contar com novas emoções.
*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação
'Pesquisadores vivem ameaças como na ditadura'
Radicada na Bélgica, professora da USP que estuda papel nocivo dos agrotóxicos na produção de alimentos diz que ficou impossível permanecer no Brasil em meio a "terrorismo psicológico"
Edison Veigas, DW Brasil
Foram dois anos em que a geógrafa brasileira Larissa Mies Bombardi, professora da Universidade de São Paulo (USP), não conseguia dormir em paz. O pesadelo começou com o lançamento, na Europa, da versão em inglês do seu atlas Geografia do Uso de Agrotóxicos no Brasil e Conexões com a União Europeia.
Ao levar para fora do país o cenário dos agrotóxicos na produção de alimentos no Brasil, ela contribuiu para aumentar a pressão internacional sobre o setor. "A maior rede de orgânicos da Escandinávia passou a boicotar produtos brasileiros por conta do meu trabalho", relata.
A geógrafa passou a viver uma rotina de ameaças e enfrentou uma série de posicionamentos contrários de instituições ligadas ao setor agropecuário.
"Teve um e-mail de uma pessoa que se identificou como piloto de avião. Era uma mensagem muito ambígua, falava que 'se a professora diz que pulverização aérea não é uma coisa segura, então eu convido a professora a dar uma voltinha no avião pra ver como tem segurança'", conta.
No ano passado, sua casa foi assaltada. Bombardi tomou a decisão de sair do país. Transferiu-se para a Bélgica e segue sua carreira acadêmica na Universidade Livre de Bruxelas. Em entrevista à DW Brasil, ela dá detalhes sobre as ameças sofridas.
DW Brasil: Ameaças e um assalto… Quando você percebeu que era hora de deixar o Brasil?
Larissa Mies Bombardi: Depois que eu lancei em inglês o atlas [Geografia do Uso de Agrotóxicos no Brasil e Conexões com a União Europeia], em 2019, foi a primeira vez que perdi o sono. Entendi que havia um risco e começaram as intimidações, umas mais veladas, outras menos. Precisava me proteger, proteger meus filhos e ficar fora do Brasil.
Pode descrever alguma ameaça que recebeu?
Foram várias coisas, mas teve um e-mail de uma pessoa que se identificou como piloto de avião. Era uma mensagem muito ambígua, falava que "se a professora diz que pulverização aérea não é uma coisa segura, então eu convido a professora a dar uma voltinha no avião pra ver como tem segurança". […] Então a maior rede de orgânicos da Escandinávia [a Paradiset, da Suécia] passou a boicotar produtos brasileiros por conta do meu trabalho. Um professor da USP, Wagner Ribeiro, falou que eu não podia lidar com isso sozinha.
Como a USP se posicionou?
Esse professor contatou a diretora da faculdade [Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, a FFLCH], que nos recebeu e pediu um dossiê. Na manhã seguinte, ela contatou o reitor, que concordou que eu precisava deixar o país, seguir por um período meu percurso acadêmico fora. A reitoria se mostrou sensível e ofereceu a guarda universitária para me proteger. Não quis, achei que emocionalmente seria muito pesado lidar com isso. Recebi orientações de lideranças de movimentos sociais para evitar as mesmas rotinas, os mesmos caminhos.
No fim do ano [de 2019], fui convidada a falar no Parlamento Europeu, numa conferência sobre o acordo comercial entre o Mercosul e a União Europeia. Ali me falaram que lidar com esses temas no Brasil era muito perigoso. Eu respondi que nunca tinha sido efetivamente ameaçada. "Mas não precisa, as coisas não acontecem com aviso sempre", ouvi de volta.
Fiquei gelada, mas ainda falei: "Sou professora universitária, branca, tenho esse viés de classe e, infelizmente, do racismo estrutural que existe no Brasil." Ouvi então que "Zuzu Angel [(1921-1976), estilista, vítima da ditadura brasileira] também era branca". O plano passou a ser me mudar [para a Europa] em março [de 2020]. Mas aí veio a pandemia, precisamos adiar.
Em agosto do ano passado, sua casa foi assaltada… Acredita que uma coisa tenha relação com a outra?
