Fake News
Míriam Leitão: A dilacerante dor dos brasileiros
CPI foi o desabafo do país, de todos os que discordam dos rumos aviltantes do governo
Míriam Leitão / O Globo
Nem nos mais pessimistas cenários esse número apareceu. Nem nos piores pesadelos o país imaginou que poderia perder 600 mil vidas na pandemia. Se tentássemos escrever uma distopia, algum enredo de horror político, o presidente seria assim como o que governa o Brasil. Não visitaria hospitais, não consolaria as vítimas, proibiria as medidas de precaução, induziria o uso de um remédio ineficaz e impediria que seus ministros e assessores socorressem a população. E mentiria todos os dias. O que nós vivemos não estava escrito, previsto ou calculado. As marcas ficarão. Como disso o cantor e compositor Criolo, “a pandemia nunca vai acabar para quem perdeu um ente querido.” Ele perdeu a irmã.
Há quem diga que a CPI não dará em nada, que se perdeu, que poderia ter pensado em outra estratégia. Falta nessa análise tanto a visão global quanto a dos detalhes. A CPI foi o desabafo do país, de todos os que discordam dos rumos aviltantes do governo. Nos detalhes, a Comissão revelou um mundo de informação que apenas intuíamos e que agora estão expostas, irrefutáveis. Se isso vai se transformar em alguma punição contra os culpados não depende da Comissão Parlamentar. Se autoridades policiais, políticas e dos órgãos de controle fingirem não ver, serão cúmplices. Se o procurador-geral da República, Augusto Aras, continuar inerte e sinuoso, será cúmplice. Diante de todos os que falham neste momento dilacerante do Brasil estará uma lápide com 600 mil nomes.
Há inúmeros fatos que o país não sabia e que ficou sabendo durante as sessões dos últimos seis meses da Comissão Parlamentar. Havia suspeita, mas agora há certeza de que o governo colocou em prática a tese criminosa da imunidade de rebanho. O presidente sempre insistiu em provocar aglomerações, desacreditar as medidas de proteção e sabotar as vacinas. Antes, tudo podia ser entendido como erros de avaliação e de gestão. Soube-se na CPI que era mais que isso, aquele comportamento delinquente era um projeto. Bolsonaro queria que o número máximo de brasileiros fosse contaminado porque testava em nós a teoria perversa de que se mais gente adoecesse mais rapidamente o país estaria imunizado. Bolsonaro conspirou contra a saúde dos brasileiros em gabinete paralelo, com o apoio de empresários negacionistas, ministros sabujos e invertebrados.
A CPI iluminou o que se passava dentro do Ministério da Saúde. Não era apenas um caso de incompetência. Era roubo. Havia rivalidades entre grupos no comando do Ministério, mas todos tinham o mesmo propósito: obter vantagens financeiras na negociação da vacina. Por isso fechavam as portas à Pfizer, sabotaram a Coronavac e eram atenciosos com os atravessadores e suas propostas mirabolantes. O presidente foi informado das tramoias, admitiu que suspeitava do seu líder na Câmara, mas nada fez e nem tirou o líder. Institutos bolsonaristas, como o Força Brasil, financiado pelo empresário Otávio Fakhoury, difundiam fake news contra vacina enquanto tentavam vender imunizantes para o Ministério da Saúde. Luciano Hang mostrou ser ainda mais abjeto do que se pensava.
O presidente teve o conluio de pelo menos dois planos de saúde, alguns médicos, alguns empresários, do Conselho Federal de Medicina, de generais submissos, dos políticos da base, para mentir e levar brasileiros à morte. Milhares de mortes teriam sido evitadas se o governo fosse outro. A Prevent Senior se transformou em campo de experimentação e extermínio, e a Agência Nacional de Saúde Suplementar, que tem o dever de fiscalizar os planos, soube disso apenas pela CPI. Bolsonaro e seus cúmplices tentaram mudar a bula da cloroquina e foram impedidos pela Anvisa. A vacinação ocorreu no país pela pressão da imprensa, pela luta do pessoal da Saúde, pelo esforço de governos estaduais, principalmente o de São Paulo, e ganhou velocidade por causa da CPI.
A lista das revelações da Comissão Parlamentar de Inquérito instaurada no Senado é enorme. O país parou para ver o trabalho dos senadores e das senadoras. Atrás de cada pergunta havia estudo, apuração e a dedicação dos assessores. Os méritos da CPI superam em muito os erros cometidos durante as investigações. A CPI nos deu clareza num tempo de brumas, nos entregou verdades na era das mentiras oficiais. Os resultados são matéria-prima para o próprio Congresso, o Ministério Público e a Justiça. Principalmente a CPI honrou os nossos 600 mil mortos.
Fonte: O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/miriam-leitao/post/dilacerante-dor-dos-brasileiros.html
Paulo Fábio Dantas: Atos democráticos contrastam com os mil crimes de cada dia
Tendo os mil dias como pretexto inicial, as usinas de fake news voltaram a operar intensamente
Paulo Baía / Democracia e Novo Reformismo
Ainda não há número razoável de pesquisas para captar com segurança algum virtual efeito sobre a avaliação de imagem e sobre o nível de rejeição de Jair Bolsonaro que possa ter havido a partir de 9 de setembro, o dia da carta em que recuou da escalada golpista que culminara nos atos do dia 7. Seguiu-se uma distensão na sua atitude, o que levou parte dos analistas a supor que ele chamaria de volta à cena o Bolsonaro 2, mais contido e razoável. Afinal, era a conduta racional óbvia a seguir, diante da queda livre nos seus índices de popularidade e do isolamento político em que se metera. Amigos de fato (se é que os tem) devem ter lhe dito que valia, ao menos, testar a inflexão, para tentar reverter o desastre.
Parece que não haverá tempo para captar coisa alguma. A tal distensão logo se converteu em campanha eleitoral aberta (que em si mesma já é um delito), cenário propício para Bolsonaro voltar a ser o Bolsonaro de quase sempre. Tendo os mil dias como pretexto inicial, as usinas de fakenews voltaram a operar intensamente, elegendo alvos habituais de combate. Comunismo, homossexuais, a China e - é claro - Lula e o PT voltaram a ser temas privilegiados de suas taras retóricas, que são a base “conceitual” das fakenews.
Poupo os leitores de previsões sobre efeitos dessa recaída em índices de pesquisa. É preciso notar, por outro lado que, pela enésima vez, se revela o lugar que eleições ocupam na escala de prioridades de Bolsonaro. Lugar complexo, que é de prioridade no seu texto, mas no subtexto a prioridade é o movimento contra elas, para esterilizá-las, se possível ensanguentá-las e, no limite, cancelá-las. A cada dia é menos crível que tenha sucesso, mas ele segue nessa toada, como é da sua natureza. Se sucumbir, apesar de sua vontade indômita, ou por causa dela, quer levar muitos consigo, se possível a humanidade toda.
Trata-se do exercício pleno de um direito de natureza superficialmente hobbesiano (direito a fazer tudo que seu apetite quiser, por meios que seu cálculo indicar). Em sua versão bolsonarista, esse suposto direito não conhece limite de qualquer lei, nem mesmo da primeira lei de natureza que Hobbes sugere como uma lei racional de autopreservação. Ela indicaria ao apetitoso celebrar alguma paz, por ver também nos demais o potencial egoístico e destrutivo que reconhece em si. Esse cálculo racional seguinte ao movimento (também “natural”) de fazer a guerra, faria, do” homem lobo do homem”, um sujeito racional, com senso de perigo, ainda que dotado de razão limitada, guiada por instinto. O lobo que nos sequestra, tosco, temerário e criminoso, ofende a complexidade do homem hobbesiano e segue, na ignorância de si e do mundo, instando um país a pular com ele na vertical do precipício, endereço oposto ao que pode nos levar a política, sua maior inimiga.
