ex-chanceler

Bruno Boghossian: CPI expõe arquitetura de um governo sem interesse em salvar vidas

Ernesto Araújo disse na CPI da Covid que nunca recebeu orientações para rejeitar parcerias que poderiam ajudar o país a produzir vacinas. Não foi necessário. A comissão já mostrou que a arquitetura do governo Jair Bolsonaro tornou praticamente impossíveis os esforços do país para salvar vidas na pandemia.

A política externa desvairada de Ernesto não foi uma exceção. A tensão contínua entre o Brasil e a China na negociação de insumos para fabricar imunizantes só existe até hoje porque o governo transformou o Itamaraty num joguete da direita radical.

O ex-chanceler tentou disfarçar, mas sabe que a diplomacia pode ajudar ou atrapalhar articulações desse tipo. No início da sessão, ele mesmo disse que o governo recebeu vacinas “graças à qualidade das nossas relações com a Índia”. Depois, precisou reconhecer que a bajulação permanente a Donald Trump não havia rendido frutos nessa área.

Ernesto descreveu um Itamaraty que se curvou aos delírios de Bolsonaro. O ex-chanceler afirmou ter intermediado um telefonema do presidente à Índia para pedir milhões de comprimidos de um remédio ineficaz. Admitiu, ainda, que nem sequer agradeceu à Venezuela pelo oxigênio doado a Manaus durante a crise de desabastecimento na capital amazonense. A coloração política do governo vizinho valeu mais do que as vidas que estavam em risco.

A diplomacia funcionou como peça auxiliar do negacionismo. Ernesto disse que trabalhou para adquirir cloroquina a pedido do Ministério da Saúde e que a pasta foi a responsável pela recusa de parte das doses de vacina disponíveis no consórcio Covax Facility. As duas decisões ficaram na conta de Eduardo Pazuello, próximo depoente da comissão.

A CPI já desenhou a estrutura de um governo que reproduz com precisão as obsessões do presidente. Nos dias pares, os ministros se omitem e demonstram desinteresse pela imunização dos brasileiros. Nos ímpares, sabotam a relação com países-chave e perdem tempo com medicamentos ineficazes contra a Covid.

Fonte:

Folha de S. Paulo

https://www1.folha.uol.com.br/colunas/bruno-boghossian/2021/05/cpi-expoe-arquitetura-de-um-governo-sem-interesse-em-salvar-vidas.shtml


Ruy Castro: A arte de fazer perguntas

Nas últimas semanas, recorri à minha já quase secular trajetória pela imprensa para cometer dois artigos (“Perguntas à queima-roupa”, 7/5, e “Pequeno manual para a CPI”, 12/5), em que tentei passar a possíveis interessados —os senadores da CPI da Covid, por exemplo— algumas dicas sobre como fazer perguntas. Afinal, é delas que vivem os jornalistas, e alguns tiveram a sorte de trabalhar em veículos em que a entrevista era uma grande atração.

Um deles, a antiga Playboy, cujas entrevistas passavam tal seriedade que mesmo os mais alérgicos a elas, como Frank Sinatra e Miles Davis, aceitaram concedê-las. A própria edição brasileira, em sua melhor fase, nos anos 80 e 90, entrevistou empresários, candidatos à Presidência e até suas maiores inimigas: as feministas. E por que eram tão boas as entrevistas de Playboy? Porque seus repórteres tinham cláusulas pétreas a seguir na elaboração da pauta e na sua aplicação. Eis algumas.

Preparar-se para a entrevista como se fosse a última que o sujeito daria em vida. Ler sobre ele para aprender tudo que se sabia a seu respeito, para perguntar justamente sobre o que não se sabia. Fazer uma pauta com centenas de perguntas, com perguntas alternativas entre uma e outra, como repique à pergunta anterior.

Nunca fazer duas perguntas ao mesmo tempo —faz-se a primeira e mantém-se a seguinte engatilhada. Ficar atento à resposta para possíveis buracos e ir a eles em seguida. Nunca cortar ou se intrometer numa resposta —afinal, o camarada está ali para falar. Em caso de súbito branco numa resposta, nunca tentar “ajudar” o entrevistado —ele que se obrigue a preenchê-lo e, ao fazer isso, dirá o que não queria.

E, se o entrevistado mentir, nunca chamá-lo de mentiroso na lata, claro, mas fazer com que ele perceba logo que você não se deixou tapear. Afinal, os repórteres, ao contrário da CPI, não têm poder de prisão.

Fonte:

Folha de S. Paulo

https://www1.folha.uol.com.br/colunas/ruycastro/2021/05/a-arte-de-fazer-perguntas.shtml


O Globo: Ex-chanceler cita teorias da conspiração, diz que não se alinhou aos EUA e que teve boa relação com a China

Ernesto Araújo publica seu primeiro texto depois de deixar o Itamaraty, no qual defende sua gestão e não faz nenhuma autocrítica

André de Souza e André Duchia, O Globo

BRASÍLIA - Hoje funcionário da gestão administrativa do Ministério das Relações Exteriores, o ex-chanceler Ernesto Araújo publicou, neste sábado, um texto em seu blog pessoal no qual defende sua gestão, encerrada há pouco menos de duas semanas sob pressão do Senado.

No texto, similar a tantos que escreveu ao longo de seu período à frente do Itamaraty, Araújo cita teorias da conpiração, defende-se da crítica frequente de que submeteu a soberania do Brasil ao governo de Donald Trump, afirma que teve boa relação com a China e lista o que considera ser realizações de seu mandato. O texto não inclui nenhuma autocrítica.

Araújo dedica boa parte do texto a contrariar quem o acusa de alinhar automaticamente a política externa brasileira à do governo de Trump. O chanceler diz que, no lugar disso,  na verdade a política externa do governo de Jair Bolsonaro teria eliminado um suposto "desalinhamento automático" anteriormente vigente.

