EUGÊNIO BUCCI

Eugênio Bucci: O ridículo do hino e a escola sem sentido

É difícil pensar em algo pior do que ‘Brasil acima de tudo’ ou ‘Deus acima de todos’

Na segunda-feira a repórter Renata Cafardo, do Estadão, revelou que o MEC enviara às escolas do Brasil um par de instruções estapafúrdias e patriofrênicas. Por e-mail o órgão máximo da educação nacional pedira que as crianças fossem perfiladas para cantar o Hino Nacional e as cenas, gravadas em vídeo, fossem enviadas a Brasília para deleite dos ocupantes da Esplanada.

Não foi só. O MEC também solicitou aos dirigentes das escolas que lessem para os alunos uma mensagem ufano-pedagógica de autoria do titular da pasta, Ricardo Vélez Rodríguez: “Brasileiros! Vamos saudar o Brasil dos novos tempos e celebrar a educação responsável e de qualidade a ser desenvolvida na nossa escola pelos professores, em benefício de vocês, alunos, que constituem a nova geração. Brasil acima de tudo. Deus acima de todos!”.

Como ainda resta um pingo de consciência – e de senso de ridículo – na sociedade, a reação foi instantânea. Educadores e advogados protestaram, alegando que crianças não podem ser filmadas assim, de qualquer jeito, sem autorização dos pais. Outros repudiaram a transformação de um slogan de campanha eleitoral em chamamento de governo para as escolas.

A grita foi tão determinada e irrefutável que o ministro recuou de pronto. Tem sido assim, aliás, nesse governo de idas e vindas. O estilo da administração de turno é o “fez que foi e acabou não fondo”. A toda hora uma autoridade dispara uma bravata e depois recua. Esta semana mesmo o presidente da República voltou atrás e desistiu de aumentar o sigilo em documentos da administração federal – quer acalmar os parlamentares. Quanto ao ministro da Educação, ele é um virtuose em matéria de “fez que foi e acabou não fondo”. Há poucas semanas, numa entrevista escalafobética, pronunciou impropérios sobre o cantor e compositor Cazuza e logo teve de se desculpar. Um pouco antes, já tinha voltado atrás em mudanças desastradas nas regras de compra dos livros didáticos. Agora, adotou o mesmo procedimento. Reconheceu o erro. Disse que não quer filmar a meninada sem que os pais autorizem e admitiu que esse negócio de usar símbolos partidários como insígnias de políticas públicas não fica bem.

E assim caminha este país, sem caminhar para lugar algum. Mas não é esse o maior dos nossos problemas. Sem dúvida, as reviravoltas desastradas num governo chegado a pirotecnias patrioteiras tumultuam desnecessariamente o quadro. São ruins. Atrapalham. Mas a situação é mais complicada ainda. O nosso maior problema, como fica patente em mais essa gafe do MEC, não está nas trapalhadas cometidas por autoridades civis em posição de sentido. O maior problema é que a administração federal de turno tem, sim, um modelo obscurantista com o qual sonha em amordaçar a sociedade brasileira e só não o leva adiante porque a sociedade não se deixou vergar. Não fossem os protestos – justos e legítimos –, a esta altura as crianças brasileiras, como nos idos da ditadura militar, estariam aí ao sabor de delírios autoritários com ponto de exclamação.

Se temos algum juízo, deveríamos olhar com muito mais atenção para esse modelo obscurantista acalentado nas fileiras do bolsonarismo. Como arma publicitária de campanha, o slogan “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos” já era um pesadelo. Para começar, a primeira parte, “Brasil acima de tudo”, é um plágio infeliz de um mote abraçado pelo nazismo nos anos 1930, “Alemanha acima de tudo” (Deutschland über alles). Esse mote, por sua vez, veio de um verso de uma canção nacionalista do século 19. Logo, a fantasia que o bolsonarismo resolveu papagaiar, além de não ser original, além de não ser sequer brasileira, é velha de quase 200 anos.

Um passado mítico, já sabemos, funciona como motor para os discursos tendentes ao fascismo. No nosso caso, porém, estamos tratando de passados míticos que são de segunda mão e, na melhor das hipóteses, são paródias de mau gosto.

Se o MEC tivesse um mínimo de compromisso com a educação e com a modernidade (a fantasia de “Alemanha acima de tudo” é pré-moderna e antimoderna), pediria aos alunos redações críticas sobre o mote nazista. Pediria aos alunos que pensassem. Mas não, o MEC prefere ver as crianças perfiladas para ouvir o slogan eleitoral transformado em estética estatal. Outra vez, não por acaso, se manifesta aí mais um traço distintivo dos regimes hierarquizados, centralizadores, disciplinadores, opressivos: a estetização do Estado.

Agora nos ocupemos da segunda parte: “Deus acima de todos”. Pelo que me lembro, nas missas católicas os fiéis repetem outro tipo de enunciado: “Deus está no meio de nós”. Esse Deus autocrático, vertical, impositivo, francamente, não dá para saber bem de onde os bolsonaristas foram tirar. Não adianta dizer que é o Deus do Velho Testamento, porque aquele Deus se basta, ele não está na disputa para ficar “acima de todos”.

Em termos filosóficos, ou racionais, é difícil pensar em algo pior que “Brasil acima de tudo” ou “Deus acima de todos”. Só o que pode ser pior que cada um dos dois imperativos são os dois imperativos postos juntos. Aí, qualquer lógica desmorona. Vamos lá.

