Fachin
Ricardo Noblat: Bolsonaro está nas mãos do Supremo
No meio do caminho tem duas pedras – Lula e Moro
O ministro Edson Fachin diz que sua decisão de anular as condenações do ex-presidente Lula pela Justiça Federal de Curitiba segue o entendimento adotado pela maioria do Supremo Tribunal Federal há muito tempo. A estar certo, o plenário do tribunal, possivelmente ainda este mês, deverá confirmá-la.
Lula então deixará de ser ficha suja e poderá disputar a eleição presidencial do ano que vem. Um juiz federal de Brasília herdará os processos do triplex do Guarujá e do sítio de Atibaia e poderá recomeçá-los aceitando as provas ali reunidas, pedir novas investigações ou simplesmente arquivá-los.
Por outro lado, se os resultados das pesquisas de intenção de voto divulgadas nos últimos dias coincidirem com os resultados das pesquisas que o presidente Jair Bolsonaro encomenda para consumo pessoal, são grandes as chances de o ex-juiz Sérgio Moro ter sua suspeição aprovada pela Segunda Turma do tribunal.
A defesa de Lula pediu que Moro seja considerado suspeito porque teria sido parcial no julgamento do ex-presidente. Por enquanto, o placar na Segunda Turma está em 2 votos contra 2. Falta votar o ministro Kássio Nunes, indicado por Bolsonaro para o Supremo. Seu voto levará em conta o que Bolsonaro deseja para Moro.
O ex-juiz e o presidente romperam relações quando Moro acusou Bolsonaro de interferir na Polícia Federal para blindar sua família contra rolos judiciais. É por causa disso que Bolsonaro responde a inquérito. Desde que saiu do governo, Moro evitou comentar se poderá ou não ser candidato à vaga do seu ex-patrão.
Na primeira pesquisa XP/Ipespe aplicada depois que Lula se tornou elegível, ele e Bolsonaro estão empatados na simulação do primeiro turno e Moro aparece em terceiro lugar. Lula e Bolsonaro voltam a empatar na simulação do segundo turno. Mas quando o cenário é Bolsonaro x Moro, o ex-juiz vence. E aí? Vai encarar?
Mas esqueça as intenções de voto a 20 meses das urnas. A eleição de 2022 será um plebiscito sobre o presidente, segundo o sociólogo Antonio Lavareda, que comanda o Ipespe. E os indicadores, hoje, são muito ruins para Bolsonaro, e só têm feito piorar desde janeiro com o agravamento da pandemia da Covid. Falta vacina.
63% dos brasileiros veem a economia no rumo errado, contra 27% que dizem que ela está no rumo certo. O saldo negativo passou de 27% em fevereiro para 36% agora. 61% avaliam como ruim ou péssima a atuação de Bolsonaro na pandemia, só 18% como ótima ou boa. O saldo negativo saltou de 30% para 43%.
45% avaliam como ruim ou péssimo o governo em geral – o maior percentual da série de pesquisas de junho para cá. Ótimo e bom, 30%. O saldo recuou neste mês de – 11% para – 15%. Por fim, 52% querem que o futuro presidente mude totalmente a forma como o Brasil está sendo administrado, e 15% que dê continuidade.
Enfrentar Lula já não será moleza para Bolsonaro. Enfrentar Lula pela esquerda e Moro pela centro-direita será desastre quase certo.
Pablo Ortellado: Encantamento de Lula
O discurso de Lula no Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo embaralhou os cenários para as eleições de 2022 que indicavam uma recondução mais ou menos segura de Bolsonaro.
No discurso, o que mais se destacou foram as omissões. Lula, como era esperado, criticou a política econômica de Paulo Guedes e a política sanitária para combater a pandemia, mas em nenhum momento mencionou os ataques de Bolsonaro às instituições, tão comuns na retórica da esquerda. Essa omissão parece indicar que Lula e o PT descartam construir as condições para um impeachment antes de outubro de 2022 e que o objetivo, desde já, é construir a candidatura de Lula.
A segunda omissão no discurso de Lula foi Dilma Rousseff. O silêncio sobre a ex-presidente — que é considerada inepta, do centro à direita — e diversos acenos ao Centrão e ao mercado indicam para 2022 uma estratégia “paz e amor”, como a que adotou em 2002. Lula quis sinalizar ao mercado que sabe ser fiscalmente responsável e lembrar ao Centrão que é um negociador hábil e confiável.
A suspeição que está sendo lançada sobre a Lava-Jato parece estar escusando o ex-presidente. A troca de mensagens entre Moro e os procuradores mostrou um viés persecutório da operação contra o PT, além de articulações espúrias entre o juiz e o Ministério Público. Isso não apenas vem sendo utilizado juridicamente para anular as condenações, como politicamente para colocar sob suspeita as denúncias, liberando Lula da responsabilidade pela Petrobras ter sido desavergonhadamente assaltada durante sua administração.
Em 2018, liberais traumatizados com a política econômica de Dilma e punitivistas anticorrupção encantados pela Lava-Jato podiam considerar um segundo turno entre Lula e Bolsonaro uma “escolha difícil”. Agora, depois da péssima condução da crise sanitária por Bolsonaro e de seus ataques às instituições democráticas, a opção por Lula parece razoável.
Isso talvez explique as reações surpreendentes que o discurso despertou. Críticos antigos como Rodrigo Maia e Reinaldo Azevedo fizeram elogios rasgados ao ex-presidente, e influenciadores liberais no Twitter preferiram criticar as reações de Bolsonaro a condenar Lula.
Nada disso deve ser duradouro, mas, por um breve momento, abriu-se a possibilidade de Lula atrair o centro e até mesmo a centro-direita, encabeçando a tão propalada, mas tão pouco efetivada frente ampla.
Contra Lula, porém, pesa o antipetismo. Bolsonaro e outros setores da direita tentarão reativar o descontentamento com os escândalos de corrupção e reavivar a memória do fracasso da política econômica de Dilma Rousseff.
Com Lula na corrida, Ciro deve fracassar em se colocar como candidato da centro-esquerda, sendo empurrado para a sobrecarregada raia do centro e da centro-direita, onde já correm João Doria, Luciano Huck e Luiz Henrique Mandetta.
Se nenhum fato novo sobrevier, devemos ter novamente um segundo turno entre Lula e Bolsonaro. Três anos depois, estamos cada vez mais próximos de 2018.
Cristina Serra: A volta de Lula
Com ele em cena, o debate político é requalificado
Seis meses atrás escrevi neste espaço que Lula não poderia ser "cancelado" da vida política. O texto provocou discussão entre os leitores e alguns xingamentos a esta colunista. Como considero o debate necessário e estimulante, volto ao tema a partir da manifestação do ex-presidente, depois que decisão do ministro Fachin, do STF, restituiu-lhe a possibilidade de ser candidato.
O discurso soou como lenitivo cicatrizante num país ferido e a caminho dos 280 mil mortos pela pandemia. Lula retomou o perfil conciliador (sublinhou a chapa de 2002 que uniu "capital e trabalho") e abriu portas em torno de quatro pontos: democracia, vacina já, auxílio emergencial e emprego. "E se quiser dar um passo a mais e conversar [sobre] como tirar o Bolsonaro, eu tô mais feliz ainda", arrematou.
Convenhamos, é um programa lógico e coerente o bastante para um começo de conversa. Em condições normais de temperatura e pressão, nas quais vicejam as democracias, isso seria uma obviedade. Mas, como não vivemos tempos normais, o discurso de Lula e sua repercussão foram suficientes para estimular mais arreganhos de Bolsonaro e a tentativa de reeditar a farsa dos dois "extremos".
