facismo
Alvaro Bianchi: O Maquiavel de Mussolini
No início do século 20, as correntes nacionalistas italianas que depois confluiriam no fascismo procuraram reivindicar as ideias de Nicolau Maquiavel
Como um expoente da cultura nacional e um teórico do Estado-força. O intelectual que deu forma a essa operação foi Francesco Ercole, futuro reitor da Universidade de Palermo e ministro da Educação da Itália fascista. Em seu livro de 1917, Lo Stato nel pensiero di Niccolò Machiavelli [O Estado no pensamento de Nicolau Maquiavel], Ercole inseria as ideias do secretário florentino no próprio processo de construção do Estado italiano, apresentando-o, desse modo, como um precursor do elitismo e do nacionalismo.
A chave dessa primeira leitura de Ercole estava na redução que promovia do conceito maquiaveliano de virtù à energia da vontade e à força, consideradas substâncias vivas do Estado. O futuro professor de Palermo achava, entretanto, necessário distinguir uma virtù passiva, capaz de fundar e reordenar o Estado, de uma virtù ativa, a qual dá forma ao povo e à coletividade, permitindo, desse modo, manter o Estado. De acordo com Ercole, essa virtù ativa não seria atributo coletivo, e sim individual, “isto é, de apenas um indivíduo, ou, no máximo de um número restrito de indivíduos”.
O caráter fortemente elitista e autoritário desse discurso ficaria evidente nos escritos que Ercole publicou na década de 1920 na revista Politica, dirigida pelos fascistas Alfredo Rocco e Francesco Coppola, depois reunidos no livro La politica di Machiavelli, de 1926. Nesses textos, Maquiavel era mobilizado para combater o liberalismo individualista e alinhar-se com uma concepção orgânica da política na qual os interesses individuais e egoístas seriam subordinados a uma vontade moral encarnada no Estado.
Os artigos de Ercole influenciaram diretamente Benito Mussolini, o qual desejou escrever uma tese de láurea que deveria ser apresentada durante uma planejada homenagem na qual receberia o título de doutor honoris causa da Universidade de Bolonha. Ao encontrar Ercole, então reitor da Universidade de Palermo, em maio de 1924, il duce o abraçou e contou seu projeto: “Estou estudando os escritos sobre Maquiavel que você publicou na Rivista Politica. São muito úteis para a tese que estou preparando”. Muito embora o chefe de governo tivesse pensado até no título – Vademecum per l’uomo di governo [Vademecum para o homem de governo] –, a tese não foi finalizada.
Seu prefácio, entretanto, foi publicado pela revista Gerarchia em abril de 1924, com o título Preludio al Machiavelli. Mussolini pretendia encontrar em Maquiavel um contemporâneo e um conselheiro do fascismo htttps://revistacult.uol.com.br/home/tag/fascismo). Do florentino, il duce destacava sua forte percepção negativa a respeito da natureza humana: “homens, segundo Maquiavel, são tristes, mais afeiçoados às coisas que ao próprio sangue, prontos a mudar sentimentos e paixões”. Essa natureza egoísta tornaria o povo incapaz de produzir uma ordem política. Mussolini lia Maquiavel com os olhos de Gustave Le Bon, para quem a multidão de indivíduos “inconscientes e brutais” é capaz de destruir civilizações mas não de construir uma. Esse juízo, para o autor do Preludio, continuaria válido contemporaneamente.
Desse diagnóstico da natureza humana, Mussolini deduzia uma oposição entre o povo e o príncipe, os indivíduos e o Estado. Se uma multidão de indivíduos submetidos às próprias paixões produziria a desordem e o caos, caberia ao Estado promover a ordem e acabar com a anarquia. Os indivíduos tenderiam “a desobedecer às leis, a não pagar os impostos, a não fazer a guerra”. O Estado deveria obrigá-los a agir de modo adequado. O conceito de política que organizava o Preludio inspirava-se nas ideias de Francesco Ercole e não ocultava seu caráter autoritário: “política é a arte de governar os homens, isto é, de orientar, utilizar, educar suas paixões, seus egoísmos, seus interesses, em vista de questões de ordem geral”, escrevia il duce. Para Mussolini, a ideia de que o poder do Estado é uma emanação livre da vontade do povo, pedra angular do liberalismo, não passava de ficção e ilusão. Sem o Estado, nem sequer existiria esse ente denominado povo, apenas uma multidão de indivíduos.
