Fake News

Alessandro Vieira: 'Só com transparência é possível garantir a liberdade de expressão'

Não há interesse real dos provedores em proteger a sociedade

É inegável o impacto das chamadas fake news na sociedade. Um dos mais perversos se dá na vida e na saúde das pessoas. Hoje, diante da pandemia de Covid-19, a OMS e a ONU conclamam o mundo a, além de combater o novo coronavírus, lutar contra o fenômeno da desinformação em massa, a “infodemia”.

Outro efeito perverso da “desinformação” massiva é a radicalização política do país, com consequências graves à democracia. Neste ano haverá eleições municipais e, se nada for feito, é provável que, numa atividade criminosa, a livre escolha do cidadão continue sujeita à manipulação.

É certo que precisamos identificar e penalizar infratores ou grupos organizados que têm como fonte de renda e método de trabalho a criação e disseminação de notícias falsas, valendo-se de robôs e contas inautênticas nas redes sociais. Mas também o intermediário da informação, as plataformas, pode e deve contribuir no combate ao problema.

O modelo bilionário de negócio dos monopólios de comunicação em massa, que são as plataformas de redes sociais e de mensagens, é baseado em engajamento —medido por cliques, curtidas, compartilhamentos. Estudos mostram que o conteúdo radicalizado, chocante e que causa indignação, é mais lucrativo. Logo, não há interesse real dos provedores em iniciativas para proteger a sociedade em detrimento de seus lucros. É isso que precisa mudar.

As plataformas já têm medidas de controle de conteúdo, mas falta transparência. Postagens são sinalizadas ou removidas e perfis são retirados da rede sem qualquer justificativa ou processo para contestação. Para proteção real dos usuários, é preciso reduzir o volume de robôs (“bots”) nas redes e a capacidade operacional das ferramentas de disparos em massa; deixar claro quem é responsável por conteúdos impulsionados e por publicidade; e dar transparência à gestão de conteúdo ofensivo e com potencial de gerar danos individuais ou coletivos.

Não se sabe quantas contas inautênticas há no Brasil. O Facebook, recentemente, declarou ter “derrubado” um bilhão de contas durante o “Webinar da Frente Digital - “Todos Contra Fake News”.

Como separar as contas de pessoas e organizações de contas falsas, usadas para disseminar fake news? Por meio de regras claras de verificação que precisam fazer parte das políticas das plataformas. Perfis de robôs precisam ser identificados.

A disseminação de mensagens por contas falsas em ferramentas como WhatsApp ou Telegram é grave. Pode ser evitada com revisão dos mecanismos de compartilhamento; autorização expressa do usuário antes do envio de mensagens de massa ou inclusão em grupos; guarda dos metadados do ciclo de compartilhamento de uma mensagem criminosa —a ser requisitado, eventualmente, por medida judicial—; e impedimento do compartilhamento de contas com atividade incompatível com a capacidade humana.

Hoje, as plataformas permitem a denúncia pelos usuários de conteúdos ofensivos, ameaçadores ou mentirosos. Mas falta clareza sobre como essa análise é feita e como o autor pode contestá-la. O presidente Jair Bolsonaro teve postagens apagadas, e o presidente americano, Donald Trump, teve uma postagem sinalizada como potencialmente falsa.

Não se sabe, porém, se há o mesmo rigor com outros atores. Só com transparência é possível garantir a liberdade de expressão.

É urgente discutir adequações no modelo de negócio das plataformas para que sirvam ao nobre objetivo de conectar pessoas e ideias, e oferecer meios para um debate público saudável, democrático e necessário.

*Alessandro Vieira, Senador da República (Cidadania-SE), é autor do projeto que cria a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet, a Lei das Fake News


Folha de S. Paulo: 'É preciso seguir o caminho do dinheiro', diz o autor de projeto sobre fake News

Texto de Alessandro Vieira quer enquadrar financiadores de redes de robôs nas leis de organização criminosa e de lavagem de dinheiro

Patrícia Campos Mello | Folha de S. Paulo

SÃO PAULO - Se o projeto de autoria do senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE) virar lei, pessoas que financiam redes de robôs ou contas falsas que cometem crimes como difamação em redes sociais serão enquadradas nas leis de organização criminosa (12.850/2013) e de lavagem de dinheiro (9.613/1998), que preveem penas entre 3 e 10 anos de prisão.
“É preciso seguir o caminho do dinheiro para fazer cessar a atividade das organizações criminosas que atuam nessa seara”, diz Vieira.

A versão do projeto que deve ser votado no Senado nesta terça-feira (2), também de autoria dos deputados Tabata Amaral (PDT-SP) e Felipe Rigoni (PSB-ES), acolheu recomendações da sociedade civil e retirou uma das partes mais polêmicas do texto: a responsabilidade das plataformas, com auxílio de checadores de fatos, de identificar e rotular desinformação.
Segundo especialistas, o conceito era vago e poderia levar as plataformas, para não correr riscos, a rotular também conteúdos legítimos como fake news.

Esse tema será analisado por uma comissão coordenada pelo Comitê Gestor da Internet. Em contrapartida, os legisladores reforçaram a parte do texto que prevê responsabilização de integrantes e financiadores de redes de robôs.
“É importante entender que esse projeto de lei não vai atingir fatos passados, ele não vai retroagir para o que aconteceu em 2018, ou mesmo o que está acontecendo hoje com o 'gabinete do ódio'. Mas, daqui para frente, pessoas serão responsabilizadas”, diz Vieira.

O projeto prevê que o financiamento de rede de robôs e contas inautênticas que cometem crimes seja enquadrado nas leis de organizações terroristas e de lavagem de dinheiro. Por quê?

Foi uma sugestão de várias fontes, mas principalmente do Ronaldo Lemos [do Instituto de Tecnologia e Sociedade]. É preciso seguir o caminho do dinheiro para fazer cessar as atividades das organizações criminosas que atuam nessa seara.
Então ali a gente faz a inclusão dessa atividade na modalidade de organização criminosa e a gente amplia o tipo da lavagem de dinheiro, para também abraçar a ocultação de recursos utilizada para disseminação ou criação de conteúdo falso ou desinformativo.
O trabalho de identificação dessas pessoas fica facilitado, porque a lei de organização criminosa abre algumas ferramentas de investigação a mais, pode ter delação premiada, o que seria muito oportuno. A gente consegue identificar essas organizações e puni-las nas duas pontas.
É importante entender que esse projeto de lei não vai atingir fatos passados, ele não vai retroagir para o que aconteceu em 2018, ou mesmo o que está acontecendo hoje com o "gabinete do ódio". Mas, daqui para frente, pessoas serão responsabilizadas. Há uma grande gama de possibilidades de crimes, desde periclitar saúde pública até crimes contra honra e eleitorais.

Vocês acolheram recomendações da Coalizão Direitos na Rede e retiraram toda a parte que conceituava desinformação e determinava que as plataformas ficavam responsáveis por identificar e rotular desinformação, com ajuda dos checadores de fato. Havia um risco de perda de liberdade de expressão?
A gente tem convicção de que o caminho que estávamos sugerindo era de proteção à liberdade de expressão, porque na realidade a mediação de conteúdo já é feita pelas empresas. A gente trazia isso mais para esfera pública. Mas a gente tinha resistência não só da coalizão, mas também de grupos de direita. Todos se viam como perseguidos, se colocam como potenciais vítimas.
Conservadores acham que não vão mais poder veicular suas mensagens, e as minorias também. Então optamos por jogar esse debate mais pra frente, para ter mais amplitude e deixar amadurecer, e conseguir aproveitar a força política do momento para conseguir aprovar coisas que são importantíssimas.
Se eu consigo tirar contas inautênticas e falsas e redes de robôs não declaradas, eu já enfraqueço muito as estratégias de divulgação de mentiras. As alterações que sugerimos para o WhatsApp vão permitir a identificação da origem de conteúdo de vídeos, mensagens ofensivas, sem ferir criptografia.

Mas isso já não faz parte do Marco Civil da Internet? Eles têm que guardar por seis meses os metadados e fornecer em caso de ordem judicial.
Os dados não mostram a origem com clareza, tentamos deixar isso mais esmiuçado, para podermos recompor toda a cadeia. O cara pode continuar fazendo a bobagem dele, mas agora fica muito mais viável identificá-lo e puni-lo se estiver cometendo um crime. É preciso ter condições de fazer a reconstituição dessa cadeia, para rastrear de onde veio, é possível fazer isso sem nenhum risco para criptografia ou privacidade.