Sustentado pela Lava Jato, o engodo funcionou em 2018. Delações premiadas de baciada ? Tubulações jorrando dinheiro na TV toda noite? Essa engrenagem enguiçou. Só há um extremista no jogo, e é o genocida que usa um vírus como arma biológica de destruição em massa. O retorno do petista à arena também provoca um reposicionamento geral de forças. À direita, é grande o alvoroço entre alquimistas que sonham fabricar um candidato de "centro", tal como os magos da Antiguidade buscavam a pedra filosofal.
É cedo para saber se Lula estará na disputa em 2022. Os embates nos tribunais não acabaram. Mas com ele em cena o debate político é requalificado. Por isso, considero válido reafirmar o que escrevi seis meses atrás: Lula está de volta. E isso é uma boa notícia para a democracia.
Demétrio Magnoli: Dantons de araque
Procuradores da força-tarefa nunca ligaram para ideais, e sim para busca pelo poder
Danton fez a Convenção fundar o Tribunal Criminal Extraordinário em março de 1793. Um ano depois, sob o Terror jacobino que ajudou a implantar, acusado de enriquecimento ilícito, foi submetido a uma encenação judicial e executado na guilhotina. Moro e sua camarilha de procuradores não terão o destino do revolucionário francês, mas merecem sentar no banco dos réus.
Moro, um juiz que sonhou ser presidente, é o elemento passageiro. Mais perene é o caldo de cultura no qual surgiu a força-tarefa. No seu voto, Gilmar Mendes acertou ao indicar que o timão da Lava Jato foi comandado por uma panelinha de procuradores dispostos a usar a lei como subterfúgio para alavancar um projeto político. Aí é que entra a figura de Danton.
Paralelos têm limites. Danton viveu e morreu por seus ideais. No meio do caminho, descobriu que parira um monstro e tentou domá-lo, mas já era tarde. Os procuradores da força-tarefa nunca ligaram para ideais, preferindo cavalgá-los em benefício de suas carreiras e, sobretudo, da busca pelo poder. São Dantons de araque, personagens de uma pantomima, não de uma tragédia. Mesmo assim, o paralelo ilumina algo relevante.
Nosso Ministério Público foi criado como uma espécie de Comitê de Salvação Pública. Na moldura desse poder estatal sem clara delimitação de função e sem controle externo, jovens procuradores nutriram-se da crença na reforma do mundo pela interpretação voluntarista dos códigos legais. O Brasil seria salvo por fora da política, essa lagoa de dejetos imundos, graças à ação obstinada de funcionários de Estado armados com a prerrogativa de investigar e acusar. A força-tarefa foi o fruto maduro da árvore do jacobinismo judicial.
A Lava Jato começou iluminando as vastas teias corruptas que ligam a elite política ao meio empresarial, mas degenerou no projeto de implodir o sistema político para conduzir um juiz ao posto mais alto da República. No trajeto, borrou a fronteira que separa os atos de processar e julgar, pisoteou as garantias dos réus, transformou-se em ator político e arrastou o STF para a lama.
Xi Jinping cimentou seu poder absoluto por meio de uma campanha anticorrupção no interior do Estado-Partido. Putin manipula tribunais amestrados para perseguir supostos corruptos. Só estúpidos acreditam que os fins justificam os meios. O sequestro político do sistema de Justiça seleciona e pune corruptos convenientes, junto com inocentes cuja culpa é fazer oposição, enquanto autoriza a corrupção dos cortesãos. No Estado de Direito, o produto final do jacobinismo judicial é a anulação de investigações e o triunfo da impunidade. Os procuradores que pintaram o sete não têm o direito de atribuir a outros a responsabilidade pelo melancólico desfecho.
Falta-lhes direito, sobra-lhes cara de pau. Aqui, em meados de 2017, critiquei as inclinações jacobinas do Partido dos Procuradores. Carlos Fernando Lima, decano da força-tarefa, retrucou identificando no meu texto a maléfica intenção oculta de proteger "a indecorosa festa desses vampiros". Pouco depois, à provecta idade de 55, aposentou-se com proventos integrais, atravessou a porta giratória e foi advogar na área de compliance para clientes que temem cair nas garras de seus camaradas procuradores.
A postagem do heroico combatente incluía uma citação de Danton e, à sorrelfa, a tese de que o Terror assegurou a vitória final dos altos ideais da Revolução Francesa. Não conseguiremos circunscrever a corrupção às franjas do sistema político sem extirpar a cultura salvacionista que impregna o Ministério Público, separando as esferas da Justiça e da política. A cabeça de Danton rolou na guilhotina no 17 do Germinal do Ano II. Um futuro processo de Moro e dos procuradores deve ser justo e imparcial, porque isso é o certo e para ensinar-lhes a lição jurídica que não aprenderam.
Paulo Fábio Dantas Neto: Lula na área - Desjejum, almoço e jantar
O Lula que irrompeu no topo do noticiário dessa última semana é o “sapo barbudo” ou o político “paz e amor? A julgar por seu pronunciamento de retorno ao primeiro plano da cena política, está sendo as duas coisas. No ato político em São Bernardo, na quarta-feira, 10 de março, o eterno metalúrgico saiu de longo jejum guiando-se pelo seu ABC político, que quem tem mais de trinta anos de idade conhece bem. Ele foi o nacionalista e anti-imperialista grisalho, que manifestou reconhecimento a Maduro e ao Foro de São Paulo, o lulo-petista autocentrado, sem qualquer sombra de autocritica, que repetiu várias vezes o "nunca antes nesse país", pelo qual contrasta o PT e ele próprio com tudo o que existiu antes dele e com tudo o que veio depois dele no Brasil; a fera ferida que, entre vírgulas, repetiu o mantra de que houve “golpe” em 2016, que bateu no PSDB, em Temer, na mídia em geral e na Globo em particular.
E foi também, ao mesmo tempo, o político de pés no chão, conhecedor do terreno onde pisa e com o qual se identifica, o pai da pátria que afirmou o Brasil como lugar de paz e de solidariedade, que fala com todo mundo e com o mundo todo, que se declarou sem ressentimentos, mesmo enfatizando a injustiça que sente ter sofrido da Lava Jato, que se reafirmou um defensor da liberdade de imprensa, aberto a conversar com a sociedade e até com a direita sobre pandemia e auxílio emergencial, insistindo que essa é a pauta unitária do momento; e que não fugiu à regra de todo político sensato, que sabe não ser hora de falar em eleição ao grande público, pois compreende as aflições que lhe importam agora.
Lula deve continuar sendo assim por um bom tempo, talvez até a urna, sua íntima. Ocupa tanto o lugar do homem de luta como o da pacificação. É o candidato da esquerda e é também aquele que pode saltar por cima do centro e atrair o centrão. Perda de tempo querer colar na sua testa a etiqueta de extremista.
O chamado centro não tem a menor chance de ser ouvido agora. Não conseguirá, por mais que tente, ser mais oposição a Bolsonaro do que Lula é, nem conseguirá convencer o imenso eleitorado da direita de que o centro é opção mais segura do que Bolsonaro para evitar a possível volta do PT. Fala e falará para as paredes quem prega, em tese, contra a polarização, um dado do mundo real que só passará a ser visto como algo a ser superado se e quando ficar claro que a reeleição de Bolsonaro é o desfecho provável dela. No atual momento, é inútil. A fênix Lula comunica aos quatro ventos precisamente o contrário, isto é, que essa polarização é o caminho visível a olho nu para livrar o país do extremismo que o desgoverna. Só depois de meses se poderá medir e saber (por pesquisas e outros termômetros) se a luz no fim do túnel que o ex-presidente promete é comunicação veraz, portanto, promissora, ou esperança vã e perigosa, pelo risco que a reeleição de um extremista de direita representa para a democracia. Nessa segunda hipótese sim, poderá surgir espaço a um discurso real, não só evangelizador, contra a polarização Bolsonaro/ Lula. A fotografia atual da situação dá razão a quem considera essa disputa entre ambos como o que temos para o almoço. Quem recusar essa realidade, arrisca-se a ficar com fome.