É compreensível que uma sociedade assim sequestrada, como a do Brasil atual - onde vigora uma república democrática altamente inclusiva do ponto de vista eleitoral e governada num sistema presidencialista - resista institucionalmente, como corpo social e nacional (sociedade política e sociedade civil) e, ao mesmo tempo, busque, ao se constituir em eleitorado, sua salvação em quem encarne a ideia de política, na sua comunicação concreta com o cotidiano das pessoas comuns. Felizmente os dois movimentos estão ocorrendo e mostram que o país não está inerte, apesar da dor. Da reação institucional e civil resultam o relativo isolamento político e a contundente rejeição popular a Bolsonaro. Sua tradução pré-eleitoral é, no momento, a confortável liderança de Lula nas pesquisas. Engana-se quem tiver a visão toldada por certas idiossincrasias de cunho partidário. Os dois fenômenos são complementares. São, respectivamente, as faces republicana e democrática de um só movimento de autopreservação do país. A face republicana (a reação institucional e politicamente unitária em defesa da democracia) é perene, conservadora, como um firmamento e é bom que assim seja. A face democrática (liderança de Lula nas pesquisas) é, por definição, mais dinâmica e, como as nuvens no firmamento, está sujeita a deslocamentos visíveis, sem comprometer o sentido geral do movimento.
Proponho que se analise, sob essa moldura, as manifestações contra Bolsonaro, marcadas para este sábado. Escrevo antes que tenham ocorrido, logo, evitarei previsões imprudentes sobre seu nível de sucesso ou insucesso, em termos de afluência de público e, também, ilações prévias sobre como os atores políticos diversos as interpretarão a partir da noite de hoje. Sobre o que é esperado (ao menos do ponto de vista lógico, que, como sabemos, não é o único ponto de vista válido numa conjuntura como essa) pode-se dizer apenas que quem está contente com Bolsonaro deve torcer para que fracassem e recepcionará de modo simpático qualquer versão, real ou fake, que constate o fracasso. Inversamente, quem está descontente com o que se vive no Brasil engrossará a manifestação e/ou torcerá por elas. Aqui também se deve reparar em textos e subtextos.
Há visível e meritório esforço para divulgar esses atos de modo amplo, digo mesmo plural, evitando-se sua apropriação prévia por esse ou aquele partido. Do mesmo modo evita-se realçar os aspectos eleitorais que, objetivamente, estão envolvidos no ambiente político em que se dá a iniciativa. Há um evidente contraste entre esse tom moderado e precavido e a despudorada apelação eleitoral da insólita “celebração” bolsonarista dos seus mil dias de catarse, respectivos aos mil dias que já dura o infortúnio, para a maioria da nação. Um Henrique VIII de fancaria, que já cercado de varões de sangue, não pode, contudo, obrigar o povo a aceitar essa herança. Por isso insiste em sacrificar eleições e tudo o mais que há de feminino ao nosso redor, em busca de entregar o futuro do país a milícias de machos toscos e sanguinários, que hoje formam um séquito para ele e seus rebentos numerados.
Haverá quem diga que nas aventuras golpistas e machas de Bolsonaro sobra autenticidade, quem sabe até sinceridade, enquanto em atos políticos liberal-democráticos a dissimulação é a marca. Sociedades sofrem muito até compreenderem que a política é dissimulação benfazeja, se vista sob o prisma da representação. É ela, a representação, que permite (e obriga) ao político agir na direção de algo mais, além do seu interesse particular. Ao se dirigir a um ato público perante cidadãos mobilizados, ou ao falar com o eleitor que se dirige à urna, o político democrático procura, seja por convicção ou por sobrevivência (e uma coisa não anula a outra), prestar atenção nas aspirações e interesses desse público e colocar seus próprios interesses e expectativas em interação com eles. Por isso, um potencial candidato contém sua “sinceridade” ao perceber que as pessoas comuns ainda não estão se preocupando centralmente com a eleição e sim com coisas que afligem mais objetivamente o seu cotidiano e que podem fazê-las protestar contra Bolsonaro. Mais adiante votarão em alguém, mas atrapalha quem quiser fazê-las decidir seu voto agora.
O mesmo político que tem esse senso de limites e sabe calibrar seus desejos na dose e proporção corretas em que possam ser compartilhados por quem, afinal, é o senhor do seu futuro político, também sabe que não está na mesma posição objetiva do cidadão comum e eleitor. Se confunde realmente a sua posição de representante com a dos representados, ele é um descompreendido que deveria estar em outro lugar diferente da política. Se não confunde e faz de conta que confunde essa não é uma dissimulação benigna porque deseduca. Ele dissimula e adia a exposição de suas motivações não em respeito à prioridade das motivações do eleitor, mas no intuito de confundi-lo, tentando ocultar sua condição de parte da elite política, ou de aspirante a essa condição. Uma das coisas mais importantes para a maturidade de uma república democrática é a compreensão realista, por parte dos cidadãos e cidadãs, de que ela não é o governo do povo, mas sim o governo de governantes escolhidos pelo povo e exercido através de mandatos e partidos. Quem esconde isso dos seus eleitores pode se considerar democrata ou até sê-lo, em certo sentido. Mas será, principalmente, um demagogo.
Então que seja bem-vinda, no presente momento, a dissimulação das motivações eleitorais de políticos e partidos que apoiarem ou aparecerem nas manifestações de hoje. O país agradecerá por essa prioridade concedida à sua necessidade de protestar contra o que aí está. Mas isso não isenta o analista da conjuntura política de interpretar os movimentos dos vários atores políticos, pois eles, apesar de contidos pelas circunstâncias e limites da sua missão representativa, não podem e não devem deixar de agir estrategicamente. É exigência básica do ofício, que a sociedade deve fazer à elite política para que seja eficaz
Foi feliz a senadora Simone Tebet, ao se manifestar no modesto, mas significativo ato da Avenida Paulista, em 12 de setembro último. Disse ela que ali estavam reunidos o centro e a direita democráticos, que em outubro seria a vez da esquerda e que ela acreditava ser possível, em novembro, todos estarem reunidos num ato só. A sabedoria da fala consiste em, ao mesmo tempo, pregar a unidade e reconhecer, de modo realista, a diversidade que faz a sua construção ser complexa e por isso exige um tempo político para ser veraz.
Pois bem, chegou o dia da esquerda se submeter ao teste das ruas. Por mais que ela tenha dividido, estrategicamente, a convocação dos atos com outras forças, essa sabedoria prática (política) não revoga o fato de que é ela, a oposição de esquerda, a mola propulsora da mobilização de hoje. Políticos de centro e de direita nada perderão se reconhecerem isso. Assim como não perderão se admitirem o que salta aos olhos, isto é, que a esquerda tem uma capacidade de mobilizar muito maior. Ir além do óbvio é dever de quem pensa. Tentar negá-lo é erro crasso de quem age. Ademais, qualquer iniciante em política sabe que isso não é predição de necessário sucesso eleitoral. Há vários exemplos de situações políticas em que mobilizações da esquerda nas ruas abriram caminho a soluções políticas de centro pelas urnas. São exemplos de sinergia positiva entre esquerda e centro. Outros exemplos, agora de sinergia negativa, ocorreram quando manifestações volumosas da esquerda (como a do “elle não”, a uma semana do segundo turno de 2018) ajudaram à agregação do eleitorado conservador em torno de um proto-fascista como Bolsonaro. Em parte, isso depende do tom e sentido da mensagem política emitida por um ato público. Na maioria das vezes dá em desastre dizer em público o que se diz sob o teto da sua cozinha.