Se o Brasil está mesmo acima de tudo, teria de estar também acima de Deus. E se Deus está acima de todos, ora, teria de estar acima do Brasil. Imaginemos a cabeça de uma criança, empertigada na frente da Bandeira, tentando compreender os dois mandamentos fundidos num só. Essa criança, pobrezinha, vai concluir que Deus está fora de tudo (ou o Brasil estaria acima de Deus) e que o Brasil está fora de todos (ou Deus estaria acima do Brasil). Portanto, “tudo” não é “tudo”, assim como “todos” não significa exatamente “todos”. Alguém chame o Tim Maia, o filósofo que dizia: “Tudo é tudo e nada é nada”. Mais do que uma escola sem partido, o que o MEC quer para o Brasil é uma escola sem sentido. A sanha autoritária precisa de uma escola que não pense.

*JORNALISTA, PROFESSOR DA ECA-USP


Eugênio Bucci: O centro excêntrico da Opinião Pública

Vingou a patritotice de que o Brasil estaria ‘acima de tudo’ (como a Alemanha no passado)

“Os retratos dentro das cabeças dos seres humanos, retratos deles mesmo, dos outros, das suas necessidades, propósitos e relacionamentos, são suas opiniões públicas. Aqueles retratos que são adotados por grupos de pessoas, ou por indivíduos agindo em nomes de grupos, são Opinião Pública com letras maiúsculas” Walter Lippmann, em Public Opinion

O jornalista americano Walter Lippmann tinha pouco mais de 30 anos, em 1922, quando seu livro Public Opinion chegou às livrarias dos EUA. Foi um marco. O texto ágil e cristalino - bem “jornalístico”, dizem os acadêmicos - dissolve e dessacraliza a aura que se costuma atribuir a essa figura um tanto pomposa que é a Opinião Pública com letras maiúsculas. É bom de ler até hoje. Um clássico. Lippmann olha para a Opinião Pública e se pergunta: ora, mas que bicho é esse? Logo começa a responder. Em sua descrição, a Opinião Pública se resume a um amontoado de retratos mentais que uma sociedade resolve aceitar como fidedignos. Esses retratos nada mais são do que estereótipos.

Não por acaso, Lippmann dedica-se bastante a dissecar a noção de estereótipo: um conceito compactado que condensa uma opinião na forma de pacote de sentidos simplificado, bem fácil de ser exposto, compartilhado, vendido ou comprado. Segundo Lippmann, toda gente pensa por meio de estereótipos. Sem esses rótulos concentrados que são os estereótipos, nós não conseguiríamos conversar e muito menos fazer política. Há exemplos bem óbvios. Padre pedófilo é um estereótipo. Terrorista islâmico, outro.

São bonitas, porque simples e esclarecedoras, as passagens em que Lippmann discorre sobre o que sejam os estereótipos. “As formas estereotipadas emprestadas ao mundo não procedem apenas da arte, no sentido da pintura, da escultura e da literatura”, ele escreve (e eu traduzo), “mas também de nossos códigos morais, das filosofias sociais e das agitações políticas”. Ou: “A americanização, por exemplo, pelo menos superficialmente, é a substituição dos estereótipos europeus pelos norte-americanos”.

Impossível refutar. Acontece que os estereótipos são mutáveis. Um signo positivo se converte em negativo da noite para o dia. E vice-versa. Yasser Arafat, o líder máximo da Organização para a Libertação da Palestina, era o símbolo do mais pérfido terrorismo internacional.
Depois virou um símbolo da boa vontade mais angelical, mais ou menos como uma pombinha branca. A transmutação deu-se em 1983, por força do acordo de paz que ele firmou com o então primeiro-ministro de Israel, Yitzhak Rabin, sob as bênçãos de braços abertos do presidente Bill Clinton, que os recebeu no gramado da Casa Branca.

O mundo é feito de mudanças e os estereótipos, também. Até outro dia as mineradoras eram um selo de progresso. Hoje são sinônimo de catástrofe. Até outro dia Jair Bolsonaro era um militar indisciplinado e boquirroto. Hoje é o fiador das tais “reformas de que o Brasil precisa”, etc.

Os estereótipos são volúveis e ao sabor deles muda a Opinião Pública, essa senhora sem caráter que se compraz em se deixar carregar nos ombros das massas, que ora são infantis, ora temperamentais, ora estúpidas - ou as três coisas ao mesmo tempo.

Vejamos com mais vagar o que vem acontecendo com a Opinião Pública no Brasil. O seu centro de gravidade se deslocou em velocidade vertiginosa. Velhos estereótipos se metamorfosearam. Já se sabia que o governo Bolsonaro representaria uma alteração tectônica nas mentalidades e na cultura política. Melhor dizendo, a reconfiguração ocasionada pelo bolsonarismo, disso todos sabíamos, não se limitaria a arranjos (ou desarranjos) institucionais no âmbito do governo e do Estado, mas teria ainda mais efetividade nos interstícios da vida social. Pois é isso precisamente o que estamos vendo agora. O dado novo é que a amplitude e a densidade dessa alteração tectônica estão acima das expectativas (as boas e as más).

A desinibição com que se passou a falar das armas de fogo como solução para a criminalidade surge como um sintoma. O estereótipo do revólver deixou de significar morte, homicídio, perigo para adquirir um sentido de prevenção, segurança, cujo risco não seria maior que o de um liquidificador. A convicção de que a força resolve os impasses ganha mais e mais adeptos.