Nunca vou saber se foi relacionado ao meu trabalho ou não. Mas levaram pouquíssimas coisas, o laptop que eu usava, que era velho. Não tinha sentido, estava defasado. Mas vasculharam minha casa por três horas, mantendo minha mãe e me mantendo sob tortura psicológica. Foi horrível. Vasculharam a casa inteira. Foi muito pesado, mas não sei se tem a ver com uma tentativa de intimidação ou com uma busca de dados.
Você está na Bélgica neste ano de 2021. Segue vinculada à USP?
Aprovei um projeto de pós-doutorado na Universidade Livre de Bruxelas, é um projeto sobre green criminology na Amazônia, um trabalho sobre conflitos ambientais. A reitoria [da USP] autorizou meu afastamento e estou trabalhando neste tema. Em maio lancei um novo atlas no Parlamento Europeu sobre as relações comerciais entre Mercosul e União Europeia. Chama-se Geografia das assimetrias, colonialismo molecular e círculo de envenenamento.
O que significam esses conceitos?
Mostro esse lugar de colônia que o Mercosul ocupa dentro da economia mundial, em especial na relação com a União Europeia. Colonialismo molecular, porque, se antes havia esse saque das riquezas naturais da América Latina, agora ele continua mas não é só um impacto físico, é um impacto químico, por causa dos agrotóxicos. Colonialismo molecular porque essas substâncias atingem nossas moléculas, causam um dano sem precedentes, de uma crueldade que a gente nunca tinha visto.
Essa suposta modernidade da agricultura, ela traz um ônus que nos oblitera, que potencialmente altera nossos corpos por conta de substâncias que não são autorizadas na União Europeia mas são vendidas por empresas da União Europeia, sem pudor em vender [para países como o Brasil] substâncias que são proibidas em seus próprios países por conta dos danos à saúde e ao meio ambiente.
Como foi a pressão sofrida quando você publicou uma pesquisa relacionando a covid-19 à suinocultura?
Publicamos no ano passado dois artigos sobre as possíveis correlações entre suinocultura e covid-19. Vimos uma certa correspondência espacial em Santa Catarina, ou seja, áreas com maior densidade de criação de porcos também eram áreas com maior número de casos, proporcionalmente, de covid. Ficou um trabalho interessante, mas apenas levantamos a hipótese de que os vírus não teriam sido trazidos pelos morcegos, mas pelos porcos, via morcegos, já que há muitas similaridades [dos humanos] com os porcos. E os porcos vivem praticamente imunodeprimidos, com todos os animais criados de maneira intensiva. Eles não têm como exercer seus hábitos mais básicos e então — vou falar com cuidado, entre aspas — eles "podem ser" laboratórios de vírus. São animais que defecam e comem no mesmo local […].
A Associação Brasileira de Proteína Animal escreveu uma carta para a USP [desqualificando o trabalho da professora], a Embrapa também produziu uma nota técnica… Mas a gente estava trabalhando com uma hipótese, em momento algum afirmando ser algo definitivo. Encerramos o texto dizendo que é preciso mais pesquisas. Não tem outro jeito de caminhar na ciência se não for buscando hipóteses, né? É assim que a gente caminha. Estou há quase 15 anos na USP e nunca vi isso de perto, como estou vendo. Essa atmosfera invasiva das entidades se acharem no direito de contestar pesquisa, de fazer ameaça… Isso é ameaça à minha carreira.
Você se considera exilada?
Sim, de alguma forma me considero exilada porque [faz uma longa pausa] simplesmente ficou impossível permanecer no Brasil lidando com essa temática. É um terrorismo psicológico gigante, e eu precisava proteger a mim e aos meus filhos. Foi um alívio gigante sair do Brasil, e isso ilustra a condição de exílio.
Está muito desesperador e eu sei que não sou só eu, há outros pesquisadores que passam por coisas parecidas, de ameaças institucionais a ameaças externas. Isso ficou muito claro a partir do governo [do atual presidente Jair] Bolsonaro, ficou nítido. É uma indecência, a gente não tem tranquilidade para fazer pesquisa. A última vez que a gente viu isso foi quando? Na ditadura. A única diferença é que agora aparentemente vivemos num regime democrático. Mas, no fundo, estamos vivendo um período de exceção.
Planeja um dia voltar ao Brasil?
Não. Pelo menos não até o fim deste governo.
