Fake News

Míriam Leitão: Incutir a dúvida, colher a certeza

Quando o presidente da República diz que houve fraude nas eleições de 2018, ele está acusando a Justiça Eleitoral de cumplicidade ou negligência com o crime. Ou a Justiça fez parte da fraude ou não foi capaz de garantir a lisura do processo eleitoral. Diante disso, o que fazer? A Procuradoria- Geral da República (PGR) teria que notificar o presidente para a apresentação das provas, dado que ele está publicamente dando a notícia de um crime. O PGR nada faz que incomode o presidente.

Tudo se passa no Brasil como se a democracia não pudesse se defender de um ataque que está sendo preparado lenta e consistentemente. Em parte, me explicou uma autoridade do Judiciário, “porque tudo é muito inusitado”. Em parte, porque o PGR foi neutralizado. O presidente Jair Bolsonaro não está agindo por impulso. Está repetindo há dois anos fatos sem comprovação. Ele está incutindo a dúvida para colher a certeza. E nada se faz, além das notas de repúdio, porque é inusitado que um presidente da República conspire contra a democracia. Só que está acontecendo. Aqui e nos Estados Unidos.

Bolsonaro age de caso pensado e de forma coerente. Ele tem um plano e dois anos pela frente para executá-lo usufruindo da imunidade que o cargo lhe dá. O objetivo dele no final todos conhecem. A democracia brasileira não tem sabido usar os instrumentos para se defender. Esta semana ele deu um passo adiante ao fazer uma ameaça. A de que ocorreria aqui algo mais grave do que o que houve nos Estados Unidos caso o voto não seja impresso.

O presidente brasileiro justificou o que houve nos Estados Unidos. Bolsonaro disse que foi causado por fraude, e ela surgiu porque “potencializaram a tal da pandemia”. Com isso ele está alimentando duas mentiras. A de que a pandemia foi “criada” com um propósito. E a de que houve fraude nos Estados Unidos. Isso justificaria o ataque ao capitólio, pelo que se depreende dessa fala. De forma terminativa, garantiu: “ninguém pode negar isso aí.” Todos os tribunais americanos recusaram as alegações de Trump de que houve fraude, todos os estados, mesmo os governados pelos republicanos, certificaram a eleição. Ou seja, todo mundo pode negar isso aí que o presidente brasileiro está afirmando.

A democracia americana tem 200 anos e foi alvo de um ataque. Trump estimulou durante semanas a invasão do capitólio. E mesmo sendo um lame duck, um governante em fim de mandato e com poderes declinantes, as instituições dos fundadores da Pátria americana não foram capazes de evitar o assalto. Foi preparada a conspiração à luz do dia e pelas redes sociais. O presidente usou o aparato da presidência para falar aos seus seguidores no dia mesmo do atentado. E toda a reação é a posteriori.

Nós temos uma democracia jovem que já passou por duros testes. O general Etchegoyen, que foi ministro do governo Temer, disse numa entrevista a Andréa Jubé do “Valor” que o Brasil despreza a força da nossa democracia. “A cada tosse, achamos que ela não vai aguentar.”

Mas como não ter dúvidas se o próprio general é capaz de fazer a seguinte afirmação: “Qual a atitude efetiva de Bolsonaro de desapreço à Constituição Federal, comparável a de alguns ministros do STF que não se constrangeram em agredir a gramática para dar sustentação à esdrúxula tese de apoio à reeleição, na mesma legislatura, dos presidentes das duas Casas do Congresso?”

No STF, venceu o respeito à proibição da reeleição na Câmara e no Senado. Alguns ministros queriam ignorar o sentido da palavra “vedado”. Mas o general usa esses votos, que acabaram derrotados, para abonar o que Bolsonaro já fez. Ele não acha que seja atitude efetiva de desapreço pela Constituição o presidente participar de passeatas pedindo o fechamento do Congresso e do STF. Mesmo quando Bolsonaro foi para um desses eventos no helicóptero da Aeronáutica, tendo o ministro da Defesa a bordo, e disse que as Forças Armadas estavam com eles. O difícil, general, é encontrar demonstrações de apreço de Bolsonaro pela Constituição. Desapreço, há muitas. Etchegoyen é um general de pijama, hoje na iniciativa privada. Mas defende que Bolsonaro nunca mostrou desapreço pela democracia.

Diante dessa falta de sensibilidade para as afrontas à lei por parte de líderes políticos e militares, o presidente continua semeando dúvidas sobre o sistema eleitoral para colher o caos quando for a hora.


Marcus Pestana: O dilema das redes e o futuro de todos nós

Ninguém ousa negar a centralidade das plataformas digitais e das redes sociais na vida contemporânea. Mas, cada vez mais se ascende a polêmica sobre a crescente capacidade de manipulação das gigantes da comunicação digital. Os efeitos positivos das redes sociais são inegáveis. Mas a polêmica que ganha corpo é: a que custo? Quais são os efeitos colaterais? As disfunções estariam superando os benefícios?

Já recomendei aqui dois filmes da NETFLIX, o documentário “Privacidade hackeada” sobre a manipulação de dados do Facebook na eleição de Trump em 2016, e o drama polonês “Rede do Ódio”, sobre consequências dramáticas da manipulação política das plataformas. Agora em setembro foi lançado o documentário de Jeff Orlowsky, “O dilema das redes”, que vem despertando enorme polêmica. Para alguns, exagerado e sensacionalista. Para outros, um grave alerta sobre o futuro que estamos construindo.

O “Dilema das redes” não se atém à perspectiva política. Vai além, denuncia dos aspectos psicossociais da influência nas mudanças dos padrões de comportamento, principalmente nas novas gerações. A partir de depoimentos de ex-executivos do Facebook, Google, Twitter e da teatralização de uma família impactada pela exacerbação do uso da internet, há uma exposição nua e crua das vísceras das redes sociais. Fora os exageros, é assustador. Todos os pais deveriam assistir para interagir melhor com seus filhos sobre o tema.

O documentário revela como a lógica das redes é nos capturar, nos tornar compulsivamente dependentes, viciados mesmo, a partir de uma associação entre psicologia humana e tecnologia da informação. Rolagem automática e sem fim, notificações, curtidas, falsas recompensas, likes, são mecanismos desenvolvidos para nos tornar “prisioneiros das redes”, com graves repercussões na saúde mental e no bem estar de todos nós. “Apenas dois tipos de indústria chamam clientes de usuários: a de drogas ilegais e a de tecnologia da informação” é uma frase forte do filme. Penso nas mesas de bares e restaurantes com todos ligados em seus smartphones e ninguém conversando.

Outra afirmação contundente é: “Se você não paga por algo, saiba que você é o produto”. As grandes redes faturam bilhões de dólares em publicidade e fazem isso pelos dados que têm. O produto certo para a pessoa certa. Senti isso pessoalmente. Foi só fazer três compras por e-comerce numa mesma importadora de vinhos, para meu timeline do Facebook ficar coalhado de ofertas de outras importadoras. Tudo indica que “fui vendido”. Isto aconteceu com produtos relacionados ao Flamengo, a imóveis e até artistas.