Agora, o jantar vai ter esse cardápio também? Ou em um ano e meio o cenário pode mudar? Não me arrisco a passar da fotografia à profecia. É preciso ter em conta que o imenso impacto que a volta de Lula ao protagonismo provoca em tudo ao seu redor vira de ponta cabeça a conjuntura, porque ele, sem dúvida, é um dos eixos que a estrutura e a torna mais clara e compreensível. Mas esse impacto não faz do ex-presidente e seus movimentos chaves interpretativas do que passará a ser esse “tudo ao redor”. O futuro continua a ser propriedade do imprevisto. A razão humana é teimosa e deseja fazer previsões, mas para que elas não sejam só projeções de desejos, precisam recorrer a hipóteses alternativas, que só podem ser pensadas se usarmos instrumentos de prospecção adequados. Eles existem, para esse caso?
Pesquisas podem sempre ser instrumentalizadas para inflar bolas e criar marolas. Nem se trata de o instituto ser ou não confiável. Mas o que não é, a meu ver, nem informativo, nem educativo, é pesquisa de intenção de voto ser valorizada como bússola, um ano e meio antes da eleição e no meio de uma pandemia, quando os eleitores estão - com toda a razão, aliás - muito distantes de pensar em eleição. É persuasivo o argumento da especialista Márcia Cavallari Nunes (ex-Ibope) que relativiza o sentido, neste instante, de pesquisas convencionais de intenção de voto, que expõem entrevistados a simulações de hipotéticos cardápios eleitorais, quando se está muito longe de definir qual valerá. Assim, o que o Ipec (novo instituto de pesquisa que ela dirige) nos oferece é a detecção de um "potencial de voto" de personalidades “presidenciáveis” sobre cujos nomes, apresentados em separado, sem alusão a qualquer cenário hipotético de disputa, os entrevistados são inquiridos, cabendo quatro alternativas de resposta: votaria com certeza, poderia votar, não tenho informação para saber se votaria e não votaria de modo nenhum. Os resultados não permitem supor o desfecho da eleição, caso ela ocorresse hoje, e sim saber quem tem potencial para concorrer com êxito a uma eleição prevista para daqui a um ano e meio.
A pesquisa foi feita há três semanas, logo, não registra nem o impacto da reativação do fator Lula, nem a recente escalada assustadora de Bolsonaro na hostilidade a governadores e na negação da tragédia brasileira na pandemia. Mas vale debruçar a atenção sobre um gráfico dessa pesquisa, publicada pelo “Estadão” no domingo passado (07/03), porque ele mostra, para além de oscilações de conjuntura, o que a matéria chama de “capital político” dessas personalidades, assim entendido: POTENCIAL DE VOTO (que soma, numa faixa azul, quantos votariam hoje com certeza e os que poderiam votar), DESCONHECIMENTO (mostrado numa faixa amarela) e REJEIÇÃO, mostrando, em faixa vermelha, quantos hoje não votariam nesse nome de jeito nenhum.
Consideradas as faixas azuis, conhece-se quem tem potencial de voto e a manchete do jornal, corretamente, já apontava Lula à frente de Bolsonaro mesmo antes da decisão de Fachin e ambos em vantagem face aos demais. Mas sendo a eleição brasileira em dois turnos, é preciso ajustar a lupa e seguir em frente na análise. Somadas as faixas, azul e amarela, de cada uma das dez personalidades e abatido, dessa soma, o número da sua faixa vermelha, ficamos sabendo quem tinha, em fevereiro, um capital político capaz de chegar lá e, chegando, ter êxito. Como esperado, Lula e Bolsonaro têm faixas amarelas muito exíguas, ambos com 6%. Na comparação, Lula parecia estar bem melhor nesse ponto também, porque a faixa vermelha de Bolsonaro é maior.
Para uma análise menos estática, é pena que o gráfico não discrimine (não sei o porquê) quem votaria com certeza e quem poderia votar. Para mensurar o capital político de momento faz sentido juntar essas duas situações numa só faixa. Mas para uma prospecção mais precisa e ousada, essa faixa azul mistura alhos e bugalhos, pois uma das situações expressa resiliência e a outra é o elemento volátil, suscetível a discursos, à conduta política diante de problemas relevantes e às estratégias de campanha.
Afinal, as coisas se movem. Depois da decisão de Fachin, do discurso amplo de Lula em São Bernardo e da realidade brutal de agravamento da pandemia com radical insensibilidade do presidente não se pode saber quantas pessoas da faixa vermelha de Lula passaram agora para a amarela ou para a porção mais volátil da azul. Ao mesmo tempo não se sabe quantos podem ter migrado da faixa vermelha de Bolsonaro para a amarela ou a azul depois que souberam que Lula e o PT podem mesmo voltar. Dessas coisas só se saberá nas próximas rodadas. É de esperar que nas próximas divulguem os números em quatro faixas, dividindo a azul em duas, pois é o movimento entre as faixas "poderia votar" e "de jeito nenhum", o que mais interessa acompanhar, no que diz respeito ao confronto Bolsonaro-Lula.
Mas convém olhar também, no mesmo gráfico, o capital político das outras oito personalidades e fazer a mesma conta. Até onde se pode ver hoje, a regra geral é a soma das faixas azul e amarela (potencial + desconhecimento) sequer alcançar a vermelha, ou seja, a rejeição atual desses presidenciáveis tornaria improváveis suas vitórias em segundo turno. A única exceção é Luiz Mandetta. No seu caso, as faixas azul e amarela somadas ultrapassam a vermelha em dez pontos. Isso é um indicador de amplíssimo campo para uma construção do seu nome, caso essa seja uma decisão de forças políticas e não apenas uma pretensão pessoal dele. Sua faixa amarela era tão larga que com ele pode ocorrer tudo, inclusive nada. Compreende-se que esteja quase invisível em pesquisas convencionais de intenção de voto. Mas numa pesquisa de “capital político” só ele e Lula (e ele ainda mais do que Lula) sinalizavam, em fevereiro, rejeição minoritária, isto é, boas chances de vencer, se candidato, um segundo turno. Por isso acho inadequado enquadrar Mandetta na mesma situação onde efetivamente estão Huck, Doria, Ciro ou Marina. Mesmo hoje ainda longe da raia principal, o ex-ministro da Saúde é o único nome da centro-direita, ou do centro, capaz de entrar na arena plebiscitária, onde hoje estão apenas Bolsonaro e Lula.
O caso de Bolsonaro merece comentário adicional. Rejeição, alta e crescente, retira-lhe competitividade no segundo turno. Ele dependeria de um jogo de soma zero com um adversário de rejeição equivalente, jogo em que ataques recíprocos pudessem levar alguém a vencer pela aversão ou pelo medo que possa incutir no eleitor, em relação ao adversário. Seja quem for esse adversário, não terá dificuldade em ampliar tal sentimento contra Bolsonaro, pois o extremismo e a irresponsabilidade do próprio já o faz. A questão é quantos eleitores Bolsonaro, a essa altura da sua escalada, convencerá de que o adversário, seja quem for, é perigo maior do que ele mesmo. Talvez ele pense que um petista (não necessariamente Lula) seja o melhor adversário para si, mas só o tom que Lula adotar confirmará ou desmentirá isso. Sendo ele um craque profissional, e não um Haddad, o capitão não tem motivos para estar esperançoso.
