extremismo
Pedro Venceslau: Aliados apelam para Moro retornar ao cenário eleitoral para 2022
Podemos e PSL tentam convencer ex-ministro e ex-juiz da Lava Jato a se lançar candidato à Presidência
Líderes partidários e defensores da Operação Lava Jato passaram a fazer apelos públicos na tentativa de convencer o ex-ministro e ex-juiz Sérgio Moro a se posicionar como potencial candidato na disputa pelo Palácio do Planalto em 2022.
Com um perfil discreto, Moro submergiu desde que se tornou sócio-diretor da consultoria americana Alvarez & Marsal no ano passado, mas tem mantido conversas reservadas “como cidadão” sobre o cenário nacional com parlamentares aliados.
Nesses diálogos, segundo apurou o Estadão, Moro resiste a dar sinais claros sobre suas pretensões políticas, mas não descarta uma futura candidatura. O ex-ministro demonstra desconforto com o que interlocutores chamam de “progressiva deterioração” do País e dos mecanismos anticorrupção.
Os entusiastas da candidatura do ex-juiz voltaram a se mobilizar após a decisão da maioria da Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) de liberar o compartilhamento da íntegra das mensagens vazadas da Lava Jato com a defesa do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
A expectativa do julgamento sobre a suspeição de Moro no caso do triplex do Guarujá (RJ) deu munição à narrativa dos partidários de Lula, mas também aglutinou as correntes dissidentes do bolsonarismo que apostam no discurso contra a corrupção para formar uma frente eleitoral em 2022.
“Uma reviravolta (nas decisões da Lava Jato) chocaria a população que votou contra a corrupção em 2018 e beneficiária uma eventual candidatura do Moro, que simboliza esse sentimento. As cartas para 2022 ainda não foram apresentadas em sua plenitude, mas ele já tem visibilidade”, disse o senador Alvaro Dias (Podemos-PR).
O parlamentar, que disputou à Presidência em 2018, conversou com Moro pela última vez após a eleição para a presidência da Câmara. Na mesma linha, a deputada Renata Abreu (SP), presidente nacional do Podemos, disse acreditar que Moro sai maior a cada “ataque” que sofre. “O povo sabe que ele, sozinho, tem reafirmado seu papel de herói nacional. Mesmo diante de mensagens hackeadas, obtidas de forma ilegal, o conteúdo revela a cautela e a seriedade que fez dele, no auge da operação, um orgulho de todos os brasileiros”, afirmou a dirigente.
O Podemos está em compasso de espera e considera o ex-juiz o seu “plano A” para 2022. Outra legenda que mantém as portas abertas para Moro é o PSL, que planeja um processo de expurgo da ala bolsonarista. “O PSL é um partido moderado e de centro- direita. Estamos buscando construir pontes com ele. Moro é o nome mais consistente do ponto de vista eleitoral. Ele aglutina os lavajatistas, antipetistas e aqueles que pregam a ética na política. Ou seja: as três vertentes da sociedade que o Bolsonaro abdicou”, disse o deputado federal Junior Bozzella (SP), vice-presidente nacional do PSL.
Em suas redes sociais, a deputada estadual paulista Janaína Paschoal (PSL) fez um apelo para que Moro entre no tabuleiro eleitoral de 2022. “Haja vista o inferno que estão transformando a vida dele, não vejo outro caminho para Sérgio Moro além de se candidatar à Presidência da República em 2022”, escreveu a parlamentar no Twitter.
Horizonte
No ano passado, apoiadores de Sérgio Moro no Congresso viram na sua contratação por uma consultoria americana e em manifestações recentes sinais de que o ex-ministro está reticente quanto a uma eventual candidatura em 2022. A interlocutores nos últimos meses, Moro indicou que não está determinado a ser protagonista em um projeto eleitoral neste momento.
Mas apesar da discrição, ele tem participado de articulações por uma candidatura de centro-direita, em oposição ao presidente Jair Bolsonaro. Em setembro, ele jantou com o governador de São Paulo, João Doria (PSDB). Segundo o tucano, foi uma conversa “sem prerrogativa de nomes, mas sim de princípios”. Depois do encontro, Moro se reuniu com o apresentador Luciano Huck, que também se movimenta para disputar a Presidência.
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Vera Magalhães: Acordo entre STF e Câmara é difícil
Nos momentos que antecediam a reunião da Mesa da Câmara para decidir sobre a prisão em flagrante do deputado Daniel Silveira (PSL-RJ) pela Polícia Federal, atendendo determinação do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, deputados e ministros da Corte conversavam nos bastidores sobre a possibilidade de um acordo de procedimentos que evitasse desgaste para os dois Poderes.
Por esse desenho, a Mesa da Câmara faria um aceno ao STF na reunião prevista para começar agora, às 13h, reconhecendo a gravidade dos ataques que o deputado desferiu contra o STF e repudiando os vídeos com ameaças a integrantes da Corte e ao funcionamento do Judiciário. Ao mesmo tempo, encaminharia imediatamente ao Conselho de Ética da Câmara os vídeos com a recomendação de análise, a partir da semana que vem, da possibilidade de abertura de investigação por quebra de decoro parlamentar.
Essas iniciativas viriam juntamente com a manifestação da Mesa contra a prisão em flagrante por crime inafiançável, que, segundo conversei com deputados, é unanimemente condenada por eles, uma vez que, pela justificativa do ministro, segundo eles, qualquer um pode vir a ser preso por vídeos gravados anos atrás, uma vez que o flagrante não se encerra no tempo, no entendimento exarado por Alexandre de Moraes.
A expectativa de deputados é a de que, com esse gesto em reconhecimento ao caráter inaceitável da postura de Daniel Silveira, seria mais fácil obter o relaxamento da prisão do deputado não ainda nesta tarde, quando se espera que o STF referende por unanimidade a decisão de Moraes, mas na audiência de custódia.