Mas há consequências mais graves: o aumento da depressão e dos suicídios infantis e juvenis, a explosão de fakenews que se propagam seis vezes mais que a verdade “que é chata”, o tempo gasto que impede a relação humana direta com a família e amigos ou o deleite com a boa arte, o bullyng virtual opressivo, a alimentação do discurso do ódio e de teorias da conspiração, o estímulo à radicalização da polarização política, a deformação do processo de formação da autoestima e o nascimento de uma cultura rasa, superficial e agressiva.

Precisamos urgentemente conversar sobre isso. Ou teremos um mundo cada vez mais perigoso e desinteressante.

*Marcus Pestana, ex-deputado federal (PSDB-MG)


Celso Lafer: Democracia, veracidade e 'fake news'

Na era digital, é preciso conter a miserabilidade que vitima a verdade factual e a democracia

Uma das dualidades do significado da palavra política é a da interconexão de política-realidade com política-conhecimento. O desafio resulta de que a percepção da realidade integra a realidade política. A percepção das realidades políticas leva a avaliações, mais elaboradas ou mais toscas, que vão guiar a ação e a sensibilidade das pessoas.

A democracia parte do pressuposto do exercício em público do poder comum, pois o que é do interesse de todos deve ser do conhecimento de todos. Daí o tema da transparência do poder, que enseja a avaliação pela cidadania da atuação dos governantes. Por isso informações exatas e honestas são fundamentais na democracia, para a apropriada percepção da realidade.

Nessa linha, afirma Rui Barbosa: “O poder não é um antro, é um tablado. A autoridade não é uma capa, mas um farol”. Por isso, “o maior, o mais inviolável dos deveres do homem público é o dever da verdade: verdade nos conselhos, verdade nos debates, verdade no governo”. Daí sua crítica à mentira nas instituições e às falsificações públicas e o papel da imprensa como a “vista da Nação”. Por ela, esclarece, é que “a Nação acompanha o que lhe passa ao perto e ao longe, enxerga o que lhe malfazem, devassa o que se lhe ocultam e tramam, colhe o que lhe sonegam”.

É inegável que, nas circunstâncias atuais, com a plena liberdade de expressão, a imprensa de qualidade em nosso país tem cumprido a função de “vista da Nação”, preconizada por Rui.

Nas sociedades urbanas industriais do século 20 nunca foi simples para a imprensa ser a “vista da Nação” e assegurar a difusão da informação exata e honesta. Ela sempre operou no tempo do incessante metabolismo de dar notícias e informar com regularidade, tendo como foco aquilo que capta a atenção de seus múltiplos destinatários. Os meios de comunicação de qualidade, no entanto, sempre se preocuparam nas suas atividades com a sua reputação e confiabilidade.

As sociedades contemporâneas do século 21 operam numa nova realidade trazida pelo advento da era digital, que ampliou de maneira inédita e positiva o acesso à informação. No entanto, o fragmentário de sua difusão e circulação sem as tradicionais pautas de responsabilidade confiável tem o seu impacto na vida da democracia.

A democracia requer, como diz Bobbio, confiança. A confiança recíproca entre os cidadãos e a confiança da cidadania nas instituições. Esta confiança, por sua vez, requer a transparência, que pressupõe no espaço público a boa qualidade da informação necessária para a adequada percepção da realidade política.

Essa confiança está em falta. Esse desafio confere nova dimensão ao tema da veracidade na esfera pública vitimada pelo esconder e pelo destruir, propiciado pela técnica. É o que coloca em novos termos a clássica reflexão sobre a mentira na política e os modos de operar da razão de Estado, seja como atualmente se oculta a informação para impedir a transparência do poder, seja como se falsifica a informação que circula no palácio e na praça para atingir finalidades de política interna e externa.

A verdade da política é a verdade factual, a dos fatos e eventos a partir dos quais se avalia a realidade e se formam as opiniões. O oposto da verdade factual não é o erro, a ilusão ou mesmo a opinião, mas, sim, a falsidade e a mentira, como ensina Hannah Arendt.

A verdade factual é uma verdade frágil, porque pode ser vítima da manipulação dos fatos para denegar a aceitação da realidade. Pôr em questão a estabilidade da realidade factual pelo negacionismo tira das pessoas o chão da tessitura do real, a partir do qual se constrói na democracia o terreno comum, inerente à pluralidade da condição humana. Compromete a confiança que requer a boa-fé, seja na acepção subjetiva de uma disposição de espírito de lealdade e honestidade ou na acepção objetiva da conduta norteada por essa disposição.

A fragilidade da verdade factual aumentou exponencialmente na era digital. É o que acontece com o impacto falsificador das fake news, que se tornaram a má moeda do livre curso na vida política, que amplia, pelas redes sociais, a intransitividade da Torre de Babel, impedindo a comunicação de boa-fé.

É o que também acontece com a ampla circulação das máquinas de ódio e os linchamentos virtuais, que ensejam as “bolhas” autorreferidas que impedem a interconexão da cidadania no espaço público, favorecendo a “ascensão aos extremos” clausevitzianos da guerra.

Neste contexto cabe preconizar, sem censura, um direito à verdade da informação exata e honesta. Entre os caminhos que têm sido aventados está o da autorregulação regulada das plataformas digitais, que têm caráter eminentemente público, apesar da dimensão privada de sua propriedade e de seus usuários.

Diz um provérbio judaico que a verdade nunca morre, mas leva uma vida miserável. É preciso, na era digital, conter a miserabilidade que vitima a verdade factual e compromete a democracia.

*Professor emérito da Faculdade de Direito da USP, foi ministro das Relações Exteriores (1992 e 2001-2002)


Carlos Ayres Britto: Projeto de lei sobre ‘fake news’

Artigo 10.º do PL 2.630 é o que me parece mais vistosamente destoante da Constituição

É de percepção geral o fenômeno das fake news. Fake news como notícias falsas, literalmente. Ainda que tal desencontro com a verdade não seja total. Ou aconteça por modo tão completamente voluntário quanto apenas em parte, ou até mesmo sem nenhum ingrediente subjetivo de parceria com a inverdade. De toda maneira, notícias falsas que se espalham instantaneamente e em escala planetária, porquanto formatadas sob essa revolucionária forma de mensageria em rede que toma o nome técnico de “comunicação de dados”.

Compreensível, pois, que se pressione o Estado para editar leis de enfrentamento eficaz desse recorrente fenômeno. É o pano de fundo do Projeto de Lei número 2.630, em tramitação pela Câmara dos Deputados e sob a ementa de “Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet”. A exigir a lembrança de que boa parte dos temas ali tratados tem o seu regime jurídico diretamente estabelecido pela Constituição da República. Logo, um regime que não pode deixar de se pôr como obrigatório parâmetro para toda e qualquer lei de escalão infraconstitucional. 