Penso que os atos desse sábado estão distantes desse erro. As cozinhas mais importantes estão fechadas em público e se pretende que o ato transcorra no salão principal, onde a moderação é a regra. Mas principalmente os políticos de centro ou de centro-direita que a ele comparecerem não podem se iludir ou fazerem de conta que não sabem quem é o sujeito oculto das festas que se farão Brasil afora, mesmo se o anfitrião real, sabiamente, se fizer representar por terceiros e, no caso de São Paulo - o salão principal - pelo terceiro que o representou até na urna, mas que agora, ao que tudo indica, terá sua missão limitada ao eventos preliminares, ou eventos-teste, como esse de hoje. Treino é treino, jogo é jogo. A folha seca não precisa vir agora e a rigor não se sabe de quem ela partirá, na hora devida.
Se Lula está, ao que parece, se contendo em limites convenientes ao que pode vir a ser uma candidatura ampla, de envergadura maior que sua própria trajetória como personagem do campo da esquerda (ainda que tenha um dia dito não ser de esquerda, hoje isso poderia ser um sincericídio, mas pode deixar novamente de ser, daqui a pouco), a contenção que se espera de quem pode vir a ser seu parceiro conflitivo num eventual futuro palanque é a de quem sabe o terreno em que pisará hoje e por isso pisará devagarinho. São todos convidados a uma festa que tem dono, por mais que venha a ser uma festa ampla e aparentemente gratuita, com direito a assinaturas colegiadas no convite formal.
Há dois tipos de visitas indesejáveis e incômodas em qualquer festa, mesmo as feitas oficialmente para apenas protestar: o puxa-saco e o bicão. O primeiro quer mimetizar os anfitriões, ostentar afinidades e sintonias artificiais e com isso enche o saco e granjeia desprezo. O segundo disputa protagonismo, é capaz de querer fazer as honras da casa aos desavisados, aparecer como parceiro nos bem-feitos e/ou crítico dos malfeitos da família. Para esse aí o primeiro remédio – “dar gelo”, que pode funcionar melhor com puxa-sacos – pode não bastar e aí os anfitriões podem tratá-lo como penetra e chamar a segurança.
Os que perseguem (no bom sentido) a terceira via não precisam proferir a palavra maldita. Cão que late não morde. Cabe ser educado na casa alheia, comportar-se como visita sensata, mas altiva, mesmo se convidada a se sentir em casa. E seguir trabalhando seu campo político para que chegue ao grau de agregação política e densidade eleitoral ao qual a esquerda chegou, não importa por quais caminhos ou com qual discurso ou programa. Importará sim, e muito, na hora de se dirigir ao eleitor, se o golpista que ocupa o governo já não oferecer perigo, nem de reeleição, nem de promover caos. Mas não nesse momento de ato unitário contra ele, quando o primeiro perigo saiu do horizonte, mas o segundo não.
*Cientista político e professor da UFBa.
Fonte: Blog Democracia e Novo Reformismo
https://gilvanmelo.blogspot.com/2021/10/paulo-fabio-dantas-neto-gestos.html
Lula une Paes e Molon e faz do Rio laboratório da estratégia para 2022
A corrida eleitoral de 2022 dispara em outubro
Eliane Cantanhêde, O Estado de S.Paulo
A corrida eleitoral de 2022 dispara em outubro, com o presidente Jair Bolsonaro investindo no contato direto com a população, o ex-presidente Lula focando nas articulações políticas com governadores e cúpulas partidárias e as forças de centro ainda incapazes de dar cara e corpo ao tão desejado e tão distante candidato de centro.
Bolsonaro passa mais tempo em aviões e palanques do que governando em seu gabinete e pode ser mais visto, fotografado e filmado do extremo norte ao extremo sul do que em Brasília. Inaugura qualquer coisa, em qualquer lugar. O que importa é repetir 2018 e cair nos braços do “povo” – o seu “povo”, diga-se.
Já Lula usa a lábia, o carisma e a experiência para definir um leque de apoios muito além do PT e das esquerdas e que, na prática, não deixa franjas para uma terceira via. Para ele, não basta inviabilizar um nome ao centro; é preciso garantir que o centro e a centro-direita não pulem no colo de Bolsonaro.
Em sua última visita ao Rio, Lula brindou o PT e a esquerda com duas pérolas de pragmatismo. A primeira: “Se há uma coisa que aprendi na política é que você só ganha se tiver 51%, senão perde. Com o que temos aqui nesta sala, não temos 51% e não vamos ganhar”. Tradução: ou a esquerda faz alianças com centro e centro-direita, ou ninguém vai a lugar nenhum, especialmente na principal base eleitoral de Bolsonaro.
A segunda pérola: Rio e Minas são os “swing states” das eleições no Brasil, ora indo para um lado, ora para outro. “Quem ganha no Rio e em Minas ganha a eleição”, concluiu Lula, que faz do Rio o grande laboratório da sua estratégia. O foco é o prefeito Eduardo Paes, que virou a maior liderança do Estado e deu um golpe de mestre, ao deixar de lado sua dianteira nas pesquisas para o governo e continuar na prefeitura.
Paes é homem-chave da estratégia de Lula, assim como Lula é central das articulações de Paes, que trocou o DEM pelo PSD e amarra um acordão: para o Guanabara, o neófito Felipe Santa Cruz, presidente da OAB nacional, e, para o Senado, o ex-adversário Alessandro Molon, deputado federal que saiu da Rede para o PSB. Uma aliança, até então improvável, entre a esquerda e a centro-direita. Pró-Lula, contra Bolsonaro.
É isso que Lula busca reproduzir pelo País afora, com um instrumento de grande utilidade: o PSD do ex-prefeito Gilberto Kassab (SP) que, de esquerda, não tem absolutamente nada. Kassab anima a plateia lançando o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (que, como Paes, deve ir do DEM para o PSD), enquanto nos bastidores articula de fato o apoio do partido a Lula. Assim como Paes no Rio, o prefeito de Belo Horizonte, Alexandre Kalil, é do PSD e bem avaliado. A diferença é que ele deve concorrer ao Palácio da Liberdade.
Com Rio, Minas e PSD sob controle, Lula consolida sua força no Nordeste e tem jantar na próxima quarta-feira, em Brasília, com os mandachuvas do MDB, o ex-presidente Sarney, senadores e até o governador do DF, Ibaneis Rocha, que tem elos, mas não compromisso, com Bolsonaro.
Enquanto o PSDB se divide em torno das prévias entre os governadores João Doria (SP) e Eduardo Leite (RS) e os candidatos de centro esvaziam uns aos outros, Lula está lá na frente, comendo pelas bordas – e por dentro – o mingau do centro. E Bolsonaro é carregado por anticomunistas, negacionistas, conservadores e uma massa um tanto disforme. Tudo junto, isso soma um quarto das pesquisas.
Lembram? Só vence quem tem 51%. Hoje, ninguém tem. Mas terá quem trabalhar melhor, unir mais, convencer e tiver armas políticas. Não fuzis e revólveres, mas discurso para a economia, a miséria e mesmo a pandemia. Além de acenar com união e carisma, que nunca é demais.
Fonte: O Estado de S. Paulo
https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,lula-une-paes-e-molon-e-faz-do-rio-laboratorio-de-sua-estrategia-para-2022,70003856316
Luciano Hang presta depoimento à CPI da Pandemia
Investigações apontam que o bolsonarista foi membro atuante do grupo de aconselhamento a Bolsonaro durante a pandemia
Victor Fuzeira e Marcelo Montanini / Metrópoles
Com foco na ação do “gabinete paralelo”, a CPI da Covid-19 ouve, na manhã desta quarta-feira (29/9), o empresário Luciano Hang. As investigações apontam que o bolsonarista foi membro atuante do grupo de aconselhamento ao presidente Jair Bolsonaro (sem partido) durante a pandemia da Covid-19.
A ida de Hang ao colegiado também faz parte do esforço concentrado dos senadores para apurar irregularidades que envolvem a operadora de saúde Prevent Senior.
Hang chegou ao Senado pouco depois das 10h e falou com a imprensa. Ele afirmou que, ao contrário de outros depoentes, chega ao colegiado sem um habeas corpus que lhe concede o direito de não responder perguntas durante a oitiva.