Dá para fazer? Algumas empresas alegam que tecnicamente é impossível.
O Telegram já faz. A cada vez que repassar algo, acrescenta uma linha na assinatura daquele arquivo, são metadados, não é conteúdo.

As plataformas terão que remover as contas inautênticas, em que pessoas tentam se passar por terceiros?
Sim, a plataforma tem que remover. Hoje participei de um webinar em que havia uma representante do Facebook. Ela contou que eles derrubaram só neste ano 1,2 bilhão de contas falsas e inautênticas. Eles já têm tecnologia para isso, já sabem fazer isso. A gente só transforma em obrigação, você não pode ter contas falsas, elas estimulam a prática de crimes. Você pode ter pseudônimo, desde que por ordem judicial você possa identificar essa pessoa.

A legislação conseguiu unir bolsonaristas, plataformas de internet e parte da sociedade civil em suas críticas. Para os bolsonaristas, trata-se de “censura” e “coisa de comunista”. Para as plataformas, a lei altera o Marco Civil da Internet porque, em última instância, responsabiliza as empresas por conteúdo produzido por terceiros e inviabiliza o modelo de negócio das "big tech". E para a sociedade civil, a lei pode corroer a liberdade de expressão no país. Como o senhor reage?
Neste formato atual, restringimos definição de conta inautêntica, retiramos qualquer menção a conteúdo, para não cair nessa armadilha de discussão de conteúdo. Isso está superado. Isso ocorreu porque existe uma falsa percepção de que existe liberdade na rede.
Hoje as plataformas já têm toda uma política de moderação de conteúdo, em que eles escolhem, muitas vezes por motivos econômicos, o que vai ter mais ou menos alcance, e o que pode ou não permanecer na rede. Não é como falar na praça pública, é como contratar alguém para fazer com que o que você fala chegue até as pessoas.
É um projeto que foi vítima de uma campanha de desinformação violenta, com informações absolutamente falsas, de que estamos censurando conteúdo, não existe nada nesse sentido. Nessa versão que apresentamos ao senador Angelo Coronel, que será o relator, a gente deixa taxativo um artigo só para isso, para dizer que nenhuma derrubada de conteúdo vai acontecer com base exclusivamente nessa lei.

A legislação determina que as plataformas identifiquem e removam contas inautênticas. Quem vai fiscalizar isso?
Vamos ter relatórios de transparência que serão apresentados e pesquisadores independentes trabalhando com isso. E o Ministério Público também poderia adotar políticas para fiscalizar. Além disso, a própria plataforma e terceiros, temos na rede vários sistemas, como o BotSentinel, que ficam buscando essas contas inautênticas e denunciando. E o senador Angelo Coronel vai incluir dispositivos da área penal no texto. Nós concordamos que é preciso aumentar a pena para quem produz conteúdo falso.

Mas aí vai cair na mesma armadilha, quem é que determina o que é conteúdo falso?
Eu respondi a isso em uma dessas lives, disse que, na democracia, quem diz o que é verdade é o Judiciário. Isso virou meme, foi distorcido. Estou dizendo que a democracia tem uma instituição, o Judiciário, e ela que aprecia litígios.

No mundo, em vários países que adotaram leis de fake news, a legislação acabou sendo usada para restringir liberdade de expressão e jornalismo crítico. Como garantir que isso não vai acontecer?
No texto, fizemos uma ressalva sobre conteúdo intelectual, cultural, satírico. Não temos nenhuma pretensão de interferir na atividade jornalística, isso não está em nenhum ponto da lei. Se, na tramitação da lei, houver excessos, vamos suprimir. É muito importante que o Brasil avance, tenha uma legislação sólida nesse tema, mas não podemos cair no autoritarismo.

Por que aprovar essa lei agora e por que tanta pressa, insistir em uma tramitação tão acelerada, sem tempo para debate público?
Porque a gente tem uma janela de oportunidade. Temos esse debate público mundial desde ao menos o plebiscito do brexit e as eleições americanas de 2016, e ainda não temos uma resposta legislativa consistente.
Há constatação clara de que as fake news prejudicam a saúde pública durante uma pandemia, e temos a clareza de que a persistência dessa estrutura automatizada de disseminação de desinformação prejudica também o processo eleitoral e democrático, e é negativo para os dois lados. É ilusão achar que só um lado usa essa ferramenta suja, os dois lados usam. É importante criar legislação para prevenir, não para os fatos que passaram. Conseguimos chegar a um texto que, em grande parte, é consensual, a gente não pode desperdiçar esse momento. É consenso entre parlamentares.

Qual é a perspectiva de aprovação disso no Senado e na Câmara?
Acho que tem potencial de ser votado rapidamente no Senado. De lá, vai para a Câmara. Lá, talvez tenha dificuldade maior. Mas o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, já falou algumas vezes que o projeto é importante, tem que ser votado.

A legislação fala na importãncia de transparência no uso de redes sociais por órgãos públicos. Qual foi a inspiração para esse trecho?
Há condutas absolutamente equivocadas hoje, uma confusão do que é esfera privada e o que é esfera pública. Achamos por bem incluir um regramento sóbrio que coloca limites claros. É a mesma premissa: você quer fazer, tudo bem, mas vai assumir a responsabilidade. Não remove conteúdo, só responsabiliza.

As plataformas sugerem educação midiática e checagem de fatos como respostas à desinformação, e afirmam que regulação limitará liberdade de expressão.
As plataformas resistem a ter regulação. Nas plataformas, o importante é ter engajamento, tanto faz se é verdadeiro ou falso, isso não faz diferença para o algoritmo nem para o dinheiro. Pelo contrário, todos os estudos apontam que os conteúdos radicalizados e abusivos engajam mais.
A transparência para conteúdos patrocinados e impulsionados, principalmente políticos, já é feita pelo Facebook, em sua biblioteca de anúncios. Por que incluir na lei?
A gente coloca como uma obrigação, não como uma faculdade. Hoje eles fazem porque querem, e se mostrarem só alguns, ninguém pode cobrar.
Algumas empresas dizem que é impossível banir ou punir conta inautêntica, porque isso implica em violação de privacidade, a pessoa precisa revelar quem é.
A gente está vedando a possibilidade de ter uma conta sem se identificar. Todos precisam se cadastrar e se identificar ao abrir uma conta. Posso por a foto e o nome do meu cachorro, mas a plataforma vai ter a informação. É preciso ter algum caminho para responsabilização.

Twitter e Facebook são multinacionais, como vão cumprir isso?
Já fazem isso em alguns lugares do mundo, adaptam o serviço para a legislação do país.

O projeto é parecido com o decreto do presidente dos EUA, Donald Trump, que acaba com a imunidade das plataformas?
É um pouco isso, traz um pouco de responsabilidade para as plataformas. É inadmissível elas ganharem tanto dinheiro e não terem absolutamente nenhuma responsabilidade.


Foto: Beto Barata\PR

José Casado: Investigação no Planalto

O inquérito do Supremo sobre a difusão de informações falsas chegou à antessala de Jair Bolsonaro. Na investigação constam três integrantes da Assessoria Especial da Presidência: Tercio Arnaud Tomaz, José Matheus Sales Gomes e Mateus Matos Diniz. O trio opera com um dos filhos do presidente, Carlos Bolsonaro, vereador carioca.

Tomaz e Gomes foram pagos pela Câmara do Rio na campanha de 2018. No Planalto, suas agendas oscilam entre o lacônico “Despacho interno” e o sucinto “Sem compromisso”. Diniz ganhou um cargo de 27 palavras: “Assessor no Departamento de Relações com a Imprensa Internacional da Secretaria de Imprensa da Secretaria Especial de Comunicação Social da Secretaria de Governo da Presidência da República”.

A rede de fraudes se estende por Rio, São Paulo, Minas, Ceará, Rio Grande do Sul, Pernambuco e Bahia. É composta por sites financiados com anúncios públicos e privados. Tem contribuintes como Luciano Hang, da Havan (141 lojas e vendas de R$ 10,7 bilhões), e Edgard Gomes Corona, da SmartFit (850 salas de ginástica e receita de R$ 2,4 bilhões).

Preocupado, Jair Bolsonaro amplia sua malha de coleta de informações, à margem dos 42 serviços regulares de Inteligência militar, policial e financeira. Decidiu “aprimorar” a cooperação dos núcleos (P-2) da Polícia Militar, fragmentados com a politização dessas forças.