O assunto pesquisas pode render ainda mais reflexão se tomarmos como referência uma modalidade alternativa que, em comparação com a do Ipec, está ainda mais distante de pesquisas convencionais de intenção de voto. E com a vantagem de ser novíssima, posterior à reestreia de Lula. Foi publicada ontem, no jornal El Pais, a segunda pesquisa do Atlas Político que usa um conceito distinto do de capital político, mas bastante convergente com ele. Avalia imagem de personalidades públicas, também apresentadas aos eleitores isoladamente, não como pré-candidaturas submetidas a comparação com hipotéticos concorrentes. Simpatia, antipatia ou conhecimento insuficiente para simpatizar ou não, é uma tradução possível do significado de imagem positiva (faixa verde), negativa (faixa vermelha) ou indefinida (faixa cinza). Essas percepções estão ainda mais distantes de uma intenção de voto e por isso não podem também fazer prospecções sobre resultados eleitorais. Mas apontam quais podem ser as candidaturas competitivas, com base em saldo ou déficit entre imagem positiva e negativa.
Um gráfico da primeira pesquisa (janeiro de 2021), segue apenas para ilustrar e permitir, a quem quiser, estudar a evolução, que aqui não comentarei.
*Cientista político e professor da UFBA
George Gurgel: Brasil Insustentável - No auge da pandemia as eleições pautam a agenda nacional
Nesta semana, no auge da pandemia, fomos surpreendidos com a pauta da Lava Jato tomando conta dos meios de comunicação e da opinião pública brasileira. O Supremo Tribunal Federal - STF, através de uma decisão monocrática do ministro Edson Fachin, decidiu que as ações contra o ex-presidente Lula deveriam ter transcorrido em Brasília, anulando as decisões da Lava Jato em relação às condenações sentenciadas pelo ex-juiz Sérgio Moro, nos últimos cinco anos, e confirmadas pelo Superior Tribunal de Justiça. Nesse julgamento, os atos processuais sem carga decisória poderão ser aproveitados pelo novo juiz que assumir o caso.
Ato continuo, no julgamento da Segunda Turma do STF, em andamento, os votos dos ministros Gilmar Mendes, relator, e Ricardo Lewandowski foram pela suspeição de Sergio Moro. Se vencedor esse entendimento, obrigará que os processos contra o ex-presidente Lula recomecem da estaca zero.
Diante dessas posições conflitantes estabeleceu-se o impasse nos julgamentos em andamento no STF que tratam das condenações do ex-presidente Luis Inácio Lula da Silva. O julgamento foi suspenso por pedido de vistas do ministro Kássio Nunes Marques e o colegiado do Supremo discute estratégias para superação desta inusitada situação.
O episódio em questão reflete uma disputa interna no próprio Supremo envolvendo os ministros Gilmar Mendes e Edson Fachin. As medidas e as consequências deste e de outros julgamentos e desta disputa entre visões jurídicas distintas e seus reflexos na sociedade brasileira, deveriam ser melhor avaliados pelos contendores e todos os membros da mais Alta Corte brasileira: a beligerância visível existente no próprio Supremo, entre os poderes da República e a polarização política vivida na sociedade brasileira nos últimos anos e atualmente, em plena pandemia, são situações que deveriam preocupar a cidadania e toda a sociedade brasileira.
Como entender esta realidade?
Como a cidadania pode fazer a leitura destes episódios?
Nesta conjuntura de tragédias sem fim, a disputa presidencial de 2022 é antecipada nos meios de comunicação e na opinião pública em geral, tirando o foco dos reais problemas econômicos, sociais e de saúde pública que a sociedade brasileira enfrenta no seu dia a dia.
As narrativas construídas na conveniência de cada discurso político traz embates cotidianos sem nenhum foco na questão principal: o combate efetivo à pandemia que deveria unir toda a sociedade. As pautas dos meios de comunicação e a maneira de funcionamento dos entes federativos não ajudam a entender e superar esta difícil realidade.
O que mais poderia acontecer?
O que se pode esperar dos governantes e da sociedade em geral frente a esta realidade?
Quais são as nossas urgências?
Na vida real, longe dos palácios, uma boa parte da população continua abandonada à própria sorte no seu trágico cotidiano de falta de leitos e de assistência médica, na maioria dos municípios brasileiros, com cenas dantescas que acompanhamos como normalidade no nosso dia a dia, no auge da pandemia.
Apesar desta trágica realidade, ainda não temos um Programa Nacional de Vacinação com metas e cronogramas estabelecidos que tranquilize e passe confiança à sociedade brasileira, demonstrando a incapacidade governamental de planejar ações básicas de combate à pandemia.
O ritmo de vacinação no Brasil continua lento por falta de vacinas, as metas anunciadas pelo Governo Federal estão sendo adiadas, diferente da situação de muitos países, cuja população já avança no processo de vacinação. As evidências apontam que até o final do ano não teremos a população brasileira vacinada, pela simples razão de que não há vacinas na quantidade devida para o Brasil, no mercado internacional.
A ideologização da pandemia e a falta de planejamento para enfrentá-la caminharam e continuam a caminhar juntas, com consequências graves para a sociedade brasileira. Embora a maior responsabilidade seja do Governo Federal, que minimizou e minimiza a gravidade da situação vivida pela população, a sociedade deve exigir posicionamentos adequados dos outros entes da Federação, caso concreto do Supremo Tribunal Federal, do Congresso Nacional, dos governadores e prefeitos: como eles estão contribuindo para o enfrentamento da pandemia? O que se pode e o que está sendo feito? Exige-se dos entes federados foco e uma resposta urgente frente à tragédia vivida pela cidadania brasileira.
Em plena pandemia, a crise econômica e de saúde pública que vive o Brasil traz para o cotidiano da sociedade cenas de horror, de mortes por falta de leitos hospitalares e de oxigênio, da falta de assistência médica em geral, inclusive na área privada, colocando, após um ano de pandemia, a dimensão real da nossa realidade: a incapacidade da área federal, dos estados e dos municípios de construir um programa mínimo, em diálogo com a sociedade e o mercado, para o enfrentamento dos problemas urgentes provocados pela pandemia no Brasil.
A insegurança continua. Os dados em relação à contaminação e às mortes são assustadores. São milhões de contaminados e milhares de mortos – colocando o Brasil na liderança em relação a contaminados e mortos pela Covid 19 no cenário internacional. Já não existem leitos disponíveis na área pública, nem privada, na maioria das capitais brasileiras.
No pior momento da pandemia, os milhões de brasileiros continuam abandonados à própria sorte frente ao desemprego, à falta de uma renda emergencial que lhes assegurem o mínimo de dignidade para atravessar a crise. O Governo Federal, como principal responsável pela Política Nacional de Combate à Pandemia, com sua política negacionista e plena de contradições, só faz agravar a situação com falas que agridem ao bom senso.
O esforço dos governos e de toda a sociedade, das lideranças políticas em particular, é criar as condições de focar no que é principal: o combate e a superação da pandemia, vacinando com a urgência devida toda a população. Pautar e antecipar a disputa política-eleitoral de 2022, nesse momento trágico, no auge da pandemia, desqualifica qualquer proposta política, mesmo a melhor intencionada. Vive-se um sentimento de impotência na sociedade, angustiando uma parte considerável da população que não encontra caminhos e respostas à difícil realidade brasileira.
Urge medidas governamentais para o enfrentamento real dos problemas do cotidiano já existentes, ampliados com a pandemia. A sociedade está desafiada a se unir a favor de um Programa Nacional de Vacinação: vacinar com a urgência devida toda a população é a única maneira de retornar a vida social com segurança.
As polarizações das narrativas hoje existentes na sociedade, o proselitismo político e os salvadores da pátria, assim como a antecipação da campanha presidencial não resolvem, neste novo ano de pandemia, as dificuldades reais da sociedade brasileira.