“Hoje aqui estou sozinho, como um brasileiro normal, um comerciante. Tenho a certeza que estou com Deus e com milhões de brasileiros que querem um Brasil melhor e é por isso que eu luto”, disse.
Aliado de Bolsonaro, o empresário, que assumiu a alcunha de Veio da Havan dada por críticos, é suspeito de ter financiado a disseminação de fake news em blogs bolsonaristas e o grupo de consultores informais do presidente Jair Bolsonaro.
Outra situação que envolve Hang e a operadora de saúde é o caso da possível alteração na certidão de óbito da mãe dele, Regina Hang, supostamente a pedido do próprio empresário. A advogada Bruna Morato, que representa ex-médicos da Prevent Senior, confirmou, nessa terça-feira (28/9), em depoimento à CPI, que a mãe do empresário usou medicamentos sem comprovação de eficácia para a Covid-19 e teve a certidão de óbito alterada.
Profissionais de saúde da Prevent Senior, representados por Bruna Morato, elaboraram um dossiê entregue à comissão com denúncias de uso indiscriminado, nos hospitais da empresa, de medicamentos sem comprovação de eficácia para o tratamento da Covid-19 e coação de médicos para adotarem esse protocolo.
Outra acusação que pesa sobre a empresa é a de alterar atestados de óbitos para ocultar morte de pacientes por Covid-19, com orientação para os médicos mudarem os prontuários.
Às vésperas do depoimento, o empresário divulgou vídeo, nas redes sociais, algemado, provocando a comissão. Hang disse que vai depor com “o coração aberto”. “Se não aceitarem o que vou falar, já comprei uma algema para não gastarem dinheiro. Vou entregar uma chave para cada senador. E que me prendam”, ironizou.
Há uma expectativa de depoimento tenso. Contudo, o vice-presidente da comissão, Randolfe Rodrigues (Rede-AP), contemporizou: “Ele é um depoente como qualquer outro e nós já tivemos um triste espetáculo de depoente que se utilizou das prerrogativas de parlamentar, que é o caso do deputado Ricardo Barros [líder do governo Bolsonaro na Câmara], para tentar tumultuar, [mas] o senhor Hang não tem imunidade parlamentar. Então, eu espero que ele se comporte conforme reza o Código de Processo Penal”, afirmou o parlamentar.
“As algemas, a mim não me incomodaram. Se ele está tão obcecado pelo uso assim, é uma escolha dele”, alfinetou.
Fake news
Além do “gabinete paralelo” e da Prevent Senior, outro assunto que os senadores querem apurar é a disseminação de fake news relativas à pandemia, e Hang é um dos alvos. Documentos obtidos pela CPI, e divulgados pela TV Globo na semana passada, relevam que o empresário teria financiado o blogueiro Allan dos Santos por intermédio do deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), filho do presidente Jair Bolsonaro.
Allan dos Santos é investigado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) nos inquéritos que apuram disseminação de fake news e atos antidemocráticos.
Seguindo a linha de investigação sobre a disseminação de fake news e a ligação com o governo federal, a comissão ouvirá outro empresário bolsonarista, Otávio Fakhoury, que é vice-presidente do Instituto Força Brasil. Ele também é investigado pelo STF no inquérito das fake news.
Assista:
Fonte: Metrópoles / Agência Senado
https://www.metropoles.com/brasil/politica-brasil/cpi-da-covid-luciano-hang-depoimento
Luiz Carlos Azedo: Mil e uma noites no poder
Ninguém pense que Bolsonaro está jogando a toalha. Apesar das dificuldades eleitorais, não se sente estrategicamente derrotado
Luiz Carlos Azedo / Nas Entrelinhas / Correio Braziliense
Os 1.000 dias do governo Bolsonaro foram comemorados pelo governo sem muita pompa, não houve nenhuma entrega espetacular para marcar a data. Afinal, são 600 mil mortes por covid-19, 14 milhões de desempregados e 35 milhões de brasileiros na miséria. “Nada não está tão ruim que não possa piorar”, disse o presidente Jair Bolsonaro, agourento, durante a efeméride no Palácio do Planalto. Diante de ministros e parlamentares, arrematou: “Alguém acha que eu não queria a gasolina a R$ 4? Ou menos? O dólar R$ 4,50 ou menos? Não é maldade da nossa parte. É uma realidade. E tem um ditado que diz: ‘Nada não está tão ruim que não possa piorar’. Nós não queremos isso.”
Lembrei-me de uma passagem de um clássico da literatura universal, As Mil e Uma Noites (Editora Brasiliense), uma coletânea de histórias de origem persa narradas por sua principal personagem, a princesa árabe Xerazade, esposa do rei Xariar. “Você vai morrer!”, disse o monarca, “você morreria nem se fosse apenas para eu ouvir sua cabeça falar depois de separada do corpo”.
Suspeito de espionar, o médico Dubane fora condenado à morte, porém, antes da execução, desafiou o monarca a ler um livro que faria sua cabeça decapitada falar. O rei caiu na armadilha e começou a ler as páginas do livro, molhando o dedo na própria saliva para separá-las. A cabeça amaldiçoada esperou o veneno fazer efeito e, antes do rei o morrer, declamou:
Eles julgaram a seu modo
E se acumpliciaram nesse trabalho
Dentro em pouco, seu poder parecerá que
nunca existiu
Poderiam ter permanecidos justos e puros
mas abusaram do poder
e o mundo por seu turno os oprimiu
assim como a adversidade e a provação
Ei-los vivendo na miséria. Seu presente
É tão-somente o fruto do seu passado.
Quem censurará o mundo
Por tratá-los assim.
O poema ajuda a entender a derrocada de governos, regimes e até civilizações. Não é o caso ainda do governo Bolsonaro, ao completar 1.000 dias, mas é o seu rumo atual. Na última sexta-feira, o preço médio da gasolina era R$ 6,09, mesmo subsidiada pela Petrobras. Ontem, o dólar estava cotado a R$ 5,37. O Imperador brasileiro Dom Pedro II soube bem o que é isso. Foi o primeiro a traduzir diretamente As Mil e Uma Noites para o português, com rigor raro para a época. Aos 62 anos, pouco antes da Abolição e da Proclamação da República, começou o trabalho. O último registro de texto traduzido é de novembro de 1891, um mês antes de sua morte em Paris, no exílio. Não conseguiu concluir a obra.
Ao passado
Entretanto, ninguém pense que Bolsonaro está jogando a toalha. Apesar das dificuldades eleitorais, não se sente estrategicamente derrotado. O seu discurso de ontem, ao se referir à facada que levou na campanha de 2018, constrói um cenário imaginário no qual a eventual vitória de seu adversário principal nas eleições de 2018, o ex-ministro da Educação Fernando Haddad (PT), faria com que a situação fosse muito pior: “É só imaginar quem estaria no meu lugar. O perfil dessa pessoa, o seu alinhamento com outros países do mundo, em especial aqui na América do Sul. Onde nós estaríamos agora?”, indagou. Obviamente, a comparação é com a Venezuela: “Você já sabe qual o filme do futuro porque você viveu 14 anos passados esse filme. E pode ter certeza, não serão apenas mais 14 anos. Serão no mínimo 50. É isso que queremos para a nossa pátria?”
Bolsonaro administra mal o próprio tempo, o recurso mais escasso de seu mandato. Governa para os seus, olhando sempre para trás. Constrói um cenário político que lembra um pouco a disputa de 1950, na qual Getulio Vargas voltou à Presidência pelo voto. Naquela campanha, o líder da UDN, Carlos Lacerda, que mais tarde seria governador da antiga Guanabara, dizia que Vargas não poderia ser candidato; se fosse candidato, não deveria ganhar; se ganhasse, não deveria tomar posse; se tomasse posse, deveria ser derrubado.