Essa advertência começa pela necessidade de se entender o que não sejam fake news. Por ilustração, elas não correspondem às categorias constitucionais da liberdade de “manifestação do pensamento” e da “expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação”. Tampouco mantêm identidade com o direito de “acesso à informação”. Antes frustram o direito de todos ao mais livre acesso a um tipo veraz de informação, pois somente ele é que se põe como direito fundamental (por isso que bem de personalidade). E quanto à tarefa de dizer em que as fake news consistem, é preciso ver se elas já se encaixam nesse ou naquele molde legal de infração penal. Ou se é possível tomá-las como hipótese de incidência de um novo ilícito. Mais ainda, importa saber se a perpetração de fake news expõe o(s) seu(s) agente(s) à vedação de protagonizar futuras e distintas relações de internet. O que, data venia de entendimento contrário, me parece juridicamente descabido.

São aspectos que, junto a muitos outros de idêntica relevância – a partir do caráter jurídico totalmente privado das relações de internet -, não têm como ser dissecados num breve artigo de jornal. Por isso me limito a pinçar do projeto em causa todo o artigo 10.º, que me parece mais vistosamente destoante da Constituição. É que ele instaura um regime de rastreamento sobre as pessoas naturais que termina por lhes recusar os direitos fundamentais à “intimidade” e à “vida privada” (inciso X do artigo 5.º). Vida privada num plano intersubjetivo ou social, vida privada num plano espacial ou geográfico. Além de submetê-las a um tipo de investigação que, por independer do caso concreto e da apuração das coisas em autos oficiais, ignora os pressupostos também diretamente constitucionais da investigação criminal e da instrução processual penal. 

Deveras, penso que esse artigo 10.º inverte as coisas. Investigação criminal e instrução processual penal não se instauram senão documentalmente. Assim como não são abertas a partir do nada. Ambas pressupõem a ocorrência de algo sinalizador, em sua materialidade, de infração penal. Algo já abstratamente definido como ilícito penal e a ser apurado quanto à respectiva materialidade. Isso na perspectiva da identificação do respectivo autor. Um só autor, ou mais de um, contanto que essa coautoria seja passível de quantificação ou determinação numérica. Não em aberto, porque, senão, a essa indeterminação subjetiva passa a corresponder uma permanente situação de suspeita criminal sobre todo mundo e um Estado-polícia por definição. Como se a máxima de que “o preço da liberdade é a eterna vigilância” (Thomas Jefferson) não fosse cunhada a favor dos particulares e contra ele mesmo, Estado. Não o contrário.

Claro que não se está a desconhecer o vínculo funcional entre o combate às fake news e a concreção do bem jurídico fundamental da “segurança pública”. Ainda assim, que esse imbricamento se faça a partir do recorte que o artigo 144 da Constituição já fez quanto a dois literais sujeitos jurídicos: de uma banda, o Estado; de outra, as pessoas privadas. O Estado como sujeito que tem o “dever” de assegurar à população tal segurança; as pessoas privadas como titulares do direito ao desfrute desse bem da vida e também como responsáveis pela respectiva prestação. Sem que a lei possa baralhar as duas categorias jurídicas, pois o substantivo “dever” é conatural à figura do Estado mesmo. Estado que tem como uma das suas justificativas existenciais a permanente desincumbência desse específico dever, justamente.

Já a responsabilidade, o seu significado técnico é de colaboração ou ajuda ou auxílio. Sem constituir-se numa das próprias razões de ser das pessoas privadas. Pelo que a lei não pode forçar os particulares a fazer as vezes do poder público. A se colocar no lugar dele. Mais uma advertência que fica. 

EX-PRESIDENTE DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAl (STF)


Raul Jungmann: Internet: regulação ou democracia ameaçada

Ou regulamos a Internet ou a democracia será destruída. Não há meio termo. Do total de 7,6 bilhões de seres humanos que habitam o planeta, 59%, ou 4,5 bilhões, estão nas redes todos os dias. No Brasil, para uma população de 210 milhões, são 231 milhões de celulares, o quarto lugar no mundo.

Enquanto a nossa vida real obedece a normas, sobretudo na esfera pública, a Internet permanece com baixíssimo grau de regulação e é dominada por plataformas gigantes, verdadeiros monopólios em seus nichos de mercado.

Mais que ouro ou petróleo, a posse de dados é o maior ativo da nossa época. E é isso que faz dessas plataformas as companhias mais valiosas do planeta.

Para manterem suas posições de líderes e ampliarem continuamente seus lucros, elas possuem uma ferramenta poderosa, a inteligência artificial, que identifica, reconhece, seleciona e conecta usuários das redes às mensagens dos seus anunciantes – independentemente do conteúdo -, sejam falsas, verdadeiras, racistas, de ódio, fascistas ou manipuladoras.

A verdade, como regra consensual para se conviver em sociedade, é a primeira vítima. Ela não mais existe, mas se multiplicam em versões que viram várias verdades em choque. Em seguida, temos o assassinato da esfera pública, pelo seu contínuo estilhaçamento, além da perda progressiva da vida privada e, por fim, da própria democracia.

Soa, portanto, como escárnio as palavras do Facebook, Google e Twitter sobre a Lei Brasileira de Responsabilidade e Transparência na Internet, conhecida como a lei das fake news, ora em tramitação no Congresso: “o projeto promove a coleta massiva e dados das pessoas (…), pondo em risco a privacidade e segurança de milhões “. Acusam os legisladores justo do delito que cometem!

A principal trincheira na defesa de seus interesses é o direito à liberdade de expressão, como algo absoluto, intocável. De pronto, é preciso lembrar que inexistem direitos absolutos, sem restrições, pois todos as têm. Em segundo lugar, é possível deslocar o debate do direito de expressão para o “alcance do direito à expressão”, o que as companhias também não aceitam, porque afeta negativamente os seus lucros.

Por emponderar os indivíduos, aumentar a produtividade e permitir acesso amplo ao conhecimento, a Internet veio para ficar. Mas, ou ela é regulamentada, e não há como esperar uma solução global, ou o ódio massificado, o extremismo político, a negação da ciência e da cultura via redes (in) sociáveis triunfará.

*Raul Jungmann - ex-deputado federal, foi Ministro do Desenvolvimento Agrário e Ministro Extraordinário de Política Fundiária do governo FHC, Ministro da Defesa e Ministro Extraordinário da Segurança Pública do governo Michel Temer.


Eliane Cantanhêde: Fardas, armas, dúvidas

Fazer dossiês contra policiais críticos do governo soa como extensão do ‘gabinete do ódio’

Que a relação do presidente Jair Bolsonaro e seus filhos com armas, munições, milicianos, policiais e militares é um tanto complexa, todo mundo sabe. Mas nunca ficou claro quais são seus reais planos para as polícias estaduais e é exatamente por isso que o ministro da Justiça, André Mendonça, deve explicações ao Judiciário, ao Legislativo e à sociedade brasileira para dossiês contra “antifascistas”, ou antibolsonaristas. O principal alvo desses dossiês são... policiais.