Essa audiência será comandada pelo próprio ministro relator do inquérito das fake news e ameaças contra a Corte e seus integrantes, e só deve ser marcada para a manhã de quinta-feira.
Mas não deverá ser tão simples assim obter um acordo entre Câmara e STF. Ninguém bota nenhuma fé na possibilidade de uma investigação contra Daniel Silveira avançar no Conselho de Ética, órgão que está sem se reunir desde o início da pandemia, mas que, mesmo antes, era inerte em relação a sucessivas manifestações antidemocráticas de deputados como Eduardo Bolsonaro, por exemplo.
Além disso, é considerada insuficiente essa iniciativa por parte da Mesa da Câmara, e ministros do Supremo sobre os quais conversei a respeito da possibilidade de uma composição acreditam que, se a Corte ceder agora, haverá uma escalada de ataques à democracia e às instituições.
Por fim, os ministros parecem querer pagar para ver como a Câmara vai se comportar, justamente pelo fato de que há vários outros parlamentares investigados no mesmo inquérito, e nada indica que eles estejam moderando suas ações. Ministros me disseram duvidar que, numa votação aberta, e com voto nominal, a maioria da Câmara vá votar pela suspensão da prisão de Daniel Silveira.
Pode ser que a Corte esteja incorrendo em erro de avaliação, já que é conhecido o espírito de corpo dos parlamentares e há vários deles, inclusive em postos de comando na Casa, com processos em andamento no STF.
Um histórico recente de votações da Câmara e do Senado sobre prisão de parlamentares dá a medida: em 2016, no auge da Lava Jato, o Senado votou, aberto, a favor da manutenção da prisão do senador Delcídio Amaral, por 53 a 13.
Já no ano seguinte passou a vigorar o espírito de corpo. Por 44 a 26, também em votação aberta, o mesmo Senado rejeitou o recolhimento noturno à prisão de Aécio Neves.
O mesmo precedente valeu para que a Câmara rejeitasse o afastamento do mandato do deputado Wilson Santiago (PTB-PB) no ano passado. Foram 233 votos a 170, e nada menos que 101 abstenções.
Míriam Leitão: STF mira defensor radical do governo
A força dos eventos em torno da prisão do deputado Daniel Silveira (PSL-RJ) vai muito além do personagem. O Supremo consagrou duas teses. Primeiro, que a imunidade parlamentar não cobre ataques e ameaças à democracia. Segundo, que a internet alarga o conceito de prisão em flagrante porque nela se pratica crime continuado. O que era no começo do dia uma decisão do ministro Alexandre de Moraes virou de todo o STF após a aprovação por unanimidade. A cúpula da Câmara tentava encontrar formas de amenizar a punição.
Daniel Silveira é reincidente. É investigado no inquérito das fake news e das manifestações antidemocráticas. É um defensor da violência como arma política. Em um dos seus vídeos mais conhecidos, ele ameaça de morte manifestantes antifascistas. Mais importante, ele é um bolsonarista raiz, da ala radical. Ao atacar o Supremo ele estava tentando escalar a crise iniciada pela declaração do general Villas Bôas de que o Alto Comando do Exército participou da redação da postagem que fez em 2018 ameaçando o STF. Três dos integrantes do Alto Comando da época são ministros de Bolsonaro, e o então ministro da Defesa é diretor-geral de Itaipu. Era nessa crise que Daniel Silveira tentava surfar.
Ex-policial militar, defensor da disseminação das armas, propagandista da ditadura e do AI-5, o deputado é fruto também do perigoso fenômeno da politização das polícias militares, uma das bases do atual presidente. O ex-ministro da Segurança Raul Jungmann explica melhor.
— A hiperpolitização das polícias militares acontece pela permissão de que eles saiam, se candidatem e, se perderem a eleição, possam voltar e retomar o serviço ativo. Ganhando ou perdendo pode-se voltar. A possibilidade de ir e vir da política para a PM tem sido um estímulo a que indivíduos liderem rebeliões e motins para depois se candidatarem. A greve é proibida, mas eles entram em greve e depois são anistiados — diz Raul.
E pior, não há um período de desincompatibilização. Ele pode sair da corporação direto para a campanha. E se não for eleito, volta direto. Nada a perder, portanto. Um estudo feito pela newsletter Fonte Segura , do Fórum Brasileiro da Segurança Pública e da Analítica Comunicação, mostra que isso não acontece em outros países. Bolsonaro estimulou ao máximo essa politização e continua cultivando as PMs como uma de suas bases. Em 2018, foram eleitos 77 militares ou policiais militares, 43 deles pelo PSL, partido ao qual o presidente era filiado.
Silveira, ao discutir no IML, para não usar máscara, disse que é um policial. Não é mais. Ficou apenas cinco anos, nove meses e dezessete dias. Não pode voltar, portanto, porque não completou 10 anos. No vídeo em que ameaçou manifestantes, ele também falou como se ainda fosse policial e lembrou que eles andavam armados e “em algum momento um de vocês vai achar o de vocês e tomar um no meio da testa e no meio do peito”. No vídeo que o levou à prisão o deputado fez ameaças físicas aos ministros do STF.
A decisão do STF, independentemente da reação da Câmara, esclarece princípios que o governo de Jair Bolsonaro tentou confundir. A liberdade de expressão não serve para encobrir crimes contra a democracia. Nem mesmo de um parlamentar. Bolsonaro quando era deputado fez apologia da ditadura e da tortura, falou em matar adversários políticos e nunca foi punido. Vejam o preço que o país paga pela leniência das instituições.
O presidente Jair Bolsonaro nos decretos de liberação de armas eleva o perigo extremo que a democracia brasileira corre no seu governo. Jungmann acha que a liberação de armas e a redução do controle do Estado sobre elas levarão a um aumento do crime e a um fortalecimento do crime organizado.