Lacerda foi um opositor implacável, mas sofreu um atentado, na Rua Tonelero, em Copacabana, onde morava, sendo ferido na perna. No episódio, morreu o major Rubens Vaz, seu amigo, que cuidava da sua segurança. O envolvimento de Gregório Fortunato, chefe da segurança pessoal do presidente, no crime, e de Benjamin Vargas, seu irmão, encurralou e levou Vargas ao suicídio, em 24 de agosto de 1954. A analogia serve para mostrar que a atual polarização política não se resolverá na eleição. Deixou de ser eleitoral: é mais profunda e, tudo indica, veio para ficar.
João Gabriel de Lima: O réveillon da discórdia e o jogo na retranca
Bolsonaro fica na retranca, cultivando e eletrizando sua base de eleitores fiéis
João Gabriel de Lima / O Estado de S. Paulo
Era uma vez uma turma de jovens liberais que admiravam Ronald Reagan e Margaret Thatcher. No limiar do século 21, passaram um réveillon juntos. Foram dormir acreditando no “fim da História” – um mundo cada vez mais capitalista, democrático e globalizado. A ressaca veio 20 anos depois. Metade dos convivas não fala com a outra metade. Abriu-se entre eles um fosso com nome e sobrenome: Donald Trump.
A história é contada por Anne Applebaum,
pena mais inquieta da direita liberal americana, em O Crepúsculo da Democracia. O livro é um dos melhores lançamentos do ano da editora Record – que, sob a batuta de Rodrigo Lacerda, ex-colunista do Estadão, vem se concentrando em autores relevantes, como Applebaum, e descartando os irrelevantes, como Olavo de Carvalho. “Muitos de meus amigos chegam a trocar de calçada quando me veem”, disse-me Applebaum quando do lançamento do livro. Ela permaneceu do lado liberal – portanto, radicalmente anti-trump.
Um hipotético réveillon em 2018 poderia ter reunido, em torno da mesma garrafa de champanhe, João Amoêdo, João Doria, Kim Kataguiri e Sérgio Moro, junto com Jair Bolsonaro e os bolsonaristas. Em 2021, uma festa assim não seria mais possível. Moro saiu do governo atirando – e Kataguiri, Amoêdo e Doria, simpáticos a Bolsonaro em 2018, hoje namoram a tese do impeachment.
“A direita liberal que estava com Bolsonaro por causa do antipetismo se descolou”, diz o cientista político Carlos Melo, professor do Insper e entrevistado do minipodcast da semana. O tabuleiro de 2022 será marcado pela divisão das direitas e mais dois fatores: a rejeição a Bolsonaro e sua estratégia eleitoral.
A popularidade do presidente está em queda desde fevereiro. Nesse período, cresceu em 14% o número de eleitores que consideram seu governo “ruim” ou “péssimo”. Nesta semana, o índice chegou a 53%, configurando pela primeira vez a rejeição da maioria absoluta. Os números são do Ipec.
Diante desse quadro, Bolsonaro “joga por uma bola”. Em vez de se lançar ao ataque, tentando reconquistar a direita liberal que “se descolou”, o presidente fica na retranca, cultivando e eletrizando sua base de eleitores fiéis. Considera que isso é suficiente para levar o jogo para a prorrogação – o segundo turno. Sua esperança é que as direitas se unam em torno de seu nome para derrotar o PT.
O discurso do dia 21 na ONU segue esse esquema tático. De olho em sua base (e para vergonha dos demais brasileiros), Bolsonaro descreveu um país de fantasia onde não há corrupção, desmatamento ou instabilidade política. Um vídeo-exaltação circulou nos grupos bolsonaristas de Whatsapp. Ele mostra o presidente brasileiro sendo supostamente ovacionado num aeroporto em
Nova York. A imagem, na verdade, é de 2018, e em outro aeroporto – o de Natal, no Rio Grande do Norte.
O jogo na retranca tem seus riscos. Como mostrou o Ipec, Bolsonaro é hoje mais rejeitado que a esquerda. Não à toa, o PT faz corpo mole quando se fala em impeachment. Apoiadores propagam que Lula deseja ardentemente enfrentar Bolsonaro no segundo turno. O impeachment é um bom negócio para os que buscam a “terceira via”, não para o PT.
O cenário lembra o dos Estados Unidos em 2020. A queda de popularidade de Donald Trump impulsionou a vitória de Joe Biden – com o voto de liberais como Anne Applebaum. Se os números do Ipec se mantiverem, a rejeição crescente a Bolsonaro pode eleger Lula.
Fonte: O Estado de S. Paulo
https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,o-reveillon-da-discordia-e-o-jogo-na-retranca,70003850103
Bolívar Lamounier: O poder da decadência
Poder político brasileiro é pateticamente débil, e nada autoriza a crer que logo seremos um colosso
Bolívar Lamounier / O Estado de S. Paulo
Centenas de pessoas não perdem uma chance de cobrar “realismo” dos jornalistas e analistas políticos, como se a realidade política fosse uma coisa unidimensional, percebida sempre da mesma forma por toda a sociedade, hoje, amanhã e sempre.
Poucos se dão conta de que a “realidade” de hoje pode não ser a de amanhã, que por sua vez poderá diferir bastante da que teremos na próxima década. Esta observação seria inútil, se tivéssemos como superar as crises e acertar os rumos do País sem um grau razoável de convergência em nossas percepções. Sem esquecer que nossas preferências também divergem: alguns querem a democracia, outros anseiam por alguma forma de ditadura. Isso posto, peço licença para hoje escrever sobre uma realidade um tanto indefinida, que combina elementos de hoje com alguns de nosso passado histórico e outros situados no futuro, sendo que, sobre estes, é pouco o que nos é dado conhecer.
Ainda assim, atrevo-me a antecipar que o poder político brasileiro – vale dizer, nosso Estado – é pateticamente débil, uma decantação hoje virtualmente petrificada de muitos fracassos, e que nada nos autoriza a crer que logo seremos um colosso. Em 1958, Celso Furtado explorou esse tema pelo lado da história econômica, com o objetivo de demonstrar que os grandes ciclos econômicos que vivemos (cana-de-açúcar no Nordeste, mineração de ouro e diamantes em Minas e, finalmente, o café em São Paulo) não deixaram uma base sólida para um processo sustentável de industrialização, sem o qual não teríamos desenvolvimento, bem-estar e autonomia nacional. Examinando o mesmo fato pelo lado político, vemos que os resultados logrados foram ruins para a industrialização e desastrosos para a construção do Estado, uma vez que abriram espaços para um contínuo relançamento do patrimonialismo – a apropriação do poder político por setores empresariais decadentes, que se especializaram em concentrar os ganhos e socializar as perdas. Duas exceções permitem amenizar em certa medida esse argumento. A exaustão do ouro deixou alguns núcleos favoráveis à pecuária bovina; nessa área, o empresariado do Triângulo Mineiro, lixando-se para o governo federal, desencadeou um poderoso crescimento a partir da importação e aclimatação das raças zebuínas da Índia. O café, cujo legado foi mais importante, a começar pela passagem do trabalho escravo para o assalariado, não diferiu totalmente da cana-de-açúcar, uma vez que, forçado pela superprodução, teve de recorrer à generosidade estatal, trocando sua altivez política pelas mesmas bênçãos do Estado, que atuou como intermediário em mais uma reedição da “socialização das perdas”.
Essa, em grandes linhas, é a história de nosso mastodôntico Estado, cuja congênita inviabilidade se evidenciou com o experimento da industrialização em “marcha forçada” deslanchado pelo governo do general Ernesto Geisel. A “realidade” com que hoje nos deparamos é, pois, uma estrutura de poder incapaz de promover o crescimento num ritmo compatível com o aumento da população, com a superior organização de nossos competidores internacionais e com nossa dramática anemia educacional, científica e tecnológica.
