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Eurípides Alcântara: Cinco reflexões para 2021
Muita gente em 2020 elevou ao estado da arte a diabólica pretensão de achar que sabe o que outro está pensando
A pandemia nos colocou na defensiva. Tive mais tempo para refletir. Levo essa bagagem de ponderações para 2021. Fiz um apanhado delas. Algumas apareceram esparsamente nas colunas publicadas. Selecionei cinco.
Primeiro. Os conceitos ideológicos e econômicos de esquerda e direita continuarão existindo, mas seu poder de explicação das realidades será cada vez menor. Dois governos direitistas, na visão clássica, são Brasil e Estados Unidos. Pois foram esses os mais gastadores em 2020. A pandemia fez esses governos liderarem os mais generosos programas sociais do mundo, uma marca registrada da esquerda. O Brasil gastou com o auxílio emergencial mais do dobro da média dos países em desenvolvimento. Tolerância e intolerância são atualmente termos bem mais palpáveis para contrastar visões antagônicas do mundo. O tolerante é capaz de mudar de opinião quando confrontado com um fato verificável e incontrastável. O intolerante, aferrado a sua crença, desacredita dos próprios sentidos e, mesmo apresentado a uma realidade tridimensional tangível, corre a se esconder em seu abrigo de ilusões.
Segundo. Muita gente em 2020 elevou ao estado da arte a diabólica pretensão de achar que sabe o que outro está pensando, cedendo à tentação de rotulá-lo e defini-lo. Esse descaminho inclui atribuir aos outros palavras que não proferiram, pensamentos que não tiveram e, com base nessas premissas falsas, degradar a pessoa da maneira mais vil nas redes sociais, em especial no Twitter. Com toda sua ambição de ágora digital, a realidade das redes tem suas vielas de “cracolândia”. Vou continuar frequentando esse território, mas com o distanciamento e as precauções requeridas aos visitantes de regiões a desbravar.
Terceiro. A exemplo da Covid-19, as ideias também se propagam como os vírus. Ideias na cabeça são jabutis em cima de postes. Elas não chegam aos nossos cérebros sem ter antes infectado outros cérebros com que nos conectamos. Essa é a beleza da humanidade e também sua perdição, pois epidemias de más ideias podem se espalhar rapidamente antes de ser detectadas e combatidas. Infelizmente, como os vírus, ideias perniciosas se propagam mais facilmente do que as que suportam a pesada carga do bom senso. Se eu tivesse a missão de selecionar estudantes ou profissionais de empresas, minha provocação aos candidatos seria descobrir se saberiam dizer como determinada ideia chegou a sua cabeça e se fixou ali. Quem tem consciência de como uma ideia o infectou tem mais chances de cultivá-la ou, se for o caso, acionar seus mecanismos de defesa imunológica para tentar detê-la.
Quarto. Resisto. Não reajo, no sentido de ser reacionário, pois isso é, por definição, uma atitude reflexiva de alguém que se deixou instrumentalizar. Resistir tem outra dimensão. É o mecanismo exercido nas sociedades democráticas com o objetivo de legitimar decisões e dar peso específico às novas correntes de pensamento e comportamento. Um exemplo é o uso do pronome neutro como forma de ativismo e aceleração da inclusão social. A cada dia mais jovens dizem com crescente naturalidade estranhezas como “todes”, “amigues” ou “você é mi namorade”. Resisto. Aconselho a quem acha isso uma estupidez que também resista. Se perdermos, “axs vencedorxs es batates”.
Quinto. A releitura do ano para mim foi o “O quarteto de Alexandria”, do britânico Lawrence Durrell. Não tivesse “perdido” o Nobel de Literatura de 1962 para o óbvio John Steinbeck e sua invulgar “As vinhas da ira”, quem sabe a tetralogia de Durrell tivesse influenciado mais gente. Aprendi pouco na primeira leitura. Agora entendi que Justine, Balthazar, Mountolive e Clea nos ensinam um fato básico: viver é fácil, conviver é difícil, pois “toda interpretação da realidade é baseada num ponto de vista único. Dois passos para o Leste ou para o Oeste, e tudo muda radicalmente de figura”.