Movimentos sociais passam a ser tachados de terroristas. Uma boa sova corrige o garotinho com tendências homossexuais. A patritotice vazia de que o Brasil estaria “acima de tudo” (como a Alemanha esteve no passado) vingou. O bordão de que Deus paira acima do Estado laico pegou.

A violência volta a ser a parteira da história, mesmo que seja uma história antiga. As palavras comunismo e socialismo transmutam-se em sinônimo de corrupção, ineficiência, parasitismo. Os humores odientos das massas ecoam não só pregações fascistas, mas principalmente a verborragia dos facínoras.

Foi assim que o centro da Opinião Pública saiu de centro. Tome a GloboNews como um indicador. Até ontem o canal era bombardeado nas redes sociais por ser “de direita”, por abrigar só porta-vozes do tucanato conservador. Agora recebe ataques maciços por ser uma catedral do politicamente correto e do “marxismo cultural”. Temos aí uma obra colossal e inacreditável dos primeiros cem dias do governo Bolsonaro: transformar a GloboNews num canal de esquerda. Sinal mais clamoroso da mutação da Opinião Pública no Brasil não poderia existir.

Enquanto os velhos expoentes do centro-direita, como Fernando Henrique Cardoso, são expurgados dos banquetes por serem amigos de comunistas, líderes anticomunistas como João Doria começam a se declarar “de centro”. Vai se cumprindo, aos solavancos, o vaticínio do prefeito que dizia que o duelo do futuro seria entre a direita e a extrema direita.

No meio disso, reportagens investigativas serão tratadas como complôs de esquerdistas criminosos. A imprensa livre viverá dias mais difíceis, como já deu para ver. Mas disso trataremos em outra ocasião.

*Jornalista, é professor da ECA-USP


Eugênio Bucci: A responsabilidade da esquerda

Em vez de se defender pela negativa, deve partir para a autocrítica pública, aberta e radical

“Ma non vivere di lamento
come un cardellino accecato”
Giuseppe Ungaretti

Está certo que o contexto lá fora não ajuda. Polônia, Hungria, Áustria, Rússia, Turquia, Estados Unidos e outros países mostram a ferocidade de um novo conservadorismo raivoso: nacionalista, xenófobo e autocrático. Quanto às plataformas autointituladas “progressistas” (esse adjetivo meio curinga), descambam em farsas bonapartistas e métodos sangrentos, como na Nicarágua ou na Venezuela. Nesses casos, o bonapartismo é tão farsesco e a sanguinolência tão metódica que os resquícios de “progressismo” já vão longe, como a poeira deixada pelas patas do cavalo de Simón Bolívar. O tal “progressismo” se degrada em ditaduras que não cultivam nenhum valor humanista.

Também no Brasil, o cenário não ajuda. Nas eleições do ano passado, as agremiações de esquerda não foram meramente derrotadas: foram sentenciadas a uma desmoralização prolongada, condenadas ao papel incômodo de motivo de chacota, de ódio ou de desprezo intelectual. Os militantes que ainda não perceberam a tragédia que os engoliu se refugiam num gregarismo messiânico. Põem a consciência para hibernar, em pleno verão, enquanto uma nova direita brucutu, herdeira da ala mais fascista da ditadura militar, vai tomando posse das fantasias tanáticas de milhões de brasileiros. Essa direita hostiliza a imprensa, escarnece da cultura dos direitos humanos e agora dá as cartas.

Definitivamente, o contexto não ajuda. O entorno é adverso. A intuição do militante socialista o impele na direção de um único verbo: resistir. Acontece que, nesta hora, a intuição reativa induz a erro, é má conselheira. A saída é contraintuitiva: a esquerda – e o PT especialmente – precisa demolir os muros dentro dos quais se encolheu. Em lugar de se defender pela negativa, deve partir para a autocrítica – pública, aberta e radical.

Aí está a única agenda que conta, a única que pode abrir novas pontes de diálogo com a sociedade e reafirmar os valores da solidariedade e da liberdade além do mercado. Debater os erros programáticos, os estelionatos eleitorais e os crimes de corrupção cometidos durante os governos liderados pelo PT fará bem ao PT e à esquerda. Sem isso não haverá superação. Recusar essa agenda significará validar as infâmias dos que querem varrer os socialistas da terra brasileira, como numa confissão de culpa de amplo espectro. Ou a esquerda parte para a sua autocrítica, ou será fossilizada.

Mas como partir para a autocrítica? Quem mais se opõe à ideia é a direção do PT, sob a alegação de que isso favoreceria a direita e exporia o partido a uma expiação em praça pública. Sofisma. Em lugar do debate franco, a cúpula petista propõe o mutismo, que só faz agravar o isolamento. Em vez de esclarecer o que interessa ao campo democrático, insiste na repetição dos bordões vazios que servem apenas para tergiversar (como matraquear que o PSDB cometeu os mesmos “erros”, etc.). Nada poderia ser pior para a esquerda do que o silêncio devocional.

A cúpula prefere, como nos versos de Ungaretti, “viver se queixando, viver de lamentações, de lamúrias, de resmungos, como um pintassilgo cego”. As “aristocracias” do trabalhismo e seu instinto (equivocado) de preservação talvez sejam o maior entrave para o futuro da esquerda. Há cem anos, na Europa, a “aristocracia operária”, apegada a seus privilégios mesquinhos, escreveu páginas de traição na história da social-democracia. Agora, por um capricho dessa mesma história, algo de parecido aprisiona o PT. Um processo de autocrítica radical ameaçaria o lugar cativo da elite partidária e esta, classicamente, prefere o naufrágio a perder suas acomodações nas cabines de primeira classe.