O Preludio al Machiavelli era um prefácio à fascistização do regime político italiano, o que de fato ocorreria poucos meses depois. A abertura do texto já expunha seu argumento. Mussolini narrava ter conhecido uma pessoa das legiões negras de Ímola, a qual possuía uma espada com um dístico atribuído a Maquiavel: “Com palavras não se mantêm os Estados”. A oposição entre o povo e o Estado encontraria solução apenas no uso da força e da coerção: “É, portanto, imanente […] o dissídio entre a força organizada do Estado e a fragmentação dos indivíduos e dos grupos. Regimes exclusivamente consensuais nunca existiram, não existem, provavelmente nunca existirão”.
A consolidação do fascismo
O Preludio mussoliniano reabriu a polêmica sobre o legado de Maquiavel na Itália. A qualidade da literatura produzida nesse contexto variou muito. Giuseppe Prezzolini, por exemplo, concluiu seu livro Vita di Nicolò Machiavelli fiorentino (1927), transformando seu personagem principal em um contemporâneo, o qual teria procurado “dar bons conselhos a [Francesco] Crispi, do qual gostava de seu espírito autoritário e de seus lances arriscados, mas por quem nem sempre foi ouvido.
Preparou para [Antonio] Salandra a declaração de guerra contra a Áustria e acompanhou [Benito] Mussolini em sua Marcha sobre Roma”. No mesmo ano, Luigi Russo escreveu duas notas sobre Maquiavel, nas quais, embora não citasse Mussolini, criticava explicitamente as interpretações dos fascistas Giovanni Gentile e Francesco Ercole. Em 1931, foi a vez de Russo publicar seus Prolegomeni a Machiavelli e uma antologia de escritos maquiavelianos que organizou. O sucesso editorial dos textos de Russo despertou a ira das autoridades fascistas e o próprio Francesco Ercole, na época ministro da Educação, proibiu a divulgação daquela antologia nas escolas italianas.
Nesse ínterim que vai do Preludio de Mussolini aos Prolegomeni de Russo, o regime fascista havia se consolidado. Em 10 de junho de 1924, o deputado socialista Giacomo Matteotti foi sequestrado e assassinado por uma squadra fascista. Seu corpo foi encontrado apenas em 16 de agosto. O envolvimento de Mussolini no episódio era evidente. Seguiu-se uma grave crise política, que pôs o governo fascista em sério risco. Em meio à intensa polêmica que envolveu o chamado delitto Matteotti, Mussolini acabou por rejeitar o título de honoris causa. Todas as solenidades já haviam sido, entretanto, preparadas pelas autoridades universitárias e o diploma emitido, mas ele nunca foi assinado nem entregue ao homenageado.
Apenas a partir de 3 de janeiro de 1925, com seu discurso no Parlamento, Mussolini retomou o controle da situação e lançou a contraofensiva, encerrando a crise política que se arrastava desde o assassinato de Matteotti. Mais tarde, com as chamadas “leis fascistíssimas” de 1925 e 1926, promoveu uma enorme restrição das liberdades políticas e civis, consolidando um novo regime fascista e mandando para a cadeia seus opositores. Com o novo regime, realizava-se a virtù ativa, preconizada por Ercole, e a multidão de indivíduos era finalmente submetida à força do chefe de Estado.
A ideia de um Maquiavel fascista é evidentemente anacrônica. A ideia de estados (stati, no original, com letra minúscula), que abre O príncipe, é fortemente pré-moderna e muito mais ambígua do que Mussolini dá a entender. E, se o florentino em vários momentos de sua obra identificou o estado com o príncipe, ele também o identificou com o povo que governa na República – em especial com o povo que governava sua amada Florença, antes de os Medici a subjugarem. Mas o Maquiavel de Mussolini não poderia ser popular. Para tornar-se partidário do fascismo, antes foi preciso que ele fosse convertido à força em elitista autoritário.