Na quinta-feira, em edição extra do Diário Oficial, expandiu a seção de Inteligência do Ministério da Justiça. Fez isso 48 horas após a ação do Supremo contra 25 suspeitos — entre eles, empresários, parlamentares e o ex-deputado Roberto Jefferson.

O processo de agregação da espionagem das PMs foi formatado por André Mendonça, que se qualifica como “servo” de Bolsonaro na Justiça. Ele explora brechas da lei numa área sem fiscalização do Congresso.

Até existe uma comissão de controle. Ela é comandada pelo senador Nelson Trad (PSD-MS) e por outro filho do presidente, o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP). Houve uma única reunião em 480 dias. Durou 9 minutos e 54 segundos.


Andrea Jubé: “Eu usaria ‘fake news’ como uma arma”

Senado vota no dia 2 projeto que tenta frear “fake news”

“Fake news” e armas de fogo estão na ordem do dia, no contexto da pandemia e da reunião ministerial de 22 de abril, na qual o presidente Jair Bolsonaro exclamou que deseja armar a população. “Por isso que eu quero que o povo se arme!”

Parecem temas estranhos entre si, mas são como duas paralelas, que se encontram no infinito, porque o potencial letal das “fake news” equipara-se ao das armas de fogo.

A metáfora é do lobista americano Jack Burkman: “Eu usaria ‘fake news’ como uma arma. Os alemães e os britânicos usam armas químicas, e você vai fazer o quê? Não quer dizer que goste, mas tem que fazer”, explicou o apoiador de Donald Trump, no documentário “Depois da verdade: desinformação e o custo das ‘fake news’”, que estreou recentemente na plataforma de streaming HBO.

“Usei ‘fake news’ (…) existem consequências terríveis potencialmente, mas e daí? É o que eu digo: e daí?”, questionou Burkman, evidenciando o grau de impunidade em torno do tema. (Vê-se que o famigerado “E daí?” não é monopólio da política nacional).

A fala de Burkman abre o filme do diretor Andrew Rossi, vencedor do Emmy, que revela a letalidade da disseminação de conteúdo falso. O caso mais emblemático retratado no filme se deu durante a campanha de Trump em 2016: o Pizzagate, que envolveu um point badalado em Washington, frequentado por políticos, jornalistas, e famílias descoladas.

A falsa notícia de que a pizzaria Comet Ping Pong era a sede de um esquema orquestrado pela adversária de Trump, a democrata Hillary Clinton, espalhou-se pelas redes e ganhou contornos cada vez mais absurdos. No local, existiria um porão onde crianças seriam estupradas e mantidas como reféns. Pelo delivery, mediante um código, as pessoas receberiam crianças no lugar de pizzas em seus apartamentos.

Perto da eleição, Hillary encostou em Trump, abalando os nervos dos republicanos. Um deles - Edgar Maddison Welch, 28 anos, pai de duas filhas - resolveu dirigir 550 quilômetros, da Carolina do Norte até Washington, na companhia de um fuzil AR-15, determinado a resgatar os “reféns” do Comet Ping Pong.

Armado com o fuzil, um revólver e uma faca, Welch entrou sem atirar na pizzaria, porque a prioridade era localizar o esconderijo e libertar as vítimas. Enquanto ele se ocupava com a busca frenética, os funcionários puderam ajudar os clientes a fugir até a chegada das viaturas, em tempo hábil de impedir a tragédia.

O episódio ilustra como a desinformação e as teorias da conspiração impactam a política, com reflexos na vida do cidadão comum. Na eleição americana, verificou-se que o conteúdo falso teve mais engajamento do que o verdadeiro. A falsa notícia do apoio do Papa Francisco a Trump teve 961 mil engajamentos.

A invenção de que Hillary operaria um esquema de abuso infantil remonta à acusação de que o então candidato do PT à Presidência Fernando Haddad iria distribuir mamadeiras com o formato de pênis em creches e escolas da rede pública. A ficção teve intensa repercussão no eleitorado evangélico, prejudicando o petista nesse segmento.

A preocupação com a expansão das “fake news” e os seus reflexos no pleito municipal deste ano fez o Congresso apressar o passo para votar uma norma regulamentando o tema. A meta é evitar a reincidência de danos causados em 2018, ou ao menos atenuá-los. Co-autor do projeto, o senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE) diz que há críticas à velocidade de análise da matéria, pautada para o dia 2 de junho no plenário virtual do Senado, mas que neste caso, é preciso agilidade.

“Estamos no meio de uma pandemia e a desinformação pode matar pessoas. Também teremos daqui a pouco um novo ciclo eleitoral, e não podemos chegar lá com as redes de desinformação e ‘fake news’ em ação”, justificou.

O projeto é de autoria do gabinete compartilhado que Vieira mantém com os deputados Tábata Amaral (PDT-SP) e Felipe Rigoni (PSB-ES) e introduz regras que se adequam ao Marco Civil da Internet, mas colocam freios à disseminação das notícias falsas.

Um dos dispositivos limita o número de encaminhamentos de mensagens nos aplicativos de conversas no período eleitoral. Durante a propaganda eleitoral ou nas situações de emergência ou calamidade pública (como a pandemia da covid-19), o número de encaminhamentos de uma mesma mensagem fica limitado a no máximo um usuário ou grupo.

O projeto está sendo debatido com a sociedade civil, e a partir das críticas de que alguns dispositivos configurariam censura, haverá alterações. A ideia é prever que o autor da publicação considerada falsa seja notificado previamente antes que o provedor a remova.

Em março, Facebook, Twitter e Instagram removeram postagens de Bolsonaro com críticas ao isolamento social - principal política mundial de enfrentamento ao coronavírus. Em um dos vídeos removidos, o presidente dizia que o país ficará imunizado quando 70% forem infectados, e que um remédio contra o coronavírus já seria uma realidade, sem apresentar comprovação dos dados.

O senador diz que haverá comoção em torno da definição de “fake news”: o que será a opinião do autor da postagem, ou a replicação de conteúdo falso. No caso da cloroquina, ele observa que não pode ser considerada “fake news”, porque alguns profissionais de saúde recomendam a sua utilização no tratamento da covid-19. Mas divulgá-la como remédio eficaz seria propagar conteúdo falso.

No mundo político, vigora a percepção de que Bolsonaro foi eleito na esteira de um movimento político que tem a desinformação no centro de sua estratégia. A denúncia chegou ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que pautará os pedidos do PT de cassação da chapa Bolsonaro-Mourão nas próximas semanas, conforme informou o Valor. A propagação criminosa e sistemática de “fake news” é investigada, em paralelo, pelo Supremo Tribunal Federal e pela CPI Mista do Congresso.


Na reunião de 22 de abril, Bolsonaro avisou: “Eu tô fora de eleições municipais”. Foi a resposta ao ministro Paulo Guedes, que afirmou que é preciso reeleger o presidente. “Mas o presidente tem que pensar daqui a três anos. Não é daqui a um ano não”, alertou.


Matt Stoller: Empresas de tecnologia ameaçam a democracia

Receita de anúncios que sustenta o jornalismo foi capturada por Google e Facebook e parte do dinheiro dissemina notícias falsas

À medida que a eleição dos EUA se aproxima, as rachaduras na fachada digital começam a aparecer de novo. O Facebook acaba de remover uma página, “Eu amo os EUA”, comandada por ucranianos, que enviou imagens pró-Trump recicladas da Internet Research Agency, grupo russo que tentou influenciar a eleição de 2016.

Acontece que “I Love America” não era patrocinada pelo governo. Os ucranianos apenas administravam a página pelo dinheiro da publicidade. Uma página semelhante com conteúdo falsificado, “Vidas de Policiais Importa”, agora está sendo feita em Kosovo.

Essas duas páginas falsas do Facebook ilustram a crise da imprensa livre e da democracia: a receita de publicidade que costumava ir para o jornalismo de qualidade agora é capturada por grandes intermediários de tecnologia, e parte desse dinheiro é dedicado a conteúdo desonesto, de baixa qualidade e fraudulento.

Esta é a primeira eleição presidencial após o colapso do modelo de negócios para o jornalismo. A receita de publicidade de jornais impressos caiu dois terços desde 2006. De 2008 a 2018, o número de repórteres de jornais caiu 47%. Dois terços dos municípios dos EUA não têm um jornal diário e 1.300 comunidades perderam toda a cobertura local. Até estabelecimentos nativos da web, como o BuzzFeed e o HuffPost, demitiram repórteres. Esse problema é global. Por exemplo, na Austrália, de 2014 a 2018, o número de jornalistas em publicações impressas tradicionais caiu 20%.