Está cada vez mais explícita a dificuldade que certas camadas dirigentes têm em promover a democracia interna. Há décadas, agrupamentos de esquerda (não todos) padecem desse déficit democrático muito particular, que decorre diretamente dos obstáculos criados por “aristocracias” sindicais ou partidárias contra a democracia interna. Agora, quando seus aparelhos estrebucham, a “aristocracia” teima. O que farão, então, os partidos de esquerda? O que fará a esquerda? Saberá compreender a responsabilidade que lhe cabe?

Organizações de esquerda que não se renovam, não fomentam a alternância dos seus quadros dirigentes e não dinamizam a democracia interna são incapazes de liderar a modernização da sociedade e o aprimoramento do Estado de Direito. Não por acaso, quando instalados no governo, no Parlamento ou em cargos públicos, alguns dos agentes dessas organizações terminam por aboletar-se em feudos dentro do Estado e aí reproduzem, com poucas adaptações, os vícios ancestrais do patrimonialismo. Nesse ponto, é bom sublinhar, as práticas corruptas e o déficit democrático andam de mãos dadas (mesmo que às escondidas).

E agora? O PT vai abrir a discussão? Vai reciclar seu corpo dirigente? Vai punir internamente (mas publicamente) os filiados que, em funções partidárias ou públicas, cometeram crimes de corrupção? O partido enfrentará a sua quota de déficit democrático? Ainda nesse tópico, fará a crítica pública das ditaduras da Venezuela e da Nicarágua? E as outras agremiações de esquerda? Entrarão abertamente nesse debate?

Se a resposta a essas perguntas for “não”, a esquerda brasileira perderá a chance de se credenciar como oposição consequente ao governo direitista de Jair Bolsonaro. Ficará choramingando em suas catacumbas imaginárias e pondo a culpa nos outros, sempre nos outros, como os pintassilgos cegos e os adolescentes mimados.

No fim, a democracia também sairá perdendo, porque sem uma esquerda respeitada a democracia se enfraquece. Se a esquerda não se libertar do seu silêncio obsequioso, será corresponsável por mais esta: o encolhimento da cultura democrática.

*Jornalista, é professor da ECA-USP


Eugênio Bucci: O Supremo entre a imagem e a palavra

A superexposição banaliza a reputação dos ministros e fragiliza a casa da Justiça

No domingo passado, num seminário fechado em Ilhabela – sobre democracia e Judiciário –, o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), José Antonio Dias Toffoli, anunciou que, a partir de agora, a instituição que ele comanda deverá pautar-se pelo recolhimento. Sua palestra foi cadenciada e serena: “É hora de o Judiciário se recolher. É preciso que a política volte a liderar o desenvolvimento do País.” Toffoli tem absoluta razão no que preconiza. Cumpra-se.

Todo mundo já percebeu que o excesso de exposição trouxe danos sérios para o prestígio (e para a autoridade) do STF. Danos para o STF, todo mundo também sabe, são danos para a normalidade do Estado de Direito e para a expectativa de justiça que cada brasileiro nutre (ou não nutre mais) no seu coração. Quando os ministros da Suprema Corte figuram como celebridades em programas de auditório, talk shows e revistas de gente famosa, algo está fora de ordem. A Justiça parece estar fora de lugar.

Todo mundo percebeu igualmente que essa visibilidade de pop star em torno de cada um (uma) dos (das) 11 integrantes do Supremo só vem servindo para amplificar, muito mais do que os egos de cada um (e de cada uma), a vulnerabilidade da instituição diante da fúria popular (e da falsa fúria dos incendiários oportunistas). Se os ministros e as ministras se prestam – inadvertidamente – ao papel de protagonistas de um teatro de gosto suspeito (como a troca de ofensas escabrosas, no horário nobre da televisão, durante sessões do plenário), oferecem-se – involuntariamente – para ouvir impropérios de qualquer um em qualquer lugar público.

Por vezes, os membros da cúpula do Judiciário – certamente sem se dar conta – estampam cenas de um realtity show macabro. Ato contínuo, o povo, que hoje se diverte nas redes sociais dirigindo insultos contra políticos, jogadores de futebol e atrizes de telenovela, acha que pode tratar com os mesmos maus modos os magistrados da Suprema Corte. O clima vai pesando. Há campanhas irracionais pelo “impeachment” do STF nas redes sociais. Está mais do que evidente que o ciclo de superexposição se voltou contra os superexpostos, banalizando a reputação dos ministros e fragilizando a casa da Justiça.

O que nem todo mundo percebeu, ao menos no Brasil, é que há uma incompatibilidade intransponível entre a natureza da função de julgar e a natureza dos holofotes da indústria do entretenimento e da imprensa sensacionalista. A cultura política brasileira não se deu conta desse fato elementar. Não é por acaso que os ritos e os protocolos da magistratura, em qualquer sociedade, primam pelo recolhimento. No Brasil, entretanto, até mesmo as sessões do pleno do Supremo passaram a ser transmitidas pela televisão – e ao vivo. É como se as excelências acreditassem que as câmeras são neutras e inertes. É como se acreditassem que um juiz pode ser habitué de colunas sociais e, ao mesmo tempo, imprimir aos seus julgamentos a marca inquestionável da isenção e da impessoalidade. Essa crença mora na raiz do problema – e o problema, infelizmente, não foi compreendido.