É claro que Bolsonaro está também tentando formar milícias políticas. Em várias ocasiões mostrou que seu objetivo é político. Ele afirmou na famosa reunião ministerial que queria “escancarar” o acesso às armas, alegando que assim resistiriam a ditadores. Disse que pessoas armadas poderiam enfrentar governadores e prefeitos. Por fim afirmou que aqui aconteceria pior do que houve nos Estados Unidos, no ataque ao Capitólio.
Esta crise extrapola em muito a figura medíocre e repulsiva do deputado que a provocou. Se a Câmara proteger o truculento Daniel Silveira, o país afunda mais um pouco no abismo institucional em que entrou desde a eleição de Bolsonaro, um inimigo declarado da democracia.
Adriana Fernandes: Nova PEC deve prever 'waiver' para volta do auxílio emergencial
Nova rodada do benefício é queda de braço entre gastar e gastar com contrapartidas de corte de despesas
Para a concessão de uma nova rodada de auxílio emergencial, com valor das parcelas limitado a R$ 250,00 e custo total de até R$ 30 bilhões, a equipe econômica calcula que a medida de contrapartida já foi dada com o congelamento dos salários dos servidores até o fim deste ano para União, Estados e municípios.
A nova versão da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) de orçamento de guerra, que está sendo negociada pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, e lideranças do Congresso, deve prever uma espécie de “waiver” (dispensa) extraordinário para concessão do auxílio durante o vácuo jurídico deixado pelo fim do estado de calamidade em 31 de dezembro do ano passado.
Para acionar o “botão” de um protocolo de guerra e combater o recrudescimento da pandemia, o que exigiria gastos maiores de R$ 30 bilhões, a proposta também vai prever mecanismos que garantam contrapartidas mais duras de ajuste fiscal, como o congelamento de salários dos servidores por mais dois anos. São medidas para serem acionadas no futuro, junto com o arcabouço de um novo marco fiscal para uma cláusula de calamidade pública.
O congelamento de salários começou a valer no final do ano passado depois de uma longa tramitação do projeto que liberou um alívio financeiro total de cerca de R$ 125 bilhões aos governadores e prefeitos durante a pandemia. Como contrapartida, foi incluída na lei a proibição a reajustes e aumento de gastos com pessoal até 31 de dezembro de 2021. A economia com medida na época foi estimada em cerca de R$ 130 bilhões pelos técnicos do Tesouro Nacional.
A ideia que ganha força nas negociações é a de que um aumento de R$ 30 bilhões no endividamento público para pagar mais quatro parcelas do auxílio pode ser absorvido, tendo como contrapartida o congelamento de salários autorizado pelo Congresso. O sacrifício já teria sido feito para abrir caminho a esses gastos extras no período atual, que tem sido chamado pela área econômica de “cauda” da pandemia – uma extensão final dos efeitos mais nocivos da covid-19 na economia, segundo esse entendimento da equipe de Paulo Guedes.
Mas gastos acima do patamar de R$ 30 bilhões necessitariam da aprovação de mais medidas e do funcionamento do Conselho Fiscal da República, colegiado a ser criado com integrantes dos três poderes e do Tribunal de Contas da União (TCU). Caberá ao Conselho acionar a cláusula de calamidade.
O texto da emenda constitucional não vai fixar valores, mas a régua dos R$ 30 bilhões tem sido tratada internamente como um limite para uma liberação mais ágil do auxílio, a partir de medidas de ajuste já adotadas e sem ter de esperar pela formação desse colegiado, num processo que poderia levar mais tempo. Novas medidas, por sua vez, dependeriam de novas contrapartidas fiscais. Sem isso, o texto seria o equivalente a uma reedição pura e simples da PEC do orçamento de guerra – o que a equipe econômica descarta por considerar um “cheque em branco” nocivo às finanças públicas, com consequências graves.
Na semana passada, os presidentes do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), e da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), entraram num consenso de que será preciso aprovar uma nova PEC para pagar a nova rodada de auxílio, com as despesas fora do teto de gastos (regra prevista na Constituição que impede o crescimento das despesas acima da inflação). A edição de apenas um crédito extraordinário, que também ficaria livre do limite, sem a aprovação de uma PEC, foi descartada.
O ministro da Economia cobra das lideranças medidas de contrapartidas fiscais para o futuro, com a criação de um novo regime fiscal que conteria medidas permanentes de ajuste que estavam previstas na PEC do pacto federativo enviada ao Congresso no final de 2019.
Entre essas medidas permanentes, a equipe econômica acredita ser possível incluir a criação da figura do "estado de emergência fiscal". União, Estado ou município que declarar estado de emergência fiscal, com base em critérios definidos na proposta, poderá acionar medidas de contenção de gastos automaticamente por dois anos. O objetivo é que nesse período eles recuperem a saúde financeira.
Nesse caso, trata-se de uma medida que vai além da pandemia e que foi pensada durante o primeiro ano do governo Jair Bolsonaro, após um grupo de governadores e prefeitos pedir a aprovação no Congresso de travas para conter despesas obrigatórias nos seus Estados, que já se encontravam em difícil situação financeira.
Na proposta original da PEC do pacto federativo, o critério para Estados e municípios acionarem mecanismos como redução de jornada e salários de servidores e suspensão de concursos era que as despesas correntes excedessem 95% da receita corrente.
A nova PEC de guerra pode prever uma cláusula vinculante para que as mesmas práticas cobradas pelo TCU sejam adotadas pelos Tribunais de Contas estaduais e municipais, evitando as maquiagens em gastos que abriram caminho para o desequilíbrio nas contas. A desvinculação de fundos públicos é outra medida em análise para ser incluída na primeira PEC.
Nas negociações, a equipe econômica está pisando em ovos porque teme que se repita o que aconteceu no ano passado, quando as medidas de ajuste antecipadas pela imprensa acabaram sendo rifadas pelo presidente Jair Bolsonaro e por lideranças do Congresso antes mesmo de serem enviadas.
Basta o ministro citar o mantra de que é preciso acionar o “DDD”, para desindexar, desvincular e desobrigar o Orçamento, que sai cada um para um lado, fingindo que não é consigo. Uma queda de braço entre gastar e gastar com contrapartidas de corte de despesas.