Esta é a base sine qua non que precisamos levar em conta para delinear futuras realidades que podem estar à nossa espreita logo ali, ou um pouco à frente. O Brasil vive hoje uma polarização política infantil e estéril, contrapondo dois líderes populistas que bem fariam em se aposentar, dado já terem feito tudo o que ninguém os julgava capazes de fazer pelo Brasil – para o bem e para o mal. Lula, aos 77 anos, já bateu no teto, e o mesmo acontece com Bolsonaro, na pujança de seus (presumíveis) 15 anos. Sabemos todos que o clima de radicalização e turbulência é música para os ouvidos de Bolsonaro, reforçando a condutibilidade atmosférica que lhe facilita mobilizar seus fanáticos. Dá-se, no entanto, que este clima mantém o dólar valorizado e empurra a inflação para cima, a última crueldade que nossa medíocre politicagem pode perpetrar contra os 46 milhões de indivíduos que vivem em lares com zero reais de renda mensal.
Eu, com certeza, serei acoimado de irrealista se disser que ambos, Lula e Bolsonaro, poderiam fazer-nos o favor de ir para casa, para que o Brasil possa voltar à sua precária normalidade e retomar o processo de crescimento econômico. Realistas são os que tentam ver Lula não só como o imbatível antibolsonaro, mas também como o grande estadista-pacificador que ele nunca foi e não tem condições de ser. Com lápis e papel à mão, os que insistem em enxergar a realidade por esse prisma já podem, então, pôr mãos à obra, rascunhando seu cenário para daqui a dez anos. No centro de seu idílico desenho estará – Deus seja louvado – nossa política, finalmente renovada pelo Centrão. Os 46 milhões sem renda terão subido um nível, compartilhando a felicidade dos que auferem ao menos até um salário mínimo de renda mensal. Entre os Três Poderes, reinarão a harmonia e a independência que a Constituição tão sabiamente prescreve.
*Membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências, seu mais recente livro é ‘Antes que me esqueça’ (Editora Desconcertos)
Fonte: O Estado de S. Paulo
https://opiniao.estadao.com.br/noticias/espaco-aberto,o-poder-da-decadencia,70003849682
Cristina Serra: Sobre médicos e monstros na Prevent Senior
É preciso fortalecer o SUS e aumentar os investimentos no sistema
Cristina Serra / Folha de S. Paulo
São estarrecedoras, mas não exatamente surpreendentes, as denúncias envolvendo a operadora de planos de saúde Prevent Senior. A suspeita de que há algo de podre na rede de hospitais da empresa abriu nova e necessária frente de investigação na CPI da Covid.
Entre as irregularidades, estariam a prescrição abusiva de medicamentos e tratamentos ineficazes, sem que os pacientes e seus parentes tivessem sido consultados. As ilicitudes apontadas incluem ainda ameaçar os médicos de demissão para que receitassem esses remédios e também fraude de suposta pesquisa científica, prontuários e atestados de óbito, o que resultaria em subnotificação de casos de Covid.
Tudo isso é grave, criminoso e cruel, mas se encaixa na lógica do modelo de negócio dos planos de saúde. Para capturar incautos, prometem mundos e fundos. Na prática, dificultam o acesso aos serviços, sobretudo se o paciente precisar de uma internação, um dos itens mais caros do setor.
Mal ou bem, é assim que funciona. Mais mal do que bem, tanto que os consumidores frequentemente têm que recorrer à Justiça para que muitas dessas arapucas cumpram o que já está nos contratos. Aí vem uma pandemia e o tal modelo de negócio implode porque, de uma hora para outra, milhares de clientes precisam dos leitos mais caros, em UTIs, e por muito tempo.
No caso da Prevent Senior, voltada ao público idoso, o mais afetado nos primeiros meses da pandemia, não é difícil imaginar o estrago na margem de lucro. Daí para empurrar cloroquina goela abaixo dos pacientes e vender a ilusão de que eles poderiam se tratar em casa é um pulo.
Esse caso nos faz refletir sobre médicos e monstros e nos mostra que saúde não pode ser tratada como negócio. A alternativa nós já temos. É preciso fortalecer e aumentar o investimento no Sistema Único de Saúde, o nosso SUS, porque saúde é direito humano e coletivo.
Dou umas férias aos prezados leitores. Volto em 23 de outubro.
Fonte: Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/cristina-serra/2021/09/sobre-medicos-e-monstros-na-prevent-senior.shtml
Pablo Ortellado: O bolsonarismo interpreta 2013
Protestos contra Dilma, a crise do governo Temer e a eleição de Bolsonaro seriam a expressão da outra metade das reivindicações
Pablo Ortellado / O Globo
Estreou em São Paulo o filme “Nem tudo se desfaz”, de Josias Teófilo. É uma leitura equivocada, porém muito interessante e reveladora, da história brasileira recente, ligando os protestos de junho de 2013, o impeachment de Dilma Rousseff, a crise do governo Temer e a eleição de Jair Bolsonaro.
Em 1985, Luc Ferry e Alain Renaut publicaram “O pensamento 1968”, que apresentava os protestos de maio de 1968 na França como um avanço do individualismo e as obras de Foucault, Derrida, Bourdieu e Lacan como expressão desse movimento. O filósofo Cornelius Castoriadis, que participou dos protestos, se indignou com a “ligação falaciosa” entre as manifestações e as obras de autores que “lhes eram completamente estrangeiras” e se surpreendeu como, passados poucos anos, com os protagonistas ainda vivos, um evento político de grande magnitude podia ser apresentado como seu oposto.
Algo assim aconteceu também com junho de 2013. Não deveria haver controvérsia sobre o que pediam os protestos. Diferentes pesquisas de opinião investigaram os manifestantes e encontraram sempre dois conjuntos de reivindicações simultâneas: de um lado, reivindicações sociais — transporte, educação e saúde; de outro, o combate à corrupção.
No filme, pouco se diz sobre as demandas sociais. Quando aparecem, são tratadas como uma ilusão, uma expectativa ingênua de que se cumprissem promessas vazias dos constituintes de 1988 — como se o SUS e a universalização da educação básica não tivessem sido implementados após 1988 e como se a cidadania não pudesse aspirar a direitos sociais ainda mais amplos.
Os protestos contra Dilma, a crise do governo Temer e a eleição de Bolsonaro seriam a expressão da outra metade das reivindicações, que o filme apresenta como as reivindicações que tiveram consequências reais, se esquecendo da redução das tarifas de transporte, das greves de 2013-2014 e das ocupações de escolas de 2015-2016.
Na verdade, ao olhar apenas para metade do conteúdo reivindicativo de junho de 2013, o filme reproduz a dinâmica da polarização que consistiu em os estratos de esquerda e de direita da classe política subordinarem o levante selvagem da sociedade civil, dividindo as demandas, jogando uma contra a outra, como se, para ser anticorrupção, fosse necessário ser contra as pautas sociais na figura de um Estado grande e, para defender a ampliação de direitos sociais, fosse necessário ser contra o combate à corrupção. A potente mobilização de uma sociedade civil contra a classe política se transforma assim no conflito fratricida entre lulistas e bolsonaristas.
Apesar de fazer uma leitura bolsonarista, que liga sem mediações adequadas junho de 2013 às eleições de 2018, o filme joga muita luz sobre a ascensão de Bolsonaro.
Seus momentos mais reveladores são quando apresenta as guerras culturais como uma luta populista contra o elitismo dos progressistas, quando mostra o caráter contracultural do politicamente incorreto e quando apresenta a centralidade da comunicação digital para a ascensão da nova direita. Por esses motivos, é um filme que merece ser visto.