Seria o semipresidencialismo uma boa alternativa?
O Brasil é um país jovem. Em 2022, comemoraremos 200 anos da nossa Independência, após três séculos marcados pelo escravismo colonial. A República fará 133 anos de existência. Até 1930, tivemos um período dominado pelas oligarquias regionais, onde analfabetos e mulheres não tinham direito a voto e as eleições eram visivelmente manipuladas. Mesmo a Revolução de 30 foi liderada por elites excluídas do pacto do poder. Logo à frente, Vargas decretaria o Estado Novo, iniciando seu período ditatorial.
Períodos democráticos foram poucos. De 1945 a 1964, tivemos a primeira experiência democrática. Ainda assim, os analfabetos não votavam, o Partido Comunista foi colocado na ilegalidade, tivemos o traumático suicídio de Getúlio Vargas, sucessivas tentativas de derrubar JK, a renúncia de Jânio Quadros, o arranjo parlamentarista de 1962 e a queda de João Goulart. Experimentamos 21 anos de governos autoritários.
Derivado da histórica campanha das Diretas-Já, assistimos o reestabelecimento da democracia com a vitória de Tancredo Neves no Colégio Eleitoral, em 1985, e a nova Constituição democrática de 1988. Esse ciclo sobrevive até hoje, representando os 36 anos mais livres e democráticos de nossa história. Ainda assim, tivemos diversas crises econômicas desestabilizadoras e dois impeachments, com o afastamento de Collor e Dilma. Agora, novamente o Congresso analisa a possibilidade de um processo de impeachment.
Até quando viveremos uma verdadeira montanha russa política entre golpes e impeachments? O parlamentarismo, vigente na maioria dos países de democracia avançada, foi derrotado nos plebiscitos de 1963 e 1993. A cultura política predominante no Brasil é personalista, caudilhesca, centrada em personagens e não em partidos políticos e programas.
Recentemente, instalou-se a discussão sobre o semipresidencialismo correlato às exitosas experiências da França e Portugal. Diferente dos parlamentarismos da Espanha, Itália, Inglaterra, Alemanha, entre outros, onde a dinâmica política é dada pelo Parlamento, o semipresidencialismo reserva ao Presidente da República um forte papel, com o comando das Forças Armadas e da política externa, capacidade de vetar e propor iniciativas legais, indicar o primeiro-ministro, decidir por eleições ou por um novo primeiro ministro no caso de queda do gabinete. O primeiro-ministro e a maioria parlamentar seriam responsáveis pela gestão das políticas públicas de governo.
Obviamente, se adotado, só poderá sê-lo em 2027. Serão mais 4 anos de emoções fortes. As eleições de 2022 já seriam realizadas sob as novas regras. Há méritos na proposta. Delinearia claramente situação e oposição no Congresso, responsabilizaria o Parlamento em relação à condução do país e evitaria as sucessivas crises turbulentas dos impeachments.
Mas para isso algumas pré-condições são necessárias: i. existência de um quadro partidário mais nítido e sólido; ii. fortalecimento da burocracia estatal, no sentido weberiano, para assegurar a continuidade das políticas públicas; e, mudança do sistema eleitoral na direção da lista partidária ou do voto distrital, para permitir eleições rápidas em caso de queda do gabinete sem formação de nova maioria congressual.
Sou parlamentarista de carteirinha. Mas, certamente, o semipresidencialismo proposto seria um enorme avanço.
*Marcus Pestana, ex-deputado federal (PSDB-MG)
Nelson de Sá: New York Times alerta contra capa falsa pró-Bolsonaro
O perfil de relações públicas do New York Times no Twitter publicou uma mensagem, em português, com um aviso sobre a imagem abaixo, de uma capa adulterada do jornal. Diz o NYT:
“Estamos cientes de que uma versão manipulada da primeira página do New York Times circula na internet com matérias falsas e uma imagem de manifestações a favor do presidente Jair Bolsonaro. O New York Times não publicou essa capa.”
O jornal sugere acompanhar a cobertura de Brasil aqui. A capa já havia sido objeto de serviços de verificação no Brasil, como Lupa.
Fonte:
Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/nelsondesa/2021/05/nyt-alerta-para-capa-falsa-pro-bolsonaro.shtml