Ribamar Oliveira: A preocupação já é com o próximo ano
A nova “cláusula de calamidade” será usada em 2022
O governo ainda não explicitou a sua proposta para o “novo marco fiscal”, que negocia com os presidentes da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), e do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG). As fontes consultadas pelo Valor informaram, no entanto, que a preocupação das autoridades é aprovar um marco legal que permita ajustar as contas públicas do próximo ano, principalmente na eventualidade de que a pandemia da covid-19 se prolongue por mais alguns meses.
Algumas notícias desencontradas dificultam a compreensão do que está acontecendo. Em primeiro lugar, a prorrogação do auxílio emergencial, com benefício mensal em valor substancialmente inferior ao concedido no ano passado, não depende de novos cortes de despesas ou de medidas fiscais adicionais. Simplesmente porque elas já foram adotadas para este ano e constam da proposta orçamentária para 2021, que ainda está em análise pelo Congresso Nacional.
A lei complementar 173/2020 proibiu, até 31 de dezembro de 2021, que a União, Estados e municípios afetados pela calamidade pública decorrente da pandemia concedam aumento, reajuste ou qualquer vantagem salarial aos membros de Poder ou de órgão, servidores e empregados públicos. A LC abriu exceção para aqueles aumentos que já tinham sido aprovados pelo Congresso anteriormente, como foi o caso do reajuste para os militares.
O presidente da República, os governadores e os prefeitos ficaram proibidos também de criar emprego, cargo ou função que implique aumento de despesa, realizar concurso, admitir ou contratar pessoal a qualquer título, criar ou majorar auxílios, vantagens, bônus ou abonos, criar despesa obrigatória de caráter continuado e de adotar medida que implique reajuste de despesa acima da variação da inflação.
Todas as proibições estão previstas no artigo 8º da LC 173, que passou a ser conhecido na área técnica como “cláusula de calamidade pública”. Ela foi uma compensação às imensas despesas da União para preservar os brasileiros e a economia dos efeitos nefastos da pandemia. Quando elaborou a proposta orçamentária para 2021, em agosto do ano passado, o governo adotou as medidas definidas no artigo 8º da LC 173. A “cláusula de calamidade pública” está, portanto, sendo cumprida.
O problema é que, embora a pandemia tenha arrefecido no segundo semestre de 2020, se intensificou no início deste ano, apresentando agora uma segunda onda, tão letal quanto a primeira. Discutiu-se muito a prorrogação do decreto de calamidade pública editado pelo presidente Jair Bolsonaro, mas a equipe econômica avaliou que a medida não seria necessária. O número de óbitos não parava de diminuir e a economia estava recuperando em “V”.
Com base nessa avaliação, o governo concluiu que não seria necessário prorrogar o auxílio emergencial. E, por isso, não há previsão, na proposta orçamentária para 2021, de despesa com o benefício. Assim, a meta de déficit primário para este ano, proposta pelo governo em dezembro do ano passado, foi definida sem essa despesa.
Agora, diante da segunda onda da covid-19, o governo decidiu prorrogar o auxílio, que custará algo próximo de R$ 30 bilhões. Com essa despesa, não será possível cumprir a meta fiscal estabelecida. O governo precisa, portanto, de um dispositivo legal que o desobrigue de cumprir a meta. No ano passado, a LC 173 deu essa permissão. Agora, o ministro da Economia, Paulo Guedes, afirmou que precisa de uma “PEC de Guerra” com a mesma permissão.
Necessita também, segundo informou, de uma “cláusula de calamidade pública”, que defina as medidas a serem adotadas para conter as despesas, nos moldes do artigo 8º da LC 173, compensando a elevação do endividamento público provocada pelo pagamento do novo auxílio emergencial. Guedes precisa da “cláusula” para elaborar a proposta orçamentária de 2022. Isto significa que, se ela for aprovada, os membros de Poder e os servidores não terão aumento salarial também no próximo ano.
Há uma novidade na proposta de Guedes. Ele quer que a “cláusula de calamidade” seja permanente e mais ampla. Ou seja, que ela possa ser acionada em qualquer calamidade que assole o país, um Estado ou município brasileiro. E que não tenha prazo determinado, como ocorreu com a LC 173, cuja cláusula só vale até 31 de dezembro deste ano.
Não está claro qual será a amplitude do conceito de “calamidade”. A situação de insolvência das contas públicas também está incluída no conceito? Se estiver, qual será o limite de deterioração das contas que será considerado como “calamidade”? Não ficou claro também quais serão as medidas de ajuste. A única indicação obtida pelo Valoré que a relação de medidas será maior do que a lista da LC 173.
A prorrogação do auxílio cria outra dificuldade para o governo. Como não havia previsão de pagamento do benefício neste ano, a equipe econômica não incluiu a despesa no montante de títulos que o Tesouro Nacional será obrigado a emitir neste ano para pagar despesas primárias.
A Constituição determina que o endividamento público não pode aumentar acima das despesas de capital (investimentos e amortizações). O princípio é conhecido como “regra de ouro” das finanças públicas. Para emitir títulos para pagar despesas correntes, o governo necessita de autorização do Legislativo. O pedido de crédito suplementar precisa ser aprovado por maioria absoluta de deputados e de senadores.
A proposta orçamentária deste ano prevê que o governo deverá emitir R$ 453,7 bilhões em títulos para cumprir “a regra de ouro”. Com o novo auxílio, o valor vai aumentar. A despesa com o benefício não está submetida ao teto de gastos da União. Ele será pago com crédito extraordinário, que fica fora do teto.
Por fim, é importante observar que tentar criar uma “cláusula de calamidade pública” abrangente e permanente por meio de PEC é um risco considerável, pois ela precisa ser aprovada por três quintos de senadores e deputados, em dois turnos. Talvez fosse melhor criar a “cláusula” por projeto de lei complementar.