Os caminhos pelos quais a letra de lei se derrama sobre o mundo cotidiano (ou, em termos menos abstratos, os caminhos da aplicação da lei) pertencem ao domínio da palavra (pensamento, razão), não ao domínio da imagem (emoções imaginárias). A Justiça, para ser perceptível, identificável, reconhecida e acessível, depende de juízes que sejam discretos e recolhidos – juízes que não atuem para roubar a cena. Quando o juiz aparece em demasia, a entidade da Justiça some da vista. A única forma de que a Justiça dispõe para se fazer presente é o trabalho de juízes sem carisma – juízes recolhidos e competentes (em pelo menos dois sentidos).

A toga, a propósito, simboliza exatamente isso: ela barra o corpo físico daquele que julga e sobre ele faz descer o manto da vontade da lei. A toga indica – ou deveria indicar – que ali não está em cena uma subjetividade eivada de paixões, idiossincrasias e vaidades, mas apenas os desígnios impessoais da lei. Hoje se nota, contudo, que a toga em voga no Supremo mais parece uma capa de Batman ou de Darth Vader. Aí, a veste talar, cujo papel simbólico seria ocultar a pessoa como forma de interditar o personalismo, serve antes para emoldurar, para enfeitar a silhueta do meritíssimo.

O que dizer, então, da TV Justiça? Muita gente de boa vontade sustenta que ela trouxe mais transparência aos atos do Judiciário. Eu mesmo já me alistei nessas fileiras. Em 2002, quando a TV Justiça estreou, eu afirmava que ela representaria para a Justiça no Brasil do século 21 o que o Concílio Vaticano II representou para a Igreja Católica no século 20: obrigaria a autoridade a parar de falar latim. Para serem compreendidos os julgadores teriam de tentar falar a língua do povo, o que seria positivo. Bem, era nisso que eu apostava e, digamos, parece que eu estava parcialmente errado (o que, de vez em quando, muito de vez em quando, acontece). Há coisas boas na TV Justiça, claro, mas, se a palavra de ordem é mesmo recolhimento, valeria repensar tudo isso.

O que o Brasil vai cobrar do seu Judiciário não passa nem perto de qualquer modalidade de estrelato. A nossa democracia espera de seus juízes que eles assegurem a vigência dos direitos fundamentais e saibam fazer valer os freios constitucionais contra o arbítrio. Para tanto eles terão de firmar padrões jurisprudenciais menos erráticos e prestigiar as decisões colegiadas sem tanto apego (egoico) às monocráticas. Só assim, pela letra da lei e pela impessoalidade, a Justiça vai aparecer como precisa. É nesse sentido que a Justiça depende do recolhimento dos seus agentes. No universo da Justiça (que é o universo do simbólico), uma palavra vale mais que mil imagens.

* Eugênio Bucci é jornalista e professor da ECA-USP

 


Eugênio Bucci: Quem gosta mais de desinformação?

Para as plateias de direita extremada, tanto faz se o divulgado é mentira ou verdade

A direita gosta mais de fake news do que a esquerda? Ou, em outros termos: as campanhas de candidatos de perfil “conservador” - os populistas, ultranacionalistas, que pregam soluções violentas para combater a criminalidade, elogiam governos autoritários, dizem defender a dita “família tradicional” e atacam gays e lésbicas - seriam mais propensas a lançar mão das fake news? Ainda não há dados conclusivos sobre isso, mas há indicativos fortes. Vejamos alguns deles.

Em 2016 o mundo descobriu, com um misto de surpresa e excitação, que jovens da Macedônia produziam conteúdos mentirosos para promover a candidatura de Donald Trump. Em seguida, repórteres do mundo inteiro foram atrás desses ativistas para entender suas razões. O que encontraram foi um tanto desconcertante. Os macedônios não tinham propriamente uma predileção pelo republicano loiro. Não queriam nem saber de política. O negócio deles era dinheiro. Eles apenas geravam notícias fraudulentas a favor de Trump e contra Hillary Clinton porque os eleitores dele eram fregueses mais vorazes que os dela. Um desses jovens, o designer Borce Pejcev, explicou tudo à Agência France Press: “Os conservadores eram mais propícios para fazer dinheiro, gostam das teorias da conspiração”.

Então, era isso. Os macedônios difundiam notícias fraudulentas a favor do republicano porque as plateias trumpistas compartilhavam mais as invencionices que eles punham na rede. Compartilhando mais, as plateias conservadoras geravam mais likes, mais cliques, mais audiência e, com isso, mais lucros. Tudo era uma questão de dinheiro. Ponto. Naquele momento, porém, fora o dinheiro, que era pouco, surgiu o primeiro sinal de que as multidões direitistas são as que mais gostam mais de fake news.

Num estudo publicado em janeiro deste ano, ainda sobre a campanha de 2016 nos Estados Unidos, os pesquisadores Brendan Nyhan, do Dartmouth College, Andrew Guess, da Princeton University, e Jason Reifler, da University of Exeter, encontraram a mesma tendência e anotaram: “Os usuários simpatizantes de Trump eram mais propensos a visitar sites identificados como disseminadores de fake news”.