Fonte: O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/opiniao/post/o-bolsonarismo-interpreta-2013.html
Ascânio Seleme: Casa dos horrores
No Brasil, Prevent Senior parece apenas mais um caso dos muitos que já foram banalizados pelo dia a dia de uma terra sem lei
Ascanio Seleme / O Globo
Coma exceção do Afeganistão e talvez da Síria, que têm problemas mais urgentes e tenebrosos, todos os países do mundo tratariam como escândalo espantoso um episódio como o da Prevent Senior. Não apenas porque a prestadora de serviços de saúde ministrou remédios sem eficácia a seus pacientes, mas porque usou parte da sua clientela, velha e indefesa, para fazer testes e experiências que resultaram na morte de pessoas. No Brasil, parece apenas mais um caso dos muitos que já foram banalizados pelo dia a dia de uma terra sem lei.
Os dados até aqui revelados pelos repórteres Ana Clara Costa e Guilherme Balza não deixam margem para dúvida, a Prevent Senior agiu deliberadamente de maneira criminosa e odienta. Desrespeitou o direito dos pacientes e seus familiares, não cumpriu com o seu dever profissional, moral e ético, omitiu ou fraudou informações e mentiu. O pacote de absurdos praticados por orientação expressa dos dirigentes da empresa, que alguns médicos se recusaram a obedecer, precisa ser ainda esmiuçado e em seguida seus responsáveis punidos com toda a extensão e com o absoluto rigor da lei.
Além de matar pacientes, as orientações dadas aos funcionários da Prevent Senior serviriam também para esculachar os doentes com experimentos sem qualquer apoio científico e sem autorização formal de pacientes, famílias ou entidades que regulam o setor, como a Anvisa. A empresa diz que a orientação era dos médicos, não do seu corpo administrativo. Mentira. As reportagens mostram o contrário. Há casos, já fartamente documentados, de clientes da Prevent Senior que ligavam para a empresa para relatar casos de Covid e recebiam em casa horas depois, sem pedir, kits de cloroquina, ivermectina e outras drogas comprovadamente ineficientes no combate à doença.
O Hospital Sancta Maggiore, da Prevent Senior, em São Paulo, virou uma casa de horrores. Pacientes, todos idosos, porque a empresa como o nome diz trata exclusivamente de seniores, foram tratados até a eclosão do escândalo como cobaias de experiências macabras. Se fosse um filme, você diria que o roteirista exagerou. Exagerou tanto que colocou dentro do hospital três personagens que se somaram ao esforço do gabinete paralelo do presidente Jair Bolsonaro para enfrentar a Covid por meios ineficazes. Estavam lá os médicos Nise Yamagushi e Anthony Wong e o empresário travestido de periquito Luciano Hang.
Nise, que se sentiu ofendida ao ser contestada na CPI da Covid, andou pelo Sancta Maggiore fazendo a interface do gabinete paralelo com a Prevent Senior. Wong, que como Nise pregava o tratamento precoce, morreu naquele hospital bombardeado pelo pacote completo de remédios ineficientes. Até ozônio pela via retal foi administrada em Wong enquanto ele estava desacordado num leito de UTI pouco antes de morrer. Hang levou para a casa de horrores a sua mãe, que obviamente morreu com tratamento inadequado.
O milionário, que poderia ter levado a genitora para se tratar no Einstein ou no Sírio Libanês, preferiu usar os serviços da Prevent Senior, possivelmente orientando por Nise ou outro membro do gabinete paralelo. Quando o caso se tornou público, Hang emitiu uma nota reclamando da “maldade humana” pelo que chamou de desrespeito com a sua mãe. Nenhuma palavra sobre a omissão da Covid no atestado de óbito da senhora que, como no de Wong, constavam diversas causas e nenhuma menção ao que a levou a ser internada.
Hang também nada disse sobre a continuada exploração do cadáver da mãe por ele próprio, que fez um vídeo para tratar disso e afirmou que ela poderia ter sobrevivido se tivesse tido “tratamento precoce”, levantando um cartaz com esses dizeres. Pior é que a pobre senhora foi submetida a toda a bateria de remédios do kit Covid da Prevent Senior. Até ozônio foi ministrado a ela. O empresário lamenta que não foi preventivo e não conseguiu salvar a vida da mãe. Mas, como disse o presidente que ele tanto mitifica numa entrevista a ativistas alemães de extrema-direita, a maior parte dos óbitos foi de pessoas com comorbidade que “apenas tiveram suas vidas encurtadas em alguns dias ou semanas”.
De volta em 2026
O maior equívoco da vida pública nacional pode dizer adeus temporariamente à política no ano que vem? Muita gente que circunda Jair Bolsonaro tem dito que ele pode não se candidatar à reeleição em 2022. O quadro ainda está sendo desenhado, mas a hipótese é bem concreta caso se confirme a inviabilidade da sua candidatura, já detectada por pesquisas. Neste caso, ele poderia dizer estar apenas cumprindo promessa de campanha. O Centrão até já se posicionou, sugerindo que poderia blindar a ele e seus filhos no Congresso para não serem punidos pelos crimes que cometeram. Como pacote adicional, Bolsonaro encaminharia ao Congresso uma PEC acabando com o instituto da reeleição. Neste caso, poderia voltar em 2026 sem ter de enfrentar um presidente no cargo.
Basta?
A saída do cenário de Bolsonaro bastaria? Não, não bastaria. Ele precisa ser julgado e condenado pelos inúmeros crimes que já cometeu e pelos que ainda vai cometer até deixar o Palácio do Planalto. Nem o impeachment sozinho seria suficiente para que o Brasil mostre ao mundo, depois da passagem grosseira do presidente Sujismundo e de sua comitiva por Nova York, que o seu maior dano histórico foi reparado.
Senado progressista
O Senado sempre foi a casa conservadora do Congresso Nacional, cabendo à Câmara um perfil um pouco mais (não muito) progressista. Esses papéis se inverteram desde a posse de Arthur Lira e a implantação da sua pauta para lá de heterodoxa. A Câmara virou um feudo do que há de mais retrógrado na política e o Senado passou a exercer a função de reparador de estragos produzidos pelos deputados. Foi o que aconteceu com a PEC da reforma política, com a revogação da permissão dada pela Câmara para as coligações em eleições legislativas. Por isso, aliás, Rodrigo Pacheco é pré-candidato a presidente. Já Lira...
Uma vez fantasma...
Como revelou o repórter Felipe Bachtold, a mulher do presidente da Câmara, Arthur Lira, denunciada como funcionária fantasma quando era empregada da Assembleia Legislativa de Alagoas, foi nomeada em julho secretária-adjunta da representação estadual do governo de Roraima em Brasília. No escritório, ninguém sabe dizer se aex-fantasma Angela Lira tem aparecido para trabalhar. Nem porque uma alagoana que mal conhece Roraima virou representante do estado na capital federal.
O que é pior?
O que parece mais patético: o deputado zerinho dizer que o prefeito de Nova York é marxista e os EUA podem se tornar uma grande Venezuela ou o apresentador Tucker Carlson, da Fox News, fazer ar sério e assustado como se estivesse ouvindo uma revelação?
Melhor calar
Não havia hora melhor para ficar calado, mas o vice Hamilton Mourão é daqueles que não pode ver uma geladeira aberta, acha que é flash de TV e começa a falar. Ao defender o machismo de Wagner do Rosário, dizendo ser normal as pessoas eventualmente darem uma aloprada, Mourão mostrou o que mesmo velhos oficiais aprendem na caserna.
Medalhas
Depois que a Assembleia Legislativa de São Paulo resolveu criar a medalha Erasmo Dias de Segurança Pública, vale avaliar se não cabem também a medalha Brilhante Ustra de Interrogatório Policial e a medalha Newton Cruz de Pacificação das Vias Públicas. Da mesma forma, pode-se pensar na medalha Jair Bolsonaro de Respeito aos Valores Democráticos.
Fenaj X Google
A presidente da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), Maria José Braga, a Zequinha, quer criar uma taxa progressiva a ser cobrada de plataformas digitais como Google, Facebook e Amazon para formar um fundo que promoveria o “jornalismo de qualidade” no Brasil.