Vinicius Torres Freire: Bolsonarismo e bolsonarices custam caro para economia e pobres
Brucutus causam crises políticas que emperram decisões de governo e Congresso
O bolsonarismo custa caro até para Jair Bolsonaro, embora este governo não seja lá muito capaz de fazer certos cálculos pragmáticos a respeito de sua sobrevivência.
O sururu sórdido causado por esse deputado federal Daniel Silveira (PSL-RJ) é um exemplo menor, em termos práticos. Afora imprevistos, essa crise não deve paralisar o Congresso por mais que um par de dias. É pouco, mas o tempo já era escasso para aprovar a emenda constitucional que deve abrigar o novo auxílio emergencial e o Orçamento —é preciso fazê-lo até março. Outras bolsonarices ou suas sequelas podem causar mais tumultos políticos e parlamentares que afetariam até as perspectivas abaixo de medíocres da economia para este 2021.
Dezembro e também janeiro foram meses abaixo das expectativas já limitadas de atividade econômica. A julgar pelo valor das vendas por meio de cartões, janeiro foi parecido com dezembro, mês em que, pela estatística do IBGE, as vendas no varejo caíram 6,1% em relação a novembro de 2020. A confiança do consumidor e das empresas continuou baixando no início do ano. É um efeito óbvio de piora da epidemia e do fim do auxílio emergencial e do benefício de complementação de salários reduzidos pelas empresas.
Em junho, pico desses benefícios, os pagamentos foram de R$ 51,8 bilhões (uma vez e meia a despesa anual do Bolsa Família). Em setembro, baixaram a R$ 27,5 bilhões. Em dezembro, para R$ 19,5 bilhões. Em janeiro, para quase nada, restos. Sem demanda a economia volta a murchar. A segunda perna do “V” da recuperação de Paulo Guedes vira uma língua caída para fora.
A fim de criar um novo auxílio emergencial em seus termos, o governo tem de convencer o Congresso a aprovar uma emenda constitucional de “Orçamento de calamidade” associada a corte de gastos, dado de barato pelo comentarismo político e econômico. Como se diz faz meses nestas colunas, isso dá rolo.
Exemplo. Com muito aperto e ajuda de leis, a despesa com a folha de servidores federais caiu de R$ 333,8 bilhões em 2019 para R$ 331,8 bilhões em 2020 (valores ajustados pela inflação). “Ajuste” de R$ 2 bilhões. Pelas novas contas do governo, o novo auxílio deve custar R$ 42 bilhões em 2021 (quatro parcelas de R$ 250 para 42 milhões de pessoas) —no Congresso, a conta tende a ficar maior.
É fácil perceber que não bastará arrumar conflito apenas com o funcionalismo. De onde vão sair outras “compensações”?
Se o rolo for grande, a emenda do novo auxílio pode demorar ou até passar sem as “compensações”, com o que haverá algum custo financeiro (dólar e/ou juros mais salgados).
Quanto mais rolo político, mais difícil aprovar qualquer coisa além do básico do básico (auxílio e Orçamento).
No entanto, como se não bastasse a baderna da sua milícia de brucutus, Bolsonaro decreta coisas como o dilúvio de armas e munições, por exemplo. Em si mesmo uma selvageria, o decreto pode causar mais confusão no Congresso.
Mesmo que a economia não tenha por ora perspectiva decente no médio prazo, Bolsonaro poderia manter o vento a seu favor se lidasse de modo menos idiota com os problemas de agora (vacina, Orçamento, a ideia de que não haverá explosão fiscal no curto prazo). Por ora, está quieto e assim frustra suas milícias por não dar apoio ao deputado brucutu, o “Daniel de Quê?”, segundo Luiz Fux, do Supremo. Mas o bolsonarismo está sempre à beira de dar um tiro no pé, no mesmo com que pisa no pescoço dos brasileiros.
Bruno Boghossian: Extremismo bolsonarista é alimentado e protegido pelo Planalto
Extremismo bolsonarista é alimentado e protegido pelo Planalto
Quando ainda frequentava manifestações que defendiam o fechamento do Congresso e do STF, Jair Bolsonaro trabalhou para proteger os golpistas de seu grupo político. Em abril do ano passado, ele indicou que era preciso mudar o comando da Polícia Federal para frear uma investigação contra deputados que atacavam outros Poderes.
A tentativa de blindagem foi registrada numa mensagem enviada pelo presidente ao então ministro Sergio Moro. Bolsonaro reagiu a uma notícia sobre o inquérito contra seus aliados e escreveu: "Mais um motivo para a troca". Agora preso, o deputado Daniel Silveira (PSL-RJ) era um dos integrantes daquele time.
O presidente forçou a troca na PF e produziu uma crise com a demissão de Moro. O governo não conseguiu segurar as investigações, mas o episódio mostrou que Silveira e os demais integrantes daquela tropa de choque não eram um apêndice insignificante do grupo que chegou ao poder depois de 2018.
O extremismo bolsonarista é alimentado e protegido pelo Planalto porque faz parte de um projeto. Em busca de concentração de poder, Bolsonaro investe na corrosão da confiança nas instituições, trabalha para armar apoiadores contra seus adversários políticos e questiona a legitimidade de processos eleitorais, para ficar em exemplos recentes.
Ainda que Bolsonaro tenha fabricado uma trégua com o STF e contratado amigos no Congresso, a máquina golpista continua girando. O presidente pode disfarçar, recusar convites para protestos ou mandar para o exílio um ministro que deixa escapar seus desejos autoritários, mas o vídeo gravado por Silveira ainda reflete a doutrina bolsonarista.
A prisão do deputado é uma ferramenta precária para uma punição necessária. Com boas chances de ser derrubada pela Câmara, a decisão deve ampliar tensões e abastecer os instintos radicais que dão vida ao extremismo político. Para sobreviver, instituições que foram omissas por décadas terão que acordar e reforçar a vigilância."