Outra pesquisa, do Instituto de Internet da Universidade de Oxford, divulgada em 1.º de novembro, não desafinou da impressão geral. Em primeiro lugar, a pesquisa mostrou que a quantidade de junk news (um conjunto que agrega, além das fake news propriamente ditas, as mensagens de ódio, ou “discurso de ódio”, e as múltiplas versões de teorias conspiratórias) aumentou consideravelmente entre as campanhas de 2016 e de 2018 (as chamadas midterm eletctions). Em 2016, 20% das notícias analisadas eram junk news. Em 2018 o número subiu para 25%. Em segundo lugar, constatou que os grupos mais à direita sobrepujam os demais no uso das junk news.

Numa classificação que vai de zero (nenhuma interação com junk news) a cem (interação apenas com junk news), os perfis de extrema direita nas redes sociais tiveram nota 89, a mais alta de todas. A direita tradicional, como o Partido Republicano, ficou com 83. As páginas ligadas a causas classificadas como progressistas - grupos feministas ou defensores do direito ao aborto, por exemplo - receberam nota 49. A esquerda institucional, de oposição a Trump, teve nota 24. Por fim, sites jornalísticos marcaram 20 pontos.

O estudo de Oxford pesquisou também a campanha brasileira de 2018, cujos resultados foram anunciados um pouco antes. Em outubro o pesquisador brasileiro Caio Machado, um dos integrantes do levantamento, contou ao Estado sobre o que foi observado no Brasil (reportagem de Beatriz Bulla, correspondente em Washington, publicada em 5/10). Aqui a pesquisa mostrou que tanto partidários de Haddad como aliados de Bolsonaro recorriam às fake news e às junk news, mas, segundo Caio Machado, “apoiadores do Bolsonaro compartilham notícias falsas em maior amplitude e replicam quase todas as fontes identificadas como falsas”. Ou seja, a diferença entre um polo e outro não estaria na estratégia das duas campanhas (ambas se teriam valido de mentiras), mas na aptidão dos dois públicos: o público mais conservador seria mais propenso, também no Brasil, a espalhar as notícias fraudulentas.

Ainda outra pesquisa, do Instituto Datafolha, divulgada em 2 de outubro, mostrou que seis em cada dez eleitores de Bolsonaro se informavam pelo WhatsApp, enquanto, entre os eleitores de Haddad esse número caía para 38% (ou quase quatro em cada dez). Por fim, em 26 de outubro o site Congresso em Foco noticiou que as agências de fact checking Lupa e Aos Fatos e o projeto Fato ou Fake, do Grupo Globo, tinham desmentido, desde o início da campanha, um total de 123 notícias fraudulentas muito compartilhadas. Dessas, 104 eram contra Haddad e o PT e apenas 19 eram prejudiciais a Bolsonaro e seus aliados.

Para se ter uma ideia da boçalidade que deu o tom dessa campanha, uma das junk news contra Haddad assegurava que o candidato do PT teria dito que as crianças, ao completarem 5 anos de idade, seriam consideradas “propriedade do Estado” - e caberia ao Estado escolher o gênero da criança. Essa mentira caluniosa foi desmentida pelo projeto Fato ou Fake, no G1, em 2 de outubro.

Nada disso é conclusivo, evidentemente, mas vão se acumulando indícios convincentes de que as fake news (e as junk news) florescem mais nos canteiros do populistas ultraconservadores, ultranacionalistas e um pouquinho machistas. Por que será? Talvez - apenas talvez - porque a cultura política esteja atravessando uma mutação. As plateias da direita extremada parecem abrir mão do compromisso com os fatos e se encontram em rota de ruptura não apenas com as ideias de centro ou com as ideias de esquerda, mas com os próprios fundamentos da política democrática. Para essas plateias, se é mentira ou verdade, tanto faz.

*Jornalista, é professor da ECA-USP


Eugênio Bucci: Do tiririquismo ao bolsonarismo

Antes de ser expressão de um projeto, Bolsonaro é produto de um protesto cego e selvagem

No dia seguinte ao segundo turno, na segunda-feira 29 de outubro, o primeiro dos três editoriais do Estado, Salto no escuro, apontou um fenômeno intrigante na cena política: “Até pouco tempo atrás, o ex-capitão do Exército era apenas um candidato folclórico, desses que de tempos em tempos aparecem para causar constrangimentos nas campanhas - papel cumprido mais recentemente pelo palhaço Tiririca, aquele que se elegeu dizendo que ‘pior do que está não fica’. Pois a ‘tiriricarização’ da política atingiu seu ápice, com a escolha de um presidente da República que muitos de seus próprios eleitores consideram completamente despreparado para chefiar o governo e o Estado”. A eleição de Jair Bolsonaro representaria, portanto, o arremate de um momento histórico em que “a tiriricarização da política atingiu o seu ápice”.

Mas como interpretar a “tiriricarização”? Num primeiro fôlego, poderíamos entendê-la como a mudança de estado de uma travessura impertinente que começa a se levar a sério. Por obra da “tiriricarização”, o velho voto de protesto, que já levou as massas a sufragar o macaco Tião, no Rio de Janeiro, passa a adquirir um certo conteúdo menos efêmero, menos piadista - e mais, por assim dizer, ideológico.