*Alvaro Bianchi é doutor em Ciências Sociais pela Unicamp e professor livre-docente da mesma instituição.
BBC Brasil: 100 anos do fascismo - 'O perigo atual é que democracia vire repressão com apoio popular', diz historiador
Existe o perigo de um retorno do fascismo no mundo?
Quando questionado sobre o assunto, o historiador Emilio Gentile, considerado na Itália o maior especialista vivo sobre o fascismo, dá uma resposta contundente: "Absolutamente, não".
No entanto, nos últimos tempos, os presidentes dos Estados Unidos, Rússia, Brasil, Hungria e muitos outros líderes políticos das Américas e da Europa foram rotulados como fascistas por suas políticas de imigração ou por seu nacionalismo. Mas é correto definí-los assim?
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Gentile conhece profundamente o fascismo, porque dedicou toda sua vida acadêmica a analisá-lo.
Este movimento político nasceu oficialmente na noite de 23 de março de 1919, quando Benito Mussolini (1883-1945) fundou em Milão o grupo Fasci Italiani di combattimento.
O grupo reuniu ex-combatentes da Primeira Guerra Mundial, um conflito que deixou a Itália, como quase toda a Europa, mergulhada em uma profunda crise política, econômica e social.
Depois de alguns anos, Mussolini chegou ao poder graças ao apoio do rei Victor Emmanuel 3º, de grandes empresários e do Vaticano, bem como por meio do uso da violência.
Em 1925, ele assumiu o controle de todos os poderes do Estado e transformou um regime parlamentar e democrático em um Estado totalitário regido pela total falta de liberdades individuais, políticas, organizacionais e de pensamento.
Mas isso não significou a derrota do fascismo como ideologia política, que permanece viva em muitos movimentos da extrema direita. Mas o que é exatamente o fascismo?
O historiador Stanley G. Payne afirmou em um de seus vários estudos sobre o assunto que "continua sendo o mais indefinido dos termos políticos mais importantes". Cem anos após sua aparição na história, conversamos com Gentile sobre o tema.
BBC News Mundo - Sobre o que falamos quando falamos de "fascismo"?
Emilio Gentile - Devemos distinguir entre o fascismo histórico, que é o regime que, a partir da Itália, marcou a história do século 20 e se estendeu à Alemanha e a outros países europeus no período entre as duas guerras mundiais, e o que é freqüentemente chamado de fascismo depois de 1945, que se refere a todos aqueles que usam da violência em movimentos de extrema direita.
BBC News Mundo - Quais são as diferenças entre as duas definições?
Gentile - Há uma diferença substancial, porque vários movimentos de extrema direita já existiram antes do fascismo e não geraram um regime totalitário.
BBC News Mundo - O que se entende por "extrema direita"?
Gentile - Qualquer movimento que se oponha aos princípios da Revolução Francesa de igualdade e liberdade, que afirma a primazia da nação, mas sem necessariamente ter uma organização totalitária ou uma ambição de expansão imperialista. Sem o regime totalitário, sem a submissão da sociedade em um sistema hierárquico militarizado, não é possível falar de fascismo.
BBC News Mundo - Então, quando se pode falar de "fascismo"?
Gentile - Podemos falar de fascismo ao nos referir ao fascismo histórico, quando um movimento de massas organizado militarmente tomou o poder e transformou o regime parlamentar em um Estado totalitário, ou seja, em um Estado com um partido único que procurou transformar, regenerar ou até criar uma nova raça em nome de seus objetivos imperialistas e de conquista.
BBC News Mundo - Isto é, somente quando nos referimos a esta experiência específica?
Gentile - Sim, para o período histórico entre as duas guerras mundiais, quando ainda havia a vontade de conquistar e se expandir imperialmente por meio da guerra. Se estas características ainda estivessem presentes hoje, poderíamos falar em fascismo. Mas me parece completamente impossível. Mesmo aqueles países que aspiram a ter um papel hegemônico procuram fazer isso por meio da economia, e não da conquista armada.
BBC News Mundo - O senhor acha que existe o perigo de um retorno do fascismo?