De um lado, prospera a suspeita de infiltração bolsonarista nas polícias, aumentando a influência do presidente e reduzindo a dos governadores. De outro, surgem esses dossiês sobre policiais que se opõem a Bolsonaro e à ingerência de cima. Quem faz dossiê contra adversários e críticos é porque pretende usá-lo para perseguição ou chantagem, como uma extensão do “gabinete do ódio” do Planalto. Coisa de ditaduras, não de democracias.

Não bastasse o Ministério da Justiça, também o Ministério Público do Rio Grande do Norte produz dossiês de policiais, com fotos, dados, manifestações e posts nas redes, produzindo um banco de dados de quem está “conosco”, quem está “contra nós”. Sabe-se lá em quantos outros Estados a produção de dossiês está virando moda. Se fossem sobre fascistas, até daria para entender, mas são contra “antifascistas”. Ser contra antifascista é ser o quê?

Quando se trata de polícia, instituição fardada e armada, isso se torna particularmente intrigante – ou preocupante. No contexto brasileiro, mais ainda. Na política há três décadas, o presidente da República jamais se preocupou com Economia, Educação, Saúde, Meio Ambiente ou mesmo estratégia de Defesa, geopolítica. Seus mandatos foram consumidos na defesa de aumentos salariais para policiais e militares. Por trás disso, eleição, eleição, eleição.

Hoje presidente, Bolsonaro não se dedica só a garantir votos nos setores armados, mas a articular algo mais complexo, que não está claro. Não bastam os votos de policiais, é preciso manipulá-los, dominá-los? Com que objetivo? Nessa direção, Bolsonaro só sancionou a lei que proíbe reajustes salariais de servidores públicos, por causa da pandemia, após o aumento dos policiais da capital da República – os mais bem remunerados do País.

E as investidas nas polícias não são isoladas, vêm junto com projetos para ampliar porte e posses de armas, a derrubada de três portarias do Exército sobre monitoramento de armas de civis, a disparada de munições. E, enquanto prestigiava solenidades militares, o presidente ia cooptando as polícias. Sem falar nas ligações dos Bolsonaros com milicianos no Rio...

Desde o motim de PMs no Ceará, em fevereiro, os governadores suspeitam de infiltração bolsonarista nas polícias. Naquele motim, Bolsonaro não deu uma palavra de repúdio, determinou envio da Força Nacional a contragosto e só prorrogou a operação depois que governadores de São Paulo, Rio, Pernambuco e Bahia, pelo menos, se articularam para emprestar tropas e equipamentos para o governador Camilo Santana (PT).

Os amotinados saíram fortalecidos e um dos mais destacados agitadores do movimento, Capitão Wagner (PROS), é candidato a prefeito de Fortaleza, parte da tropa bolsonarista nas eleições municipais. Terá ou não o apoio, declarado ou por baixo dos panos, do presidente, que vai tragando para a política cabos, sargentos, capitães, majores, coronéis e até generais?

Evasivo, o governador João Doria diz que “no caso de São Paulo, não há infiltração bolsonarista nas polícias, que são muito profissionalizadas”. E no resto do País? “O risco existe e por isso exige a atenção dos governos, dos Poderes e da opinião pública”, admite. Dá para acrescentar: antes que seja tarde.


Cacá Diegues: A política de guerra

Vou tratar de virar fã de Felipe Neto

Se a esquerda faz política demais, a direita por sua vez não sabe fazer política, não faz política nenhuma. Mas se ilude quem pensa que nosso presidente de direita, Jair Bolsonaro, se elegeu sem um programa claro, por puro prazer da aventura política contra a política, a antipolítica que ele tanto anunciou. Ele e sua turma nunca se interessaram pela política como modo de levar a sociedade em direção a uma agenda que corrigisse o passado e organizasse o futuro, não se prepararam para isso. Eles se prepararam para uma guerra e só pensam nela.

Uma guerra que só ainda não foi escancarada, fazendo mais vítimas e provocando mais tiroteios aleatórios e insanos, por causa da pandemia, por causa de um pequeno animalzinho, um quase nada, o vírus assassino que não permitiu que o bando de Bolsonaro assumisse o papel central de seu tempo. A guerra que programaram e pretendiam praticar é humanamente menor do que a calamidade pública provocada pela Covid-19.

Quem não se lembra das ameaças guerreiras feitas pouco antes de se tornar trágica a presença do vírus por aqui? Um dia, na televisão, Bolsonaro nos garantiu que tinha vencido a eleição de 2018 no primeiro turno e que, portanto, tinha sido roubado. O presidente afirmou que tinha provas disso e que ia mostrá-las à nação. Faz mais de oito meses que esse show passou na televisão… e cadê as provas? Quantas vezes ouvimos dele, de seus filhos e dos ministros mais queridos e alinhados, que haveria muito em breve uma ruptura inevitável, que não dava mais para suportar as perseguições dos outros Poderes ao Executivo? Quantas vezes ouvimos, desde há bastante tempo, expressões como “agora chega” ou “acabou” ou “não dá mais” ou coisa que o valha? Faz tempo que essas expressões de radicalidade começaram a ser usadas e, até agora, a guerra não passou de fuxico.

O Brasil tem hoje perto de cem mil vítimas fatais do coronavírus e mais de dois milhões e meio de infectados lutando contra a morte, fora os que não morreram mas se tornaram de alguma forma deficientes. Vemos todo dia, nos jornais, na televisão e nas redes sociais, as famílias feridas dessas vítimas, capazes de comover o mais endurecido dos corações. Menos os da turma dos Bolsonaros. Para eles, é tudo um exagero da “extrema imprensa”, o possível quase milhão de familiares enlutados tinham mais é que se conformar, pois todo mundo um dia morre. E daí?

Enquanto as vítimas e seus familiares têm a generosidade de pedir à população que não saia de casa, para que não morram mais brasileiros inutilmente, o presidente do Brasil, o principal responsável em última instância pelos cidadãos do país, manda invadir os hospitais para fotografar leitos vazios, a fim de provar que é tudo um exagero contra não sei quem. Aí o consórcio de imprensa, montado a partir das informações das secretarias de Saúde de cada estado, com a finalidade de neutralizar as mentiras que estavam sendo supostamente armadas pelo Ministério da Saúde para subestimar os números da crise e aliviar a responsabilidade do governo, impacta a nação com os verdadeiros números da tragédia.

Enquanto as famílias e os solidários a elas choram as vítimas da Covid-19, o presidente da República sorri feliz e sem máscara, abraçado a uma aglomeração no interior da Bahia, em cima de uma mula manca, fantasiado de caubói sertanejo, com um chapéu de falso couro de jagunço, inaugurando um bebedouro ornamental e vagabundo, mandado construir por outra responsável pela miséria do Brasil, Dilma Rousseff, numa região em que o povo morre, de verdade, de fome e de sede.