Desde o mensalão até à Lava Jato, a sociedade brasileira ficou com a sensação que mudanças positivas estavam acontecendo no Brasil: políticos no seu amplo espectro ideológico e empresários corruptos foram indiciados, julgados e presos. Muitos com confissões que abalaram a cena política e empresarial, causando perplexidade à sociedade brasileira – o PT foi o partido que teve o maior número de lideranças indiciadas, julgadas e presas: de José Dirceu a Lula, incluindo presidentes, tesoureiros, ministros de Estado, diretores da PETROBRAS e parlamentares. O PSDB, o principal partido de oposição ao PT, também teve governadores, senadores, deputados, prefeitos denunciados, processados e presos, atingindo uma das suas principais lideranças - na época da denuncia, presidente nacional da agremiação e senador da república e ex- candidato a presidência da República, Aécio Neves. Nos processos transitados e julgados foram devolvidos centenas de milhões de reais aos cofres públicos. Os processos e as investigações continuam.
Por outro lado, deve-se combater a instrumentalização das instituições de direito a favor de um determinado partido, empresa ou lideranças políticas e empresariais, devendo ser fruto de preocupação e vigilância permanente da cidadania e de toda a sociedade brasileira.
Então, a expectativa da cidadania e da sociedade brasileira é que este seja um caminho sem volta – uma conquista efetiva de toda a sociedade no combate à corrupção. Naturalmente, aperfeiçoando e combatendo comportamentos judiciais que afrontam o Estado de Direito e a Constituição brasileira.
Assim, a construção e a afirmação da democracia não comportam ou não deveriam comportar mais visões simplistas, binárias, do “nós contra eles”, como maneira de realizar a política e enfrentar os complexos desafios da sociedade brasileira.
Portanto, podemos e devemos enfrentar a pandemia abrindo o diálogo necessário entre as forças democráticas, no caminho de uma agenda que leve a um efetivo enfrentamento dos reais e urgentes problemas econômicos, sociais e de saúde, trazendo para o exercício da política a voz dos excluídos da sociedade, pressionando os que governam a República para pautar os problemas reais da população, buscando a melhoria da qualidade de vida de milhões de brasileiros que vivem em condições precárias de moradia, sem segurança, educação, saúde, saneamento e mobilidade urbana no Brasil.
São estas as questões e os desafios a serem enfrentados por cada um e por todos nós se quisermos efetivamente superar a trágica realidade vivida atualmente, em plena pandemia, por toda a sociedade brasileira.
*George Gurgel de Oliveira, professor da Universidade Federal da Bahia, da Oficina da Cátedra da UNESCO-Sustentabilidade e do Conselho do Instituto Politécnico da Bahia
Ribamar Oliveira: A derrota do governo evita o pior para Guedes
Como estava, a PEC 186 promovia uma super vinculação
O governo perdeu ontem na votação de um dispositivo da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 186, aquele que trata da proibição de vinculação das receitas públicas a órgão, fundo ou despesa. A derrota, no entanto, pode ter sido um alívio para o ministro da Economia, Paulo Guedes. A derrubada evita um engessamento ainda maior do Orçamento da União.
A Câmara dos Deputados já tinha aprovado, em primeiro turno, a PEC que veio do Senado e votava as emendas destacadas. Da forma como estava redigido, o texto promoveria uma super vinculação de receitas, na contramão da defesa que o ministro Guedes vem fazendo, desde que tomou posse no cargo.
Uma das emendas destacadas, apresentada pelo líder do PDT, Wolney Queiroz (PE), eliminava a mudança no inciso IV do artigo 167 da Constituição, que trata da proibição de vinculação das receitas públicas a órgão, fundo ou despesa. A desvinculação da receita a despesas orçamentárias é um dos 3 D da estratégia de Guedes. Os outros dois são a desindexação e a desobrigação do gasto.
Atualmente, o inciso IV do artigo 167 da Constituição veda a vinculação de receita de impostos a órgão, fundo ou despesa. E ressalva a destinação de recursos para as ações e serviços públicos de saúde e para manutenção e desenvolvimento do ensino.
Ressalva também a destinação para a realização de atividades da administração tributária, que beneficia a Receita Federal, a prestação de garantias às operações de créditos por antecipação de receita e para prestação de garantia e contragarantia à União para o pagamento de débitos, além das transferências por repartição de receitas para Estados e municípios.
Guedes queria eliminar, principalmente, a vinculação de recursos para saúde e educação. Na primeira versão de seu substitutivo, o senador Márcio Bittar (MDB-AC), relator da PEC 186 no Senado, atendeu ao ministro e acabou com essa vinculação. A forte reação da opinião pública obrigou Bittar a retroceder.
O relator, no entanto, ampliou substancialmente as ressalvas à proibição de vinculação de receitas. Em seu parecer ele permitiu vincular as receitas oriundas da arrecadação de taxas, doações, de atividades de fornecimento de bens ou serviços facultativos e na exploração econômica do patrimônio próprio dos órgãos e entidades da administração, remunerados por preço público, bem como o produto da aplicação financeira desses recursos, transferências recebidas para o atendimento de finalidades determinadas e as receitas de capital.
Nada disso está no atual texto constitucional. “A Constituição só trata de vinculação de impostos e de contribuições sociais”, explicou o ex-secretário da Receita Federal, Everardo Maciel, em conversa com o Valor. “A vinculação das receitas oriundas de taxas e de atividades da administração remuneradas por preços públicos é matéria de lei. Assim, ao levar para a Constituição, em vez de desvincular, a PEC vinculou”, disse.
Quando os senadores perceberam a ampliação feita por Bittar, apresentaram suas reivindicações. Assim, a PEC 186 aprovada pelo Senado passou a ressalvar as vinculações de receitas para o Fundo Nacional de Segurança Pública, o Fundo Penitenciário Nacional, o Fundo Nacional Antidrogas, o Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, o Fundo de Defesa da Economia Cafeeira, o Fundo para Aparelhamento e Operacionalização das Atividades-fim da Polícia Federal, o Fundo Nacional para a Criança e o Adolescente, o Fundo Nacional da Cultura e para manter os programas de financiamento a estudantes de cursos superiores não gratuitos.
Além disso, a PEC permitiria a vinculação de receitas “de interesse à defesa nacional e as destinadas à atuação das Forças Armadas”. Este comando abriria possibilidades de numerosas novas vinculações de receita, principalmente porque ele foi redigido de forma genérica, sem especificações mínimas de sua amplitude.
Durante a tramitação da PEC na Câmara, o deputado Kim Kataguiri (DEM-SP), disse aos repórteres Raphael Di Cunto e Marcelo Ribeiro, do Valor, que recebeu mensagens de ministros tentando criar exceções ao texto. “Recebi mensagem da ministra Damares Alves (ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos) para retirar o fundo dos idosos (da proibição de vinculação de receita)”, informou o parlamentar.
Mesmo aceitando todas as ressalvas à proibição de vinculação em seu substitutivo, Bittar excluiu da relação os recursos para a realização de atividades da administração tributária, ou seja, aquele que beneficia atualmente a Receita Federal. Isso revoltou os servidores da Receita, que ameaçavam entregar os cargos comissionados que ocupam e realizar uma paralisação dos serviços.
Quando foi colocado o destaque apresentado pelo PDT, todos aqueles que desejavam mudar o texto sobre vinculação de receita, uniram-se. A Câmara dos Deputados aprovou o destaque por apenas seis votos: 302 deputados votaram contra a proposta pedetista, quando eram necessários 308.
Guedes ficou sem a desvinculação das receitas, mas evitou o pior: uma super vinculação. De sua estratégia dos 3 D, o ministro da Economia já tinha perdido a desindexação (não correção por um índice de inflação) do salário mínimo, dos benefícios previdenciários e assistenciais. Essa proposta foi vetada pelo próprio presidente Jair Bolsonaro. O secretário especial de Fazenda do Ministério da Economia, Waldery Rodrigues, quase perdeu o cargo ao defender a desindexação, em nome de seu chefe imediato.
A PEC 186 aumentou também aquilo que Guedes queria diminuir, que são os comandos constitucionais obrigando o governo a realizar despesas. A desoneração da cesta básica passou a ser uma obrigação constitucional. O ministro da economia queria substituir esse benefício por outro que chegasse melhor a quem necessita. Não poderá mais. Assim, com a aprovação da PEC 186, a estratégia dos 3 D de Guedes foi definitivamente arquivada.