A sinalização de novas marcas e as barreiras culturais destinadas a proteger dos efeitos distorcidos da publicidade foram destruídas. Em seu lugar, surgiu um ecossistema de informações disfuncionais, caracterizado pelas teorias de polarização, dependência e conspiração. Na Europa e nos EUA, os jovens aprendem ciência racial pelo YouTube.

No Brasil, cidadãos aprendem que a zika é transmitida por vacinas. Como o Center for Humane Technology afirma: “As plataformas tecnológicas de hoje estão presas em uma corrida até o fundo do tronco cerebral para atrair a atenção humana. É uma corrida que todos estamos perdendo.”

Crise tem dois vetores
Existem dois vetores dessa crise. O primeiro é a concentração da receita de publicidade online nas mãos do Google e do Facebook, monopólios globais montados no discurso público, desviando o dinheiro que costumava ir para as editoras. O segundo é um colapso ético – consequência natural do fato de a publicidade financiar um utilitário de informações como uma rede social ou mecanismo de busca –, que eu chamo de “comunicações conflituosas”.

É tentador culpar a internet por tudo isso, mas é importante reconhecer que a tecnologia é moldada pela lei. Publicidade, editoração e distribuição de informações operam em mercados estruturados. Nos últimos 40 anos, as regras subjacentes a esses mercados passaram por uma reorganização radical.

Como diz o historiador Richard John, por 200 anos (a partir da criação dos Correios, em 1791), os americanos formuladores de políticas tentaram descentralizar o poder dos meios de comunicação e manter neutras as redes de comunicação. No fim dos anos 70, os formuladores de políticas reverteram suas presunções. Eles atenuaram a lei antitruste, eliminaram a doutrina da imparcialidade e permitiram a criação de grandes conglomerados de mídia.

Habilitado por uma política de fusão imprecisa, o espaço da internet passou por sucessivas aquisições. De 2004 a 2014, o Google gastou US$ 23 bilhões comprando 145 empresas, incluindo a gigante da publicidade DoubleClick. E, desde 2004, o Facebook gastou quantia semelhante adquirindo 66 empresas, permitindo-lhe dominar as redes sociais. Nenhuma dessas aquisições foi bloqueada como anticompetitiva.

Os dados agora são a entrada principal da publicidade: se você sabe quem está visualizando um anúncio, esse espaço se torna muito mais valioso. Google e Facebook agora sabem quem está vendo cada um dos anúncios, e seus concorrentes – os jornais –, não. Além disso, agora, os jornais também precisam contar com Google e Facebook para chegar a seus clientes e repassar a eles valiosos dados de assinantes. Quando o Wall Street Journal rejeitou respeitar os termos de formatação, o Google o removeu de suas fileiras de pesquisa e o tráfego do jornal caiu 44%.

Filosofia favorável à concentração ajudou a moldar revolução da informação
Em outras palavras, não foi apenas a tecnologia, mas também uma filosofia favorável à concentração que moldou a revolução da informação, nos anos 1990 e 2000. Google e Facebook cresceram para controlar utilitários de informação, como pesquisa geral, redes sociais e mapeamento. Novas formas de publicidade – sustentadas pelo uso não regulamentado de dados e vendidas por meio de leilões não transparentes e complexos – minaram a barganha das editoras e permitiram novas formas de fraude usando bots e conteúdo falso.

Um resultado dessas mudanças é a centralização radical do poder sobre o fluxo de informações. As plataformas tecnológicas agora controlam a receita de publicidade online, que é a principal fonte de financiamento da notícias. Mas este não é apenas um problema da monopolização de uma indústria. Google e Facebook não estão no ramo do jornalismo. Eles estão no setor de comunicações, executando utilitários de informação com uma receita que costumava ir para o jornalismo.

O financiamento da publicidade apresenta um conflito de interesses, pois a publicidade é uma terceira parte pagando para manipular alguém. Na mídia tradicional, ela pode influenciar escolhas editoriais. Há uma série de estruturas éticas projetadas para inibir o controle excessivo de anunciantes sobre os meios de comunicação, resultado de debates por centenas de anos entre figuras públicas sobre a natureza da publicidade e da editoração.

Algumas delas incluem os efeitos da sinalização de marcas de notícias, uma diversidade de meios de comunicação, a separação dos departamentos de publicidade e a parte editorial e corporações para proteger a integridade jornalística da publicação dos interesses comerciais. Mas tais debates éticos ainda precisam ocorrer em torno dos utilitários de informação.

Consequentemente, a deturpação da publicidade – dependência, manipulação, fraude, ruptura de um tecido social – foi recebida com pouca imunidade cultural, respostas políticas ou defesas institucionais.

Antes de o Google virar uma enorme empresa de publicidade, seus fundadores – Sergey Brin e Larry Page – notaram esse problema. Eles analisaram o mercado de mecanismos de pesquisa da década de 90 – com empresas oferecendo aos anunciantes a chance de pagar para serem listados como resultado de uma pesquisa orgânica – e argumentaram que o financiamento de um mecanismo de pesquisa por meio da publicidade era fundamentalmente imoral.

Esses utilitários de informações teriam um incentivo para manter os usuários em suas propriedades para que eles continuassem vendendo mais anúncios. Eles também teriam um incentivo à autonegociação, colocando um conteúdo diante dos usuários que beneficia o utilitário – e não do usuário final. E eles teriam um incentivo para vigiar seus usuários, para que eles pudessem segmentá-los de maneira mais eficaz.

Uma crise para a democracia
Brin e Page estavam certos quanto à influência corruptora da publicidade. Esse modelo de negócios de comunicações conflitantes é de onde vêm o vício, a vigilância, a fraude e a ‘isca de cliques’. Infelizmente, estamos vivendo no mundo que eles previram.

A combinação dessas dinâmicas – concentração de poder e novos dilemas éticos apresentados pelo financiamento das redes de informação pela publicidade – criou uma crise para a democracia. A monopolização da receita publicitária tira o financiamento de instituições legítimas. A sinalização das novas marcas e as barreiras culturais destinadas a se proteger dos efeitos distorcidos da publicidade foram destruídas. A tarefa dos formuladores de políticas agora é montar as estruturas éticas para mitigar tais conflitos.

O colapso do jornalismo e da democracia não é inevitável. Para salvar a democracia e a imprensa livre, precisamos eliminar o controle do Google e do Facebook sobre o bem comum. Isso significa descentralizar esses mercados e separar os utilitários de informação, para que pesquisa, mapeamento, o YouTube e outras subsidiárias do Google sejam empresas separadas, e Instagram, WhatsApp e Facebook voltem a competir. Também significa restringir ou limitar a publicidade nessas plataformas.

A receita publicitária deve voltar a fluir para o jornalismo e a arte. E as pessoas deveriam pagar diretamente pelos serviços de comunicação, em vez de pagar indiretamente pela renúncia à democracia. / Tradução de Claudia Bozzo

*É pesquisador do Open Markets Institute


Carlos Alberto Di Franco: Informação versus fake news

O jornalismo precisa recuperar a vibração da vida, o cara a cara, o coração e a alma

Proliferam notícias falsas nas redes sociais. Todos os dias. São compartilhadas acriticamente com a compulsão de um clique. Fazem muito estrago. Confundem. Enganam. Desinformam. A mentira, por óbvio, precisa ser enfrentada. O antídoto não é o Estado. É a poderosa força persuasiva do conteúdo qualificado. O valor da informação e o futuro do jornalismo estão intimamente relacionados. É preciso apostar na qualidade da informação.

As rápidas e crescentes mudanças no setor da comunicação puseram em xeque os antigos modelos de negócios. A dificuldade de encontrar um caminho seguro para a monetização dos conteúdos multimídia e as novas rotinas criadas a partir das plataformas digitais produzem um complexo cenário de incertezas. Vivemos um grande desafio e, ao mesmo tempo, uma baita oportunidade.

É preciso pensar, refletir duramente sobre a mudança de paradigmas, uma vez que a criatividade e a capacidade de inovação –rápida e de baixo custo – serão fundamentais para a sobrevivência das organizações tradicionais e para o sucesso financeiro das nativas digitais.