Antonio Carlos do Nascimento: Nosso adoecimento democrático
Presenciamos um extremismo desmedido, que pensávamos ter ficado na década de 40
Em 28 de março de 2020 o governo de São Paulo estampou em seu portal o recorde histórico de imunização contra a gripe no Estado, com 2,3 milhões de pessoas vacinadas em quatro dias. A ação foi executada pela estrutura do SUS, cabendo elogios às gestões estadual e municipais na coordenação das ferramentas de nosso Sistema Único de Saúde. Virtualmente, nesse ritmo o País inteiro seria vacinado em um ano ao menos com uma dose, de qualquer imunizante.
Em 10 de junho de 2020, o governo de São Paulo assinava acordo com a biofarmacêutica chinesa Sinovac Biotech, envolvendo o Instituto Butantan no desenvolvimento tecnológico da vacina Coronavac; 17 dias depois o governo federal chancelava pacto semelhante entre a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e o projeto desenvolvido pela Universidade de Oxford em parceria com o laboratório AstraZeneca.
Causou enorme entusiasmo o anúncio feito pelo Butantan, em 7 de janeiro, apontando a eficácia da Coronavac em 78% na prevenção de casos leves de covid-19 e 100% nos casos graves. Esses dados sustentaram que 78 em 100 pessoas imunizadas pela Coronavac evoluíram sem sintomas ou com sintomas leves, mas sem necessidade de internação, enquanto a totalidade foi protegida da forma grave da doença, dispensando cuidados de terapia intensiva.
Quatro dias depois, em novo pronunciamento, a mesma instituição informou que a eficácia global é de 50,3%, no que nos assegura que 50 em cada 100 indivíduos vacinados não desenvolvem nenhum sintomatologia, sem invalidar as informações anteriores. No quanto se mostraram sem didática, os porta-vozes devem admitir as críticas, mas no que a vacina representa, são vítimas de imensa injustiça.
Um monitorado e ideológico desprezo foi destinado à parceria firmada pelo governo paulista com a farmacêutica chinesa, durante todo o processo. Em suas origens a depreciação tem cunho político, mas nos seus destinos seu compartilhamento é inconcebível, seja pela ingratidão reservada ao Butantan e ao Estado de São Paulo, ou pela incoerência, no que me refiro ao desdém aos produtos chineses.
Em tempos em que nem o futebol nos notabiliza fora de nossas fronteiras, deveria fazer-nos muito bem saber que o mundo tem o Instituto Butantan como uma das instituições mais importantes e respeitadas na produção de vacinas. O Estado de São Paulo merece respeito, não fosse pelo que representa em seus 33% de participação no PIB brasileiro, ao menos por ser o maior investidor em pesquisas cientificas no País, albergando cérebros de todas as unidades federativas em seus centros de estudos.
Por outro lado, a imensa maioria de todos nós, se não possui, ao menos sonha adquirir um aparelho eletrônico de vanguarda, para o que não aponto novidade ao afirmar que a quase totalidade desses artigos é proveniente de território chinês, assim como a maioria dos insumos e maquinários hospitalares utilizados em todo o mundo. Seria legítimo, não fosse dissimulado, questionar o estímulo que tal comércio promove na perpetuação de uma relação empregado-empregador que não aceitamos no Ocidente.
O Reino Unido e os Estados Unidos iniciaram a vacinação em 8 e 14 de dezembro de 2020, respectivamente. Mas estávamos em 8 de janeiro de 2021 e os britânicos contabilizavam 1,5 milhão de doses administradas, enquanto os americanos alcançavam 6 milhões, número distante dos prometidos 20 milhões de vacinas antes que o último ano findasse. Não vou pormenorizar as dificuldades enfrentadas pela União Europeia em sua marcha vacinatória anticovid-19.
A OMS define saúde como um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não apenas a ausência de doenças. Talvez isso possa explicar como uma fração substancial de brasileiros deixa de contemplar a possibilidade real de fazermos história. Com o SUS somos capazes de efetivar campanha de vacinação de qualquer dimensão, com resolutividades sem precedentes em âmbito nacional. Além de devolver nossa gente à reconstrução econômica brasileira, apagando para os olhos do mundo a mancha que o negacionismo irracional nos impregnou.
Porém estamos presenciando devoções cegas, obediências incondicionais, um extremismo desmedido que pensávamos ter ficado na década de 1940, com o colapso do fascismo e do nazismo. Os insurgentes de agora já não despontam pela fome e pela desigualdade, emergem unidos em suas incapacidades de diálogo e aceitação da ciência.
A invasão do Capitólio por manifestantes apoiadores de Donald Trump mutila, pelo menos por algum tempo, a (aparente) sólida democracia americana, talhando ferida de cicatrização incerta. Entretanto, pior que isso é o exemplo democrático sonhado por grande parte do planeta apresentar suas suscetibilidades.
Por aqui, preocupam os entraves provocados na saúde pública por desinformação orientada. Mas também entristece a perspectiva de que nosso jovem processo democrático possa estar adoecendo gravemente.
DOUTOR EM ENDOCRINOLOGIA PELA FACULDADE DE MEDICINA DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO (USP), MEMBRO DA SOCIEDADE BRASILEIRA DE ENDOCRINOLOGIA E METABOLOGIA (SBEM)
El País: Ameaças de neonazistas a vereadoras negras e trans expõem avanço do extremismo
Ataques contra vereadoras de várias cidades ocorreram em dezembro e polícia ainda busca autores. Vítimas relatam rotina de medo especialistas alertam para escalada das ameaças no país, enquanto os EUA refletem sobre banalização dos discursos de ódio nas redes
Injúrias raciais, infelizmente, não são uma novidade para a professora Ana Carolina Dartora, 37 anos. Primeiro vereadora negra eleita nos 327 anos da Câmara Municipal de Curitiba, e a terceira mais votada na capital paranaense nas eleições 2020, sua campanha foi permeada por ataques, sobretudo nas redes sociais. Até então, Carol Dartora ―como é conhecida a vereadora filiada ao Partido dos Trabalhadores (PT)― considerava as mensagens inofensivas. Mas no início de dezembro ―logo após uma entrevista do prefeito Rafael Greca (DEM) na qual o mandatário disse discordar da existência de racismo estrutural na cidade― ela recebeu por e-mail uma mensagem a ameaçando de morte, inclusive com menção ao seu endereço residencial.