José Serra: A pressa é inimiga da Constituição
Sociedade tem o direito de esperar que processo legislativo seja seguido com absoluto rigor
O escritor português José Saramago é conhecido por tiradas geniais que nos fazem refletir diante de encruzilhadas. Lembrei-me de uma delas em plena votação da chamada PEC Emergencial: “Não tenhamos pressa, mas não percamos tempo”. O Senado aprovou celeremente uma emenda constitucional que autoriza o pagamento do auxílio emergencial, mas, ao mesmo tempo, cobre a Constituição com uma cortina de fumaça que compromete a credibilidade do nosso arcabouço fiscal.
Nosso país enfrenta a pior fase da pandemia, com nosso sistema público de saúde próximo do colapso. Diante disso, infelizmente, o governo vem sendo negligente: critica o uso de máscaras, condena o distanciamento e dificulta a vacinação.
Na discussão da PEC Emergencial o governo adotou uma estratégia que consiste em acuar o Congresso, com o objetivo de aprovar a agenda de austeridade improvisada pelo Ministério da Economia. Usou seu poder para introduzir na PEC um dispositivo que torna viável o pagamento de um benefício emergencial ao mesmo tempo que, em troca, embute uma obscura reforma estrutural nas demais partes da emenda.
Às limitações do sistema semipresencial de votações junta-se uma celeridade que torna a discussão precipitada e os resultados, confusos. Analisando a proposta com a experiência que tive de relator dos capítulos de finanças públicas na Constituinte, percebi a armadilha em que fui colocado: sem poder votar contra o auxílio emergencial, nem concordar com que se manipule a Constituição.
Julgo que emendar a Constituição implica responsabilidade análoga à tarefa de elaborá-la. A maioria dos estudiosos classifica as alterações constitucionais como emanadas do poder constituinte. Assim sendo, sua execução exige o máximo de cautela, a fim de evitar casuísmos e imprudências com a norma jurídica mais importante da fundação do Estado.
O próprio texto constitucional se protege de mudanças improvisadas e arriscadas: estabelece que não se pode emendá-lo na vigência de situações emergenciais, como o estado de defesa, o estado de sítio e a intervenção federal. Esse dispositivo, aliás, remonta à Constituição de 1934, em resposta à Emenda Constitucional n;° 3, promulgada em plena vigência do estado de sítio decretado em 1926 pelo presidente Artur Bernardes.
A pandemia permanece assolando nosso país e impedindo a volta da normalidade. Neste contexto, várias comissões do Congresso Nacional nem sequer voltaram a funcionar. Isso por si só já justifica postergar a votação de emendas constitucionais, a não ser que haja absoluto consenso, como no caso do Fundeb.
Mas o texto da PEC Emergencial exige considerações acerca das duas dimensões: uma emergencial, outra estrutural. Considero a emergência a dimensão mais importante para enfrentar o vírus e nela constato uma tática do tipo tudo ou nada. A medida torna viável o pagamento de auxílio emergencial limitado a R$ 44 bilhões, o que pode ser considerado o plano oficial do governo para enfrentar o vírus neste ano.
Assim como não foi possível combater a emergência sanitária no ano passado com R$ 5 bilhões – de acordo com os planos do governo no início da crise –, é improvável que a estimativa atual seja suficiente para enfrentar todos os efeitos da pandemia em 2021. Para resolver esse impasse previsível a PEC apresenta outra saída emergencial: suspender todas as regras fiscais do País. Uma emenda comparável a um AI-5 sobre o sistema fiscal previsto na Constituição.
Um plano fiscal para enfrentar a crise é o mínimo que se espera de um governo responsável. Não temos plano. Nem mesmo o Orçamento anual foi aprovado.
Ademais, a proposta encaminhada à Câmara compromete a credibilidade do nosso arcabouço fiscal. Criam-se regras fiscais com lacunas jurídicas e incentivos à contabilidade criativa, levando ao crescimento do gasto público.
Sabe-se que a crise fiscal tem um viés eminentemente federativo. Hoje, 68% das despesas com funcionários e 84% das verbas destinadas ao consumo de bens e serviços têm sua origem nos Estados e nos municípios. A PEC 186 estabelece que as medidas de ajuste fiscal a serem adotadas por governadores e prefeitos limitem a despesa corrente a um máximo de 95% da receita corrente.
Uma análise, mesmo superficial, revela que esse porcentual pode estimular o aumento da despesa: governadores e prefeitos que gastam menos de 95% poderão aumentar as despesas até esse patamar, especialmente em épocas de eleição. O Executivo poderá aumentar os gastos correntes dando aumentos salariais e subsídios, pois a regra tem por alvo o gasto passado, mas não o futuro.
Numa situação emergencial como a que vivemos hoje, não se deveria sequer pensar em alterar regras estruturais do Estado brasileiro. O momento não é propício, o contexto é temerário. A sociedade tem direito a esperar de nós, seus representantes na Câmara e no Senado, que o processo legislativo seja seguido com absoluto rigor.
Em poucas palavras: a pressa é inimiga da Constituição.
*Senador (PSDB-SP)
O Estado de S. Paulo: Eduardo Bolsonaro manda população ‘enfiar no rabo’ máscara contra covid-19
Filho do presidente, deputado federal critica cobertura da imprensa sobre uso de itens de proteção contra infecções pelo coronavírus
André Borges, Lorenna Rodrigues e André Shalders, O Estado de S.Paulo
BRASÍLIA – Visivelmente irritado, o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) mandou a população brasileira enfiar as máscaras de proteção contra a covid-19 “no rabo”. Em uma aparição ao vivo que fez em seu perfil pelo Instagram, o filho “03” de Bolsonaro criticou o uso do principal item de proteção contra a contaminação do vírus que, dia após dia, causa recordes de mortes no País.
“Eu acho uma pena, né, (que) essa imprensa mequetrefe que a gente tem aqui no Brasil fique dando conta de cobrir apenas a máscara. 'Ah a máscara, está sem máscara, está com máscara'. Enfia no rabo gente, porra! A gente está lá trabalhando, ralando”, afirmou o deputado. As declarações de Eduardo foram feitas no dia em que o presidente Jair Bolsonaro mudou o discurso, usou máscara e passou a defender as vacinas. Nesta quarta-feira, 10, o Brasil também atingiu mais um recorde de mortes: pela primeira vez foram registradas 2.349 mortes por covid-19 em 24 horas.
Em tom agressivo, enquanto seguia em um carro no banco de carona, o deputado comentou, ainda, o caso das rachadinhas de Fabrício Queiroz e a compra de uma mansão de R$ 6 milhões por seu irmão, o senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ).
“Você, retardado mental, que fica falando ‘o problema são os filhos, cadê o Queiroz?’, pagou o apartamento R$ 50 mil em dinheiro. Seu animal, larga de ser um peão nesse tabuleiro de xadrez chamado política e começa a pensar um pouquinho, ver o perigo que está por vir e ver como o sistema trabalha porque não dá ponto sem nó, não. Fique com Deus e não consuma cachaça em excesso igual a uns e outros aí”, disse.
Eduardo Bolsonaro também afirmou que iria comentar o resultado da viagem que fez com uma comitiva para conhecer o spray contra a covid-19 em testes iniciais em Israel. Na prática, porém, o que acabou dizendo é que o Brasil é que está desenvolvendo a sua vacina. E não só uma, mas três vacinas próprias.
“Você sabia que o Brasil está desenvolvendo três vacinas?”, perguntou. “A vacina brasileira ainda está em desenvolvimento, não é para agora”, comentou ele, acrescentando que o Brasil terá seu próprio spray e que outros países deverão vir ao País comprar esse produto. Ele não deu nenhum detalhe sobre o que estava falando.