Gentile - Não, absolutamente, porque na história nada volta, nem de um jeito diferente. O que existe hoje é o perigo de uma democracia, em nome da soberania popular, assumir características racistas, antissemitas e xenófobas. Mas em nome da vontade popular e da democracia soberana, que é absolutamente o oposto do fascismo, porque o fascismo nega totalmente a soberania popular. Esses movimentos, no entanto, se definem como uma expressão da vontade popular, mas negam que este direito possa ser estendido a todos os cidadãos, sem discriminações entre os que pertencem à comunidade nacional e aqueles que não.
BBC News Mundo - Donald Trump, Vladimir Putin, Jair Bolsonaro, Viktor Orbán e outros líderes políticos foram chamados de fascistas por suas políticas de imigração ou seu nacionalismo. É correto defini-los assim?
Gentile - Se afirmamos isso, poderíamos dizer então que todos são homens e brancos. Mas, ao mesmo tempo, não entenderíamos a novidade destes fenômenos. Não se trata de aplicar o termo "fascista" para todos os contextos, mas de entender quais são as causas que geraram e fizeram proliferar estes fenômenos. Em todos esses países, esses movimentos extremistas se afirmaram com base no voto popular.
BBC News Mundo - O senhor acha então que a palavra "fascismo" está sendo abusada para definir estes governos?
Gentile - Na minha opinião, é um grande erro, porque não nos permite compreender a verdadeira novidade destes fenômenos e o perigo que eles representam. E o perigo é que a democracia possa se tornar uma forma de repressão com o consentimento popular. A democracia em si não é necessariamente boa. Só é boa se realiza seu ideal democrático, isto é, a criação de uma sociedade onde não há discriminação e na qual todos podem desenvolver sua personalidade livremente, algo que o fascismo nega completamente. Então, o problema hoje não é o retorno do fascismo, mas quais são os perigos que a democracia pode gerar por si só, quando a maioria da população - ao menos, a maioria dos que votam - elege democraticamente líderes nacionalistas, racistas ou antissemitas.
Eugênio Bucci: A mentira na política e o ideário fascista
Ou a sociedade civil se levanta ou as piadas de mau gosto ganharão a fisionomia do horror
Antes de tratar da mentira devo dissipar eventuais impressões de que alguém aqui vá falar como dono da “Verdade”. Nem a filosofia detém a propriedade da “Verdade”, que lhe foge como nuvem nas rarefações da metafísica. A ciência também não pontifica sobre a “Verdade”. Uma conclusão científica tem crédito não por ser perfeita ou inabalável, mas por ser falível; só vai vigorar por ser falha e só vai prevalecer até que sua falha seja demonstrada. Confiar na ciência é confiar num método, não numa “Verdade”. Bem sabemos que, por vezes, a ciência se desvia e seus representantes começam a falar como se fossem profetas, mas aí a razão se perde e o discurso da ciência vira um dispositivo de poder para interditar o pensamento. É a treva.
De sua parte, a política, também ela, já se deu conta de que não tem como apresentar respostas para a questão da “Verdade”. Quando tentou, a história não terminou bem. Os iluministas do século 18 prometiam que a opinião pública faria emergir a “Verdade”, que brotaria dos subterrâneos da fome. Depois deles, na Rússia czarista do início do século 20, os bolcheviques vieram com um jornalzinho chamado Pravda (nada menos que “a verdade”, em russo). Deu no que deu. Os iluministas perderam a cabeça. Os bolcheviques, a alma. De minha parte, portanto, não sou candidato a ser dono de nenhuma “Verdade” grandiosa. Nem dono, nem inquilino.
Feito o preâmbulo obrigatório, vamos ao que interessa: mesmo sem saber o que é a “Verdade”, cada um de nós sabe muito bem apontar a mentira na política. Não precisamos da ajuda de filósofos ou de cientistas nesse campo. A natureza e a cultura já nos deram as faculdades e as habilidades necessárias para identificar os fatos objetivos. Sabemos dizer se é noite ou se é dia, sabemos comprovar se faz frio ou calor e, coletivamente, aferimos se há crianças sem escolas, se faltam remédios em hospitais e se homens e mulheres não encontram empregos. Aqui não falamos mais de uma “Verdade” celestial e perpétua, mas da simples e comezinha “verdade dos fatos”, ou a verdade factual. Trata-se de uma verdade “menor” (conforme nos ensina Hannah Arendt), mas, mesmo “menor”, faz a maior diferença.