Mas é preciso, previamente, fazer uma autocrítica corajosa sobre o modo como nós, jornalistas e formadores de opinião, vemos o mundo e a maneira como dialogamos com ele.

Antes da era digital, em quase todas as famílias existia um álbum de fotos. Lembram disso? Lá estavam as nossas lembranças, os nossos registros afetivos, a nossa saudade. Muitas vezes abríamos o álbum e a imaginação voava. Era bem legal.

Agora fotografamos tudo e arquivamos compulsivamente. Nosso antigo álbum foi substituído pelas galerias de fotos de nossos dispositivos móveis. Temos overdose de fotos, mas falta o mais importante: a memória afetiva, a curtição daqueles momentos. Fica para depois. E continuamos fotografando e arquivando. Pensamos, equivocadamente, que o registro do momento reforça sua lembrança, mas não é assim. Milhares de fotos são incapazes de superar a vivência de um instante. É importante guardar imagens.

Mas é muito mais importante viver cada momento com intensidade. As relações afetivas estão sucumbindo à coletiva solidão digital.

Algo análogo, muito parecido mesmo, se dá com o consumo da informação. Navegamos freneticamente no espaço virtual. Uma enxurrada de estímulos dispersa a inteligência. Ficamos reféns da superficialidade. Perdemos contexto e sensibilidade crítica. A fragmentação dos conteúdos pode transmitir certa sensação de liberdade. Não dependemos, aparentemente, de ninguém. Somos os editores do nosso diário personalizado.

Será? Não creio, sinceramente. Penso que há uma crescente nostalgia de conteúdos editados com rigor, critério e qualidade técnica e ética. Há uma demanda reprimida de reportagem. É preciso reinventar o jornalismo e recuperar, num contexto muito mais transparente e interativo, as competências e a magia do jornalismo de sempre.

Jornalismo sem alma e sem rigor é o diagnóstico de uma perigosa doença que contamina redações, afasta consumidores e escancara as portas para os traficantes da mentira. O leitor não sente o pulsar da vida. As reportagens não têm cheiro do asfalto. Sobra jornalismo declaratório e falta apuração objetiva dos fatos.

É preciso contar boas histórias. Com transparência e sem filtros ideológicos. O bom jornalista ilumina a cena, o repórter manipulador constrói a história. Na verdade, a batalha da isenção enfrenta a sabotagem da manipulação deliberada, da preguiça profissional e da incompetência arrogante. Todos os manuais de redação consagram a necessidade de ouvir os dois lados de um mesmo assunto. Mas alguns procedimentos, próprios de opções ideológicas invencíveis, transformam um princípio irretocável num jogo de aparência.

A apuração de mentira representa uma das mais graves agressões à ética e à qualidade informativa. Matérias previamente decididas em guetos sectários buscam a cumplicidade da imparcialidade aparente. A decisão de ouvir o outro lado não é honesta, não se apoia na busca da verdade, mas num artifício que transmite um simulacro de isenção, uma ficção de imparcialidade. O assalto à verdade culmina com uma estratégia exemplar: repercussão seletiva. O pluralismo de fachada, hermético e dogmático, convoca pretensos especialistas para declararem o que o repórter quer ouvir. Mata-se a notícia. Cria-se a versão.

Sucumbe-se, frequentemente, ao politicamente correto. Certas matérias, algemadas por chavões inconsistentes que há muito deveriam ter sido banidos das redações, mostram o flagrante descompasso entre essas interpretações e a força eloquente dos números e dos fatos. Resultado: a credibilidade, verdadeiro capital de um veículo, se esvai pelo ralo dos preconceitos.

Politização da informação, distanciamento da realidade e falta de reportagem. Eis o tripé que corrói a credibilidade dos veículos. A informação não pode ser processada em um laboratório sem vida. Falta olhar nos olhos das pessoas, captar suas demandas legítimas. Gostemos ou não delas. A velha e boa reportagem não pode ser substituída por torcida.

A crise do jornalismo – e a proliferação de fake news – está intimamente relacionada com a pobreza e o vazio das nossas pautas, com a perda de qualidade do conteúdo, com o perigoso abandono da nossa vocação pública e com a equivocada transformação de jornais em produto mais próprio para consumo privado. É preciso recuperar o entusiasmo do “velho ofício”. É urgente investir fortemente na formação e qualificação dos profissionais. O jornalismo não é máquina, embora a tecnologia ofereça um suporte importantíssimo. O valor dele se chama informação de alta qualidade, talento, critério, ética.

O jornalismo precisa recuperar a vibração da vida, o cara a cara, o coração e a alma. O consumidor precisa sentir que o jornal é um parceiro relevante na sua aventura cotidiana. Fake news se combatem com informação.


O Estado de S. Paulo: Toffoli vê movimento para ‘assassinar reputações’ no País

Após abrir inquérito para investigar ameaças à Corte, ministro diz ao ‘Estado’ que ação nas redes sociais atinge ‘todas as instituições e é necessário evitar que se torne uma epidemia’

Vera Rosa, de O Estado de S. Paulo

BRASÍLIA - Um dia após anunciar a abertura de inquérito para investigar fake news, ofensas e ameaças dirigidas a integrantes do Supremo Tribunal Federal, o presidente da Corte, Dias Toffoli, disse que a tecnologia voltada para destruir a honra será combatida a todo custo. Nos últimos dias, o Supremo foi alvo de novos ataques nas redes sociais e recebeu críticas até de procuradores da Lava Jato.

“Esse assassinato de reputações que acontece hoje nas mídias sociais, impulsionado por interesses escusos e financiado sabe-se lá por quem, deve ser apurado com veemência e punido no maior grau possível”, afirmou Toffoli ao Estado. “Isso está atingindo todas as instituições e é necessário evitar que se torne uma epidemia.”

O tema também fará parte do cardápio do almoço de hoje entre os chefes dos três Poderes. A ideia foi do presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), que convidou para o encontro o presidente Jair Bolsonaro, Toffoli e o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), além de ministros.

O presidente do Supremo pretende reforçar ali sua proposta de um “pacto entre os poderes” para votar reformas consideradas fundamentais, como a da Previdência e a tributária. A escalada de agressões enviadas principalmente em correntes de WhatsApp e postagens no Twitter e Facebook preocupa a Corte em um momento de crescente tensão política. No Senado, um grupo articula a criação da “CPI da Lava Toga”, a fim de investigar possíveis excessos cometidos por tribunais superiores.

“Os ataques às instituições que vitimizam todos, incluindo a imprensa séria, são verdadeiros atentados ao estado democrático de direito”, insistiu Toffoli. “Judiciário independente e imprensa livre são as bases da democracia. Foi assim que os Estados Unidos foram construídos.” Para o ministro do Supremo Gilmar Mendes, as “milícias digitais” não são amadoras. “Precisamos melhorar o sistema de defesa a esses ataques industrializados”, comentou ele.

Uma das suspeitas que devem ser investigadas agora pela Corte é a possibilidade de haver um movimento internacional sustentando as agressões nas redes sociais, com o objetivo de desestabilizar o País. “Pode ser, eventualmente, uma hipótese para atender a indústria bélica, que há muitos anos não tem uma grande guerra como cliente”, argumentou Toffoli.

A ofensiva contra o Supremo recrudesceu às vésperas do julgamento que representou uma derrota para a força-tarefa da Lava Jato. Por 6 votos a 5, a Corte decidiu que crimes ligados à prática de caixa 2, como corrupção e lavagem de dinheiro, devem ser julgados na Justiça Eleitoral. A Procuradoria-Geral da República e os procuradores da Lava Jato queriam que as investigações ficassem a cargo da Justiça Federal.

Em um movimento lançado quase ao mesmo tempo em que aliados de Bolsonaro defendiam nas redes a reforma da Previdência, o STF foi alvo de todo tipo de xingamento. Mensagens pregando intervenção e fechamento da Corte, além da Dias Toffoli hashtag #atogacontraopovo, passaram a ser comuns, principalmente no WhatsApp.

Conduta
Sob sigilo, o inquérito determinado por Toffoli, que terá como relator o ministro Alexandre de Moraes, vai investigar até a conduta de procuradores da Lava Jato, como Deltan Dallagnol e Diogo Castor. Em vídeo postado na internet, Dallagnol conclamou a população a se posicionar contra qualquer decisão do Supremo que não fosse a defendida pela Lava Jato. Castor disse que estava em curso um “golpe” contra a operação de combate à corrupção no Brasil.