A operação mental aí implicada parece um tanto ilógica, mas ocorre de fato. Em São Paulo pudemos vê-la de perto com aquele nanico agigantado, barbudo e calvo cujo nome era Enéas. Aos poucos, ele foi se metamorfoseando. De um tipo meramente farsesco, hilário, determinado a expor, com sua extravagância vocal, o ridículo da política, Enéas adquiriu a identidade de liderança de extrema direita, com inclinações bélicas que chegavam ao elogio da bomba atômica. Elegeu-se com votações assombrosas de gente que o levava a sério e se impôs como um puxador de votos.

O palhaço Tiririca, em pessoa, enveredou por uma modalidade um tanto distinta da mesma distorção. Com sua peruca prateada, repele qualquer programa de governo. Sua forma de se levar a sério é se eleger como um paspalhão e exercer seu mandato como um parlamentar nulo. Seus bordões - “pior que tá não fica” ou “enganei você”, o primeiro de corte abertamente fraudulento, o segundo mais confessional - enxovalham a política de alto a baixo. Sua ideologia consiste em rechaçar por inteiro as instituições representativas, parasitando-as por dentro e pichando-as por fora.

Por certo que existe no surgimento de tais personagens o amargor de uma deterioração da cultura política. Essa enfermidade da opinião pública, no entanto, não se manifesta como doença, mas se afirma como se fosse a própria cura. A “tiriricarização” é a patologia que se pretende vacina.

De minha parte, em lugar de “tiriricarização”, tenho preferido o substantivo tiririquismo (meu primeiro artigo sobre o assunto, neste mesmo espaço, foi publicado em 18 de setembro de 2014). O tiririquismo compraz-se em mandar os políticos e as autoridades plantar batatas. Como escrevi há quatro anos, “o tiririquismo dá ao povo uma mentira que até o povo sabe que é mentira, mas na qual é divertido acreditar”.

Há aqui uma diferença a assinalar. A figura de Jair Bolsonaro não inspira propriamente um sentimento “divertido”. Em vez disso, ele parece proporcionar uma emoção de saga heroica aos que acreditam nele. Fora isso, não há consistência programática em seu personagem, assim como não há em Tiririca. Ninguém sabe bem o que Bolsonaro vai fazer ou deixar de fazer no governo, como bem identificou o editorial do Estado: “O problema é que ninguém sabe quais são as ideias do presidente eleito, admitindo-se que ele as tem. (...) O eleitor escolheu Bolsonaro sem ter a mais remota ideia do que ele fará quando estiver na cadeira presidencial”.

É nessa perspectiva que a Nação deu, nas palavras deste jornal, “um salto no escuro”. Não surpreende que, mesmo antes da posse, trapalhadas comecem a pipocar no Planalto Central: a mudança da Embaixada do Brasil em Israel para Jerusalém, antecipada pelo eleito, provoca promessas de retaliações comerciais pelo mundo árabe; a promessa de tipificar como terrorismo as ações de protesto dos movimentos sociais já encontrou resistência na entrevista concedida na terça-feira por Sergio Moro, escalado para assumir o novo “Superministério” da Justiça. E por aí vai. “Salto no escuro”.

Claro que Bolsonaro e Tiririca são figuras que em nada se assemelham. O primeiro é mais grave e menos picaresco que o segundo. O primeiro é mais trágico. Podemos - e até devemos - considerar analogias entre o bolsonarismo e o macarthismo americano, ou entre o bolsonarismo e o ideário fascista, mas - e aqui não vai nenhuma nota jocosa -, tragédias a parte, não se pode deixar de levar em conta as raízes tiririquistas do bolsonarismo.

Entre outros sinais, essas raízes se deixam ver pela forte rejeição da política que se concentrou no pacto vitorioso nas eleições em outubro. Parece haver, dentro desse pacto, um frêmito pulsional de descartar a política, que não teria mais serventia alguma. Tiririquismo puro, mas aqui de corte mais violento.

Nessa matéria, o Brasil não está só. Uma onda antissistema vem atropelando a política mundo afora. O tiririquismo bolsonarista seria a forma brasileira dessa onda. Em alguns países, ela carrega uma expressão humorística, como no caso de Beppe Grillo, na Itália. Em outros, ela é apenas autoritarismo nacionalista de mau gosto.

Ian Bremmer, presidente da Eurásia, uma das mais respeitadas empresas de consultoria política no mundo, captou os motores da onda antissistema: “Um grande descontentamento com corrupção, serviços públicos e o establishment” (ver a reportagem de Beatriz Bulla neste jornal, 4/11, pág. A11). Bolsonaro surfa nessa onda antiestablishment, em que a comédia aciona o desastre. Antes de ser expressão de um projeto, é produto de um protesto. Um protesto cego e selvagem.

*Jornalista, Eugênio Bucci é professor da ECA-USP


Foto: Beto Barata\PR

Eugênio Bucci: O banimento dos fatos

O centro é um palanque desmontado num depósito que ninguém sabe onde fica
“A liberdade de opinião é uma farsa se a informação sobre os fatos não estiver garantida e se não forem os próprios fatos o objeto do debate.”
Hannah Arendt, Verdade e Política, 1967

De um lado, resmungam que esse negócio de “checagem de fatos” é coisa de imprensa burguesa. O argumento costuma vir com uma nota de superioridade intelectual: o sujeito que o pronuncia guarda para si um certo ar de bruxo materialista, como se divisasse nos labirintos da cidade a sombra da ideologia tensionando os fios que movem os dedos dos escribas alienados da “grande mídia”. Está convencido de que os eventos a que se dá o nome de “fatos” não passam de estratagemas a serviço da ideologia, a entidade que move a “mão invisível” de que falou Adam Smith, sem que Adam Smith sequer desconfiasse.