Por sabermos o que são fatos objetivos, sabemos apontar a indústria da mentira. Sabemos que é mentirosa essa conversa de que o nazismo é de esquerda. Sabemos que mente quem diz que a tomada do poder pelos militares em 1964 não foi um golpe de Estado e que no IBGE se usam metodologias fajutas. Acima disso, sabemos que todas essas mentiras não são infâmias isoladas, pronunciadas por alguém que aposta na polêmica. Associadas umas às outras, elas cumprem um papel que não é gratuito, nem casual, nem humorístico: servem para desmoralizar os direitos humanos, a cultura da paz e a normalidade institucional numa democracia. Vieram a público para promover um ideário, hoje anacrônico, tosco e iletrado, mas renitente: o ideário do fascismo (a palavra é chata, mas não há outra).
Os indícios estão postos. Estão aí os discursos que tentam inventar um passado de glórias contra inimigos inexistentes. Estão aí as narrativas heroicas que enaltecem a banda mais animalesca da ditadura militar, aquela que torturava adolescentes, matava opositores e censurava as artes e a imprensa (este jornal, inclusive). Aí está o ódio explícito aos jornalistas disseminado sob o patrocínio do Palácio do Planalto. Estão aí as campanhas de moralização violenta dos costumes, que elegem o universo masculino como ideal de mando e elogiam a docilidade feminina como selo de obediência. (Na Itália de Mussolini o homem era instado a ser “marido, pai e soldado”.)
Está aí a militarização dos signos da República – ou a estetização do Estado pelo figurino da caserna. Está aí, declarada, a meta de transformar as escolas em extensão dos quartéis e de reescrever a história da ditadura nos livros escolares. Está aí a vinculação orgânica entre gangues (ou milícias) e os propagandistas do bolsonarismo: o palavreado, a indumentária e o gestual furibundo dos milicianos pautam o estilo meio pistoleiro dos “influenciadores digitais” da direita inculta. Está aí o desprezo bonapartista com que o chefe do Executivo trata o Parlamento. Estão aí os insultos difusos contra o Judiciário.
Está aí a sujeição da política externa a slogans fundamentalistas que atropelam o interesse nacional. Está aí a vilanização da política a pretexto de combater o “crime organizado”. Está aí um Poder que se atribui o monopólio sobre os símbolos nacionais, que se julga sinônimo da nação e banca o arauto da “Verdade”.
Tudo isso é impostura. Tudo isso é fascismo canastrão, requentado, que seria paródico se não fosse letal. A usina de mentiras controlada pelos governistas planta entre nós o desejo de tirania, enquanto encoraja a violência generalizada – da polícia, dos milicianos, dos guardas da esquina e da linguagem. As armas de fogo são os novos amuletos da virilidade que espanca mulheres e homossexuais. Socialistas, artistas, gays, professores e intelectuais são os inimigos da pátria, da família e de Deus.
Por fim, é mentira que o poder de turno reúna condições para promover “reformas” que atendam ao bem comum. Esse governo não é um mal necessário para promover “limpezas ideológicas” ou “saneamentos” da máquina pública – é apenas a necessidade do mal.
Quando vamos entender? Em política, nenhum fim justifica nenhum meio. Ao contrário, os meios determinam os fins. Nada de virtuoso virá de um governante que ofende a história da humanidade e não guarda respeito pela ordem que lhe conferiu o mandato: ao bajular a ditadura extinta, enxovalha o juramento que fez de “manter, defender e cumprir a Constituição”. Ou a sociedade civil se levanta ou o que hoje vem sendo engolido como piadas de mau gosto (há quem dê risada) ganhará a fisionomia do horror. Lamento, mas são os fatos.
* Eugênio Bucci é jornalista e professor da ECA-USP
Paulo Roberto Pires: Diante do fascismo
“Vocês vão dizer que estou tentando assustar vocês com esses paralelos”, pondera Stanley. “E, quer saber? Estou mesmo.”