No meio da representação de sua farsa, Bolsonaro se explica, como um demônio sem compaixão, dizendo que está mesmo interessado é em salvar a economia do país, que está se dedicando a isso, certamente mais importante que os mortos inevitáveis. Pois bem, segundo o próprio IBGE, já foram fechadas, vítimas da pandemia, 522 mil empresas no Brasil. O que é que o governo fez por cada uma delas?

Bolsonaro não tem tempo de cuidar da economia dessas empresas porque seu pessoal está ocupado com a guerra. A meta bélica agora é acabar, a qualquer preço, com Felipe Neto, um jovem youtuber que, talvez sem se dar conta, também se preparou para ela e aprendeu a usar as redes sociais, alcançando mais de 60 milhões de seguidores. Para o bem do governo, Felipe Neto tem que ser destruído e está sendo perseguido com clássicas fake news imorais e incômodos pessoais, como o cerco no condomínio onde mora.

As mentiras hediondas, munição de uma guerra estúpida, estão fazendo de Felipe Neto um herói da resistência aos males que já foram e ainda serão feitos ao Brasil. Nunca tive a oportunidade de ver o influencer na internet, mas vou vê-lo logo e tratar de ser seu fã.


Fernando Gabeira: Fake news, injúria e conspiração

Decretaram minha morte e reclamam por eu não ter levado a sentença a sério

Notícias falsas, injúrias, teorias da conspiração, quase todas as semanas, sobem ao topo da pauta política no Brasil.

Nas redes, muito se falou do ataque a Felipe Neto, depois de sua aparição no “New York Times” criticando o governo Bolsonaro. A velha acusação aos comunistas, comem criancinhas, ganhou uma versão atualizada contra Felipe.

No campo editorial, tive a oportunidade de ler “A máquina do ódio”, um livro de Patrícia Campos Mello sobre fake news e violência digital no mundo. Ela conta, entre outros casos, a carga injuriosa que sofreu quando denunciou manipulação digital nas eleições de 2018.

Nem sempre foi assim no Brasil. Nesses tristes momentos de tecnopopulismo, costumo dar uma olhada na bela coletânea intitulada “Duelos no serpentário”, coligida por Alexei Bueno e George Ermakoff.

Trata-se de uma antologia de polêmicas intelectuais no Brasil, de 1850 a 1950. Havia alguma ironia, insultos aqui e ali, mas eles passavam dias, noites, escrevendo suas teses, sob a luz de lamparinas. O problema era convencer com ideias.

A polêmica gramatical entre Rui Barbosa e Carneiro Ribeiro sobre o texto do Código Civil, se impressa no conjunto, daria um livro de mil páginas, capaz de entediar gerações inteiras de estudantes. Houve polêmicas para definir se o cinema falado era melhor que o cinema mudo. Vinicius de Moraes participou dela.

Em relação a esse período da história, talvez tenhamos regredido às medievais canções de maldizer e escárnio. Ou, mais que isso, entramos num campo que só o estudo da injúria pode abarcar.

Jorge Luis Borges escreveu a bela “História universal da infâmia”. Nas suas obras completas é possível encontrar também algumas notas sobre a injúria, uma categoria específica de agressão.

É um texto curto, intitulado “Arte da injúria”. Segundo Borges, o agressor deverá saber, conforme advertem os policiais da Scotland Yard, que qualquer palavra que diga pode ser voltada contra ele.

O sonho dele, portanto, é ser invulnerável. Isso foi escrito na década dos 30, muito antes da internet, que trouxe o conforto do anonimato.

O roteiro da injúria em Borges passa pelas ruas de Buenos Aires. O agressor sempre adivinha a profissão da mãe dos outros e quer que mudem para um certo lugar que pode ter diferentes nomes. Em português, é possível conciliar os dois tipos de injúria enviando a pessoa para um lugar que, em linguagem amenizada, é a ponte que partiu.

Ao longo de sua análise, Borges descobre que, nas “Mil e uma noites”, célebre texto árabe, há um xingamento que se tornou popular: cão.

E chega aos que parecem mais sofisticados e certeiros como este: “Sua esposa, cavalheiro, sob o pretexto de trabalhar num prostíbulo, vende artigos de contrabando”.

Borges destaca também a injúria mais esplêndida feita por alguém que não tinha contato com a literatura. Ele descreve um homem chamado Santos Chocano, dessa maneira: “Os deuses não consentiram que Santos Chocano desonrasse o patíbulo, nele morrendo. Aí está vivo, depois de ter fatigado a infâmia”. O personagem me lembra um pouco velhos políticos que ganham uma espécie de pele de elefante depois de tantas pancadas pela vida afora. Cansam até o xingamento.

Mas os insultos contra as pessoas que têm outra atividade costumam ser devastadores para suas relações familiares, de amizade e a própria autoestima. Sou solidário com elas e desejaria ver algo na lei que acabasse com a invulnerabilidade do agressor.

Pessoalmente, não guardo ressentimentos, sobretudo agora nessa idade. Não me ameaçam de morte, simplesmente afirmam que já morri e não me dei conta. Decretaram minha morte em algum momento do passado e reclamam por não ter levado a sentença a sério.

A idade também protege um pouco contra a repetição do mantra “viado e maconheiro". A maconha restou com alguma vitalidade. Sempre que escrevo algo que lhes desagrada ou parece estapafúrdio, dizem que fumei maconha estragada.

Ainda bem que sou de paz. Poderia acusá-los de apologia às drogas. Se as ideias estapafúrdias e equivocadas são fruto de maconha estragada, isso significa que a de boa qualidade traz limpidez e justiça ao pensamento.

Não se discute mais como antigamente. E eles estão com um enorme estoque de cloroquina para se preocupar com outra droga.

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Ascânio Seleme: Fascistas e antifascistas

Quando o deputado Eduardo Bolsonaro atacou as manifestações antifascistas de junho passado, chamando seus participantes de terroristas, as pessoas relevaram, embora fosse a palavra do terceiro zero do presidente da República. Tratava-se de mais do mesmo. O personagem já havia demonstrado inúmeras vezes seu desamor à democracia. E, depois, embora fosse filho do homem, não era o homem. Não era o governo, não representava a nação. Levou os pitos habituais e a vida seguiu.

Agora, não. Acabaram as dúvidas daqueles que ainda viam o governo simplesmente como liberal de direita ou dos que o classificavam apenas como conservador. A revelação de que um obscuro departamento do Ministério da Justiça monitora um grupo antifascista formado por servidores públicos da área de segurança e professores universitários críticos ao governo explicitou definitivamente seu caráter extremista. Quem fiscaliza e faz dossiê sobre pessoas e instituições que pregam contra a restrição da liberdade pode ser chamado, no mínimo, de antidemocrático.