No texto, o remetente chama a vereadora de “aberração”, “cabelo ninho de mafagafos”, e diz estar desempregado e com a esposa com câncer. “Eu juro que vou comprar uma pistola 9mm no Morro do Engenho e uma passagem só de ida para Curitiba e vou te matar.” A mensagem dizia ainda que não adiantava ela procurar a polícia, ou andar com seguranças. Embora Carol tenha ouvido de algumas pessoas que as ameaças eram apenas “coisas da Internet”, especialistas ouvidos pelo EL PAÍS ponderam que não se deve subestimar os discursos de ódio ―a exemplo de toda a discussão que permeiam os Estados Unidos desde a quarta-feira, 6 de janeiro, quando extremistas apoiadores de Donald Trump invadiram o Capitólio em protesto contra a derrota do presidente, provocando cinco mortes.
O e-mail, com texto igual, também foi enviado para Ana Lúcia Martins (PT), também a primeira mulher negra eleita para vereadora em Joinville (SC). As vereadoras trans Duda Salabert (PDT), de Belo Horizonte, e Benny Briolly (PSOL), de Niterói (RJ), também foram ameaçadas pelo mesmo remetente. Até aqui, as investigações policiais dão conta de que o ataque orquestrado partiu de uma célula neonazista que atua sobretudo nas profundezas da internet, a chamada deep web. O provedor do qual a mensagem foi enviada tem registro na Suécia, o que dificulta o rastreamento por parte das polícias civis e, no caso do Paraná, do Núcleo de Combate aos Cibercrimes.
“Fiquei olhando para a mensagem perplexa, sem conseguir processar muito. O espanto de outras pessoas do partido me deu o alerta”, contou Carol ao EL PAÍS. “A violência não é só objetiva. A violência política acompanha a minha trajetória e a das outras vereadoras ameaçadas, com barreiras que vão se criando para que a gente não tenha êxito. Nenhuma mulher deveria enfrentar tanta coisa para exercer um direito básico da democracia”, frisa.
Desde então, o medo faz parte do cotidiano da vereadora de Curitiba. “Tô tentando ser mais discreta. Estou pensando até em mudar o meu cabelo. Isso é muito minimizado, desprezado. As pessoas pensam que é bullying, coisa de Internet. É muito nítida a questão de gênero, do sexismo aliado ao racismo.” Mas foi na Internet, por exemplo, que foi planejado, durante semanas, os ataques ao Capitólio dos EUA por grupos de extrema-direita que não aceitam a derrota de Trump para o democrata Joe Biden.
Ódio racial
Filiada ao PT desde os anos 1980, Ana Lúcia Martins, 54, foi a primeira mulher eleita pelo partido em Joinville (SC) e, assim como Carol Dartora, a primeira negra na Câmara Municipal. A professora, educadora física e alfabetizadora iniciou a sua formação e participação política ainda na adolescência, em grupos de jovens da Igreja do Cristo Ressuscitado, no bairro Floresta, onde nasceu e cresceu. Decidiu disputar o pleito após um longo amadurecimento junto aos movimentos negros e de mulheres.
Após sua vitória nas eleições 2020, as primeiras intimidações já surgiram pelo Twitter, quando ela ainda comemorava a vitória. “Uma conta fake veio e comentou: ‘agora a gente precisa matar ela para o suplente, que é um homem branco, assumir’. Então não era uma questão de ódio ao partido, ou somente machismo. O ódio era racial mesmo”, pontua. Dias depois recebeu o mesmo e-mail que a vereadora curitibana, do mesmo remetente. “Diante dessa denúncia a gente pensou que não podia mais descuidar” conta Ana Lúcia, que agora anda escoltada por seguranças pagos por membros do partido. Segundo ela, essas pessoas fizeram uma vaquinha para arcar com os custos.
Foi oferecido à vereadora integrar o Programa Federal de Assistência a Testemunhas. “Para nós isso não serve, porque aí não poderia exercer meu mandato, e queremos essa garantia” salienta Ana Lúcia. A Polícia Militar catarinense ofereceu rondas e viatura em eventos públicos, desde que a vereadora solicite com antecedência, via ofício.
Pressão internacional
Advogado do Diretório Municipal do PT em Curitiba e também professor da pós-graduação em Direito da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Paulo Opuska disse acreditar que medidas mais assertivas em relação à proteção de Carol, Ana Lúcia e outras vereadoras ocorrerão por pressão de entidades internacionais. Ele, que acompanha o caso, fez um relatório a respeito para a Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Opuska procurou a Secretaria de Segurança Pública do Paraná (Sesp) para solicitar segurança à vereadora do Estado. “O secretário [Romulo Marinho Soares] não atendeu a Carol. Você não pode deixar que a responsabilidade saia da mão do agente [Estado]. Temos que ter o cuidado de não banalizar. Não é difícil acontecer o que aconteceu com a Marielle [Franco]em uma cidade como Curitiba, cujo racismo estrutural aparece no discurso do próprio prefeito.”
Em nota, a Secretaria de Segurança Pública afirma que “após haver solicitação de audiência para que o secretário atendesse a vereadora eleita, ele designou um delegado especializado, integrante da Segurança Pública, para recebê-la (tendo em vista que ele estava com outras agendas prévias e externas). Sendo assim, a vereadora teve o devido atendimento”, argumenta a pasta. Ainda de acordo com a entidade, o caso requer uma “investigação complexa”.