“É importante a gente dominar essa tecnologia e dominar, ter a vacina brasileira. Além disso, isso coloca o Brasil em outro patamar internacional. Ao invés de nós irmos atrás de outros países, eles é que virão atrás de nós. Pode ser inaugurada uma vacina que não precise mais de insumos de outros países. Os israelenses gostaram muito disso”, afirmou.
Além do spray definido pelo presidente de “milagroso”, que atuaria em conjunto com uma vacina, Eduardo disse que o Brasil tem uma segunda tecnologia em análise, com efeito “dois em um”, que curaria covid-19 e influenza.
“A terceira vacina vai diretamente em seu sistema imunológico. O Brasil está desenvolvendo tecnologia nesta área”, observou, sem nenhum detalhe, data ou previsão de testes.
“Depois que está a invenção feita, aí ‘tá’ o mundo inteiro correndo atrás da vacina, o mundo inteiro correndo atrás dos insumos… Aí já era. Isso que a gente foi fazer em Israel é à semelhança do que ocorreu com a vacina de Oxford. É chegar primeiro, chegar no começo. Quando estávamos saindo de Israel, estava chegando uma delegação de outro país, da República Checa”, lembrou o deputado. “Já procurou Israel não só a Grécia, mas também a Dinamarca, o Chipre, e alguns outros países. Acho que a Áustria também. Então, onde há tecnologia, o mundo inteiro está proativamente se deslocando.”
Eugênio Bucci: Justiça performática
Vivemos num tempo em que a arte nos enfada e os ministros do STF nos sobressaltam
Em dois dias, mudou tudo. Na segunda-feira, em despacho monocrático, o ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal (STF), devolveu os direitos políticos a Luiz Inácio Lula da Silva. Ao anular as sentenças da Lava Jato contra o ex-presidente, sob o argumento de que o juiz da 13.ª Vara Federal de Curitiba, Sergio Moro, não era aquele a quem cabia a competência para decidir sobre as acusações que pesavam contra o réu, Fachin limpou a ficha de Lula, que agora está livre para se candidatar em 2022.
No dia seguinte veio mais. A Segunda Turma do mesmo STF começou a julgar a parcialidade e a suspeição do juiz Sergio Moro nas sentenças contra Lula. O julgamento levado a efeito pela Segunda Turma ainda não foi concluído, pois o ministro Nunes Marques pediu vista, dizendo que precisava estudar melhor o processo antes de votar, mas o que os ministros disseram na tarde de anteontem abalou o que se tinha por certo e sabido. Quando se referiu à Operação Lava Jato como “o maior escândalo judicial da nossa história”, o ministro Gilmar Mendes deixou claro: tudo mudou.
Nada contra o veredicto de segunda. Nada contra a sessão de terça. As razões processuais alegadas pela defesa do ex-presidente Lula vão se demonstrando irrefutáveis. A incompetência do juízo de Curitiba só demorou uns anos para ser admitida no STF, mas é cristalina. Ninguém mais parece disposto a refutá-la, a não ser que tudo mude de novo. Quanto aos sinais de parcialidade do magistrado responsável pela Operação Lava Jato, que foram enumerados na terça pelos ministros Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski, não há peneira hermenêutica que dê conta de encobri-los. Houve abusos, alguns provados, outros até tacitamente admitidos.
Ao menos no caso de Lula, o juiz da Lava Jato perpetrou injustiças em série, ainda que tenham sido injustiças estritamente processuais, formais, como vem postulando a defesa. Por isso já se sabia que, em algum prazo, de alguma forma, essas injustiças acabariam sendo reconhecidas pelo Supremo, como começou a ser feito nestes dois dias. Só não se sabia que as coisas viriam assim, tão espetaculosas, alvoroçadas e atordoantes.
Portanto, o problema não é o que se decidiu. Ao contrário, a nova postura do STF sobre a matéria talvez seja até parte da solução. O problema é o risco imenso de se aprofundar uma impressão generalizada de que a mais alta instância da Justiça no Brasil se pauta pela inconsistência e pela imprevisibilidade errática. O risco não deveria ser desprezado. Justiça não combina com ciclotimia.
A instituição incumbida de julgar todos nós não deveria sentir-se à vontade para mudar assim ao sabor das brisas, dos ventos e mesmo dos furacões. Alguma linha de coerência há de perdurar entre as decisões, sob pena de a sociedade parar de acreditar de vez na magistratura. Deus, que é Deus, pode escrever por linhas tortas. Os juízes, não, por mais que alguns insistam.
E agora? A sociedade brasileira assimilará bem a incongruência entre os acórdãos impenetráveis da mais alta Corte do País? Qual o limite para tantas idas e vindas? Se as arbitrariedades contra Lula eram patentes e gritantes, como eram, por que se permitiu que elas fossem tão longe? Por que se permitiu que elas o tirassem da eleição de 2018 e o enjaulassem. E por que reconsiderá-las agora, justo agora e só agora?
Se Moro praticou atos inadequados, que incidiram sobre o andamento de momentos históricos de enorme repercussão, por que ele seguiu imune e adulado por tanto tempo? E por que questioná-lo agora, assim? A impressão que se tem é que no Brasil de hoje tudo está sub judice: a prisão de Lula, que agora transparece como uma violência indizível, está sub judice e, junto com ela, a posse de Michel Temer na Presidência da República, a abolição da escravatura, a Guerra do Paraguai e o descobrimento do Brasil. É como se na segunda que vem o STF declarasse nulas as violações ao Tratado de Tordesilhas e, em seguida, anulasse também o próprio tratado, porque uma das firmas não foi devidamente reconhecida. Vai saber... O STF parece acreditar que faz o tempo retroceder.
Normalmente os críticos do Judiciário, focados nas tecnicalidades da aplicação da lei, esmiúçam a observância ou a inobservância dos ritos e o rigor ou a frouxidão das derivações jurisprudenciais de cada fundamentação. A esta altura nós deveríamos preocupar-nos igualmente com a percepção que os brasileiros terão da Justiça nos próximos anos.
O leigo pode não saber o que é heurística, pode não entender o significado de expressões como ex ofício ou ex ante e ex post, mas sabe perfeitamente o que é certo e o que é errado. Todo ser humano tem senso moral, percebe intuitivamente a iniquidade, separa o justo do injusto. Se, por algum motivo, os seres humanos deste país não virem mais no Poder Judiciário a encarnação legítima da justiça, tudo o que está mudando vai abaixo.
Eis o “ó do borogodó”, para invocarmos o novo brocardo jurídico. Vivemos num tempo em que a arte nos enfada e os ministros do Supremo Tribunal nos sobressaltam. Enquanto tudo muda, e alguma coisa está fora de prumo.
*Jornalista, é professor da ECA-USP
Ascânio Seleme: Lula foi ainda mais Lula
Depois de dois anos ouvindo Bolsonaro, qualquer um que lhe fizesse frente se destacaria com louvor. Mas ex-presidente foi mais longe
Retire os excessos de retórica e as figuras de linguagem, sublime os trechos destinados ao público interno e à militância. Ignore os erros involuntários e mesmo os estudados. Esqueça o tom de campanha. O resultado será um discurso grande, importante. Lula voltou com tudo. É verdade que o ex-presidente foi beneficiado pela torpeza e pela ignorância do seu oposto.
Depois de dois anos ouvindo Bolsonaro, qualquer um que lhe fizesse frente se destacaria com louvor. Mas Lula foi mais longe. Falou de política, economia, saúde; conversou com os brasileiros nos seus termos; mostrou que está pronto para negociar em todos os âmbitos; e apontou quem é o seu inimigo.
Isso, sem texto pronto, sem teleprompter, apenas com uma lista de tópicos em sua frente.