A investigação do STF é vista por procuradores como uma forma de intimidar o Ministério Público. Ainda ontem, a procuradora-geral da República, Raquel Dodge, solicitou informações sobre o inquérito a Moraes. Na sua avaliação, o caso tem potencial para comprometer a imparcialidade do Judiciário, já que a função de investigar não faz parte da competência do Supremo.

“Os fatos ilícitos, por mais graves que sejam, devem ser processados segundo a Constituição”, afirmou ela. Toffoli rebateu e disse que, além de haver previsão regimental para abertura do inquérito, o Código de Processo Penal estabelece que toda investigação deve ser supervisionada por um juiz. O ministro lembrou, ainda, que na época das eleições a Polícia Federal instaurou procedimento para investigar a disseminação de fake news referentes a candidatos à Presidência. Na ocasião, o pedido para apurar a existência de um esquema empresarial para interferir na disputa foi feito pela própria Raquel. O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) também chegou a abrir processo sobre o assunto.

“Depois que foi aberto o inquérito, a propagação de notícias fraudulentas cessou. No segundo turno não houve mais nada”, observou Toffoli, para quem a investigação também tem caráter pedagógico. “Não dá para aceitar esse tipo de coisa. Além das instituições e da sociedade como um todo, ao fim e ao cabo é a população pobre que acaba sofrendo mais as consequências.”

“Esse assassinato de reputações que acontece hoje nas mídias sociais, impulsionado por interesses escusos e financiado sabe-se lá por quem, deve ser apurado com veemência e punido no maior grau possível.”

“Os ataques às instituições que vitimizam todos, incluindo a imprensa séria, são verdadeiros atentados ao estado democrático de direito.”

Colaborou Amanda Pupo .


Cristiano Romero: Obstáculo da reforma está na desinformação

Uma das características marcantes do debate nacional é a manipulação da informação. É mais fácil “dialogar” quando o interlocutor não sabe exatamente do que se está falando. Muito antes do advento das “fake news” que se propagam feito erva daninha nas redes sociais, notícias falsas, lendas urbanas e mistificações já se disseminavam com enorme facilidade para além das conversas de bar.

A ignorância repetida como verdade, registre-se, nunca foi privilégio de pessoas com baixo acesso à educação formal e aos meios de comunicação. Nas universidades públicas, lócus do conhecimento e supostamente do livre debate de ideias, elites intelectuais, reféns do corporativismo, são contrárias às reformas de que o Brasil precisa para se tornar socialmente mais justo. Funcionam como igrejas, de um credo só, onde opiniões que questionem o status quo de seus “donos” (professores e funcionários) não são bem-vindas. Mesmo quem tem por ofício, como os jornalistas, informar da maneira mais ampla, objetiva e desinteressada possível, queda-se muitas vezes pelo caminho obscuro da desinformação. O alheamento aos problemas renitentes deste imenso país é um defeito inaceitável na conduta de quem possui o dever de informar.

A discussão urgente sobre a necessidade de o país mudar as regras de aposentadoria de seus cidadãos, principalmente dos funcionários públicos, é hoje a principal vítima da manipulação de informação, uma forma perversa de se perpetrar a desinformação. Uma sociedade mal informada é campo fértil para a sagração de populistas, demagogos e patrimonialistas.

Por que privilégios do funcionalismo não revoltam jovens da Vila?

A defesa de ampla e profunda reforma previdenciária é missão árdua em Brasília, palco das decisões nacionais. Em tese, não deveria ser tão difícil, afinal, se a reforma é para reduzir privilégios do funcionalismo público de um lado e, do outro, adequar as regras de aposentadoria dos trabalhadores do setor privado – que se aposentam pelo INSS, com piso de um salário mínimo e teto pouco acima de R$ 5 mil – à evolução da demografia, o pendor por mudanças seria determinado pelo grupo mais numeroso de brasileiros. Infelizmente, não funciona assim.

O desequilíbrio é chocante e deveria impressionar os moradores da Vila Madalena, animado bairro de classe média de São Paulo, reduto de jovens em sua maioria contrários a mudanças na Previdência e a reformas que revolucionem a vocação histórica do Estado brasileiro de destinar a maior parte de seus parcos recursos a quem menos precisa de sua ajuda (grandes empresas, estudantes de famílias abastadas, multinacionais da indústria automotiva, Estados e prefeituras mais ricos, funcionários públicos, monopólios, estatais etc).

Temas como o fim da estabilidade do funcionalismo e a cobrança de mensalidade nas universidades públicas, mudanças que poderiam ajudar a diminuir a concentração de renda reinante por aqui desde quando nos chamávamos Ilha de Vera Cruz. A razão para tanta conversa fiada é uma só: desinformação. Junte-se a isso a velha prática da esquerda brasileira de defender slogans antes de conhecer as ideias que os justifiquem e pronto: o debate será sempre torto e, portanto, inútil, o que contribui decisivamente para o país ter dezenas de milhões de pessoas vivendo em regime de miséria absoluta e outras dezenas de milhões em estado de pobreza imobilizante.

Os números da Previdência em 2018 foram os seguintes:

1) contabilizando o que todos – trabalhadores e patrões – contribuímos para o INSS e as despesas com pagamento de aposentadoria, pensões e benefícios assistenciais, faltaram R$ 195,19 bilhões. Este foi o déficit da Previdência Social, que se refere a um universo de cerca de 30 milhões de pessoas, entre aposentados, pensionistas e beneficiários de programas assistenciais;

2) a outra parte da conta está nos regimes próprios de previdência do funcionalismo federal e dos militares, um contingente de aproximadamente um milhão de pessoas. Neste caso, a conta também não fecha: entre o que servidores e militares contribuíram em 2018 para a aposentadoria e o que os aposentados e pensionistas receberam, o saldo, negativo, chegou a R$ 46,4 bilhões entre os civis, R$ 43,9 bilhões no caso dos militares e a R$ 4,8 bilhões entre funcionários do Distrito Federal, cujos benefícios ainda são pagos pela União. Total: R$ 95,1 bilhões, R$ 10 bilhões acima do rombo de 2017.

Assim, o déficit total da Previdência no último ano somou a incrível cifra de R$ 290,3 bilhões, R$ 20 bilhões a mais que no ano anterior. Se faltou dinheiro, como o Tesouro Nacional cobriu a conta? De duas formas, como se vem fazendo há muitos anos: tomando dinheiro emprestado no mercado a juros altos e cortando gastos de outras áreas, como educação, saúde e segurança pública, além de investimentos onde o Estado é demandado.

A área que mais perde é a saúde e apenas esse fato deveria ser suficiente para mobilizar o pessoal da Vila Madalena, preocupado com os rumos da nação. Muitos não ligam uma coisa à outra, mas por que o Brasil melhora a passos de cágado os indicadores de saúde e educação de sua população? Claro, o problema não é só falta de recursos, mas isso explica uma boa parte do problema. O fato é que, enquanto não houver uma solução de médio e longo prazos para as contas Previdência, o Brasil terá sempre mania de grandeza, em vez de grandeza.

No debate, alguns alegam que uma parte da conta – os benefícios assistenciais não contributivos, como o abono salarial – deveria estar fora do déficit, e que este deveria refletir apenas o saldo entre contribuições e despesas. É um argumento razoável, mas é preciso ponderar que a Constituição de 1988 introduziu o conceito de seguridade, inspirado no modelo espanhol e que vai além da Previdência. O que está por trás desse modelo é a ideia de que todos – cidadãos e empresas – devemos contribuir para melhorar a vida de quem tem menos oportunidade, parte da visão de que uma sociedade com menos desigualdades é melhor para todos. De toda forma, retirar as despesas assistenciais não acabaria com o déficit.


Pedro Doria: 2018, o ano em que a mentira predominou

A polarização não corresponde à batalha de ideias na sociedade. Não há disputa ideológica entre esquerda e direita. Ou, ao menos, não só.

Tudo fica muito difícil quando o diagnóstico está errado. E, na bagunça que foi este ano de 2018, entre algoritmos, redes sociais, polarização e notícias falsas, vivemos em essência um problema de diagnóstico errado.

Este foi o ano em que a mentira predominou. Não foi só de um lado.

O estado de confusão política no qual nos metemos começa antes das mentiras - começa numa sensação de inimizade que vem da polarização. Polarização falsa, pois não corresponde à batalha de ideias que corre na sociedade. Não há uma disputa ideológica entre esquerda e direita. Ou, ao menos, não só.