Necessidade de reação
Na análise da professora do Setor de Educação da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e coordenadora do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros (Neab), Megg Rayara Gomes de Oliveira, existe um consentimento por parte do Poder Público para que esses grupos neonazistas se movam com certa liberdade. Primeira travesti negra a obter o título de doutora pela universidade onde hoje leciona, Meggy fala que as denúncias de mulheres negras acabam sendo desacreditadas. “Para ter validade precisa passar pela tutela de pessoas brancas. As pessoas respeitam o cargo que ocupam nosso título. Quem é respeitada não é a mulher preta mas a vereadora eleita.”
Ela também critica a atuação dos partidos sobre a coação sofrida pelas vereadoras. “Elas são de três partidos de esquerda, que não estão dando importância para a gravidade dessas ameaças. Fica evidente que o PSOL não deu atenção para tudo o que acontecia com a Marielle. Parece que os partidos não estão muito preocupados em proteger esses corpos.”
Precursora no Brasil em pesquisas sobre grupos neonazistas que se movimentam na internet, a antropóloga Adriana Abreu Magalhães Dias fala que o neozanismo no Brasil é uma “miríade”. “Existem muitos grupos, cada um deles com uma ou várias células que às vezes partilham da mesma base”, explica.
Em sua tese de doutorado pela Unicamp, ela reúne mais de 15 anos de pesquisas junto a sites, fóruns, blogs e comunidades para descrever como pensam esses extremistas. “Há grupos antigays, de supremacia branca, hitleristas, os que tendem para um discurso nacionalista. No ferver dos ovos, o que está ali é o ódio. Que busca desmanchar a humanidade de uma pessoa, impedir que ela tenha a sua personalidade reconhecida”, explica.
De acordo a antropóloga Adriana, a situação no Brasil hoje é grave e houve um crescimento desses grupos após a eleição que elegeu Jair Bolsonaro presidente em 2018, com um discurso bastante violento. “Para se ter uma ideia, uma professora de ensino fundamental me disse que estava dando uma aula sobre o livro da Anne Frank [autora infantil judia assassinada na Segunda Guerra] e a videoconferência foi invadida. A situação está ficando grave no Brasil, e as pessoas não estão se dando conta. É preciso que a sociedade civil reaja de forma veemente. Não pode acontecer a essas vereadoras o que aconteceu com Marielle. Elas precisam ser protegidas pelo Estado. Como sociedade civil que pensa no processo civilizatório, temos que reagir.”
Vinicius Torres Freire: O extremismo odiento, com ou sem Trump
Polarizações socioeconômicas e ódios diversos não vão passar tão cedo nos EUA
Donald Trump é uma doença ou sintoma de um mal pior? Derrotado ou vitorioso, já terá deixado sequelas, de qualquer modo. Trump inspirou, incentivou ou legitimou supremacistas brancos, a xenofobia, a desconfiança na razão, em instituições que promovem o debate público esclarecido e que arbitram conflitos de modo democrático, promoveu a mentira sistemática e a disseminação da paranoia. Avacalhou tudo isso que faz parte do pacote básico da democracia liberal.
Há surtos de paranoia ou ressentimento reacionários que causam comoção e sofrimento, mas passam. Ao menos, acabam não tendo força bastante para abalar pilares dessas democracias liberais.
Não foi o caso nem com o macarthismo dos Estados Unidos dos anos 1950, por exemplo. Deixou marcas, destruiu vidas e inoculou para sempre na política americana a rejeição mesmo a ideias sociais-democratas e o delírio anticomunista, mas não produziu instituições autoritárias.
Um movimento contemporâneo, na França, o poujadismo, agregou o ressentimento da pequena burguesia reacionária, corporativista, revoltada com a modernização do país e com instituições da democracia francesa da época, que funcionavam muito mal, aliás, tanto que acabaram em um golpe militar disfarçado, em 1958. Mas a democracia francesa progrediu e o poujadismo é uma nota de rodapé, embora uma de suas crias, Jean-Marie Le Pen, tenha dado brotos depois de quatro décadas dormente.
Trump muita vez é explicado pelo ressentimento dos trabalhadores largados nas regiões decadentes da indústria, pela revolta das comunidades do interior, dos desconfiados da civilização dos costumes e dos direitos de minorias ou discriminados quaisquer, contra as “elites” ilustradas e a indiferença dos tecnocratas econômicos.
A desigualdade de renda e de educação teria sido um fator também, assim como, contraditoriamente, o ressentimento contra programas sociais que justamente atenuam tais iniquidades (de modo diminuto, nos EUA).
Mas mesmo tais ressentimentos não bastam para explicar a força renovada do racismo, das milícias armadas ou o descaramento neonazista. Um grande, embora controverso, sociólogo americano, Richard Sennett escreveu nesta semana no jornal britânico “The Guardian” que o ressentimento seria mais profundo. Reflete uma degradação civilizacional mais séria e que seria a atitude de uns 30% dos americanos.
Trata-se de pessoas para quem a vida socioeconômica é um jogo de soma zero: reconhecer direitos de outros por si só implica a perda dos próprios direitos; rebaixar outrem é um progresso para si. Seria assim parte dos brancos americanos, diz Sennett, um pessimista a respeito da vida pública, do sentimento do propósito da vida ou da situação do trabalho contemporâneo.
Parte da base trumpista de 2016 desertou o presidente agora, acredita Sennett (aposentados, trabalhadores da indústria, pequenos empresários, classe média alta dos subúrbios e parte dos evangélicos). Restaria um núcleo fanático, mas imenso, que tende se tornar ainda mais extremista em caso de Trump: viriam a se sentir mais abandonados e, agora, traídos por outros eleitores e pelo “sistema” em geral.
As feridas americanas não serão curadas tão cedo, conclui Sennett. É difícil captar de modo mais preciso esse ressentimento branco entranhado. Mas decerto tão cedo, no mínimo, não vai se dar um jeito nas polarizações de cor, renda, educação, poder e da falta de entendimento básico do que sejam razão e terreno comum de diálogo.