Parece piada, mas não é. O repórter Rubens Valente, do UOL, revelou na sexta-feira da semana passada, que uma Secretaria de Operações Integradas (Seopi) do Ministério da Justiça investiga e já produziu um dossiê sobre o movimento Policiais Antifascismo e sobre professores que se opõem ao governo Bolsonaro. Trata-se na verdade de uma investigação subterrânea, sem objetivo, por não haver crime, e sem acompanhamento do Ministério Público ou de um juiz. Uma investigação ilegal, criminosa.

Para o Ministério da Justiça, a xeretice da Seopi tem a intenção de prevenir práticas ilegais dos funcionários públicos e de garantir a segurança. O argumento é ridículo. O objetivo é político. A investigação ilegal é uma forma de monitorar e manter sob vigilância opositores de Bolsonaro. Porque, e agora é oficial e tem carimbo do Ministério da Justiça, o governo trata antifascistas como perigosos inimigos. Inimigos políticos a serem investigados, denunciados e abatidos. Aliás, estes em questão já foram de certa forma denunciados.

O dossiê sobre os professores e os policiais antifascistas foi distribuído entre órgãos de segurança nos estados e no Distrito Federal. Na prática, estimula a repressão, uma vez que sugere que os dois grupos são capazes de desestabilizar a segurança. Trata-se de uma rematada bobagem. Eles representam exatamente o contrário disso. Ao se posicionarem contra o fascismo, dizem claramente serem contra autoritarismo e violência.

Observação necessária. A Secretaria de Operações Integradas, um órgão de inteligência, que em português verdadeiro significa espionagem, foi criada no atual governo, ainda na gestão do ministro Sergio Moro. Mas, de acordo com a reportagem do UOL, o dossiê foi elaborado já no comando do ministro terrivelmente evangélico André Mendonça. Nenhuma dúvida quanto ao seu caráter, certo?

Outro detalhe importante. O zerinho de Bolsonaro voltou a falar depois que a matéria teve repercussão. Agora, como se fosse em nome da administração. Ele indagou no Twitter se as pessoas querem que o governo tenha em seus quadros pessoas ligadas ao movimento antifas. Foi um deboche, se fosse uma pergunta séria, a resposta seria SIM! O governo seria melhor. Apontaria para a tolerância e a civilidade. Mas o zerinho tem razão, não dava mesmo para esperar por este gesto de grandeza de um governo tão pequeno.

Nenhuma saudade
No dia 27 de agosto de 1980, há 40 anos, uma carta-bomba explodiu nas mãos da secretária do presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Dona Lyda Monteiro da Silva morreria logo depois, ao dar entrada no Souza Aguiar. O artefato decepou-lhe um dos braços e provocou diversas mutilações no seu rosto e em seu torso. Outras três bombas foram enviadas para a Câmara Municipal do Rio, para a sede da Associação Brasileira de Imprensa (ABI) e para o jornal “Tribuna da Luta Operária”, órgão do Partido Comunista do Brasil. A da Câmara deixou seis feridos, a da “Tribuna” era de baixa potência, explodiu de madrugada e só causou danos materiais. A da ABI foi desmontada, depois de o presidente da entidade, Barbosa Lima Sobrinho, ter sido alertado por um telefonema anônimo. Eram os facínoras da ditadura tentando impedir a abertura em curso no governo do último general. Um ano depois, dois desses gorilas implodiram eles mesmos e o regime no atentado malsucedido do Riocentro. Ao contrário de Regina Duarte, o país não tem nenhuma saudade daqueles dias sombrios. Por Isso, todo movimento antifascista é bem-vindo.

Perda da confiança
A diferença fundamental entre Collor e Bolsonaro, a despeito de tantas semelhanças entre os dois, é que Bolsonaro não confiscou a poupança dos brasileiros. Três dias depois da posse, Collor perdeu a confiança dos seus eleitores. Ele decepcionou tanto que caiu na primeira boa chacoalhada. Nestes dias de silêncio do capitão, alguns envergonhados voltam a falar abertamente em seu favor. Tudo o que o eleitor não bolsonarista de Bolsonaro quer é uma desculpa para dizer, nem que seja para ele mesmo, que não errou.

Mitos
Até a segunda metade do século 19, as pessoas não acreditavam que pandas existissem de fato. Achavam que era uma lenda, um mito. Os primeiros a comprovar que os ursos com cara de bonequinho de pelúcia frequentavam a terra de Deus foram cientistas. Só Bolsonaro não enxerga que os cientistas estão sempre um ou dois passos na frente do resto de nós.

Rede de ódio
Quer saber como funciona o “gabinete do ódio”? Quer entender como ele opera? Como funciona seu mecanismo de criação e distribuição de fake news? Quer conhecer as consequências políticas que ele é capaz de gerar e até onde pode chegar? Então assista ao filme “Rede de Ódio”, do diretor polonês Jan Komasa. Disponível na Netflix.

Ecoanxiety
Relatório da Associação Americana de Psicologia descreveu uma nova síndrome neurológica. Trata-se do que a entidade chamou de “ecoanxiety”, o que seria, em tradução livre, uma ansiedade ecológica. Ela define um novo comportamento social que se traduz na forma de um “medo crônico da falência ambiental”. Enquanto isso, no Brasil, Ricardo Salles segue sendo ministro.

Marchons, marchons
Um milhão e meio de galões de vinho da Alsácia vão virar álcool em gel. O maravilhoso vinho branco da região Nordeste da França, ao longo da fronteira alemã, será transformado em álcool e distribuído em hospitais e postos de saúde. A primeira razão, claro, é a pandemia de coronavírus que exigiu um aumento brutal da fabricação desse higienizador de mãos. Em segundo lugar, um boom na produção de vinho local. Os vinicultores, contudo, prefeririam estocar o excesso e vender em ano de baixa. Mas, enfim, guerra é guerra.

Paula e Caetano
Uma das melhores brincadeiras digitais dessa pandemia são as conversas de Paula Lavigne com Caetano Veloso, em que ela insiste para ele fazer um vivo numa rede social. Os diálogos entre os dois são fabulosos. Caetano, todo mundo sabe, é um gênio. Muito bom ver um gênio na versão caseira. O resultado é até mais interessante do que uma live que, aliás, vai sair. Melhor que eles, só o Adnet.

Nota de 200
Fala sério. Para quê o governo vai confeccionar a nota de R$ 200? Não tem sentido. Por três razões, aliás. Primeira e óbvia, cada dia mais as pessoas usam cartões de crédito e débito para pagar contas. Segunda, o avanço das compras on-line impulsionado pela pandemia veio para ficar. Terceira, troco para nota de R$ 100 já é difícil, imagina para a de R$ 200.

Pra quê direito?
Projeto de lei que impõe limites à arrecadação de direitos autorais a autores e intérpretes de música recebeu esta semana alguns adendos. Além da isenção da cobrança em quartos de hotéis e de navios de cruzeiro, que é sua motivação original, o projeto agora inclui cultos ou eventos realizados por organizações religiosas, pelas Forças Armadas, pelas polícias militares e pelos corpos de bombeiros.