Ir à igreja
Pesquisa da Bateiah Estratégia e Reputação revela que as pessoas estão ansiosas para a pandemia passar para poder, veja só, ir à igreja. A sondagem, que ouviu 1.455 pessoas em todo o país, mostra que 26,2% pretendem prioritariamente voltar aos seus templos quando a pandemia cessar. Outros 17,8% querem fazer turismo, enquanto 14,5% estão loucos para voltar a bater perna nos centros populares de comércio; 11,1% querem ir a restaurantes; 9,5% sonham em voltar para as academias de ginástica; e 8,7% querem retomar sua agenda cultural indo a teatros e a shows.
Fonte: O Globo
https://oglobo.globo.com/politica/casa-dos-horrores-25212355
Oscar Vilhena Vieira: Legalizando a devastação ambiental
Presidente e seus auxiliares não poupam esforços para bloquear administrativamente a ação dos órgãos de monitoramento e proteção ambiental
Oscar Vilhena Vieira / Folha de S. Paulo
Como era esperado, o pronunciamento de Jair Bolsonaro na abertura da 76ª Assembleia Geral da ONU, na última terça-feira (21), foi constrangedor. Maquiou dados sobre desmatamento e queimadas, mentiu sobre a corrupção, gabou-se de um inexistente sucesso econômico, além de se auto incriminar pelo apoio ao “tratamento precoce”.
Causaram surpresa, entretanto, os elogios à legislação ambiental brasileira, que “deveria servir de exemplo para outros países”, posto que o presidente e seus auxiliares não têm poupado esforços para bloquear administrativamente a ação dos órgãos de monitoramento e proteção ambiental. Com a chegada de Arthur Lira à presidência da Câmara dos Deputados, o presidente finalmente parece ter encontrado um braço forte disposto a legalizar o que a “exemplar” legislação brasileira hoje considera ilegal.
Entre os projetos de lei com maior potencial de erosão dos direitos socioambientais destacam-se o PL 2633, que trata da regularização fundiária, e o PL 490, voltado a alterar o processo de demarcação de terras indígenas e a imposição de um marco temporal. Ambos atendem predominantemente a interesses da grilagem, do desmatamento e da mineração ilegais.
O PL 3729, por sua vez, flexibiliza o licenciamento ambiental, que é uma ferramenta indispensável a um processo sustentável de desenvolvimento, prevenindo desastres ambientais e a transferência às gerações futuras de atividades econômicas presentes. O objetivo original da proposta apresentada em 2004 era unificar a legislação, garantindo maior segurança jurídica, eficiência e agilidade ao licenciamento ambiental.
O texto aprovado pela Câmara e preste a ser analisado pelo Senado Federal vai, no entanto, na direção oposta daquilo que o Brasil precisa. Dispensou o licenciamento ambiental para diversas atividades potencialmente causadoras de degradação ambiental. Para a maioria das atividades licenciáveis, o projeto criou a Licença por Adesão e Compromisso, mecanismo meramente declaratório que, na prática, esvazia a noção de avaliação ambiental, transformando o auto licenciamento em regra e não mais exceção.
Órgãos públicos ligados à preservação ambiental e patrimonial, como o ICMBio, Funai e Iphan perdem espaço no licenciamento ambiental. Na pior tradição brasileira o projeto premia quem descumpriu a lei, isentando de responsabilidade empreendimentos que já operam sem licença ambiental válida, que deverão apenas solicitar um Licenciamento Ambiental Corretivo. Também isenta de responsabilidade instituições de financiamento, como bancos, pelos eventuais danos socioambientais causados pelos empreendimentos que apoiaram.
A OCDE, em relatório lançado em julho, apontou que a política ambiental brasileira já deixa a desejar: dos 48 requisitos legais analisados pela organização, o Brasil foi considerado como total ou parcialmente desalinhado em 29, ou seja, em 60% do total. Caso o PL 3729 seja aprovado, tal como está, o Brasil perderá ainda mais espaço na luta por investimentos e credibilidade internacional. Também testemunharemos mais desastres ambientais, desmatamento na Amazônia e violações aos direitos humanos.
Cabe ao Senado Federal evitar que mais esse ataque ao nosso sistema de proteção ambiental se consume, se não por respeito ao bem-estar das futuras gerações, ao menos pelo interesse estratégico do Brasil de se reinserir numa posição de liderança num contexto internacional cada vez mais exigente em termos ambientais e climáticos.
*Professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP.
Fonte: Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/oscarvilhenavieira/2021/09/legalizando-a-devastacao-ambiental-no-brasil.shtml
Murillo de Aragão: Ninguém manda no Brasil
Somos uma sociedade plural onde atuam diversos polos de poder
Murillo de Aragão / Revista Veja
As turbulências institucionais recentes provocaram temores no país quanto a potenciais rupturas e episódios de violência. No desenrolar dos acontecimentos, o presidente do STF, Luiz Fux, apresentou um cartão amarelo com tons de laranja que precipitou uma série de embaixadas entre atores políticos relevantes. O dito ficou pelo não entendido ou pelo mal-entendido.
Uma reflexão acerca dos episódios de 7 de setembro nos leva a uma questão essencial para entender o Brasil: quem, de fato, manda no país? A resposta não é fácil nem pacífica. Isso porque aqui há setores que mandam, mas não parecem mandar; e outros que pensam mandar, mas não mandam. Além do mais, o próprio conceito de “mando” é frágil.
Começando de trás para a frente e respondendo à indagação, digo que ninguém manda no Brasil. O país, como um organismo vivo, reage e atua com base em dezenas de inputs que levam a decisões que, por sua vez, são influenciadas pelos eventos. Sendo organismo vivo, temos inúmeros atores no jogo político.
E, como sempre, os fatos geram repercussões que se refletem no processo político, numa espécie de moto contínuo. Por exemplo, o acirramento das invasões de fazendas estimulou a organização da União Democrática Ruralista, entidade de proprietários que, por sua vez, foi essencial para a criação da poderosa bancada ruralista. Não há tema relevante aprovado no Congresso Nacional sem as digitais do agro.
“Nossas instituições funcionam com pesos e contrapesos para conter exageros, arroubos e bravatas”
O entrechoque de forças sociais move a política, bem como as idiossincrasias, as crenças, as expectativas e as narrativas que circulam, historicamente, país afora. Para entender por que ninguém manda no Brasil e por que o processo político é resultante do embate com múltiplos atores, devemos seguir um breve roteiro de esclarecimentos.
Somos uma sociedade plural com diversos polos de poder, seja no universo público, seja no privado. Os campos de disputa política não afloram só em período de eleições. Prosseguem cotidianamente no Congresso, na mídia, no Judiciário, no mercado e suas expressões (bolsa, câmbio e juros futuros), no empresariado, nos trabalhadores, nas organizações não governamentais, nas redes sociais e, eventualmente, nas ruas. Apesar do intenso bombardeio ideológico do século XX, a maioria dos polos de disputa política se expandiu em torno de agendas de interesses específicos em uma luta por privilégios e poder.
A quantidade de polos de poder político e de campos de disputa multiplica os lugares de fala e dificulta a construção de narrativas hegemônicas. A própria construção de consensos é dolorosa, tanto para aperfeiçoamentos quanto para retrocessos. Nossas instituições, como nos acontecimentos de 7 de setembro, funcionam com pesos e contrapesos para conter exageros, arroubos e bravatas.
Em 2023, seja lá quem for o presidente eleito, o quadro institucional prosseguirá o mesmo. E ninguém, de forma isolada, mandará no Brasil nem romperá o equilíbrio “desequilibrado” entre as suas instituições. Prosseguiremos como um regime semiparlamentarista com forte influência do Judiciário, descobrindo-se como federação e com múltiplos atores brigando por espaço e influência no processo político.
Publicado em VEJA de 29 de setembro de 2021, edição nº 2757
Fonte: Veja
https://veja.abril.com.br/blog/murillo-de-aragao/ninguem-manda-no-brasil/