A classificação que divide o conjunto de ideias entre esquerda e direita vem de como se sentavam os parlamentares na Convenção Nacional francesa de 1792. É útil, por vezes. Hoje, atrapalha. Porque a disputa em curso se dá não entre dois, mas três grupos. E ao não classificar um destes três, tudo se confunde, tudo se mistura, e da falta de clareza nasce a mentira.

Está em ascensão uma direita conservadora de corte nacionalista. Ela toma emprestado um discurso econômico liberal, mas na verdade desconfia do liberalismo. Não acredita nos mercados livres entre nações, combate iniciativas multilaterais. Se define ‘antiglobalista’. Tampouco acredita na liberdade do indivíduo de tomar decisões a respeito de seu corpo ou vida. É, em essência, antiliberal.

Como é antiliberal a esquerda que ainda enxerga o mundo por lentes criadas nos anos 1930 para resolver problemas de outra crise. Ainda foca na indústria de coisas como se a riqueza, hoje, não fosse conhecimento na forma de software e serviços. Como se a internet não houvesse alterado a estrutura do trabalho, tornando obrigatório que se repense do zero todas as regras.

Conservador, na acepção pura da palavra, no sentido de que pretende manter as coisas como eram, são ambos. E ambos se opõem àquele conjunto de ideias que Bill Clinton, Tony Blair e, por aqui, Fernando Henrique, encamparam, entre erros e acertos, nos anos 1990. À esquerda interessa chamar a direita de liberal. À direita interessa se autoproclamar liberal como rebranding. Mas se nem esquerda, nem direita, defendem o mercado global, quem é que o faz? E quem, afinal, está olhando para o mundo como ele é, com os desafios nada triviais que o digital nos impõe? Não é a guerra comercial de Donald Trump, tampouco a adoração de um pacote de leis da era industrial, que vão dar conta da realidade.

A dicotomia PT contra Bolsonaro faz parecer que ou se está com um, ou com outro, e torna ideologicamente inclassificável um imenso grupo de pessoas. Quando não temos uma palavra para chamar uma coisa, é como se ela não existisse. O roubo do termo liberal pela direita, que muito interessa à esquerda, cala uma voz e implanta confusão. Ninguém se entende, porque diferenças não são percebidas. E quando alguém faz um discurso mais claro, afastando-se de ambos os grupos, logo alguém saca: ‘isentão’.

Isento, não. Diferente. Muito diferente. O sequestro da palavra faz com que grupos que não concordam em quase nada pareçam estar próximos. E desta imensa bagunça, no qual o nome das ideologias é propositalmente confundido, nasce o caldo de cultura em que fake news podem se proliferar.

Temos um problema de má classificação. Há três conjuntos de ideias disputando espaço, os três incompatíveis entre si. A polarização está confundindo o debate, e num debate político confuso nunca se sabe com precisão o que é que cada um pensa.

Quando as ideias não são claras, qualquer notícia falsa tem a chance de colar. Democracia, aquele regime cujo sobrenome é ‘liberal’, só funciona quando o debate é claro. E é da confusão de diagnósticos que nascem soluções irreais, aquele atalho para o autoritarismo.


Política Democrática: Tudo pode ser o oposto do que aparenta, diz Martin Cezar Feijó

Em artigo publicado na revista Política Democrática online de dezembro, professor explica reflexos da sociedade do espetáculo

Por Cleomar Almeida

Na sociedade do espetáculo, tudo é possível, tudo se mistura, e tudo pode ser o oposto do que aparenta. A avaliação é de Martin Cezar Feijó, em artigo publicado na revista Política Democrática online de dezembro. Segundo ele, “os mitos passam a ser criados para explicar o surgimento nas sociedades do que chamamos de cultura”, observa ele, que é professor de comunicação comparada na Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP).

» Acesse aqui a edição de dezembro da revista Política Democrática online

Produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), vinculada ao Partido Popular Socialista (PPS), a revista mostra, no artigo de Feijó, “as narrativas míticas antecipam a poesia, que se sofistica, tendo em Homero seu primeiro autor reconhecido como tal na cultura ocidental. Um trovador, um bardo, um aedo”, escreve ele, que também é historiador e doutor em comunicação pela USP (Universidade de São Paulo).

No artigo, Feijó observa que a preservação de Ilíada e Odisséia teria sido através de aedos. “O registro escrito da obra de Homero só ocorreu no período clássico grego (século V a.C.), em pleno nascimento do regime político conhecido como democracia. Nascia a literatura como registro escrito de uma ficção. O que foi chamada de poesia, artefato criado, inventado, musicado”.

E ele continua: “De Homero a Bob Dylan, a literatura se transformou em teatro, ainda na Grécia clássica, em poesia na Idade Média, com Dante Alighieri realizando uma obra fun- damental, a Divina Comédia”, afirma o professsor. “O teatro tem na figura de William Shakespeare seu grande bardo, seu grande trovador, com suas tragédias e comédias decisivas. E um contemporâneo seu: Cervantes, de Dom Quixote de la Mancha”, acrescenta.

Em outro trecho, o historiador observa que o século XX foi prodigioso no desenvolvimento de várias formas de expressão. Ele cita, por exemplo, que a música erudita se tornou atonal, o teatro se tornou épico com Bertolt Brecht e a poesia conheceu o russo Maiakóvski, em quem a anatomia enlouqueceu. “O cinema se tornou sonoro, o mundo se complicou, e uma segunda guerra mundial transformou o mundo em todos os sentidos”, analisa.

De acordo com o professor, após a Segunda Guerra Mundial (1939- 1945), surgem as condições para o desenvolvimento de uma cultura pop, de uma música eletrificada por guitarras e cantos que remetem a uma música primitiva, modal, de batidas e de letras complexas. “Nasce o rock a partir de rit- mo e do blues, em diálogo com o folk, a cultura popular em sua origem, buscan- do popularizar a música através de um suporte fabricado do vinil”, acentua.

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Política Democrática: ‘Bolsonaro foi deputado de inexpressiva atuação em quase 30 anos de mandato’, diz Marina Silva

Em artigo publicado na revista Política Democrática online de dezembro, a ex-senadora avalia como a falência do modelo político brasileiro provocou a eleição do candidato do PSL à Presidência da República

Por Cleomar Alemeida

A falência do modelo político brasileiro, com as principais forças políticas representadas pelo PT e PSDB, levou à eleição de Jair Bolsonaro à Presidência da República, na avaliação da ex-senadora Marina Silva (Rede). Em artigo publicado na revista Política Democrática online de dezembro, ela ressalta que, até se eleger para o maior posto do Executivo brasileiro, Bolsonaro foi um “deputado de inexpressiva atuação em quase 30 anos de mandato.

» Acesse aqui a revista Política Democrática online de dezembro

“Foi justamente a falência do modelo político brasileiro, a meu ver, que possibilitou a eleição de Jair Bolsonaro, deputado do chamado ‘baixo clero’ de inexpressiva atuação em quase 30 anos de mandatos”, destacou Marina Silva, que também é ambientalista. “Essa falência não se deu de um dia para outro. Desde a redemocratização, as principais forças políticas representadas pelo PT e pelo PSDB, dois partidos da social-democracia que foram incapazes de produzir um alinhamento político mínimo que fosse”, afirmou.

No artigo, Marina Silva acentua que PT e PSDB “travaram uma guerra sem tréguas, em que a conquista e a manutenção do poder se sobrepunham aos interesses mais legítimos da sociedade brasileira, e se aliaram com a direita para governarem”. “O Brasil necessitava que se sentassem à mesa para construírem uma plataforma de governo conjunta, ou uma agenda básica de reformas, ou, no mínimo, um acordo para manter regras num jogo saudável da oposição democrática e civilizada. Ao contrário, protagonizaram ao longo de duas décadas uma polarização política destrutiva que acabou favorecendo a emergência de projetos autoritários que ameaçam a democracia”, disse.

Na avaliação da ex-senadora, o PT, que ela chama de “polo vencedor da disputa”, acabou assumindo e representando todo o sistema político. “Fica a ponto de gerar nova polarização: no lugar de PT x PSDB, revelou-se luta de morte PT x Anti-PT. O principal ponto de inflexão na formação de um crescente sentimento antipetista foi a revelação de que o partido, que nasceu para defender os mais pobres e a ética na gestão pública, após 14 anos no poder, era o protagonista dos maiores escândalos de corrupção da história do Brasil, como o Mensalão e o Petrolão, além de diversos outros”, ponderou.