Errado
Estudo mostra que 97% de todas as pesquisas on-line no Brasil são feitas por meio do Google. Tem alguma coisa muito errada por aqui.


Eugênio Bucci: A liberdade e a Justiça

A indústria ilegal da desinformação é um fenômeno sobre o qual não há jurisprudência

A determinação do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), de bloquear páginas de bolsonaristas em redes sociais provocou um bom debate. Desta vez não se trata de uma daquelas batalhas estéreis entre claques que se ofendem e não se escutam. Estamos em meio a uma discussão que mobiliza conceitos sérios, com fundamento ético e legal, sobre os limites da Justiça e os alcances da liberdade de cada um. Há argumentos legítimos e inteligentes de um lado e de outro. A hora pede reflexão. Mais do que embarcar no Fla-Flu jurídico, devemo-nos dedicar a entender com calma o que está em jogo.

Comecemos pela pergunta incômoda: a autoridade judicial pode, no âmbito de um inquérito (no caso, o Inquérito 4.781, mais conhecido como o “inquérito das fake news”), impedir preventivamente a manifestação das pessoas investigadas? Pode o juiz impor a mordaça a um cidadão cujos atos ainda não foram julgados?

Os que respondem “sim” a essa pergunta argumentam que os trâmites da Justiça e das investigações policiais normalmente restringem direitos fundamentais. Nada de novo sob o sol, portanto. Na terça-feira, em webinar no site Poder 360, ninguém menos que o presidente do Supremo, Dias Toffoli, seguiu essa linha de raciocínio. Lembrando que até mesmo o direito de ir e vir pode ser suspenso pela autoridade judicial no curso de uma investigação (é o que acontece quando o suspeito vai para a cadeia, em regime de prisão preventiva, mesmo antes de seu suposto crime ter sido julgado pela Justiça), Toffoli sustentou a tese de que a supressão preventiva de páginas de pessoas investigadas nas redes sociais constitui um expediente análogo, igualmente aceitável e legítimo, além de legal.

O argumento, bem construído, soa ainda mais convincente quando observamos que aqueles que tiveram suas contas derrubadas nas redes não foram cassados em sua liberdade de expressão, pois seguem se manifestando com alta estridência em outros canais – apenas aquelas contas específicas, nas quais foram identificadas condutas e postagens suspeitas, foram bloqueadas. Além disso, o bloqueio das contas desses bolsonaristas seria indispensável para o bom curso das investigações. Por tudo isso, o argumento procede.

Há, porém, outro ponto de vista. Quando perguntados se um juiz teria poderes para impor a mordaça a um cidadão cujos atos ainda não tivessem sido julgados, não são poucos os que respondem “não”. Nesse grupo não figuram apenas os sabujos do presidente da República, empenhados em rebaixar a União ao papel de despachante de blogueiros fascistas. Nesse grupo estão também aqueles que não apoiam em nada o governo e se preocupam com precedentes que, no bojo do inquérito das fake news, venham a enfraquecer no futuro o respeito à liberdade de expressão. Estes (os que prezam a democracia) consideram que um inquérito policial não deveria ter a prerrogativa de atropelar o livre curso do debate público. Admitem, por certo, que todos devem ser responsabilizados (julgados e punidos) pelos abusos que cometerem no uso da liberdade, mas não aceitam a supressão preventiva de um milímetro que seja dessa liberdade.

É fato que hoje estamos falando de um inquérito que apura o comportamento de milícias virtuais abjetas, que disseminam o ódio, o preconceito, o fanatismo e a desinformação mais delirante, atentando diariamente contra os mais preciosos alicerces da República e da democracia. As contas bloqueadas, todo mundo sabe, reúnem um festival de ultrajes e baixezas inomináveis, com pregações contra os direitos fundamentais e as liberdades democráticas. Portanto, para um democrata, é confortável dar de ombros a uma ação da Justiça que limite, ao menos um pouco, as violências virtuais perpetradas por esses terroristas do simbólico. Mas o que acontecerá se, amanhã, outro inquérito, com outras motivações, vier a interditar páginas que não primem pela mesma vileza? A cargo de quem ficaria o critério de arbitrar sobre o que deve e o que não deve ser proibido?

A muitos democratas preocupa a hipótese de que o inquérito das fake news hoje abrigue um componente de censura que venha a produzir estragos amanhã. Para estes, não dá para apoiar o bloqueio das páginas desta vez só porque nos enoja o conteúdo bloqueado. E se gostássemos desse conteúdo, qual seria a nossa reação? Será mesmo essencial, para o êxito das investigações, que essas páginas sejam suprimidas das plataformas sociais?

Os dilemas implicados aí nada têm de corriqueiros. São dilemas ameaçadores e desconhecidos – a indústria ilegal da desinformação, cujos estragos estão apenas começando a se mostrar, é um fenômeno recente, sobre o qual não há jurisprudência em nenhum lugar do mundo. No Brasil é ainda pior, porque aqui o Poder Executivo age como um gabinete do ódio contra as liberdades. Diante disso, a responsabilidade que pesa sobre o STF é quase sobre-humana. Que nossos ministros saibam honrar a melhor tradição da Suprema Corte, de consolidação das liberdades e fortalecimento da democracia, e trilhem o melhor caminho.

*Jornalista, é professor da ECA-USP


Pablo Ortellado: Facebook na berlinda

Derrubada de páginas pode não ter sido motivada apenas por comportamento inautêntico, mas para responder acusações de tolerância ao discurso de ódio

O Facebook derrubou na semana passada uma série de páginas e contas de sua plataforma e também do Instagram por comportamento inautêntico coordenado, ou seja, por se passarem por outras pessoas para enganar usuários ou o algoritmo das duas plataformas. Ao contrário de outras ocasiões em que conjuntos de páginas e contas foram derrubadas, desta vez a empresa deixou claro quem eram os alvos: Roger Stone, colaborador de Donald Trump, e assessores de membros da família Bolsonaro.

Como investigações desse tipo demoram semanas, elas provavelmente foram deflagradas num contexto diferente do atual. Apesar disso, não parece coincidência que tenham sido anunciadas no momento em que o Facebook é acusado de ser condescendente com discurso de ódio pela campanha de boicote “Stop Hate for Profit”.

A campanha foi montada por organizações de direitos humanos e conseguiu a adesão de grandes marcas globais que estão suspendendo anúncios no Facebook como meio de pressionar a empresa a rever uma posição considerada tolerante com discurso de ódio, incitação à violência, discriminação e negação do Holocausto.

Embora esses tipos de discurso sejam diretamente proibidos pelas regras da comunidade do Facebook, a empresa adotou uma política de excepcionalidade para quando o discurso emana de políticos.

O argumento é o de que o interesse dos usuários/cidadãos de saber o que diz um político —por exemplo, o presidente dos EUA ou do Brasil— prevalece sobre a necessidade de limitar a disseminação de um discurso nocivo.