“Intelectual”, escreveu Millôr Fernandes, “é um cara capaz de chamar a galinha em meia dúzia de línguas diferentes, mas pensa que quem põe ovo é o galo.” Foi o debate da galinha que nos últimos meses mobilizou intelectuais e comentaristas empenhados, sabe-se lá com que fins, em destacar a impropriedade de definir como “fascista” a teoria e a prática de Jair Bolsonaro e seus seguidores. Preferiu-se discutir se marola é tsunami a organizar uma eventual fuga para as montanhas. Hoje, cheios de razão, estão prestes a morrer afogados.
E tome Hannah Arendt, Norberto Bobbio, George Orwell e mal disfarçada Wikipédia para explicar por que seria exagero, tergiversação ou ignorância associar fascismo à peculiar concepção de sociedade que se traduz nos atos e planos do capitão, sua família, seu economista, seus generais e recrutas. Provou-se, por evidente, que Bolsonaro não é Stálin, Hitler ou Mussolini. Agora, com a besta à solta, quando se intimida, agride e mata em nome do que o rigor não deixa dizer, os zeladores do léxico político balbuciam, em tom moral, paráfrases de Pedro e o lobo: tanto se gritou — em vão, insistem — contra o fascismo que diante da ameaça real corre-se o risco de ninguém acudir.
Na Itália de 1975, Pier Paolo Pasolini levava bordoada da esquerda e da direita pela suposta impropriedade política e ideológica de apontar o ressurgimento do fascismo. Gay e comunista, o cineasta não delirava, é claro, com uma volta dos camisas-negras, mas denunciava sem rodeios como o fascismo era normalizado. Toda homogeneização, do consumismo ao racismo, visava, segundo ele, “à reorganização e à normalização brutalmente totalitárias do mundo”. Fazia do fascismo uma palavra de combate, perfeitamente inteligível, e temia ser vítima do que denunciava. Foi massacrado por um garoto de programa poucas horas depois de dar uma entrevista que, quando publicada no La Stampa, ganhou do repórter Furio Colombo o título que o próprio Pasolini recomendara: “Estamos todos em perigo”.
Jason Stanley nasceu em 1969, é especializado em filosofia da linguagem e dá aulas em Yale. Nos últimos dez anos, tem estudado propaganda política e acaba de lançar
How fascism works (Como funciona o fascismo), livro curto e elucidativo que mostra como e por que o discurso de Donald Trump é comparável, e não só retoricamente, a alguns dos mais notórios líderes fascistas da história — que por sua vez inspiram movimentos espalhados pelo mundo. Num vídeo para o New York Times, Stanley enumera essas ocorrências à medida que contornos de mapas piscam na tela — o do Brasil é o terceiro a aparecer.
No Tinder ideológico, Bolsonaro dá match no perfil de liderança fascista traçado por Stanley. Na base de tudo, a mitificação do passado e seu uso para controlar o presente: a ditadura é a ordem perdida a ser recuperada. A política é oculta sob imperativos morais: “Campanhas anticorrupção estão frequentemente no cerne de movimentos políticos fascistas” e os conduzem ao poder por eleições. O antiintelectualismo garante o discurso da nação, “atacando e desvalorizando” a universidade e todo tipo de educação que não leve ao reforço de ideias dominantes — estudos de gênero, por exemplo, são duplamente indesejáveis, pois questionam a família patriarcal e geram a “ansiedade sexual” manifesta no preconceito.
Na política fascista, o debate público é substituído por manifestação de raiva e imposição de medo, criando uma “irrealidade” facilmente controlável. Exalta-se uma hierarquia “natural” de fortes sobre fracos, homens sobre mulheres, brancos sobre negros, héteros sobre gays — qualquer abalo dessa ordem implica a vitimização do dominador. O fascista, lembra Stanley, nem sempre quer conquistar o mundo ou organizar o extermínio. Seu objetivo é naturalizar, como democrático, o autoritarismo.
O risco não está, portanto, só naquilo que um fascista eleito possa fazer, mas no que ele autoriza. Advertiu-se muito sobre o ovo da serpente, mas no Brasil o estrago foi feito enquanto se esperava o ovo do galo.