O argumento é presunçoso e preguiçoso, mas cola. Convence o gargarejo de que os fatos são a última ilusão funérea dos últimos positivistas da imprensa: o que vale são os princípios, a verdade histórica, a virada radical que virá com sua fatalidade apoteótica. Ler jornal é rendição. Revolucionário é proclamar que a manipulação das notícias favorece os banqueiros.

De outro lado, vociferam que essa balela de “fatos” é expediente de comunista. Só os idiotas não percebem, pontifica o moralista num figurino de peça de Nelson Rodrigues. O seu discurso vem cheio de bordões enxovalhados que, todavia, não perdem o empertigo: a imprensa está a mando do comunismo internacional; é todo mundo comunista; é todo mundo mentiroso; é todo mundo ladrão; o governo é uma corja de ladravazes, na Câmara dos Deputados não se salva ninguém; até no Supremo Tribunal Federal andam tungando o erário. Há uma infinidade de vídeos nesse diapasão zunindo pelas redes sociais. Os oradores espumam, tentam morder a câmera. Propõem que joguemos fora o Congresso, Brasília, os políticos e, junto com eles, a política. “O lixo ao lixo.”

Os moralistas de Nelson Rodrigues são o perfeito contrário dos bruxos materialistas. Num ponto, porém, uns são iguaizinhos aos outros: abominam os fatos e, mais ainda, abominam falar sobre os fatos. Os rodrigueiros têm a mania de atacar os fatos relatados pela Comissão Nacional da Verdade. Gritam que é campanha de comunista para desmoralizar as Forças Armadas no momento em que o Brasil mais precisa delas. Os materialistas em transe preferem sentenciar que todas, todas, todas as evidências factuais que atestam corrupção nas fileiras ditas “populares” são uma campanha fascista para desmoralizar as lideranças ditas “progressistas” no momento em que o Brasil mais precisa delas.

Não pense o improvável leitor (que teve a extrema generosidade de me seguir até aqui, muito obrigado) que estou falando de tipos folclóricos e irrelevantes. Olhe os nomes que lideram as pesquisas eleitorais (pesquisas que, por sinal, são um dos poucos fatos que nos restam). Confira os discursos que dão suporte a um e a outro e leia com atenção os mais doutrinários e inflamados. Não, não estamos falando de pouca gente, não são meros tipos folclóricos. Estamos falando de milhões e milhões de eleitores. Parece que as maiorias se amontoam nos extremos.

Um lado e outro e romperam definitivamente com o registro dos fatos. Apresentam cenários retirados de um país que não existe, um faz de conta do absurdo. Mesmo assim, ou exatamente por isso, arrebatam multidões. Nenhum dos polos fala do País real, dos problemas reais, das vicissitudes, das aflições e dos dramas reais. Estamos em meio a uma farsa continental e alucinatória, distribuída em pilhas trepidantes num extremo e no outro, ou mesmo em cima de você (com licença). A barulheira trágica não tem direção nem retorno.

Aí, quando não há mais nada a fazer, a gente olha para o centro. Que desolação. O centro é um jantar num restaurante de classe média alta em que um orador careca foi convidado a dar palestra. Está escuro lá fora. Quase ninguém foi. Não tinha gasolina, sabe como é. Os garçons olham o vazio. Os garçons moram longe. Fora os garçons, quase todos os pouquíssimos que vieram já foram embora. Espere aí. Ficaram uns três ou quatro. O orador conversa com eles e ouve elogios em que não acredita.

Mudemos de cenário. Eis o centro em outro ambiente: um bate-boca em bons modos, em que um triste senhor pergunta se os circunstantes querem outro candidato, pois, ao que consta, ele mesmo sói ser candidato a candidato. Saia-justa, eles dizem, mas não há mulher por lá. O centro é uma cidade fantasma. É uma cracolândia sem craqueiros. O centro é um palanque desmontado num depósito que ninguém sabe onde fica.

E no centro, é lógico, também não se fala em fatos. Aqui, porém, a gramática é outra. Ao centro, onde tudo parece o oposto do que é, sem ser, o jeito preferencial de sabotar os fatos é recorrer insistentemente aos fatos, com um detalhe disruptivo que muda tudo: a palavra “fatos” não se refere aos atos humanos ou às pessoas de carne e osso vivendo sua vida real e se relacionando; o termo “fatos” designa métricas econômicas indecifráveis, indicadores de gestão cujas fórmulas ninguém consegue explicar, planilhas contábeis dispostas em colunas infindáveis em cujos desvãos se escondem emulações longínquas de famigerados crimes de responsabilidade.

Ao centro, os fatos são brumas espectrais, só acessíveis à econometria mais inextrincável, ao juridiquês mais empolado e aos modelos matemáticos em que apenas os números são reais (e, claro, irracionais). Ao centro, os fatos não estão ao alcance de olhos humanos, dos ouvidos humanos, do tato humano. Ao centro, os fatos não vão nunca, só mandam mensagens criptografadas. Vistos do centro, os fatos são como o garçom: moram longe.

Vai daí que, de uma ponta a outra, passando pelo desertificado centro, estamos soterrados de opiniões sem base factual. Os fatos foram para o exílio. Em seu lugar, deixaram a farsa. No Brasil, veja você, não se fala coisa com coisa.

*Eugênio Bucci é jornalista e professor da ECA-USP