Araújo disse que não embarcou em "sequer uma única iniciativa com os Estados Unidos que não correspondesse à racionalidade dos interesses brasileiros". De acordo com ele, todas a iniciativas que "tomamos com os EUA contribuíram para o incremento dos investimentos e do comércio, para o aumento de nossa capacidade tecnológica, para nosso desenvolvimento na área de defesa, para o combate ao crime organizado e ao terrorismo em nossa região, para a promoção dos nossos valores básicos como o direito à vida e a liberdade religiosa, para nosso acesso a grandes foros internacionais, para a construção de um mundo que seja favorável à democracia e à liberdade".

Na prática, porém, as conquistas junto aos Estados Unidos foram poucas. O Brasil suspendeu unilateralmente vistos de cidadãos de lá, sem exigir reciprocidade. Abriu mão de status de país em desenvolvimento na Organização Mundial do Comércio (OMC), condição que lhe garantia algumas vantagens, em troca do apoio dos Estados Unidos para ingressar na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Mas, com a troca de governo nos Estados Unidos, em que o ex-presidente Donald Trump deu lugar a Joe Biden, esse apoio ficou em suspenso. Além disso,o próprio Trump reduziu a importação do aço brasileiro.

ex-ministro, conhecido por seus longos textos e sua concepção política considerada irrealista, cita também teorias da conspiração, como uma "junção narcotráfico-terrorismo-corrupção-socialismo na América Latina (o complexo criminoso-político consubstanciado no foro de São Paulo)" — o foro, no caso, de fato existe, mas não no sentido usado pelo chanceler, que, assim como o ideólogo Olavo de Carvalho, o compara a um poderoso complô de criminosos, acusação nunca provada.

Araújo também volta a abordar a teoria do grande reset, tese conspiracionista comum na extrema direita internacional que, citando um grupo de trabalho econômico do Fórum de Davos, afirma haver um complô para reorganizar as sociedades globais a partir da pandemia.

Araújo aborda também as acusações de que desgastou as relações brasileiras com a China,  afirmando que manteve "relações produtivas com a China evitando atritos em torno das questões de Hong Kong, Taiwan e uigures, que hoje opõem a maioria dos países democráticos do mundo" ao país asiatico.

Araújo afirma que, apesar disso, "teve que exigir da Embaixada chinesa em Brasília o respeito ao Brasil e suas leis". A afirmação faz referência à crise diplomática entre o Brasil e a China no começo da pandemia, quando a embaixada chinesa reagiu com veemência a uma declaração do deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), filho do presidente Jair Bolsonaro, acusando Pequim pela disseminação da Covid.  Na ocasião, entendeu-se que o comportamento de Araújo agravou a crise.

Segundo ele, não houve qualquer problema comercial com a China por questões políticas, o que seria provado pelo fato de o Brasil ter sido "o país do mundo que mais recebeu vacinas e insumos de vacinas contra a Covid fabricados na China", informação confirmada pelo próprio embaixador da China em entrevista ao GLOBO.

O ministro também defendeu a posição do Brasil de não acompanhar a proposta da Índia de quebrar patentes de vacinas contra a Covid-19, afirmando que ela é "inviável diante da resistência de muitos membros". Segundo ele, há uma "narrativa torpe e caluniosa de que meu trabalho prejudicava a obtenção de vacinas, e de que bastaria minha saída do cargo para que mais vacinas afluíssem ao Brasil".

Sem especificar, o ministro se refere a acordos bem-sucedidos de "todos os tipos com União Europeia, Estados Unidos, Japão, Israel, Índia, EFTA, Arábia Saudita, Emirados Árabes, Marrocos, Chile, Uruguai, Paraguai, Polônia, Hungria e outros".

Ele não se refere a como no acordo com a União Europeia o Brasil cedeu em demandas antigas, sem contrapartidas. Não fala, tampouco, que a ratificação do pacto pelos países da UE está congelada e é considerada muito improvável durante o governo Bolsonaro, após vários países Estados-membros se manifestarem contrários ao acordo, exigindo contrapartidas ambientais do Brasil.

Na área ambiental, considerada uma das mais desgastadas internacionalmente pelo atual governo, Araújo disse que foi o idealizador do fundo do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) com recursos para o setor, e que trabalhou com o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, "para concretizar uma nova mentalidade em relação à Amazônia, centrada no investimento produtivo sustentável e na bioeconomia, gerando emprego e renda, ao lado da luta contra o desmatamento ilegal".

Apesar das críticas à China e também à Venezuela, Araújo elogiou outros países com governos nacional-populistas ou autoritários, como Rússia, Hungria e Polônia, além das ditaduras árabes como a Arábia Saudita. Ele não diz que não houve nenhuma visita oficial a nível de chefe de Estado ao Brasil de lideranças de uma grande potência europeia em seus dois anos à frente do Itamaraty, nem o desgaste que a relação entre o Brasil e países como França e Alemanha sofreu nesse período.

Araújo atacou ainda críticos de sua política externa, chamando-os de "embaixadores aposentados lobistas" ou de políticos acusados de corrupção. O ex-ministro disse também que abriu dois órgãos vinculados ao Itamaraty — a Fundação Alexandre de Gusmão (Funag) e o Instituto Rio Branco — "a novas correntes de pensamento, principalmente ao pensamento conservador, antes completamente ausente desses espaços".

A referência à Funag se refere a palestrantes sem experiência internacional, adeptos de teorias da conspiração, que fizeram discursos anticientíficos contra o uso de máscaras de proteção, comparando-as aos expurgos soviéticos. No Instituto Rio Branco, uma das primeiras medidas do ex-chanceler foi eliminar o curso sobre a América Latina.