Com a mesma empatia de sempre, mas sério, sem se permitir às gracinhas habituais de seus discursos, Lula se posicionou de maneira inequívoca como uma opção para o Brasil e os brasileiros. Os diversos pontos do discurso, mesmo os que não pareciam apontar na mesma direção, tinham Bolsonaro como alvo. Mas sempre com postura presidencial.
Ao lembrar que a terra é redonda ou ao criticar a política de liberação de armas, o tom foi de compromisso, não de chacota. Mesmo ao defender uma política econômica não liberal, dizendo que o governo não tem ministro da Economia, o ex-presidente queria mesmo era mostrar seu apoio à política de distribuição de renda através do salário emergencial, substituto provisório do seu Bolsa Família.
A insistência ao tratar do coronavírus também tinha endereço. E o destinatário do Palácio do Planalto recebeu a mensagem no mesmo dia, se apresentando logo em seguida para falar sobre a vacinação e, incrível, usando máscara.
Aos brasileiros, Lula falou da fome, do preço da gasolina, da picanha na mesa do trabalhador, do seu eterno objetivo de chegar à raiz dos problemas nacionais por querer um mundo mais justo. Retórica, claro, mas que toca no coração das pessoas. Se Bolsonaro consegue acertar o estômago dos brasileiros com suas grosserias, Lula busca o coração com suas sutilezas. E é isso o que o distingue do outro.
Negociação com o Congresso, com toda a classe política, nas suas palavras, e com os empresários é aceno do Lulinha, Paz e Amor. O mesmo que disse não guardar mágoas, apesar das chibatadas que levou.
Os claros exageros, como a afirmação de que Marisa, sua mulher, morreu por causa da Lava Jato, serviram apenas para ele reiterar que apesar de tudo não tem mágoas. Porque, disse, não há espaço nem tempo para guardar ódio. Mesmo quando atacou injustamente jornais e jornalistas, ofereceu um afago ao defender a liberdade de imprensa e ao elogiar a edição de ontem do Jornal Nacional.
Aliás, uma frase do discurso explica o morde e assopra de Lula com relação à imprensa.
“A gente começa a gostar da vida quando está mais perto do céu”, disse o ex-presidente.
Pois Lula esteve muito perto do inferno, quando aliados seus, do seu partido e dos que o apoiavam, saquearam em conjunto a Petrobras. Também quando seu governo foi denunciado por pagar por apoio de partidos com dinheiro público, o famoso mensalão. Ou quando sua sucessora, Dilma Rousseff, quase quebrou o país. Ou ainda quando um apartamento e um sítio foram estruturados por empreiteiras para atender o gosto da sua família.
Nestes momentos em que esteve bem próximo do fogo eterno, Lula não gostava dos jornais e muito menos do JN.
Mas mesmo esse desvio pode rapidamente virar passado na retórica política de Lula. O que não mudou e não vai mudar, é a grandeza do seu discurso. Lula sabe com quem fala, sabe bem o que quer falar e sabe melhor ainda como falar. Bolsonaro não está mais só.
Carlos Andreazza: O discurso de Lula
Não vi “paz e amor”. E nem me pareceu que fosse essa a intenção. Seria falso. Um sujeito, depois de mais de quinhentos dias de cana, cujo algoz – um juiz – decompõe-se em (justa) suspeição quer é guerra. Mas sem pressa; e de paletó, camisa impecavelmente passada. Sem pressa para se declarar candidato; antes – senhor do tempo – à frente do projeto que difundirá a sua inocência. Inocente não é; mas inocente será o que julgado por um acusador. Não havia “paz e amor”. Havia essa verdade; a de Gilmar Mendes: a de que corrupção nenhuma pode ser condenada com corrupção. Errado não está.
Esse foi o palanque – armado na altitude de quem conversa com o Papa – desde o qual falou Lula. Uma aula de discurso político – admita-se. (E seria aula mesmo se estivesse o sarrafo lá no alto.) Construção de profissional a serviço de rara capacidade de farejar para onde os ventos pandêmicos levam as demandas da sociedade. Articulação retórica de mestre para, se quiserem mesmo estabelecer o debate na cancha da polarização, aceitá-la nas bases que ditou: ele sendo o que usa máscara, prega distanciamento social e defende vacinação em massa. Radicalmente.
Com cálculo de provocador: se Bolsonaro, o capitão, investe em facilitar o comércio – sem fiscalização – de armas, Lula será o preocupado com o sucateamento das Forças Armadas.
Aula – e aqui fala Carlos Andreazza, jamais um esquerdista.
Para que fiquem claros os termos em que topa polarizar com o presidente: Lula associou Bolsonaro – com ênfase – às milícias. Será assim doravante. O discurso: não pode admitir que o país que governou – que fez respeitado no mundo – ora vá nas mãos de um miliciano.
Nem tudo foi verdadeiro, porém. Mentiu um lote – disparou números como nem Ciro Gomes. (As agência de checagem cortarão um dobrado.) E foi especialmente duro vê-lo falar sobre uma bem-sucedida gestão petista na Petrobras, como se não houvesse, entre esses gestores, Paulo Roberto Costa, Renato Duque e Nestor Cerveró – como se não houvesse, apenas como um exemplo, a barbaridade chamada Pasadena.
É um fato que a petroleira foi pilhada durante os governos do PT – fato também sendo que, como empresa, em função das escolhas lulopetistas para sua administração, quebrou. E a esse prejuízo – bilionário – não se referiu; pancada que ceifou empregos.
Mas aqui se analisa o discurso e só discurso; sendo fato também que a Petrobras de Lula – aquela onipresente, indutora maior da economia – simboliza um projeto de Brasil; de Brasil grande, independente, autossuficiente. (Que exportava óleo; e que, por isso, jamais poderia ser refém do dólar. O que fizeram
com essa nação para que se achatasse assim?) O Brasil de Lula – em que havia fábrica da Ford e onde quatro milhões de carros eram vendidos por ano – comunica. Alcança. Mobiliza. Atrai.
É um fato que a Petrobras de Lula – apesar da corrupção que abrigou profundamente – mobiliza memórias. Boas. A estatal que se expandia, quase uma casa moeda, distribuindo riquezas e gerando oportunidades – e não apenas, atenção, aos pobres. O ex-presidente jogou várias iscas. Quer ouvir os empresários – diz. Quer mesmo é lembrá-los de que foram felizes com ele; naquele Brasil-Petrobras que fabricava navios-sonda e multiplicava postos de trabalho (e propinas). Quer conversar com os políticos – com o Centrão. Quer de todos – e também dos mercados – compreender (como se Dilma Rousseff não tivesse existido) por que se foram associar ao liberal-bolsonarismo. Quer mesmo é fazer ver a todos que foram muito felizes com ele; e sem (promessas de) privatizações.
Um projeto de Brasil. Foi com isto que o ex-presidente jogou em seu primeiro pronunciamento – a aula – após reaver os direitos políticos: ele tem um projeto de Brasil. Goste-se ou não, Lula tem um. Em resumo: um país miserável como o Brasil não pode prescindir da mão forte do Estado. Simples e poderoso; tanto mais em meio a uma pandemia de efeito depauperante sobre os mais pobres.
É para onde o vento varrido pela peste levou o desejo da sociedade: para um lugar – espaço natural a Lula, que joga em casa – em que o governo injete dinheiros emergenciais na economia de modo a que o povo empobrecido sobreviva à falta de empregos, circunstância agravada pela incompetência-insensibilidade de Bolsonaro/Guedes.
Esse foi o discurso. O recado. Mais claro impossível. Lula – sangue nos olhos – desdobrar-se-á daí. Vem para a guerra – ou não seria um miliciano o seu adversário. E vem gigante. A caneta, porém, está com o outro. Que reagirá – acelerando o populismo que já vai em curso – com um derramamento de Estado. Precisa amarrar o Centrão, cujo preço subiu pela hora do almoço.