Em outro trecho, Marina Silva observou que “as forças conservadoras que deram sustentação à candidatura de Bolsonaro são numerosas e enraizadas na história e na sociedade brasileira”. “Destacam-se aqui parcelas expressivas dos militares, agronegócio, elite financeira e empresarial e segmentos religiosos. Vale atentar para que diz o professor Eduardo Viola, da UnB, sobre a base religiosa que aderiu fortemente à candidatura de Bolsonaro: para além das questões ligadas a valores e costumes morais, este segmento tem maior aderência a uma visão econômica mais liberal, na qual a lógica do esforço pessoal e do mérito individual é mais bem-aceita que a ênfase na dependência da ação do Estado e da caridade alheia”.

No artigo, a ex-senadora avaliou o uso de rede social pelo presidente eleito. “Ficou internacionalmente conhecido o uso massivo de redes sociais, especialmente do WhatsApp, onde a campanha de Bolsonaro propagava em escala industrial as chamadas fake news contra os demais candidatos. Por sua relevância, essa estratégia, capaz de dar grande vantagem eleitoral, exige uma análise à parte, que, aliás, vem sendo feita em nível internacional, pois está na base da eleição de Trump, no Brexit e outros episódios de relevância mundial”.

 

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Carlos Blanco de Morais: Redes sociais vs. media profissional - “Vídeo, mentiras e hate speech”

Se o trollismo retira qualidade à democracia, a censura por interposta pessoa asfixia-a de morte lenta 

Na última década criou-se o mito de que a chamada “democracia digital”, tecida pelas redes sociais, iria oxigenar uma democracia representativa em crise. Com as redes teria nascido um universo de opinião influente, novos controlos difusos ao poder político e um diálogo direto entre governantes e governados (Saskia Sassen). A “democracia digital” modernizaria a “democracia deliberativa” de Habermas, legitimando decisão política pelo debate.

No pico de um ciclo de entusiasmo, em que alguém defendeu que o Twitter deveria receber o Nobel, alguns céticos como Evgeny Morozov alertaram para a manipulação das redes por ditaduras ou serviços secretos de grandes potências. Outros, como Vallespin, observaram que sendo numerosas as informações falsas, muitos cidadãos conviveriam bem com essa falsidade para fulminar adversários. Na verdade, a “democracia digital” pouco teria de democrático, sendo antes uma manifestação do pluralismo social e político ampliada por uma tecnologia neutra, sendo possível usar o ciberespaço, tanto para derrubar ditaduras como para permitir a estas perseguir adversários; tanto para denunciar a corrupção como para dessacralizar o poder; e tanto para defender as liberdades como para violar o direito à privacidade.

Em 2016, tudo mudou na “lua de mel” do establishment político e dos media com as redes sociais quando estas migraram das primaveras árabes ou do movimento “Occupy” para a direita populista. Com o impacto das redes no triunfo do “Brexit”, de Trump, de Putin, dos partidos populistas europeus e agora com Bolsonaro no Brasil, deflagrou a pandemia do trollismo (inspirado no troll, um mostrengo das lendas célticas), e que consistiria na queda das redes sociais nas mãos dos que postam notícias falsas e discursos de ódio. Ora a associação do trollismo à direita populista foi feita pelos media do mainstream depois do êxito de Trump e Bolsonaro que, frente a uma media hostil, usaram as redes para comunicarem com os eleitores, sem filtragem jornalística.

O trollismo no ciberespaço ameaça a democracia? Para os media profissionais, o trollismo ameaçaria a democracia porque as redes seriam manipuladas por forças ultraconservadoras para difundir fake news e hate speech (discurso de ódio), substituindo uma comunicação social isenta por uma informação alienante do eleitor. Embora acompanhemos Morozov no seu ceticismo sobre as virtudes das redes, entendemos que o trollismo não tem um único viés ideológico.

As campanhas norte americana e brasileira demonstram que as fake news proliferaram à esquerda e à direita. Se na eleição de 2016 nos EUA eram falsas as notícias sobre a doença grave de Hillary Clinton e a sua substituição por um duplo, também foi falsa a notícia de que apoiantes de Trump teriam gritado num comício “odiamos muçulmanos, odiamos negros, queremos o nosso País de volta em 2018”. Também no Brasil, não havendo dúvida que a direita lançou uma campanha violenta contra o PT nas redes, não é menos verdade que foram desmontadas como falsas as notícias de que partidários de Bolsonaro teriam assassinado um conhecido capoeirista da Baía e gravado uma suástica na pele de uma jovem. Fake news e hate speech não têm marca ideológica exclusiva.

Tão pouco o trollismo põe em causa a democracia. A censura ameaça a democracia porque impede a liberdade de expressão e o acesso à informação, em tempo eleitoral. O trollismo é, ao invés, um abuso censurável dessa liberdade de expressão, que se contraria através da sua denúncia nas redes, nos media e em observatórios e se pune nos tribunais quando incita ao crime. É certo que afeta a qualidade da democracia quando condiciona uma fatia elevada do eleitorado, se bem que tal suceda também com as sondagens eleitorais falhas ou manipuladas (que ninguém põe em xeque já que são usadas pelos media).

Redes vs. imprensa profissional. Os media profissionais generalistas, sem prejuízo de criarem jornais digitais que interagem com redes sociais, contrapõem a estas os seus pergaminhos de liberdade, rigor e isenção. E é um facto que uma sociedade livre supõe uma imprensa profissional, pois esta tem uma maior exigência na filtragem de notícias, na acuidade dos conteúdos e na sua controlabilidade. Mas seria uma fábula erigi-la a guardiã sacra da verdade e da privacidade e isentá-la do pecado do hate speech.

A violação da privacidade e do bom nome é feita quotidianamente em media prestigiados, como a CNN, que dedicou um painel de discussão sobre as partes íntimas de Trump. Isenção, equidistância e rejeição do “discurso de ódio” é algo que também faltou quando a maioria dos media americanos ergueu uma “firewall” contra Trump em plena campanha eleitoral; quando na CNN o Presidente é chamado de racista, animal ou nazi; ou quando o editor do Die Zeit alemão escreveu que para se evitar a catástrofe populista se imporia um assassinato na Casa Branca.

No Brasil, os media largaram uma maré de notícias falsas ou não comprovadas, como as de que Bolsonaro teria ameaçado de morte a ex-mulher; que teria votado no Congresso contra deficientes; e que haveria financiamento ilegal da sua campanha com propaganda massiva, robotizada no WhatsApp.

Há muito que os media profissionais formam consciências. Hoje, são forçados a sobreviver com encargos salariais, oscilações de tiragem ou audiências, concorrendo com as redes, que são veículos informativos incontroláveis e de baixo custo onde muitos cidadãos, bem ou mal, fazem, com um clique, uma escolha da informação do seu agrado, a partir do Facebook ou do WhatsApp. A vitória, para muitos imerecida, de populistas, operada pela comunicação em rede, foi inesperada e amarga, pois significou não apenas a derrota do establishment político, mas também a da media profissional que tenazmente se lhes opôs.

Hoje, os temores reais dos partidos tradicionais e dos media, ante o provável avanço populista nas eleições europeias de 2019, criaram a tentação de restringir a liberdade de expressão nas redes. Só que, em democracia, cada pessoa é livre de aceder às notícias que deseja e no formato que entenda, tanto as fidedignas como as radicalizadas e até disparatadas que os algoritmos indicam ser da sua preferência. Essa liberdade, mesmo que menos esclarecida, não pode ser suprida por um Big Brother, pois terminou o tempo em que os media proclamam: “nós decidimos o conteúdo e vocês lêem.”

É certo que o ciberespaço, pelo seu relevo político e securitário, não pode ser uma “terra sem lei”, devendo haver regulação. Só que é duvidoso que a mesma possa ter como paradigma a Lei Alemã (NetzDG de junho de 2017), que tornou as firmas gestoras das redes, sob pena de pesadas multas, responsáveis pela remoção de conteúdos “ilícitos”, como fake news e hate speech (que passou a ser entendido num sentido perigosamente lato), gerando um sistema de censura indireta, como é o caso do Facebook que contratou um exército de “moderadores”. Ora, se o trollismo retira qualidade à democracia, a censura por interposta pessoa asfixia-a de morte lenta.