Reportagens da imprensa americana mostraram, porém, que a motivação para a adoção da excepcionalidade foi tentar gerar equilíbrio ao aplicar as regras sobre agentes políticos da esquerda e da direita. Como havia o entendimento de que uma aplicação rigorosa das regras impactaria muito mais a direita e a empresa temia uma reação forte dos republicanos, optou pela excepcionalidade que geraria mais equilíbrio.

Embora as grandes marcas que aderiram ao boicote não representem uma parte significativa da receita do Facebook (que vem principalmente de médios e pequenos anunciantes), o barulho causado por essa adesão, assim como a publicação de um relatório de uma auditoria independente muito crítico aos efeitos das políticas sobre os direitos civis colocou grande pressão sobre a companhia que pode ter respondido com a derrubada de páginas e contas ligadas a políticos conservadores e pode vir a ser complementada com medidas como a suspensão de anúncios políticos no período eleitoral americano.

*Pablo Ortellado, professor do curso de gestão de políticas públicas da USP, é doutor em filosofia.


Ricardo Noblat: Presidente não se acanha e sai em defesa de criminosos digitais

Em nome da liberdade da imprensa dele

O que notícia falsa tem a ver com liberdade de expressão? Nada. Por falsa, a notícia só causa prejuízo às pessoas que as recebem, acreditam nelas e ajudam a disseminá-las. Seus autores escapam impunes porque quase sempre são anônimos.

Favor não confundir notícia falsa, criada com o propósito de enganar e estimular o ódio, com notícia errada. Jornalista, quando erra, é obrigado a admitir o erro e a corrigir-se. Se não o faz, perde credibilidade, seu maior ativo, e pode ser processado.

O presidente Jair Bolsonaro, embora enfermo, fez questão de protagonizar, ontem, mais uma de suas lives no Facebook – logo onde… E saiu em defesa das pessoas que tiveram suas páginas cassadas pelo Facebook por publicaram notícias falsas.

Uma dessas pessoas é seu assessor especial, uma das cabeças do chamado “gabinete do ódio”, que trabalha ao lado de sua sala no terceiro andar do Palácio do Planalto. Depois do seu filho Carlos, é o marqueteiro digital favorito de Bolsonaro.

Em termos mais brandos, Bolsonaro voltou a criticar a imprensa e a desafiá-la a apresentar uma única notícia falsa que ele ou a sua turma divulgou (e o kit-gay, hein?). E no seu papel favorito de vítima da esquerda que quer derrubá-lo, afirmou a certa altura:

– Não podemos perder essa liberdade da imprensa. Isso me elegeu presidente da República.

“Essa liberdade da imprensa”, salvo interpretação errada, seria a liberdade de seus seguidores de o defenderem, mesmo valendo-se de notícias falsas. Por que ele e seus filhos foram contra a Comissão Parlamentar de Inquérito das fake news?

Por que andam tão assustados com o inquérito conduzido no Supremo Tribunal Federal pelo ministro Alexandre de Moraes que investiga a postagem de notícias falsas? Se forem inocentes como dizem ser, por que se portam como aliados de criminosos digitais?

Uma vaga de ministro do Supremo para quem mais agradar Bolsonaro

Tem um novo golpe na praça
O crime compensa, a levar-se em conta a decisão do ministro João Otávio Noronha, presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que concedeu habeas corpus não só a Fabrício Queiroz, sócio de Flávio Bolsonaro no esquema da rachadinha, mas também à sua mulher, Márcia, procurada pela polícia e foragida há 21 dias sob a proteção de milicianos. Ela já pode reaparecer.

Se não for revogada quando o plenário do tribunal a examinar depois das férias de julho do Judiciário, a decisão beneficiará no futuro pessoas suspeitas ou comprovadamente criminosas que para escapar à prisão prefiram fugir a se entregar. Esse é o aspecto mais “chocante”, “absurdo”, “vergonhoso” e “bizarro” da decisão, segundo ministros do próprio STJ e do Supremo Tribunal Federal.

Noronha concordou com os argumentos de defesa do casal de que Queiroz, por ter se operado de um câncer, correria risco menor de contrair o coronavírus se fosse mandado para casa. E que uma vez em casa, precisava dos cuidados da mulher. Há vídeos e fotos que mostram Queiroz dançando ainda no hospital depois de operado, fazendo churrasco em Atibaia, e sem a mulher.

Há mais de um ano que Queiroz estava sob o controle de Frederick Assef, advogado da família Bolsonaro. Abrigou-se em três imóveis de Assef entre o Rio e São Paulo. Na maior parte do tempo sozinho, vigiado por caseiros que informavam ao advogado sobre todos os seus passos. Era uma espécie de prisão domiciliar sem a tornozeleira eletrônica que agora será obrigado a usar.

Queiroz, preso, na Penitenciária de Bangu, no Rio, poderia sentir-se tentado a contar o que sabe sobre os Bolsonaro em troca de uma pena mais branda. Se sua mulher acabasse presa também, aumentariam as chances de ele delatar. Sua filha mais velha é personagem do esquema da rachadinha e deverá depor. Foi funcionária do gabinete do então deputado federal Jair Bolsonaro.

O presidente da República contraiu uma dívida impagável junto a Noronha. Os dois se tornaram amigos depois de Bolsonaro se eleger. Na posse do atual ministro da Justiça, ao saudar Noronha ali presente, Bolsonaro não se conteve e derramou-se em elogios a ele:

– Prezado Noronha, permita-me fazer assim, presidente do STJ. Eu confesso que a primeira vez que o vi foi um amor à primeira vista. Me simpatizei com Vossa Excelência. Temos conversado com não muita persistência, mas as poucas conversas que temos o senhor ajuda a me moldar um pouco mais para as questões do Judiciário.

O ministro fez por merecer o “amor à primeira vista”. Levantamento feito pelo O Estado de S. Paulo nas decisões individuais tomadas por Noronha entre 1º de janeiro do ano passado a 29 de maio último, aponta que ele atendeu aos interesses do governo em 87,5% dos casos que julgou. É uma marca que faz dele o mais confiável juiz aliado de Bolsonaro.

Mas essa história de que o presidente não tem como pagar o que deve ao ministro não passa de lugar comum. Tem como pagar, sim. Basta indicá-lo para a próxima vaga de ministro do Supremo Tribunal Federal a abrir-se no final deste ano com a aposentadoria de Celso de Mello, o decano da Corte. É o que Noronha deseja. É o que Bolsonaro já mandou lhe dizer que seria possível.

O “golpe da vaga de Celso” está sendo aplicado à farta pelo governo sempre que se vê em apuros, segundo confessa um ministro militar com gabinete no Palácio do Planalto. Até aqui, ela foi prometida a meia dúzia de pessoas. E é natural que todos a ambicionem e se esforcem por obtê-la. Outra vaga, a do ministro Marco Aurélio Mello, será aberta em 2021, mas já está sendo oferecida na praça.