*Paulo Roberto Pires é jornalista e professor de comunicação na UFRJ
Gustavo Bizelli : Os fascistas são a minoria
Quase metade do Brasil votou contra a democracia?
Jornalistas, cronistas e analistas políticos avaliam que os resultados das eleições vêm de uma onda conservadora, uma radicalização ou um sentimento de ódio ao partido adversário. Penso que poucos captaram até o momento os reais movimentos que nos levaram a esses resultados.
Bolsonaro se estabelece em 17% das intenções de voto e por meses lá permanece. Conheço alguns desses eleitores. Querem ter a liberdade de comprar uma arma, acreditam que bandidos sejam mais defendidos que as vítimas; uns poucos apoiam a pena de morte, não nutrem simpatia por minorias, negros e homossexuais, e em geral estão cansados das "safadezas", termo que generaliza corrupção e incompetência.
Não são pessoas ruins, mas têm um pensamento menos progressista. Tachá-los de fascistas, no entanto, parece exagerado.
Bolsonaro só sai da margem de erro dos 17% quando fica claro que Lula de fato não será candidato e que Fernando Haddad --que até então minguava com 2% a 4% nas pesquisas-- passa a receber votos que seriam de Lula e inflavam a votação de Marina e o contingente de nulos e de brancos.
Antipetismo, então? Quase isso!
Os 29% de votos que se somaram aos primeiros 17% não foram rapidamente migrando para Bolsonaro. Quanto mais pura a rejeição ao petismo, mais rápido o capitão recebeu tais votos. Quanto mais ponderado e informado, mais o eleitor tardou a embarcar na candidatura 17.
Mas, com o decorrer dos dias, ficava cada vez mais claro que a opção a Bolsonaro seria a volta de uma política de governo que, esta sim, é muito rejeitada. Estatais aparelhadas e a serviço de projetos políticos, capitalismo de compadre, déficit primário, perda do grau de investimento, BNDES financiando apoiadores e obras em outros países, uma névoa de projeto de poder bolivariano na América Latina, uma política externa marcada pela ideologia e não pela eficiência, controle dos meios de comunicação, tudo regado a corrupção.
Não é possível que se acredite que quase metade do Brasil votante optou por posições duvidosas quanto à democracia ou retrocessos na agenda progressista. Os eleitores que migraram para a candidatura 17 foram em blocos, engolindo a seco os pontos de rejeição para evitar o pesadelo da volta da nova matriz econômica e do jeito petista de governar.
Os últimos dois blocos que migraram para a candidatura, o primeiro entre quinta (4) e sexta-feira (5), que mudou o patamar de 36% para 41% das intenções de voto, e o segundo entre sábado (6) e domingo (7), que decretaram a subida final de 41% para 46%, são majoritariamente formados por pessoas progressistas, democráticas, que acreditam na igualdade de gênero, nas liberdades individuais, na necessidade de apoio aos mais pobres e nos direitos humanos, mesmo de pessoas que cometem delitos.
Tais pessoas não acreditam, porém, que essa agenda poderá ser alterada por essa candidatura. Acreditam, sim, que a sociedade e o país possuam bases e instituições sólidas que não permitirão retrocesso em conquistas de comportamentos, hábitos, costumes, liberdades etc.
Por outro lado, tais pessoas têm certeza de que, com um novo governo petista, a velha nova matriz econômica e o jeito petista de governar estarão conosco em 1º de janeiro.
O discurso aparentemente oportuno de união dos democratas não conquistará os 29% de eleitores que embarcaram na candidatura 17 por não querer a volta da política petista, e tão pouco chegará aos ouvidos dos 17% de eleitorado mais aderente de Bolsonaro.
Apenas a confiança de que a política praticada anteriormente pelo regime petista é considerada equivocada pelos seus autores e que nunca mais será repetida poderia conquistar eleitores que já optaram por dizer não à sua volta, a uma nova Carta aos Brasileiros. Mas tal discurso, neste momento, pareceria mais que oportuno; pareceria oportunista.
*Gustavo Bizelli é economista formado pela Unesp, pós-graduado pela FGV e especialista em inteligência de mercado pela Universidade da Califórnia; sócio da consultoria Diferencial Pesquisa de Mercado